O Inconsciente, As Representações No Aparelho Psíquico e o Trabalho de Interpretação

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Sã o Paulo, 18 de outubro de 2010

Frederico Anastacio Celentano

Trabalho de conclusão do primeiro ciclo.


Curso de Formação em Psicanálise

O Inconsciente, as representaçõ es no aparelho psíquico e o trabalho de


interpretaçã o na psicaná lise: algumas hipó teses.

Introdução

O presente trabalho tem por objetivo reconstruir um itinerário de dúvidas, questionamentos,


inquietudes e angústias de um iniciante, tanto na teoria, quanto na experiência psicanalítica. O
título pode, dessa maneira, parecer totalmente inadequado a um primeiro trabalho, já que não
só iniciados, mas os grandes psicanalistas debatem há mais de um século os métodos, as
técnicas e os conceitos que orientam a relação entre analista e analisando e as condições de
possibilidade de uma escuta analítica ética 1, já que se tem como pressuposto a impossibilidade
epistemológica de uma escuta analítica isenta.

No entanto, o título pode ser justificado para um aluno iniciante se a sua ambição for à altura
do seu conhecimento (ou ignorância), já que o impele à organização de todos conceitos
estudados em um quadro sintético que, por sua vez, permite a formulação de uma série de
posicionamentos capazes de nortear o percurso de um futuro psicanalista. Apesar do tom
dissertativo, nada, nenhuma linha aqui escrita tem fundamento em certezas ou conclusões.
Tudo é provisório. Como em Descartes, o conhecimento inicial somente pode ser pautado por
uma dúvida metodológica universal que segue três preceitos básicos: o conformismo social
(que em nosso caso pode ser interpretado como uma primeira abordagem à cultura
psicanalítica que nos está sendo transmitida), a constância da vontade (em aprender e
reaprender, em se reinventar a cada momento) e, por fim, a moderação nos desejos (ou seja, a
inexistência de pretensão em aportar agora qualquer novidade ao conhecimento já que isso
seria produto de um trabalho árduo, longo e, muitas vezes, fruto do acaso e da sorte).

Em vista disso, e dado que a psicanálise surgiu de uma práxis, é possível se ter um diálogo
com a obra de Freud sem se ter a experiência do analista e se tendo uma ainda parca
experiência de analisando? A resposta do filósofo Paul Ricoeur em seu livro "De
l'interprétation, Essai sur Freud" contém um elemento importante de resposta:

"Não, em se tratando de um ensaio sobre a psicanálise


como prática viva; sim, em se tratando da obra de
Freud como documento escrito".

A obra de Freud, como documento escrito, construído e reconstruído a partir de uma clínica,
poderia se prestar a essa "arqueologia"do sentido, possuindo uma lógica evolutiva interna
que, se bem compreendida, traduziria-se numa prática clínica e teórica singular.

1
A é tica representa mais do que um saber viver ou um saber fazer, ou um modo de vida justo e virtuoso, é um
compromisso com o paciente que cria as condiçõ es de uma escolha autô noma. A uma hipó tese econô mica, poder-se-ía
atribuir uma hipó tese política do psiquismo: entre a liberdade e a ordem, o que e como escolher?
De fato, como colocado por Ernesto Duvidovich na aula inaugural do Ciclo 1 da Formação
em Psicanálise do CEP, Freud não explica, Freud indaga e são as boas questões ou um bom
questionamento que tentaremos fazer a partir de duas noções-chave: a de representação, como
matéria-prima do psiquismo e a de interpretação, como método de acesso ao conteúdo e às
energias investidas nas representações.

Representação e interpretação, ao lado da palavra escuta, constituem um tripé inseparável. No


dicionário Michaelis, a definição filosófica de representação é a seguinte: "ato pelo qual se
faz ver presente um objeto no espírito". Um objeto presente no espírito, por definição só pode
ser uma imagem presente na mente. Toda imagem é percepção e toda percepção, uma
interpretação da realidade.

Uma primeira parte deste trabalho será dedicada a sintetizar e tentar compreender como uma
imagem se forma no aparelho psíquico a partir das reflexões de Freud. Já a relação entre
representação e interpretação é um problema bem mais complexo e será analisada numa
segunda etapa.

Por interpretação entendemos "a explicação do sentido através da indução ou de inferências".


A interpretação somente existe porque não podemos ter acesso diretamente ao objeto
referente, pois ele não constitui uma realidade física independente de nossas percepções.
Dessa maneira, somente podemos utilizar como método, ou mais precisamente como
princípio epistemológico (ou seja, o conjunto de regras para a produção do conhecimento), a
indução ou a inferência2.

Na terceira e última parte, procuraremos trazer alguns casos e reflexões proferidos por
psicanalistas reconhecidos (J.D. Nasio e Joel Birman) onde, por um lado, a noção de indução
e inferência serão re-situadas na experiência analítica e onde um elemento externo, o contexto
social simbólico, será integrado à escolha de uma práxis. Lembre-se que toda teoria só faz
sentido se apoiada em uma prática consciente. Parafraseando J.D. Nasio em "Como trabalha
um psicanalista?", "O Psicanalista pode não saber o que diz, mas à condição que ele saiba o
que faz".

Por fim, gostaria de justificar uma escolha: cada uma das partes não está organizada em um
plano acadêmico. Seguirão reflexões numeradas como um diário de anotações sobre os cursos
e suas reflexões. Devo admitir, adotando um tom mais pessoal, que não me sinto, ainda, capaz
de escrever um texto dissertativo sobre esses temas, ao mesmo tempo, densos e extremamente
novos para mim. A aparente desordem é, assim, subproduto do meu psiquismo em plena
ebulição.

I. Como uma imagem se forma no psiquismo e o papel das recordações.

A. Lembranças encobridoras: dito, não dito e interdito.

1. Toda lembrança infantil gera traços mnêmicos que apresentam grande intensidade e
dinamismo. Isso porque o aparelho psíquico da criança não teria ainda critérios para lidar com
afetos intensos, ou não conseguiria, para utilizar uma noção da "Comunicação Preliminar",
ab-reagí-los de maneira adequada. Essa intensa mobilização de afeto ocorrida nas
experiências infantis é a principal fonte patogênica nas doenças mentais.

2. Lembranças encobridoras são recordações cujo conteúdo manifesto nos parece banal, mas
traz detalhes e sensações precisos e intensos quase alucinatórios. Assim sendo, sob o manto
de um evento aparentemente trivial parece haver outros fatos significativos da vida psíquica,

2
A indução retira conclusões de fatos mais particulares para os mais genéricos e a inferência nada mais é do que a dedução por
meio do raciocínio.
anteriores ou posteriores, e que encontram nessa recordação o substrato para se manifestarem
sob a forma de símbolos.

3. A questão colocada por Freud é, então: por que nos recordamos de algo aparentemente
irrelevante? Há duas forças psíquicas atuando nesse processo: uma que confere a um fato, ato
ou sentimento significado e importância e outra que é uma resistência à recordação. A
lembrança encobridora seria, portanto, um rastro, uma pista para se encontrar outras
experiências conexas.

4. A resistência ocorre pela existência de um conflito e de uma idéia censurável (idéia


objetável). O conflito estaria, portanto, na essência da ambivalência humana (Ex.: uma
mulher secretamente apaixonada pelo marido de sua irmã. A morte de sua irmã pode gerar
dois valores contraditórios e igualmente verdadeiros para o sujeito: dor, pela perda do ente
querido e alegria porque o caminho para conquistar esse amor estaria aberto). Quando há
conflito, portanto, uma idéia censurável pode ser associativamente deslocada, emergindo sob
a forma de uma outra lembrança (ou de um sonho ou de um ato falho). O psiquismo realiza,
portanto, um processo de conciliação ou compromisso. A lembrança (sonho ou ato falho)
seria o vetor resultante de duas forças.

5. No processo de análise, constrói-se uma narrativa capaz de retomar um caminho


associativo que dê sentido à lembrança encobridora, que faça o analisando e o analista, juntos,
aproximarem-se dos conteúdos latentes. O processo que permite fazer emergir o conteúdo
latente do analisando seria o da livre associação. Do lado do analista, o mecanismo correlato
seria o da atenção flutuante.

6. No entanto, há que se tomar muito cuidado com o processo de interpretação das imagens
que surgem desse processo, já que se corre o risco de se atribuir um sentido culturalmente
aceito à uma imagem que esconde sentidos mais profundos e pessoais. O conteúdo das
imagens se revela na linguagem do paciente. A psicanálise é a criação de narrativas. Por
exemplo, num caso trazido em sala de aula, um paciente teria sonhado com uma bomba, mas
ao invés do significado "artefato explosivo", no curso da análise surgiram dois conteúdos
inusitados: bomba de chocolate (que fazia o paciente engordar e perder sua libido) e "bomba"
no sentido de anabolizante que o permitiria retomar sua libido, por um caminho mais "curto"
ou menos "legítimo".

7. Havia por trás dessas imagens, duas hipóteses sobre quais idéias objetáveis teriam operado
um recalque capaz de fazer emergir o símbolo, ou o significante "bomba": a primeira era a de
"tomar o caminho mais curto" para se conseguir um objetivo que, por si, não seria
"merecido". A outra tinha a ver com a libido do paciente que tinha predileção por meninas
mais jovens, não propriamente crianças, mas a que ele associava uma idéia de pedofilia. Mais
para frente, o analisando reconheceu também uma idéia censurável de homossexualidade.
Surgiu, então, uma hipótese: a bomba de chocolate que o deixava mais gordo e, ao seu ver,
menos atraente, talvez fosse uma solução (compromisso) para o conflito entre libido e a idéia
censurável de se aproximar de objetos sexuais proibidos (meninas e meninos) e a bomba,
anabolizante, o perigo ao seu corpo, mas também ao corpo dos objetos de desejo sexual, por
ele ter uma libido, na sua visão, perversa.

8. Essa interpretação, plausível dentro de um contexto de análise, deve ser tomada com muita
reserva. Como veremos mais adiante, é praticamente impossível saber se aquela representação
"bomba" efetivamente estava no psiquismo com os conteúdos atribuídos na análise. Esses
conteúdos podem ter emergido a posteriori. Em si, isso não seria grave, mas há implicações
sérias na postura clínica que veremos nos capítulos II e III.

9. Parece haver uma seqüência clássica no psiquismo, encontrada pelos questionamentos e


observações realizados pela psicanálise: o conflito é seguido de repressão e deslocamento ou
substituição (formação substitutiva), dando origem a uma conciliação. Muitas vezes, o
compromisso ou conciliação se dá de maneira patológica. Por exemplo, ter um pensamento
objetável no momento em que se vê um objeto ou um fato pode gerar uma fobia daquele
objeto ou situação. Nesse caso, houve um deslocamento e a conciliação se fez por um
processo de condensação da energia psíquica no objeto ou situação. Mas, qual o efetivo papel
curativo da psicanálise? Ela pode encontrar e anular a matriz do processo
deslocamento/condensação/compromisso?

10. A psicanálise, até o momento em que escrevo essas linhas, parece não ser capaz de
produzir uma cura ou mesmo trazer a felicidade, mas somente a consciência para que se possa
"sofrer no lugar certo". No caso de uma fobia, por exemplo, a energia psíquica deve se
circunscrever ao processo psíquico reprimido e a não a um representante deslocado, não ao
mundo todo. Talvez esse seja o significado da frase Wo Es war, soll Ich werden, cuja
interpretação livre seria "Onde Isso era, devo advir". É claro que o Isso não pode ser abolido,
mas parece que há uma proposição terapêutica em que o eu, associado à consciência ou aos
processos conscientes de indução e inferência podem advir no lugar do Isso onde pulsões e
representações se movimentam sem domínio ou controle. Mas isso é uma reflexão ainda
muito prematura.

11. Interessante notar uma questão levantada pelo texto "Lembranças Encobridoras" de Freud.
Há a possibilidade de se atribuir veracidade ou falsidade a uma lembrança encobridora que é
manifestamente subproduto de um recalque? Ou seja, o conteúdo da lembrança efetivamente
existiu? Mais do que isso, a questão de sua veracidade é relevante? Em certos casos, surgiu
em sala de aula a idéia de que pode ser importante tentar fazer a prova da realidade histórica
de uma recordação. Principalmente nas recordações que são associadas à culpa. No entanto,
dois comentários se fazem necessários: 1. No texto de Freud, a prova da realidade histórica
estaria na existência de elementos da recordação aos quais não se atribuiu qualquer sentido.
Parece-me uma prova muito pouco convincente, já que o sentido desses elementos poderia
também estar reprimido. O fato de não se dar sentido a algo pode apenas querer dizer que não
se pôde associar a esse algo uma significância 2. Quanto ao argumento sobre as recordações
ligadas à culpa, não me parece que culpabilidade tenha qualquer relação com eventos ou atos.
A culpa tem a ver com a noção de imputabilidade que é de ordem eminentemente psíquica 3 e
não com um fato em si.

B. Das lembranças aos sonhos: a regressão e os mecanismos de funcionamento da memória.

1. Lembranças são apenas partes superficiais do que emerge do inconsciente. Os materiais


oníricos parecem fornecer provas mais contundentes da existência dessa outra cena dentro de
nossos psiquismos. Como funcionam os sonhos e por que mecanismos as imagens inscritas
em nosso psiquismo como traços mnêmicos se tornam imagens sensoriais organizadas?

2. A força propulsora dos sonhos são desejos que se buscam realizar. O fato dos sonhos não
serem reconhecidos como desejos tem relação com a censura psíquica a que esses desejos
foram submetidos durante sua formação.

3. Os desejos reprimidos buscam sua realização fugindo à censura através de um processo de


deslocamento e condensação. Esse processo de deslocamento e condensação das energias
psíquicas depositadas no inconsciente gera novas formações (substitutas) que emergem como
imagens sensoriais, uma imagem objetivada e vivenciada no sonho como no estado de vigília.

4. Mas, qual é exatamente o lugar psíquico do sonho? Dois elementos importantes:

3
Excluindo-se a noção de imputabilidade legal, é claro.
 no sonho, o pensamento é representado como uma situação imediata, omitindo-se o
"talvez". As situações representadas existem, portanto, como realidades psíquicas. Há
supressão do condicional e utilização do presente do indicativo. Os desejos, nos
sonhos, representam-se como realizados.

 no sonho, o pensamento se transforma em imagens visuais e sonoras (fala, por


exemplo). Os sonhos operam como "alucinações". Os desejos geram uma tensão de
necessidade. Antes de passar ao ato, o ser humano tende a "alucinar"ou a fantasiar a
satisfação do desejo que permite ao psiquismo continuar na ausência do objeto. Isso é
permitido por um traço mnêmico que está presente no psiquismo.

5. Freud parte da idéia de que o sonho, como realização de um desejo, tem uma localização
dentro do aparelho psíquico. É nesse local em que se produz um estágio preliminar da
imagem. Compara a formação dessas imagens com os reflexos ou com as imagens impressas
numa fotografia. Essas imagens são traços mnêmicos gerados pela experiência. Esses traços
são a matéria-prima, por assim dizer do psiquismo. São captados pelo aparelho psíquico e
registrados com "deformações" que podem ser maiores ou menores dependendo das
associações e das cadeias de associações feitas no psiquismo.

6. Concebe, então, o aparelho psíquico como possuindo diversas instâncias e qualquer


excitação neuronal atravessa o aparelho numa ordem estabelecida, ou seja numa seqüência
temporal. O fluxo no aparelho psíquico possui um sentido e direção: inicia-se na percepção
(estímulos externos ou internos) e termina nas inervações (função motora). Trata-se de uma
reprodução psíquica da teoria do arco-reflexo, onde a percepção dá ensejo à ação.

7. A percepção gera traços mnêmicos e a função a eles associada é a memória. Os traços


mnêmicos geram uma modificação permanente do aparelho psíquico. Freud aponta para o
fato de que seria impossível que o mesmo sistema registrasse modificações de seus elementos
de maneira absolutamente fiel e ainda assim permanecesse aberto a receber novas
oportunidades de modificação. Às duas funções são atribuídos dois sistemas diferentes: um
sistema totalmente aberto que não registra nenhum traço mnêmico e um segundo sistema que
transforma as imagens em memórias.

8. No entanto, Freud cria uma hipótese: o ser humano retém mais do que os conteúdos
advindos do sistema de percepção. Nossas percepções estão mutuamente ligadas no interior
do sistema que retém os traços mnêmicos. São percepções associadas. A evidência de que o
sistema de percepção não possui memória está na sua possibilidade de gerar novas
percepções. Caso houvesse o remanescente de uma ligação anterior nesse sistema, seria
impossível absorver novas experiências. Jorge Luis Borges em seu texto Funes, o Memorioso
retrata muito bem essa situação. No conto, Funes sofre um acidente a partir do qual passa a se
lembrar de todos os momentos de sua vida, o que o impede de viver o presente e o impede de
qualquer relação com o futuro. "Haveria um esclarecimento promissor a se fazer sobre as
condições que regem a excitação dos neurônios, caso fosse possível demonstrar que a
memória e a qualidade que caracteriza a consciência são mutuamente exclusivas." (Freud).

9. A associação mnêmica é tanto mais facilitada quanto haja menos resistência na passagem
de uma excitação pelos diferentes elementos mnêmicos até chegar ao aparelho motor. Assim
uma nova percepção gerará um novo traço mnêmico e se verificarão vários registros
diferentes em cada traço mnêmico já presente no aparelho psíquico. As associações não serão
realizadas por critérios temporais, mas por uma série de outros processos, como similaridade
e oposição, dentre outros (cf. a noção de semiose infinita em Peirce relatada no capítulo II).

10. Se as percepções são conscientes, os traços mnêmicos são inconscientes. Podem se tornar
conscientes (inconscientes no sentido descritivo), mas causam seus maiores efeitos quando
estão atuando de maneira inconsciente (no sentido sistêmico). O caráter, a personalidade,
baseia-se nesses traços mnêmicos que nos causaram as maiores impressões, normalmente na
infância.

11. Só é possível existir uma formação onírica se existirem, pelo menos, duas instâncias
psíquicas, uma submetendo a atividade da outra a uma crítica que envolveria a exclusão da
consciência. Essa instância crítica se liga mais à consciência do que ao Inconsciente e atua
como uma tela entre o ICs e o Cs. Esse sistema crítico se situaria no Pré-Consciente (PCs)
que é o arquivo de memórias latentes ou "deformadas" pela integração com outros traços
mnêmicos, acessível ao consciente. O inconsciente só tem acesso à consciência através do
PCs. As moções do inconsciente só se tornam acessíveis ao PCs se tiverem uma dada
intensidade e que a atenção esteja distribuída de uma certa maneira, o que se verá no capítulo
II, infra, sobre o Inconsciente.

12. Retomando, o dito inicialmente: a força propulsora dos sonhos está no sistema ICs
(embora Freud já alerte para o fato de que é preciso considerar que as imagens inconscientes
devam se ligar a imagens pré-conscientes para poderem emergir). Freud demonstra que todas
as estruturas do pensamento tendem a caminhar para o sistema PCs e daí emergir como
pensamento consciente. Os pensamentos inconscientes não são diferentes. "Os processos
reflexos continuam a ser o modelo de todas as funções psíquicas".

13. No estado de vigília essa via que parte do Inconsciente para chegar ao PCs e ao Cs é
barrada pela censura / resistência. Durante a noite, eles conseguem ter acesso à consciência
(no esquema de Freud formado pela Percepção numa extremidade e pela parte motora na
outra). Como? Se a energia passasse diretamente pelos sistemas para alcançar o pré-
consciente, esses sonhos apareceriam como idéias e não como imagens alucinatórias. Parece
haver, à noite, um movimento contrário ao fluxo normal da energia psíquica. Há um
movimento retrocedente, ou uma regressão. Ao invés da excitação se propagar para a parte
motora, retrocede ao sistema de percepção e emerge como uma "alucinação".

14. Esse processo ocorre também no estado de vigília, mas não a ponto de produzir
alucinações. Podem produzir lembranças com características alucinatórias, mas o movimento
retrocedente nunca ultrapassa as imagens mnêmicas. Por que isso é diferente nos sonhos?
Pelo trabalho de condensação onde há intensidades que são transferidas de uma representação
para outra e essa alteração permite uma catexia no sistema perceptivo.

15. É importante notar que toda relação lógica no fluxo normal que vai das percepções ao
sistema motor não funciona nos sistemas oníricos. Assim, há traços mnêmicos iniciais que
vão investindo traços mnêmicos posteriores e se transformando em construções que adquirem
estrutura lógica quando passam de um sistema inferior a um superior (do ponto de vista
organizacional). No movimento regressivo, "a trama dos pensamentos oníricos decompõe-se
em sua matéria prima". É como se um traço mnêmico, no processo regressivo, fosse se
decompondo um unidades fundamentais, cuja intensidade se transfere de uma representação a
outra.

16. Durante o dia, de fato, há uma corrente contínua das percepções à parte motora, mas
durante a noite não há a necessidade de que essa corrente se estabeleça nesse sentido (as
funções motoras estando suspensas). Portanto, a corrente pode seguir com maior facilidade
em sentido oposto. Daí podermos considerar que os pensamentos incidentes, os atos falhos, as
lembranças encobridoras que conseguem se dirigir contra o fluxo normal do aparelho
psíquico em vigília, teriam particular força e significância. Mas, isso não está explícito em
Freud.

17. Freud fornece um exemplo interessantes de formações substitutas a partir de imagens que
foram suprimidas: a do menino que não dormia com imagens de um monstro de rosto verde e
olhos vermelhos. A masturbação, segundo sua mãe lhe ensinara, deixaria as pessoas com o
rosto verde e os olhos vermelhos e os transformaria em idiotas. Não é de se surpreender que o
menino tivesse um desempenho escolar bem inferior ao esperado.

18. Dessa forma, todo pensamento ou ato vinculado a um traço mnêmico e proibido pela
censura pode sofrer um processo de regressão. Esses pensamentos ou intensidades ou afetos
podem se conectar a representações que necessitam encontrar expressão por meio de uma
formação substitutiva, imagens, sonhos, lembranças ou atos falhos

II. O que emerge do inconsciente e como interpretar essas representações?

1. Por ser o objeto da psicanálise por excelência, a noção de inconsciente sofreu, ao longo de
seus mais de 100 anos de existência, leituras e releituras que a modificaram sobremaneira. A
principal contribuição para essa transformação veio de outras disciplinas como a lingüística, a
lógica e a etnologia. Dentre essas contribuições se destaca a obra de Jacques Lacan que
propõe uma conceituação do inconsciente como linguagem.

2. No entanto, na própria obra de Freud, o conceito de Inconsciente já inclui uma reflexão


sobre a linguagem. Exemplo disso é a noção de representação ou de representante-
representação, ou ainda de "representância"-representação que já enuncia o Inconsciente
como um sistema simbólico, permitindo uma exegese a partir do estudo da linguagem ou,
para usar um termo mais contemporâneo, de uma semiótica. Lembre-se, nesse sentido, que se
de início, principalmente no capítulo VII da Interpretação dos sonhos, a preocupação
Freudiana é tópica, ou seja, a de encontrar a estrutura do psiquismo e o lugar do Inconsciente
nele. Nos escritos posteriores, sua preocupação passa a ser mais com a formação de
representações no Inconsciente e a relação destas com as pulsões.

3. Um traço comum a toda obra de Freud é a identificação entre o reprimido ou recalcado e o


ICs como um "lugar psíquico diferenciado". Freud procura, também, desde o início
especificá-lo como um lugar psíquico que não encontra um correlato em um órgão anatômico.
No entanto, é preciso lembrar que Freud era médico e que tinha algumas hipóteses sobre o
funcionamento neuronal e sobre sua relação com o psiquismo. Isso está presente no Projeto de
1895 que, embora abandonado, influenciou as hipóteses sobre o fluxo e a quantidade de
energia psíquica na determinação das pulsões. Como se verá, é justamente essa hipótese de
investimento e descarga de energias que será associada a uma teoria da representação do
recalcado e é a teoria do representante-representação (ou da "representância") que irão fundar
todas as hipóteses mais contemporâneas sobre o funcionamento do psiquismo.

4. O que é o Inconsciente? A pergunta é tão complexa que Garcia-Roza em sua "Introdução à


Metapsicologia", tomo III, procura iniciar sua conceituação pelo que ele não é. O
Inconsciente freudiano não é um degrau mais profundo da consciência, não é uma margem ou
franja da consciência/razão que estaria diretamente associada ao psiquismo. Há atos,
comportamentos, discursos que não fazem sentido se observados pelo prisma da consciência.
A hipótese que funda, portanto, a existência do Inconsciente reside na idéia de que nada há de
arbitrário nos acontecimentos psíquicos e que sonhos, lembranças, atos falhos não são meros
resíduos dos processos conscientes.

5. A complexidade cresce ainda mais se considerarmos a questão do estatuto ontológico do


Inconsciente e de sua pessoalidade, materializada na indagação se Freud "descobriu" um lugar
psíquico com realidade própria ou se Freud "criou" o inconsciente; na hipóteses de pensarmos
o inconsciente como um lugar com representações concretas ou como um conceito lógico e
operatório; na idéia de que o inconsciente seria um construto "interpessoal", fruto de um
processo analítico ou uma realidade pessoal, com aspectos constitutivos e adquiridos pela
experiência humana individual.
6. Parece estar na teoria das representações alguma pista para uma reflexão mais estruturada
sobre o tema. De fato, para Freud, as representações são conteúdos psíquicos reais e não
abstrações ou conceitos operatórios. O Inconsciente existe e produz efeitos e as
representações existem como entidades no psiquismo humano.

7. No entanto, essas entidades poderiam perfeitamente ser fruto de construções significantes.


Subprodutos de um processo de significação conferido às pulsões. O Inconsciente, mas mais
precisamente, o psiquismo como um todo, seria um sistema mnêmico investido que
produziria uma "trama de significações" capaz de capturar as moções pulsionais.

8. Não há como se ter absoluta certeza se, no Inconsciente, essa trama de significações existe
como entidade. Essa incerteza tem uma relação direta com o princípio pelo qual a simples
observação de um objeto, sobretudo quando esse objeto é um sujeito, modifica-o, transforma-
o.

9. De fato, os traços mnêmicos reproduzidos em uma análise são produtos inter-subjetivos.


Saber se as representações existem fora daquele momento em que elas foram expostas é, do
ponto de vista epistemológico, impossível. Não pode se observar uma representação humana
como objeto, mas apenas como relato.

10. Uma tal conclusão teria conseqüências clínicas bastante importantes. Em primeiro lugar, o
analista jamais poderia apresentar ou conduzir a análise em direção à descoberta de uma
realidade psíquica, de uma classificação dos processos psíquicos ou até mesmo da
classificação de uma patologia. Ele somente poderia interagir com o sujeito/analisando em
uma relação pautada pela construção de um saber viver consigo, em família e em sociedade,
face às pulsões retratadas a partir dos derivados discursivos dos representantes-representações
(ou das representâncias) que foram reprimidas e que emergem suficientemente disfarçadas
para superar a censura ou resistência do sistema pré-consciente/consciente.

11. Em segundo lugar, nessa relação entre analista e analisando, um diálogo de inconscientes
seria impossível. O que emergiria só estaria mediado pela consciência e, assim sendo, o
substrato da psicanálise seria a linguagem. Entre analisando e analista, criar-se-iam
convenções de conteúdos lingüísticos, estabelecendo um processo de semiose (formação do
significado) que permitiria a comunicação. Nesse processo de comunicação surgiria, aos
poucos, uma narrativa a ser interpretada, à qual se conferiria conferida um sentido.

12. Se chegar ao recalcado parece ser uma missão impossível, o objeto da psicanálise não
poderia ser o de fazê-lo emergir para que pudesse ser "trabalhado", mas simplesmente o de
construir uma narrativa sobre a consciência da própria identidade.

13. Aqui, Freud parece dispor de provas clínicas abundantes sobre a capacidade de, a partir de
um diálogo sobre "representâncias", de um diálogo sobre um material simbólico, apoiar a
construção e adequação do eu face a uma disfuncionalidade reconhecida e trazida pelo
paciente.

14. Nesse sentido, a posição de Nasio pela qual o Inconsciente que pode ser conhecido ou
reconhecido não é do analista, não é do analisando, mas é um Inconsciente impessoal que
pertence a ambos, ou seja, um Inconsciente interpessoal, parece uma hipótese plausível sobre
a sua natureza e seu funcionamento. Mais do que isso, parece uma hipótese que em que não
há superinterpretação.

15. Essas elaborações são, como se pode imaginar, bastante provisórias e trazem em si
questões muito complexas que não poderão ser tratadas aqui em um texto tão imaturo. Apenas
a título de exemplo, remetamo-nos à recordação de Freud relatada no texto "Lembranças
Encobridoras". Saber se o amarelo do dente-de-leão dos campos é o significante da imagem
libidinal do desejo pela menina que ele teria conhecido em suas férias, desejo esse que não
fora realizado; saber se "tirar as flores" da prima é, no psiquismo, o significante do ato de
defloramento; saber se o pão-com-manteiga é o significante das atividades prosaicas a que
ele teria renunciado é, no mínimo, um ato de fé, sem que, antes, levantemos alguns conceitos
de maneira mais precisa. Porque, in fine, todos esses significados podem ser construtos de
significantes que falam, com intensidade, a uma pessoa, num contexto e em um determinado
momento da vida. Não que a eles não se reconheçam força vinculante e, até mesmo, função
terapêutica. Pelo contrário. Mas tê-los como "realidades no psiquismo, a essa altura dos
conhecimentos adquiridos, parece, ainda, algo prematuro. "

16. Pessoal ou interpessoal, realidade ontológica ou construto operatório, o Inconsciente, em


qualquer hipótese, pode ser conceituado como um sistema que participa do funcionamento do
psiquismo, ao lado de um outro sistema denominado Pré-consciente / Consciente.

17. Qualquer interpretação (atribuição de sentido estruturante para a vida psíquica) sobre o
material simbólico trazido pelo analisando só é possível através de um aparato conceitual que
crie hipóteses sobre o processo pelo qual as energias psíquicas e as representações circulam
por esses sistemas. Mais do que isso, conceituar as pulsões, suas representações investidas, os
afetos decorrentes e os seus respectivos destinos é uma pré-condição essencial para que se
possa iniciar um processo de interpretação.

18. Não são todos traços mnêmicos organizados, ou representações inconscientes que são
importantes ou pertinentes para o psiquismo. Daí a distinção entre Inconsciente descritivo e
Inconsciente sistêmico. Há fatos que simplesmente não estão presentes no psiquismo e que
podem se tornar conscientes sem maiores esforços. Aqui falamos do Inconsciente no sentido
descritivo. No sentido sistêmico, falamos do Inconsciente que comporta as representações
recalcadas.

19. Interessante notar que na clivagem do psiquismo operada pelo recalque, o Cs não é
propriamente um sistema, mas um dispositivo de atenção a estímulos externos e internos. O
PCs sim é um sistema porque às suas portas está a censura e dentro dele todas as
representações que passaram pelo censor e estão passíveis de se emergir no aparato de
atenção que é o Cs.

20. Aqui chegamos a um ponto crucial da teoria freudiana sobre o ICs que também tem
implicações epistemológicas e clínicas. O que ocorre com uma representação quando ela
passa de um sistema a outro? Há uma dupla inscrição ou há uma passagem com
transformação (hipótese funcional)?

21. Na primeira hipótese haveria uma simples transcrição, ou seja, a representação permanece
no sistema originário. A segunda hipótese está identificada com a hipóteses econômica - a
representação estaria investida de uma energia específica em cada um dos sistemas. Quando
passasse de um sistema a outro ela seria desinvestida e reinvestida.

22. Segundo Garcia-Roza, essa segunda hipótese é mais facilmente inteligível quando
aplicada ao recalcamento e a primeira quando aplicada à passagem do sistema ICs ao PCs/Cs.

23. De fato, na segunda hipótese, o desinvestimento que ocorre no recalcamento utiliza a


energia desinvestida para reprimir a idéia objetável e para que ela permaneça no sistema ICs.
Essa energia específica do ICs está conectada às pulsões e é chamada de libido (energia de
origem sexual que busca a satisfação do prazer). Já no processo contrário, a passagem de uma
representação do ICs ao PCs/Cs estaria investida de uma energia caracterizada comode
interesse ou de função para o psiquismo, mesmo que essa função seja a de descarga de um
afeto, como veremos.
24. A cada um desses investimentos corresponde um processo, um princípio e um
mecanismo.

ICs = energia pulsional/libidinal livre = princípio de prazer / processo de condensação e


deslocamento;
PCs/CS = interesse / energia ligada, organizada = princípio de realidade.

Lembre-se que esse processo já supõe que a clivagem psíquica ocorreu devido ao
recalcamento original que utilizará um contra-investimento pela energia diretamente
absorvida da fonte pulsional - essa energia terá um poder organizador do psiquismo através de
imagens e representações que criam um campo onde outras imagens e representações não
poderão aparecer porque permanecerão contra-investidas por uma estrutura que gera o
sentido - o aparelho psíquico não seria capaz de integrar de maneira organizada certas
imagens contra-investidas e, assim, o recalque originário atrairia essas imagens que não
podem ser integradas.

25. O problema da hipótese tópica e funcional parece menos importante quando se considera
a distinção entre representação-coisa e representação-palavra. No esquema acima em negrito,
percebemos que no sistema PCs/Cs que é mais organizado, há a presença da representação-
palavra, entendida como uma representação complexa formada da imagem acústica, da
imagem motora, da imagem de leitura e de escrita, em sua relação com a representação-coisa,
o objeto referente. A representação-objeto, por sua vez, não designa como a representação-
coisa apenas o referente, mas o significado dessa representação-coisa. Pode-se dizer que a
representação-palavra seria o significante e a representação-objeto o significado.

26. Assim, quando desinvestida no sistema PCs/Cs, a representação-objeto é recalcada para o


ICs sem a representação-palavra que é suprimida ou superada. Da mesma forma, uma
representação-coisa passa do sistema ICs ao PCs/Cs quando associada a uma representação-
palavra. Essa idéia é muito importante já que o universo inconsciente não seria o universo da
palavra, mas apenas o universo da imagem.

27. No entanto, para que nós o compreendamos uma representação, precisamos da mediação
da palavra e, por isso, o que emerge na consciência só pode ser um derivado do recalcado
original e um disfarce do recalcado propriamente dito, um derivado disfarçado que pôde ser
nomeado pois passou pela censura.

28. Sendo assim, aquilo que é recalcado, por definição, não pode ser nomeado. Todo o
trabalho da análise seria, então, o de permitir a geração desses derivados que podem ser
nomeados e que trazem consigo uma referência ao recalcado. Esses derivados emergem como
representações-objeto. As representações-objeto são, portanto, um complexo
significante/significado que fazem referência a uma idéia recalcada.

29. Chegamos, portanto, a um dos maiores problemas da teoria freudiana, a questão de como
se ligam as representações e as pulsões. Já se disse que toda representação está investida de
uma energia psíquica num dos sistemas. O que ocorre com as representações e a energia
psíquica correspondente quando há o recalque ou no retorno do recalcado? Entender esse
processo é essencial para que depois possamos abordar as condições da interpretação dos
derivados psíquicos e o significado dessa interpretação.

30. No centro da teoria freudiana está uma noção cuja tradução tem gerado muitas dúvidas. A
noção de Vorstellungrepräsentanz. Nos escritos de 1915 sobre a metapsicologia
(principalmente no artigo sobre o recalque), Freud afirma existir um recalque originário, uma
primeira fase de recalcamento em que é negada à consciência o acesso do representante
psíquico de uma pulsão, fundando a clivagem do psiquismo e criando o inconsciente. A
Vorstellungrepräsentanz seria a representância da representação psíquica e sua pulsão. Seria,
portanto uma representação psíquica investida da sua energia, da pulsão correspondente.

31. Para se entender melhor o conceito, voltemos à noção de pulsão. Garcia-Roza ressalta que
em Freud a pulsão é um conceito fronteiriço entre o somático e o psíquico. No âmbito
somático é Triebreiz ou uma excitação somática (corporal) endógena. É um sinal. No âmbito
psíquico, a pulsão investe uma representação e ganha sentido, significado. A
Vorstellungrepräsentanz seria, portanto, a delegada da pulsão no psiquismo, a representância-
representação, o agenciamento da energia pulsional na representação. Nesse sentido, portanto,
a Vorstellungrepräsentanz seria decomposta em uma representação-objeto e numa energia
pulsional investida, ou seja, num quantum de excitação, na parte intensiva da representação.
Sem essa energia, a Vorstellungrepräsentanz ficaria reduzida à sua dimensão significativa.
Por outro lado, sem a representação, ficaria reduzida a uma circulação de intensidades, sem
qualquer significado.

32. É portanto a associação da pulsão ao significado que cria essa entidade presente no
psiquismo, a Vorstellungrepräsentanz ou representância-representação, que é aquilo a que se
tem acesso no processo de análise. É uma representação investida de pulsão. Por sua vez, na
análise, essa pulsão aparece especificamente como uma descarga, ou o que podemos assinalar
como um afeto. Dessa maneira, o recalcado é uma representância (ou um representante por
delegação) da pulsão - um Triebrepräsentanz. Na análise surgem desse Triebrepräsentanz,
por um lado uma Vorstellungrepräsentanz, ou seja, uma imagem ou representação-objeto
investida e, por outro lado, uma descarga, o afeto.

33. Para tornar a questão mais clara, voltemos ao exemplo da cena relatada no texto
Lembranças Encobridoras: o dente-de-leão e sua cor vívida, que torna a memória quase
alucinatória, somente emerge como significativa porque é uma representação-objeto investida
(ou uma Vorstellungrepräsentanz). São essas representações e não quaisquer representações
que serão determinantes num processo de análise. Também será determinante a atenção dada
à descarga, ao afeto que pode, nesse sentido, ser associado a um sintoma. No entanto, a essa
descarga deve ser atribuído um sentido que somente emerge no processo de representação.

Ressalte-se que a diferença entre pulsão (no sentido psíquico) e afeto apenas diz respeito à
hipótese econômica de Freud: pulsão é investimento e afeto descarga.

34. O problema fundamental do processo psicanalítico seria o de como interpretar a


Vorstellungrepräsentanz? Para tanto é preciso uma hipótese sobre como o inconsciente está
estruturado e como emergem as representações à consciência. (Evidentemente, a resposta à
questão também estará vinculada à questão inicial sobre a realidade ontológica do
inconsciente).

35. O Inconsciente está estruturado como linguagem. Essa hipótese parte da idéia de que o
ICs não é um universo desorganizado, há sentido, há linguagem, embora não haja palavras.
Para Lacan o Inconsciente é uma linguagem porque é, em si, um sistema lingüístico com
atribuições próprias de sentido. Para tanto o Triebrepräsentanz tem que existir de fato no
inconsciente e, de fato, no inconsciente devem se operar condensações e deslocamentos, ou,
para utilizar um termo lacaniano, metáforas e metonímias.

36. A idéia de que os pólos metafóricos e metonímicos estão associados à condensação (fusão
de significantes dando origem a novas cadeias de significantes) e ao deslocamento
(substituição de significantes por contigüidade), estruturada por Roman Jackobson e retomada
por Jacques Lacan traz um sentido específico ao termo linguagem. Não se trata simplesmente,
como para os lingüistas, de uma união entre uma imagem acústica e um conceito, a relação
significantes/significado aqui atribui uma relação do signo com o corpo e mais precisamente
com a sexualidade.
37. Há, portanto, entremeando a relação significante/significado na psicanálise, o que Charles
Anders Peirce, segundo o "Tratado geral de Semiótica" de Umberto Eco, denominou
interpretante. E não qualquer tipo de interpretante, um interpretante específico, determinado
por um sistema de hipóteses e pressupostos sobre o funcionamento do psiquismo. Para Peirce,
o interpretante não se confunde com o intérprete, ele é um outro significante conceitual. Ou
seja, a atribuição de um significado a um significante depende de um outro significante
anterior (uma outra imagem acústica que remete a outro significado) e assim por diante,
criando uma cadeia infinita de significantes.

38. O trabalho da interpretação em psicanálise poderia ser, assim, o de desvendar o(s)


sentido(s) ou o de atribuir sentido(s) a essa cadeia de significantes. É um processo onde ou a
semiose já ocorreu e há que se lidar com ela como um objeto ou há um processo de semiose
contínuo. Esse "ou", mais uma vez, depende de uma visão sobre a existência do inconsciente.

39. Ainda que provisoriamente, neste texto, pôde-se identificar três hipóteses sobre a natureza
do inconsciente que têm impacto sobre a forma de interpretar. Evidentemente, essas hipóteses
estão sujeitas a uma quase certa revisão nos próximos anos e como o decorrer dos estudos,
mas servem, pelo menos, como quadros de entendimento. São elas:

 Hipótese ontológica e individual: o ICs existe como objeto, é pessoal e é povoado por
representantes pulsionais investidos.
 Hipótese interpessoal: ICs existe como relação subjetiva e é um construto do analista
e do analisando, na relação de análise.
 Hipótese operatória: não se sabe se o ICs existe, mas o material trazido pelo
analisando é um material certamente investido, mas sem significado a prioristico. O
significado será construído na análise.

40. Na primeira hipótese, a tarefa é a de desvendar os representantes inconscientes e a


exigência ética do processo de análise impele o analista, no processo de transferência, a atuar
como se existisse uma realidade externa a ele e à consciência do analisando. Ele pode e deve
atuar como se procurasse um objeto, como se fizesse uma arqueologia das representações.
Frases afirmativas são permitidas, já que o objetivo é o de encontrar um sentido oculto. O
amarelo do dente-de-leão do texto sobre as Lembranças Encobridoras de Freud é o
significante do vestido amarelo da menina por quem o analisando se apaixonou.
Nesse caso, ressalte-se que o fato do analista trabalhar, em sua própria análise, os seus
recalques serviria para, na sua prática analítica, não obliterar os representantes do analisando
que tivessem ressonâncias negativas no seu psiquismo. Para que possa exercer a contento seu
trabalho de arqueologia.
Uma prática marcada pela possibilidade de cura está também implícita nesse trabalho.

41. Na segunda hipótese, o trabalho também é o de desvendar um material, mas um material


cujo sentido se construiu a partir da interação do analista e do analisando; é, portanto, o de
encontrar o sentido do material trazido por e para essa relação. É um trabalho ao mesmo
tempo de semiose involuntária ou inconsciente e de arqueologia consciente, ambos
intersubjetivos. A ética de trabalho também é assertiva, mas comporta uma ambigüidade. Há
a possibilidade de uma conclusão do trabalho interpretativo, mas essa conclusão não é
peremptória. (cf. o caso relatado por J.D. Nasio abaixo relatado).
Por sua vez, a análise a que o analista realiza o coloca numa trama de análises e de
inconscientes intersubjetivos, permitindo uma compreensão expandida dos sentidos possíveis
ao material trazido pelo analisando.
Mas esses inconscientes são todos provisórios e se desfazem quando a relação analítica
termina. A possibilidade de cura, parece aqui excluída por definição. Não há cura, só
adaptação.
42. Na terceira hipótese, mais radical, há somente um processo de semiose, de criação do
sentido a partir do material trazido pelo analisando. Saber se esse material existe, de fato, no
inconsciente é irrelevante. Não há nada a ser desvendado e, portanto, a ética do processo de
análise é essencialmente indagativa. Nada é, tudo pode ser e cabe ao analisando escolher o
sentido que melhor atende às suas necessidades. A hipótese é ao mesmo tempo libertária,
construída de maneira intersubjetiva, mas escolhida e concluída individualmente. Toda
conclusão é aqui, por essência, relativa. Mas, isso não parece implicar sua mutabilidade. Não
parece implicar também a inexistência do psiquismo. Somente quer dizer que, na
impossibilidade de se saber a existência das representações no psiquismo com um significado
a priorístico, a análise apoiaria a construção de um psiquismo autônomo ou uma construção
autônoma da identidade. Nesse caso, a análise do analista servirá para lhe mostrar os limites
de sua prática, de suas representações e de seu psiquismo. Os limites da transferência e de sua
participação. Também tem como função expandir seu repertório de conceitos, percepções e
significações.
Aqui, paradoxalmente, a hipótese de cura volta a ter relevância. O sintoma pode ser
endereçado, ou seja, pode se dar a ele um lugar claro, um sentido e/ou uma função.

III. Reflexões clínicas: escuta e interpretação. Duas abordagens: J.D. Nasio e Joel Birman.

1. Para J.D. Nasio a interpretaçã o nã o é qualquer apresentaçã o ou fala que se dá ao paciente, mas
uma expressã o que tem um valor semâ ntico, o valor de um sentido que ela veicula. Nesse sentido,
a interpretaçã o significante, como ele a nomeia, pressupõ e um engajamento duplo: do analista e,
como ressonâ ncia, do analisando. A interpretaçã o significante possuem traços distintivos,
indicadores da sua emergência. "Indicadores referentes ao aparecimento da interpretaçã o no
analista e ao momento de recepçã o pelo analisando".

2. Como fala interpretativa, alguns indicadores sã o, para Nasio, muito claros:

 sã o enunciados curtos e bem delimitados, mas que comportam um elemento de


ambigü idade para o analisando,
 sã o enunciados sem uma conexã o direta com o material trazido pelo analisando,
 a interpretaçã o é impessoal, nã o há "eu" nessa fala,
 sã o interpretaçõ es do grande Outro, esperadas pelo grande Outro, sendo esse grande
Outro o inconsciente engajado no tratamento,
 Diga-se, desde já , que para Nasio, há um só inconsciente, o produzido pela relaçã o entre
o analista e o analisando.

3. Como recepçã o, a interpretaçã o significante é marcada pelo silêncio, pelo choque, seguido do
reconhecimento. Algo mudou, algo se alterou na estrutura da aná lise. Reconhecer como e o que
mudou é um trabalho a posteriori e muitas vezes difícil.

4. No exemplo clínico trazido por Nasio, ele conta que a um relato de repulsa à sua mã e, de uma
paciente que tinha um filho enurético e que tinha sido ela mesma enurética quando criança, ele
proferiu, sem saber exatamente porque, deixando se levar pelo grande Outro, a seguinte frase:
"Nã o é ela que você nã o suporta, é o cheiro dela". Num primeiro momento, até mesmo o analista
se viu surpreso, mas a paciente replicou, apó s uma pausa: "Nã o é possível! É verdade! Totalmente
verdade! Sempre soube disso, mas nã o percebia, nã o percebia e nã o conseguia dizer isso a mim
mesma. Mas como é que você sabe?

5. Sem entrar no relato detalhado da reconstruçã o feita por Nasio para compreender o porquê
daquela fala e que liga o fato da paciente ter sido enurética, o cheiro da urina que causava
excitaçã o quando criança e quando adulta, ao sentir o mesmo cheiro no filho, uma nova excitaçã o
e que isso se contrapunha com o laço olfativo eró tico que ensejava a repulsa, o desgosto do
desejo feminino pela sua mã e, podemos afirmar que tanto a frase de Nasio, quanto a frase da
paciente e a reconstruçã o dos porquês dessa fala e desse reconhecimento fazem parte de um
construto intersubjetivo significante. Saber se há, por trá s disso, uma realidade ontoló gica
parece, aqui, irrelevante em vista da força da interpretaçã o no processo analítico.
6. Num outro registro, Joel Birman em sua palestra "A adolescência Hoje" demonstra como as
condiçõ es da prática analítica e da interpretaçã o devem integrar novos contextos simbó licos.
Nesse sentido, parece desafiar todas as condiçõ es expostas por Nasio para uma fala
interpretativa significante.

Partindo de uma interpretaçã o da contemporaneidade pó s-moderna caracterizada pela


desintegraçã o da família nuclear burguesa, onde os filhos nã o representam mais o investimento
para um futuro esperançoso, Joel coloca em evidência o desinvestimento narcísico dos jovens que
crescem, portanto, desprovidos de uma identidade simbó lica consistente, sentindo-se impotentes
diante do mundo. Impotência fortalecida pelas menores oportunidades de inserçã o só cio-
econô mica em um mundo globalizado, onde o desemprego atinge até mesmo as classes médias e
as elites.

Esses jovens criariam, entã o, simulacros de identidade hiper-narcísica, ultra-individualista, com


uma excessiva ênfase na representaçã o do corpo (no investimento excessivo na aparência e na
idéia de um corpo musculoso) e, por conseqü ência, simulacros de força, concretizados em
prá ticas agressivas, aparentemente sem sentido, onde a intimidaçã o do outro faria as vezes de
uma demonstraçã o de potência de açã o de que os jovens estariam, de fato, desinvestidos. Joel
demonstra, por fim, como todas essas representaçõ es corporais e a ênfase na açã o sã o
acompanhadas por um empobrecimento da linguagem e do simbó lico.

Nesse contexto uma escuta analítica flutuante e uma interpretaçã o excessivamente aberta e
ambígua, os enunciados curtos e desconexos, em aparência com o material trazido pelo paciente
e a interpretaçã o individual podem reforçar a desconstruçã o do paciente. Esse jovem
desinvestido, necessita de uma escuta mais direta, mais "olho no olho", mais dirigida e povoada
de interpretaçõ es do material trazido que engajem o "eu"do analista e que proporcione um
reinvestimento narcísico mínimo. As condiçõ es acima descritas por Nasio parecem inadequadas
ao contexto simbó lico e ao psiquismo desses jovens.

IV. Conclusões.

Interessante falar de conclusõ es quando nada se tem a concluir. Aqui, volto a falar na primeira
pessoa. Nã o há ainda e, nã o sei se haverá , qualquer conclusã o possível nesse processo de
aprendizado.

Parece nã o haver uma hipó tese unívoca sobre o inconsciente e suas representâ ncias, sobre as
prá ticas clínicas e sobre a escuta e a interpretaçã o. A prá tica e a ética da psicaná lise
contemporâ neas nos coloca em face de uma complexidade que nos obriga a pensar. A utilizaçã o
pura e simples de um instrumental teó rico como referencial mú ltiplo é importante para, como diz
J.D. Nasio, mesmo que nã o se saiba o que diz, saiba-se o que faz, o porquê se está fazendo. Essa é a
ú nica ética de trabalho a que posso me propor, aprender, ouvir e trabalhar para situar minha
experiência analítica atual e para, um dia, poder situar minha relaçã o com meus analisandos em
sua singularidade.

Bibliografia.

FREUD, Sigmund
Vol. XV - “Conferências introdutórias à psicanálise. Obras Completas - Ed. Imago.
Vol. XVI - “Conferência XIX - Resistência e Repressão”(1917). Obras Completas - Ed.
Imago.
Vol. XVI - “Conferência XVIII - Fixação aos traumas. O inconsciente” (1917). Obras
Completas - Ed. Imago.
"L'interprétation du rêve", Oeuvres complètes, Quadrige, PUF, 2009.
"Métapsychologie", Oeuvres complètes, Quadrige, PUF, 2010.

GARCIA-ROZA, L.F. - Introdução à Metapsicologia Freudiana vol. 03 - Jorge Zahar Ed. Capítulos
03 e 04.
LAPLANCHE, J. - PONTALIS, J. B - Vocabulário de Psicanálise, Ed.Martins Fontes, 12oed., SP,
1992.

ECO, Umberto, Tratado Geral de Semiótica, Estudos, Perspectiva, 2000.

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