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História da Química

A História sob o Olhar da Química: As Especiarias


e sua Importância na Alimentação Humana

Ronaldo da Silva Rodrigues e Roberto Ribeiro da Silva

A história das especiarias e sua relação com as grandes navegações é um assunto que desperta a curiosidade
e o interesse de professores e estudantes. Este artigo aborda um pouco dessa história, adicionando um ingre-
diente que pode tornar sua leitura um pouco mais saborosa: a importância que as especiarias desempenharam
na alimentação de nossos antepassados.

especiarias, historia da ciência, história da alimentação

Recebido em 30/06/09, aceito em 07/12/09


84

F
atos ligados à história têm sido dúvida, encaixa-se dentro de algumas todos necessitavam dessas “dádivas”
sugeridos como alternativas, das justificativas apontadas acima. da natureza (Nepomuceno, 2005).
visando possíveis melhorias no Viajemos por ela. Não apenas o ouro e a prata, mas
ensino de Ciências. Adicionalmente, O processo de efetiva ocupação também os sabores e odores d’além
pesquisas recentes descritas na li- da América pelos europeus a partir do mar fizeram parte das motivações que
teratura buscam relacionar o uso da século XVI foi ocasionado, inicialmen- impeliram homens a lançarem-se rumo
história com objetivos de uma alfabe- te, pela necessidade desses povos ao oceano desconhecido em busca de
tização científica, que busque romper em traçar novas rotas para tornar fortuna. Os metais preciosos sempre
com as imagens deformadas da mais acessível o comércio das espe- foram alvo da cobiça dos seres huma-
Ciência. Dentre as justificativas apre- ciarias, termo atribuído a mercadorias nos, mas por qual motivo as especia-
sentadas, podemos citar algumas caras e difíceis de serem obtidas e rias eram tão importantes? Para se ter
tais como: a) pode ser motivadora; b) usadas para temperar comida. uma ideia do valor que era conferido a
contradiz o cienticifismo e o dogma- Em 1453, o império turco-otomano esses produtos, basta dizer que o pri-
tismo presente nos textos escolares; tomou Constantinopla e colocou sob meiro mapa que incluiu o novo mundo
c) favorece a interdisciplinaridade; seu jugo todo o comércio dos prin- e lhe atribuiu o nome de América, feito
d) é um instrumento cipais condimentos pelo monge alemão Martin Waldsee-
eficiente na oposi- utilizados na alimen- müller, em 1507 (Menezes e Santos,
ção ao presenteísmo Pesquisas recentes descritas tação europeia bem 2006), identificava determinadas regi-
muito comum entre na literatura buscam como as rotas para ões do globo com pequenos textos
os jovens de hoje; relacionar o uso da história alcançá-los. No velho nos quais constavam comentários a
e) pode contribuir com objetivos de uma continente, as espe- respeito desses alimentos1.
para uma análise da alfabetização científica, ciarias eram impres- As quatro mais valorizadas na-
diversidade cultu- que busque romper com cindíveis por compo- quele tempo eram a pimenta-do-
ral; e f) muitos fatos as imagens deformadas da rem os conservantes reino, o cravo, a canela e a noz-mos-
da história são do Ciência. de alimentos e por se- cada. De acordo com Nepomuceno
conhecimento dos rem utilizadas como (2005), essas especiarias “eram
alunos (Pereira e Silva, 2009). A his- remédios, afrodisíacos, temperos, moedas de troca, dotes, heranças,
tória das especiarias, sem sombra de perfumes, incensos etc. Praticamente reservas de capital, divisas de um
reino. Pagavam serviços, impos-
Esta seção contempla a história da Química como parte da história da ciência, buscando ressaltar como o conhecimento tos, dívidas, acordos e obrigações
científico é construído. religiosas” (p. 25). Segundo essa

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autora, as principais especiarias co- ao gigantesco empreendimento de últimos espanhóis e portugueses.
mercializadas na época das grandes comércio com a Ásia, África e, pos- Para consolidarem o comércio de
navegações eram nativas da Ásia teriormente, América. Foram criadas, noz-moscada produzida nas ilhas de
Tropical 2, das florestas quentes e então, sete companhias das “Índias Banda (na Indonésia), massacraram
úmidas, e não podiam ser produzi- Orientais” (as mais famosas eram a população local, escravizando os
das na Europa. Assim, a inglesa e a holandesa) e quatro que sobraram, além de destruírem
companhias das “Índias Ocidentais” as árvores de noz-moscada que não
[...] eram compradas secas – como era chamado o continente estavam situadas em torno de suas
e dessa forma utilizadas. Sua americano. O importante era saber construções fortificadas (Le Couteur
grande durabilidade, resis- que mesmo algumas expedições e Burreson, 2006). Além disso, nego-
tência a mofos e pragas nos realizadas por corsários foram orga- ciaram em 1667 a saída dos britâni-
longos tempos de estocagem, nizações com base na sociedade por cos da região, cedendo-lhes a Nova
tornara possível e próspero ações. A própria rainha da Inglaterra Amsterdã (atual Nova York).
seu comércio: suportavam por possuía ações de uma das campa- Nesse contexto, a elite europeia
meses e até anos as travessias nhas do famoso pirata Francis Drake3 financiou a viagem por mar de aventu-
por mar ou terra sem perder (Huberman, 1986). reiros capazes de trazer, diretamente
as qualidades aromáticas e A descoberta de novas rotas em do Oriente, as tão desejadas merca-
medicinais. (p. 25) busca de especia- dorias. Assim eles poderiam vendê-
rias do Oriente não las e garantir a entrada de metais
O comércio com As principais especiarias ocasionou a diminui- preciosos via comércio exterior em
os produtos advin- comercializadas na época ção do preço des- seu território.
dos do Oriente era das grandes navegações ses artigos na Euro- Curiosamente, a utilização de
tão lucrativo que deu eram nativas da Ásia pa. Pelo contrário, a dinheiro na atividade de compra e
origem a homens Tropical, das florestas busca por riqueza venda desses produtos levou para o
extremamente ricos quentes e úmidas, e não desmedida aumen- dia a dia do europeu
na Europa. Eduardo podiam ser produzidas na tou o preço dessas 85
Galeano (1992), na Europa. mercadorias, e esse [...] uma abstração própria
obra As veias abertas fator aliado a outros de um tipo de raciocínio teó-
da América Latina, registra que Karl (como, por exemplo, a guerra) foi rico, antes patrimônio exclu-
Marx, no livro I do segundo volume de mais que suficiente para espalhar a sivo de intelectuais, no qual
O Capital, destacou que “o descobri- miséria entre uma boa parte da po- símbolos podiam representar
mento das jazidas de ouro e prata da pulação da Europa, África, Ásia, Oce- objetos concretos. Além disso,
América, [...] o começo da conquista ania e América. Vasco da Gama (em a manipulação da moeda nas
e saqueio das Índias Orientais, a 1503), ao retornar cinco anos após a sociedades em franco desen-
conversão do continente africano em sua primeira e “amigável” visita à Ca- volvimento comercial gerou a
local de caça de escravos negros: licute – na costa oeste da Índia –, não necessidade do aprendizado
são todos feitos que assinalam os al- teve a intenção de realizar qualquer do cálculo matemático pela
vores da era de produção capitalista” tipo de negócio com os governantes gente simples das cidades e
(p. 39). Muitos desses abastados ne- da região. Segundo Le Couteur e dos campos. [...] Em pouco
gociantes ergueram ou prejudicaram Burreson (2006), lá desembarcou tempo multiplicaram-se as
reis somente com o poder do capital com os soldados a seu comando e escolas de cálculo, e a ma-
que detinham e das negociatas lucra- tomou à força a cidade, garantindo o temática passou a fazer parte
tivas que articulavam. controle português sobre o comércio da formação das populações
Os navegadores saíram em di- da pimenta e o início do que viria a ser urbanas. (Braga e cols., 2004,
reção ao oeste (o que ocasionou a o império português p. 18-19)
posterior ocupação das Américas que se estendeu por
pelos europeus) e ao sul, contornando parte da África, da O comércio com os Por conta dessa
a África. Segundo Huberman (1986), Índia, da Indonésia produtos advindos do necessidade práti-
em sua primeira viagem à Índia, Vasco e do Brasil. Oriente era tão lucrativo ca da matemática,
da Gama obteve um lucro de 6.000%! Da mesma forma que deu origem a homens outras áreas do
Como essa oportunidade comer- que os portugueses, extremamente ricos na conhecimento aca-
cialmente lucrativa não poderia ser espanhóis, holande- Europa. baram também se
explorada por uma única pessoa nem ses e ingleses co- desenvolvendo. Nas
mesmo por um pequeno grupo delas biçavam praticar o comércio das discussões cotidianas, como já
devido aos altos custos envolvidos, especiarias. No século XVII, os ho- havia ocorrido há bem mais tempo
surgiram, a essa época, as socieda- landeses dominaram essa atividade nas rodas filosóficas, confirmava-se
des por ações, capazes de levantar garantindo o seu monopólio depois a capacidade que a racionalidade
os enormes capitais necessários que expulsaram das Molucas os representada pelos números tinha

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para encontrar a solução de muitos à superação e correção dos
problemas. A partir daí, “começaram antigos, dando vida a um novo
a ser procurados novos caminhos, ideal: o progresso (p. 32-33)
que utilizassem a linguagem mate-
mática na busca da verdade” (Braga As especiarias, tão importantes
e cols., 2004, p. 21). A avidez pelo quando analisadas sob o ponto
comércio transformou a Holanda em de vista político e econômico, tive-
uma potência na exploração de novas ram sua relevância social retratada
terras, impulsionando a tecnologia também pela elite artística daquele
nessa nação. Em todos os países período (Figuras 1 e 2). Muitas pin-
Figura 2: Refeição com ostras. Pintura de
exploradores da Europa, os proble- turas registraram sua utilização na Pieter Claesz, 1633. Os cidadãos abas-
mas impostos pelas navegações preparação de vários pratos e na tados de Haarlem (na Holanda) estavam
provocaram o desenvolvimento da composição de valorizados costumes particularmente abertos ao gosto refinado
engenharia (invenção de máquinas como, por exemplo, o de consumir exibido no café da manhã. Nessa pin-
capazes de marcar melhor o tempo), chá em reuniões sociais ou familia- tura, notam-se, entre outras coisas, pão,
da astronomia (definição de pontos res (Figura 3). Assim, não podemos avelãs, um limão cortado e descascado,
de referência no céu tão importantes negar que esses alimentos possuem ostras e um pequeno cone de papel com
para a navegação noturna), enfim, características intrínsecas que cer- pimenta. Fonte: WGA (2008).
de diversas áreas do conhecimento. tamente os colocaram em situação
Na Itália, os abastados comerciantes de destaque e possibilitaram sua eram comidas muito mais frescas do
financiavam aqueles que detinham exploração comercialmente lucrati- que atualmente.
a técnica de manipular os materiais va. Nesse sentido, encontramos na Outra tese considera que mui-
naturais disponíveis e promoveram literatura justificativas capazes de tos desses produtos importados
a construção de palácios, catedrais esclarecer o motivo da extrema va- do Oriente não tinham uma função
e todo tipo de edificações e obras lorização das especiarias na época culinária, mas terapêutica. Flandrin
86 de arte capazes de tornar a vida das grandes navegações com base e Montanari (1998) revelam que em
nas cidades mais confortável e mais na forma como eram utilizadas. um livro intitulado Le thresor de santé
agradável. (O tesouro da saúde), publicado em
A metodologia prática necessária 1607, está registrado que a pimenta-
ao trabalho nas navegações sus- do-reino
citou, em alguns filósofos, a ideia
de que o conhecimento deveria ser [...] mantém a saúde, con-
construído a partir da experiência, forta o estômago [...], dissipa
como já havia sido sugerido em os gases [...]. Cura os calafrios
textos da Antiguidade: “o progresso das febres intermitentes, cura
tecnológico requeria liberdade na também picada de cobras.
busca do conhecimento. As aven- Quando bebida, serve para
turas em terras exóticas sacudiam tosse [...] mastigada com uvas
a mesmice desafiando a sabedoria Figura 1: Cozinheira. Obra de Frans passas purga o catarro, abre o
vigente e mostrando que ideias acei- Snyders, 1630. Museu Wallraf-Richartz, apetite. O cravo-da-índia, por
tas há anos poderiam estar erradas” Colônia (Alemanha). Cozinheira moendo sua vez, serve para os olhos,
(Sagan e Soter, 2000, s/p). Nessa temperos em um almofariz. Notam-se para o fígado, para o coração,
visão, identificam-se aspectos do sobre a mesa, entre outras coisas, cravos- para o estômago. Seu óleo é
da-índia e diferentes animais abatidos.
que seria denominado para a ciên- excelente contra dor de dentes.
Fonte: WGA (2008).
cia moderna como experimentação Serve [...] para as doenças frias
(Braga e cols., 2004). Dessa forma, Uma dessas explicações diz res- do estômago [...]. Ele ajuda
peito à capacidade de as especiarias muito na digestão, se for cozido
[...] as grandes navegações servirem para conservar as carnes ou num bom vinho com semente
mudaram por completo a his- para mascarar o gosto infecto das de funcho. (p. 480-481)
tória da Europa. Além de serem malconservadas. Entretanto, para
fundamentais para o estabele- Flandrin e Montanari (1998), essa Dessa forma, imaginava-se que
cimento da ciência moderna, explicação se revela insatisfatória. Em todas as especiarias tivessem pro-
possibilitaram a queda de primeiro lugar, segundo eles, porque priedades semelhantes. Inclusive
vários mitos medievais. Além os agentes de conservação das car- essa função medicinal precedia a
disso, mostraram que a adoção nes já conhecidos naquela época utilização da especiaria como con-
de um planejamento para a in- eram o sal, o vinagre, o óleo e não dimento, pois os temperos empre-
vestigação podia levar, não só as especiarias. Em seguida, porque, gados na cozinha no fim da Idade
a novos conhecimentos, mas com exceção das salgas, as carnes Média foram importados, a princípio,

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eram utilizadas em 58 a 78% das re- tornar os alimentos mais apetitosos
ceitas, e ácidos, em 48 a 65%. Nessa e de fácil digestão. Podemos dizer
perspectiva, as especiarias (considera- que cozinhar naquela época, assim
das quentes e secas) eram “desman- como hoje, era dar aos alimentos os
chadas”, “diluídas” ou “neutralizadas” sabores mais agradáveis de acordo
com ácidos (sempre frios e secos) com as crenças dietéticas e os há-
antes de serem adicionadas ao prato. bitos alimentares dos indivíduos de
Supunha-se que os ácidos teriam a uma determinada cultura.
propriedade de se infiltrar nos canais Na América do Sul, antes da colo-
mais estreitos e, assim, esperava-se nização, a população autóctone tinha
Figura 3: Tigelas de chá chinesas. Pieter que eles levassem o a seu dispor muitas
Gerritsz. van Roestraeten – séc. XVII – calor das especiarias plantas adequadas
Museu do Estado, Berlim. O chá estava para todas as partes Em todos os países para temperar seus
entre os principais itens de importação do corpo. Dos mate- exploradores da Europa, os alimentos, cujos sa-
holandesa. Fonte: WGA (2008).
riais de caráter ácido problemas impostos pelas bores tiveram sua
utilizados pelos co- navegações provocaram boa qualidade com-
como medicamento e só depois para zinheiros franceses, o desenvolvimento da provada pelo paladar
temperar alimentos. dois apareciam com engenharia (invenção de dos próprios explo-
Assim, do século XIII ao início maior frequência: o máquinas capazes de radores, dos mais
do século XVII, os médicos não agraço (suco extraído marcar melhor o tempo), antigos aos mais
cessaram de recomendar o uso de de uvas verdes) e o da astronomia (definição contemporâneos.
especiarias no tempero das carnes vinagre. de pontos de referência Conforme registrou
para torná-las mais fáceis de digerir. Dado que os con- no céu tão importantes o marechal Cândi-
Segundo Flandrin e Montanari (1998), ceitos de medicina para a navegação noturna), do Mariano Rondon,
Aldebrandin de Siena escreveu em antiga eram muito enfim, de diversas áreas do após suas viagens
seu Le régime du corps (1256) que a próximos da expe- conhecimento. pelo interior do Brasil 87
canela tem a capacidade “de reforçar riência vulgar, os no início do século
a virtude do fígado e do estômago princípios da dietética podiam ser XX, certas tribos preparavam o peixe
[...] [e de] fazer que a carne tenha difundidos por outros meios além dos para suas refeições de forma incom-
um bom cozimento [...]; [os cravos- livros. Todos, na sociedade medie- parável (Cascudo, 2004).
da-índia] reforçam a natureza do val, os aprendiam comendo – como Os nativos, diferentemente dos
estômago e do corpo, [...] eliminam acontece ainda hoje com todos os invasores, não temperavam seu
a ventosidade e os maus humores tipos de sociedades que consomem alimento antes ou durante o seu cozi-
[...] engendrados pelo frio, e ajudam especiarias. Os provérbios antigos mento. A carne que não fosse consu-
no cozimento da carne” (p. 481) etc. testemunham a circulação oral de de- mida ainda fresca, por exemplo, era
Naquele tempo, todos aqueles terminadas prescrições da dietética conservada a partir de um processo
instruídos pela restrita educação antiga. Acreditava-se, por exemplo, denominado moquém (a carne era
elitista entendiam que as carnes salga- tostada ao calor). Nas palavras de
a digestão como das provocavam o Lery4 (apud Cascudo, 2004), ao pre-
um processo de A elite europeia financiou escorbuto, por isso parar seu tempero preferido,
cozimento. O mais a viagem por mar de sempre eram consu-
importante agen- aventureiros capazes de midas com um “anti- [...] os selvagens pilam (a
te desse processo trazer, diretamente do escorbuto”: a mostar- pimenta) com sal, que sabem
era o calor animal, Oriente, as tão desejadas da. Daí os provérbios fabricar retendo a água do mar
responsável pelo mercadorias. Assim eles do século XVI: em valos. A essa mistura cha-
lento cozimento do poderiam vendê-las e mam Ionquet e a empregam
alimento no estôma- garantir a entrada de metais De carne salga- como empregamos o sal; entre-
go. Segundo essa preciosos via comércio da sem mostarda/ tanto não salgam os alimentos,
visão, as especiarias exterior em seu território. Libera nos Domi- carne, peixe etc., antes de pô-lo
contrabalançavam ne. Que Deus nos na boca. Tomam primeiro o
a casual frieza dos alimentos, contri- proteja: de mulher que se pinta, bocado e engolem em seguida
buindo assim para a sua cocção, uma de criado que em frente ao uma pitada de Ion­quet para dar
vez que todas elas eram classificadas espelho tarda, e de carne de sabor à comida. (p. 120)
como quentes e, em sua maioria, boi sem mostarda. (Flandrin e
secas (Flandrin e Montanari, 1998). Montanari, 1998, p. 494) De acordo com os registros da
Livros de cozinha franceses publi- época, muitos dos habitantes destas
cados entre o século XIV e meados do Portanto, o uso dos temperos terras não gostavam do sal e sequer
século XVI atestam que as especiarias tinha pelo menos dois objetivos: o usavam de forma isolada. Mesmo

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sendo bem reduzida a sua ingestão, tas substituíam o sal e, depois (Cascudo, 2004).
esses indivíduos não apresentavam reunidas a ele nas inquitaias e Podemos notar a relevância ine-
qualquer problema relacionado à ijuquis, foram suficientes para gável de diferentes condimentos nas
sua falta. Para Cascudo (2004), a a castidade gustativa dos dois mais variadas culturas que estiveram
pele dos nativos sul-americanos era grupos étnicos. (p. 127) e ainda estão relacionados e depen-
protegida da perda de sais minerais, dentes das sensações que podem
considerando que sua cobertura A pimenta brasileira (do gênero proporcionar aos nossos sentidos
com pigmentos naturais retirados do Capsicum), ou quiya, era um con- (Quadro 1). A busca pelos condimen-
genipapo (Genipa americana) e do dimento largamente tos que davam alma
urucum (Bixa orellana), argila e pó de utilizado pelos pri- às refeições forçou
carvão reduzia a sudorese. Tanto os meiros habitantes A pimenta brasileira (do o alargamento dos
povos da África como boa parte dos das terras america- gênero Capsicum), ou horizontes geográ-
povos americanos preteriam o sal em nas. Quase todas as quiya, era um condimento ficos e intelectuais
favor da pimenta: tribos conhecidas no largamente utilizado pelos das pessoas que vi-
século XVII tinham primeiros habitantes das veram no período da
Ambos, indígena e negro, hortas das quais re- terras americanas. expansão marítima.
eram e são fanáticos pela tiravam a pimenta A Europa passou a
pimenta cujos alcaloides da para condimentar suas refeições. O ser considerada apenas como mais
Capsicum encarregar-se-iam mercenário alemão Hans Staden, no um lugar no vasto planeta Terra. Por
de estimular-lhes o apetite pela século XVI, foi testemunha do con- conta dessas novas noções de mun-
excitação digestiva. De Lagos, trabando realizado pelos franceses do é que, no século XVI, Copérnico
na Nigéria, Antonio Olinto5 fala- na costa brasileira, de onde estes pôde inaugurar a nova astronomia,
me, em janeiro de 1963, que levavam enormes carregamentos de retirando, das mentes de seus con-
a pimenta é empregada em pau-brasil, algodão e pimenta, frutos temporâneos, o próprio planeta do
nível inimaginável. As pimen- de negociatas com os tupiniquins centro do universo.
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Quadro 1: A química das especiarias

Especiaria Substância presente


Pimenta-do-reino: é um fruto que dá em cachos de trepadeiras Piperina – substância responsável pelo sabor picante. Foi
no sudoeste da Índia, região de grandes florestas. Verdes e extraída pela primeira vez em 1877 e sintetizada em 1882.
postas a secar, tornam-se pretas. Têm propriedades digesti-
vas, estimulantes do apetite, da circulação e são boas para
resfriados.

Cravo-da-índia: é o cabinho de odor agradável que sustenta a Eugenol – substância que caracteriza o odor. Obtida de dife-
flor de uma árvore nativa da Indonésia. Na medicina asiática, rentes fontes naturais e sintetizada em 1919.
tonifica os rins, combate bactérias, fungos, parasitas, micoses
e entra em preparados para dor de dente como analgésico.

Canela: árvore cujos galhos secos são separados de suas Aldeído cinâmico – substância responsável pelo odor carac-
“cascas” marrom-avermelhadas, muito perfumadas. Nativa terístico da canela. Foi sintetizada em 1884.
do antigo Ceilão, atual Sri Lanka, ao sul da Índia. Tem pro-
priedades analgésicas e digestivas, combate a fraqueza e o
desânimo.

Noz-moscada: É o caroço de um fruto que dá em imensa Miristicina – substância responsável pelo sabor e odor carac­
árvore da ilha de Banda. É utilizada na indústria farmacêu- terístico da noz-moscada. Isolada em 1907 e sintetizada em
tica, na perfumaria e para conferir sabor e odor a alimentos. 1939.
Na medicina asiática, é anti-inflamatória, tonifica coração e
cérebro e combate fungos e bactérias.

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Notas: gapura, Indonésia, Filipinas, Brunei, to é integrante da Academia Brasileira
Malásia (Ísola e Caldini), entre outros. de Letras e fez estudos a respeito da
1. Para maiores detalhes acesse: 3. Para os ingleses, Sir Francis relação entre as culturas africanas e o
<http://memory.loc.gov/cgi-bin/query/ Drake era um corsário, ou seja, um Brasil.
h?ammem/gmd:@field(NUMBER+@ “patriota” que pilhava os navios dos
Ronaldo da Silva Rodrigues (ronaldodsr@gmail.com),
band(g3200+ct000725C))>. inimigos da Inglaterra. No entanto, licenciado em Química e mestre em Ensino de Ciên-
2. A Ásia tropical compreende é claro que para os espanhóis, por cias pela Universidade de Brasília (UnB), é docente do
inúmeros países na atualidade: Ín- exemplo, não passava de um pirata. Colégio Militar Dom Pedro II, Brasília. Roberto Ribeiro
da Silva (bobsilva@unb.br), bacharel em Química
dia, Sri Lanka, Maldivas, Paquistão, 4. LERY, J. Viagem à terra do
pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
Nepal, Butão, Bangladesh, Mianmar, Brasil. São Paulo: Martins, 1941. doutor em Química pela Universidade de São Paulo
Tailândia, Vietnã, Laos, Camboja, Cin- 5. Mineiro de Ubá, Antonio Olin- (USP), é docente do Instituto de Química da UnB.

Referências Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. José Olympio, 2005.


HUBERMAN, L. História da riqueza do PEREIRA, C.L.N. e SILVA, R.R. A história
BRAGA, M.; GUERRA, A. e REIS, J.C.
homem. Trad. Waltensir Dutra. 21. ed. Rio da Ciência e o ensino de Ciências. Revista
Breve história da ciência moderna. Volume
de Janeiro: LTC, 1986. Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais,
2: das máquinas do mundo ao universo- LE COUTEUR, P. e BURRESON, J. Os
máquina (séc. XV a XVII). Rio de Janeiro: Edição Especial, mar. 2009. Disponível
botões de Napoleão. Trad. Maria Luiza em: <http://www.ltds.ufrj.br/gis/a_historia.
Jorge Zahar, 2004 X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge
CASCUDO, L.C. História da alimentação htm>. Acesso em: 11 dez. 2009.
Zahar, 2006.
no Brasil. 3. ed. São Paulo: Global, 2004. SAGAN, C. e SOTER, S. Saga dos
MENEZES, P.M.L. e SANTOS, C.J.B.
FLANDRIN, J.L. e MONTANARI, M. Geonímia do Brasil: pesquisa, reflexões e viajantes. Série Cosmos. Direção: Adrian
História da alimentação. Trad. Luciano V. aspectos relevantes. Revista Brasileira de Malone. Los Angeles: Cosmos Studios,
Machado e Guilherme J. F. Teixeira. São Cartografia. n. 58/02, agosto, 2006. 2000. DVD.
Paulo: Estação Liberdade, 1998. NEPOMUCENO, R. O Brasil na rota das WGA. Web Gallery of Art. Disponível
GALEANO, E. As veias abertas da Améri- especiarias: o leva-e-traz de cheiros, as em: <http://www.wga.hu/index1.html>.
ca Latina. Trad. Galeano de Freitas. 35. ed. surpresas da nova terra. Rio de Janeiro: Acesso em 01 out. 2008. 89
Abstract: A Chemical view on the history of spices. The history of spices and its relation to the discovery of new trade routes to the East during 15th and 16th centuries is a subject that attracts curiosity
and interest from teaches and students. This article brings some of this history, showing how important spices were in our forefathers’ nutrition habits.
Keywords: Chemistry history, spices, history of nutrition.

Resenha
Os laboratórios de química no ensino médio: um olhar na perspectiva dos estudos culturais das ciências

clube etc. O livro Os laboratórios de na perspectiva dos estudos culturais


química no ensino médio: um olhar e apresentada nesse livro, mostra-
na perspectiva dos estudos culturais nos que o laboratório apresenta uma
das ciências, do professor Dr. Moisés trama enunciativa complexa, sobre
Alves de Oliveira da Universidade a qual, nós professores e pesquisa-
Estadual de Londrina/PR, traz, para dores da área de ciências devemos
nós, a leitura da vida cotidiana de uma estar atentos. Assim, recomendo a
escola, no qual o laboratório escolar leitura desse livro especialmente por
é (re)visitado sob o olhar dos estudos trazer a possibilidade de ver a prática
culturais. Nesse livro, é possível ob- no laboratório com outras lentes e,
servar pontos importantes da teia que dessa forma, buscar novos caminhos
envolve as atividades nos laboratórios para essa atividade pedagógica tão
escolares e como funcionam os dis- importante para o ensino de ciências.
cursos que circulam nesse ambiente,
A perspectiva dos estudos cultu- prevalecendo alguns e apagando-se Profa Dra. Marcia Borin da
rais institui, como campo de investi- outros. Assim a dinâmica das práticas Cunha (Unioeste/PR)
gação e teorização, que as práticas experimentais acaba por corporificar
culturais são produtoras de significa- os conhecimentos que são produ- OLIVEIRA, Moisés Alves. Os labo-
dos. Assim, como sujeitos, estamos zidos nos próprios laboratórios, de ratórios de química no ensino médio:
constantemente sendo interpelados acordo com as possibilidades e um olhar na perspectiva dos estudos
por diferentes discursos, pois parti- negociações que se estabelecem culturais das ciências. Londrina:
cipamos de muitas instâncias sociais no momento da sua execução. A EDUEL, 2009. 322 p. ISBN 978-85-
como a família, a escola, a mídia, o tarefa realizada no laboratório, vista 7216-542-6.

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