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REFLEXÕES SOBRE A INTERPRETAÇÃO

PSICANALÍTICA E SUA RELAÇÃO COM


A TEORIA E A CLÍNICA PSICANALÍTICAS

José Martins Canelas Neto*

RESUMO

O autor desenvolve uma reflexão sobre a interpretação psicanalítica, consideran-


do tanto a prática desta dentro da sessão, quanto seu valor de revelação de um sentido
latente. Como a interpretação depende essencialmente da subjetividade do analista,
sendo uma maneira de estar e pensar do analista, sua compreensão foi abordada
recorrendo ao conceito de “pensamento clínico” de André Green.
É desejável que a interpretação surja como uma emergência da latência onde ela
se mantinha. Essa latência é próxima da idéia de vazio como vacuidade, isto é, um vazio
potencialmente habitado por sentidos que estão a ponto de ser colocados em forma.
O pensamento clínico opera favorecendo esse processo. Para isso é fundamental
levarmos em conta a incerteza e o hiato entre teoria e clínica. O trabalho de pensamento
clínico introduz um terceiro que permite ao analista sair de uma relação mal delimitada,
simbiótica, com o analisando para introduzir palavras com valor interpretativo.

Palavras-chave: Interpretação. Pensamento clínico. Vazio.

Gostaria de agradecer o convite feito a


mim pela comissão organizadora da Jornada da
Teoria dos Campos realizada em São Paulo em
2007. Considerei esse encontro como o desenvol-
vimento vivo da força do pensamento e da pre-
sença de Fabio Herrmann, que foi sem dúvida um
dos mais importantes e originais pensadores da
psicanálise contemporânea.
No Vocabulário de psicanálise de La-
planche e Pontalis, o termo “interpretação” é
definido em duas direções diferentes e mais ou
menos paralelas: a primeira, ligada à noção de
sentido, “fazer emergir (ou liberar, desembara-
çar) pela investigação analítica o sentido latente
*
Membro Efetivo da SBPSP. na fala e nas condutas de um sujeito” (Laplanche

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José Martins Canelas Neto

& Pontalis, 1981); a segunda direção se descobre que há, nessas formações do
refere àquilo que comunica o analista ao inconsciente, um trabalho psíquico com-
paciente e que faz com que este tenha pleto com objetivo próprio, como uma
acesso ao sentido latente. Esta última manifestação que tem seu conteúdo e
direção parte de um ponto de vista centra- significado próprios.
do na prática clínica do analista, durante a O segundo eixo de direção da de-
sessão. Penso que seria interessante apro- finição do Vocabulário de psicanálise
fundar a questão da interpretação levan- concerne ao que se passa entre analista e
do em conta esses dois eixos de reflexão. analisando dentro da situação na sessão
Segundo a concepção freudiana, a analítica. Referência à importância do
interpretação visa essa liberação do sen- processo analítico, enquanto prática clíni-
tido latente que estaria presente na fala do ca da análise. Tocamos aqui na noção de
paciente durante a sessão analítica, expli- técnica analítica. Entendo técnica mais
citando o conflito defensivo ligado ao no sentido do fazer analítico do que de um
desejo inconsciente. Este modelo é teori- conjunto de regras e normas da ação do
zado na Interpretação do sonho (Freud, analista.
1900/2004). Em seguida, o modelo é ex- Laplanche e Pontalis notam que a
pandido para as diversas formações do palavra usada por Freud — “Deutung”
inconsciente (os atos falhos, os lapsos, os — ao ser traduzida (traída?) para nossa
esquecimentos, os chistes, o cômico, etc.). língua não pode deixar de dar ênfase ao
Por fim, salienta Freud que para comple- aspecto “subjetivo”, “forçado”, “arbitrá-
tar esse modelo não se pode esquecer que rio” da interpretação, isto é, salientando o
esse sentido só é alcançado a partir da papel da subjetividade imposta do analis-
fala associativa do paciente. Assim, po- ta. No entanto, em alemão o termo não
demos notar que toda a teorização de tem essa conotação e sim o sentido de
Freud quanto ao papel mutativo da inter- esclarecimento, de acréscimo de sentido.
pretação se fundamenta na possibilidade Por isso, quando incorremos no erro de
de que uma fala e uma escuta associativa colocar a teoria como fundamento da
possam ocorrer na sessão. Aparece aqui prática clínica, estamos forçando a im-
a questão da prática clínica da psicanáli- portância do sentido pejorativo de pura
se. Essa importância essencial da prática imposição da subjetividade do analista em
clínica está presente de maneira muito detrimento dessa abertura para novos
rica e cristalina nos textos anteriores à sentidos que parece ser a função central
Interpretação do sonho, sobretudo nos da interpretação. É essa abertura para
“Estudos sobre a histeria” (1895), texto um sentido novo do ser do analisando que
que Freud escreve a partir de mais de dez buscamos ao interpretarmos a partir da
anos de prática clínica de psicoterapia. fala associativa do paciente. Se o analista
Com suas pacientes histéricas, Freud recobre essa fala associativa com sua

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teoria, o resultado é um fechamento e não te ou de retorno à calma, sem passar por


uma abertura. Isso me faz salientar que a uma análise sistemática do comporta-
interpretação não engloba o conjunto das mento.
intervenções do analista, como por exem- A interpretação surge da relação
plo assegurar o paciente, dar uma expli- íntima que se estabelece para o analista
cação, fazer uma construção quanto ao entre o que diz o paciente e a apreensão
passado deste, encorajá-lo a falar, de sua contratransferência. Além disso,
reconfortá-lo, etc. O que não impede que essa interpretação deve levar em conta, a
em determinados momentos da análise meu ver, a globalidade daquilo que o
essas intervenções possam ter valor in- analista compreende quando se pergunta:
terpretativo. “Por que ele me diz isso, nesse momento
Mas, se não é uma teoria explica- e para mim?”.
tiva que o analista imagina, nem uma
explicação causal de seus sintomas, nem Só é possível ao analista responder
de suas faltas, nem de seu funcionamento pelo seu próprio jogo associativo porque
psíquico atual em geral, que por esse fato ele dispõe de uma representação global
não tem um estatuto de objeto de conhe- daquilo que se passa com seu paciente,
cimento, o que seria interpretar? Sinto- interpretação que serve como trama a suas
me muito próximo da concepção de René reações contratransferenciais, materiais de
Diatkine, para quem a interpretação é base de suas cadeias associativas
(Diatkine, 1994, p. 69).
uma maneira particular de estar no decor-
rer de uma sessão, o modo de funciona-
Tocamos aqui no que André Green
mento mental do analista. Trata-se então
de uma certa disposição psíquica do ana- chamou de “pensamento clínico”, que
lista (consciente e inconsciente). As in- deve ser distinguido da teoria psicanalíti-
tervenções e os silêncios do analista não ca. Esse autor defende a idéia de que há
são codificáveis e sua descrição objetiva não somente uma teoria da clínica, mas
não faria avançar nosso conhecimento também um pensamento clínico, isto é,
sobre o processo psicanalítico. “um modo original e específico de racio-
Essa disposição psíquica do analis- nalidade proveniente da experiência prá-
ta tem uma semelhança com a disposição tica” (Green, 2002, p. 11). Trata-se então
mental da mãe diante do bebê nos primei- de uma disposição singular do psiquismo
ros meses, embora para o analista o seu do analista que incluiria o trabalho de
conteúdo, sua orientação e seus objetivos pensamento operando dentro da relação
gerais sejam totalmente diferentes dos da do encontro com o analisando. Nessa
mãe. Tanto essa mãe como o analista, por maneira de conceber, devemos conside-
meio da organização de suas fantasias, rar a clínica como o olhar não somente
podem desempenhar um papel estimulan- direcionado àquele que sofre, mas tam-

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bém àquele que está encarregado de aqui a formulação de Green: “A psicaná-


escutar esse sofrimento, graças a uma lise transforma o aparelho psíquico em
sensibilidade particular, isto é, o analista. aparelho de linguagem”. Na atividade
Dessa maneira introduzimos como analítica ocorre um retorno a si, por meio
centrais as questões da transferência e da de um desvio pelo outro.
contratransferência e o papel das trocas O trabalho de pensamento clínico
entre o analisando e o analista. O “pensa- coloca em relação, por meio da lingua-
mento clínico” depende das característi- gem, duas formas que essa última man-
cas do campo no qual o analista deve tém com o psiquismo. Uma primeira que
trabalhar. Green mostra o paralelo entre é constituída pelas relações entre pensa-
o “enquadre” psicanalítico e o modelo do mento consciente e pensamento pré-cons-
sonho, aquele criando uma situação ciente, ambos indissociáveis da lingua-
analógica com o sonho. Essa situação gem. E uma segunda forma, que buscaria
seria a forma ideal para o trabalho do estabelecer relações entre pensamento
pensamento clínico. Mas Green lembra que consciente e pré-consciente de um lado e
atualmente é freqüente que o analista tenha “as conjecturas sobre o pensamento in-
de fazer modificações nesse modelo. consciente, o qual não tem a mesma
Numa tentativa para melhor ca- relação de dependência às representa-
racterizar o que seria o cerne analítico do ções de palavra, mas se apóia nas repre-
enquadre, Green propôs a divisão do en- sentações de coisa” (Green, 2002, p. 30).
quadre em duas partes. A primeira seria Essa noção de pensamento clínico
uma “matriz ativa”, constituída pela asso- se caracteriza pelos diferentes processos
ciação livre do paciente e pela escuta de relação entre os diversos regimes de
flutuante e a neutralidade do analista, que funcionamento das instâncias psíquicas.
constitui o coração da ação analítica, O autor já havia avançado essa concep-
quaisquer que sejam as modalidades em ção, com o nome de processos terciários,
que o analista seja levado a trabalhar. A os quais se caracterizam essencialmente
segunda parte, que chamou de “fração pelo estabelecimento de ligações, num
variável”, seria formada pelos elementos vai-e-vem permanente entre os dados do
variáveis e convencionais do enquadre (o processo primário e os do processo
analista estar visível ou não, pagamento secundário. Na obra de 2002, reflete
ou não, freqüência das sessões, duração sobre a relação desses processos
delas, convenção sobre as sessões em terciários com o virtual. Este é uma das
que o paciente falta, etc.). formas do trabalho do negativo, concei-
O pensamento clínico resulta de to desenvolvido há bastante tempo pelo
um trabalho mútuo de observação e de autor. O virtual se inscreve dentro da
auto-observação dos processos mentais ordem de possibilidades oferecidas pe-
utilizando o canal da palavra. Lembro las ligações que trabalham subterrane-

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Reflexões sobre a interpretação e sua relação com a teoria e a clínica psicanalíticas

amente e só emergem como uma even- ar, se articula e, por esse fato, se limita.
tualidade. Limitando-se ele se torna apreensível; ele
Para que o pensamento clínico talvez tenha perdido uma parte de seu
possa ocorrer é preciso haver uma confi- dinamismo, mas adquiriu uma precisão que
o tornou comunicável e manipulável pelo
ança na associação livre, a qual necessita
pensamento, em suma, ele acedeu a um
que haja o que Bion chamou, emprestan- estatuto de linguagem (Green, 2002, p. 31).
do o termo de Keats, de “capacidade
negativa”. Trata-se de uma tolerância A escuta do analista tem forçosa-
necessária ao negativo, e sobretudo o do mente uma relação com suas idéias sobre
não-saber. Por isso, devemos estar aten- a natureza do inconsciente ou do Id, por
tos ao risco para o processo analítico
exemplo; enfim, com suas concepções
causado pelo estabelecimento em nossa
teóricas, metapsicológicas. Não há escu-
mente de um pensamento que seria como
ta neutra e despojada de influência teóri-
uma tradução simultânea interpretativa
ca. Por outro lado, devemos lembrar que
do que o paciente fala ou faz. Daí a
há um intervalo entre teoria e prática
importância que vejo no conceito de per-
clínica que é impossível de preencher e
laboração, que funciona como atividade
que deve ser mantido assim. Penso que
que retarda essa tendência a uma preci-
nunca a teoria poderá se sobrepor com-
pitação interpretativa. A análise passa
pletamente à clínica, nem cobrir toda a
pela colocação em palavras e percorre
extensão de seu campo, assim como tam-
seu caminho por uma via lenta.
bém nunca a clínica poderá ser uma
Levando em conta essas conside-
rações, podemos dizer que é desejável aplicação sem restos da teoria, totalmen-
que a interpretação surja como uma emer- te esclarecida por esta. É essa incerteza
gência da latência onde ela se mantinha. e esse hiato entre teoria e clínica que
Essa latência na qual estava a interpreta- permitem o pensamento clínico.
ção é próxima da idéia de vazio como A disposição particular da escuta
vacuidade que desenvolvi em um trabalho do analista e a possibilidade de o pensa-
sobre esse tema. A vacuidade é um vazio mento clínico se desenrolar na análise
que é potencialmente habitado por senti- levam a uma abordagem indireta do psi-
dos que estão a ponto de serem colocados quismo, o qual dá somente sinais para o
em forma. Green fala, sobre esse movi- analista. Em sua escuta, dentro de uma
mento, em positivação do negativo ou reserva de silêncio, o analista abre seu
colocação em forma da virtualidade. inconsciente às ressonâncias do inconsci-
ente do analisando. Mas essa comunica-
Dentro desse movimento [de positi- ção “direta”, em vaso comunicante, só
vação do negativo], o pensamento não pode se tornar pensamento (pensamento
articulado do inconsciente, ao se enunci- clínico) se houver um terceiro que escuta

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o que os dois outros se dizem e entendem considerada como verdade absoluta so-
entre eles. bre o inconsciente do analisando; ela deve
Penso ser muito importante que se então poder ser revisada a todo momento, a
mantenha durante a análise essa tensão cada vez que descobrimos novos aspectos
entre esses dois pólos, o da ressonância do funcionamento psíquico do paciente.
entre os dois inconscientes e o do pensa- Utilizamos com freqüência as pa-
mento clínico. Esse pólo da ressonância lavras do paciente quando aproximamos
entre os dois inconscientes implica que o dois aspectos ditos em momentos dife-
analista “entre” no chamado “terreno de rentes da sessão, criando assim uma nova
jogo da transferência”, como citado por maneira de arranjar esses elementos da
Mannoni sobre Freud (Mannoni, 1982), fala do analisando. Esse rearranjo novo
onde há “suspensão da realidade, como cria um movimento interno no analisando,
no teatro”. Foi Winnicott quem se aproxi- seja de denegação, seja repúdio ou de
mou mais de Freud nesse sentido, com aceitação. Muitas vezes, esse tipo de
sua concepção do brincar e do espaço intervenção recai sobre o pré-consciente
transicional. e tem como efeito desencadear novas
A idéia de um trabalho de pensa- associações que estavam potencialmente
mento clínico introduz um terceiro que presentes na fala do paciente.
permite ao analista sair dessa relação mal Considerando a elaboração secun-
delimitada, simbiótica, com o analisando dária do sonho como uma primeira tenta-
para introduzir palavras com valor inter- tiva de interpretação do sonho, diz Freud:
pretativo. Por vezes, isso se faz por abor- “Certos sonhos sofreram uma profunda
dagens discretas, nas quais o analista dá elaboração realizada por uma função psí-
toques do que apreende, os quais podem quica análoga ao pensamento em vigília;
evoluir num crescendo repetitivo até que eles parecem ter um sentido, mas esse
o paciente tenha uma percepção de um sentido é o que há de mais afastado da
novo campo de significações cobrindo o significação (Bedeutung) do sonho...”
que é vivido por ele na experiência analí- (Freud, 1900, citado por Laplanche &
tica. Outras vezes, o analista faz ligações Pontalis, 1981, p. 208)
entre duas seqüências diferentes do dito Qual tipo de significação é veicula-
manifesto do paciente, o que também do pela interpretação? Um dos objetos da
pode favorecer a abertura para novos interpretação para Diatkine é a articula-
sentidos. ção das diferentes fases da libido e sobre-
Algumas características me pare- tudo
cem poder ser explicitadas quanto às
condições idealmente esperadas para a como a genitalidade e a bissexualidade
interpretação. Em primeiro lugar, sabe- integram a pré-genitalidade... isso deve
mos que a interpretação não deve ser ser compreendido da seguinte maneira:

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Reflexões sobre a interpretação e sua relação com a teoria e a clínica psicanalíticas

assim que pegamos um ser humano em trar ao paciente, se for pertinente, que um
análise... a identidade do sujeito repousa outro sistema, diferente daquele que ele
na integração dentro do sistema genital da conhece, pode organizar sua atividade
oralidade e da analidade, as quais só se mental; um segundo efeito é que o pacien-
exprimem em referência aos termos narcí-
te possa descobrir em seguida novas liga-
sicos fálicos (Diatkine, 1994, p. 72).
ções, isto é, as palavras do analista pos-
sam se articular de forma mediata com as
A pré-genitalidade supõe em geral
representações de palavra e de coisa do
uma relação de possessão total e de
analisando. Como disse Diatkine: “Mostrar
insuportável aniquilamento do outro, en-
que um outro arranjo é possível só pode ser
quanto a genitalidade se liga à constância
entendido pelo paciente se essa demonstra-
do desejo e à conservação do objeto.
ção permitir-lhe encontrar em seu próprio
Seria então um dos objetos da interpreta-
funcionamento, com suas próprias repre-
ção psicanalítica a articulação entre es-
sentações próprias, um sistema de ligações
ses modos de funcionar da psique.
diferente” (Diatkine, 1994, p. 79).
A situação analítica, com seu con- Enfim, as palavras do analista são
vite ao paciente para não criticar seus elementos constituintes da situação ana-
próprios pensamentos, leva-o a reencon- lítica e poderíamos considerar muitas ve-
trar uma descontinuidade, que podemos zes que a interpretação ideal só se fará
relacionar à descontinuidade psíquica do quando os processos inconscientes já ti-
bebê que passa, no primeiro ano de vida, verem perdido sua imperiosa necessida-
de uma descontinuidade de estados psí- de. A interpretação seria então como
quicos (agradáveis ou desagradáveis) a formulou Diatkine: “A conclusão desse
uma continuidade trazida na tensão psí- trabalho a dois que é a perlaboração,
quica em direção do objeto. O trabalho do muito mais do que o veículo de uma
analista com suas aproximações e associ- verdade que acabaria por ser convincen-
ações permite ao paciente vislumbrar uma te” (Diatkine, 1994, p. 82).
nova trama de sua continuidade. Gostaria agora de levantar algu-
Há uma questão, às vezes referida mas considerações sobre a relação entre
como timing de uma interpretação, que é interpretação e construção, tal como essa
a busca do momento ideal em que ela noção aparece no texto de Freud de 1937,
deve ser dita. Nesse sentido penso que o “Construções em análise”: “A interpreta-
analista deve ser prudente e cuidadoso, ção define uma maneira de tratar um
evitando interpretações imediatas do pro- elemento singular do material, tal como
cesso defensivo colocado em jogo, sobre- uma associação ou um lapso. Mas é uma
tudo no início de uma análise. construção que fazemos quando expo-
A interpretação pode ter dois tipos mos ao sujeito um fragmento de sua pré-
de efeito: um primeiro, pelo fato de mos- história...” (Freud, 1937/1985, p. 273).

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Penso que não devemos colocar desse período. Só pode saber essa parte
em oposição os termos interpretação e de sua história retirando-a do discurso
construção, pois ambos são o produto de familiar. Esse branco de sua história seria
um trabalho interpretativo. Piera Aulag- preenchido por essa fala que vem recons-
nier, num interessante texto sobre as cons- truir après-coup, num segundo tempo, a
truções em análise hoje, salienta que a hipótese desse primeiro tempo, a qual
interpretação está do lado do esclareci- será construída a partir do que se revela
mento do funcionamento da psique e que no sujeito como efeitos ou cicatrizes da
a construção estaria do lado do decifra- primeira experiência.
mento de sua estrutura. A construção A questão da convicção, ou cren-
questiona uma mise-em-scène da fanta- ça, trazida por essa construção apóia-se
sia que é efeito da estrutura do desejo naquilo que é reativado na repetição indu-
inconsciente e caracteriza a história libidi- zida da transferência. Daí, o grande risco
nal do sujeito. “A interpretação do ele- da repetição que faria o paciente aceitar
mento singular coloca à luz do dia a singu- como parte de sua história toda fala do
laridade de uma escolha que nos remete a analista, investido na transferência de
uma história que não tem mais nada de uma memória onisciente, criando a ilusão
universal” (Aulagnier, 1986, p. 88). no sujeito de que nada será perdido de sua
Para essa autora, há uma perma- história e de seu desejo. Enfim, se nos é
nente inter-relação entre interpretação e possível reconstruir com um sujeito sua
construção na análise. A construção per- história, não é mais possível dizer que
mite ao analisando interpretar certos ele- podemos construir a história do sujeito.
mentos ou processos de sua história atual Após apresentar essas idéias ali-
como repetição de uma história passada. nhavadas a partir de alguns dos autores
“A interpretação é o que vai lhe permitir que considero importantes na minha for-
remodelar segundo uma nova arquitetura mação como analista, para tentar pensar
uma parte das construções com as quais a questão da interpretação em sua dupla
ele conta para si mesmo a história de sua dimensão, teórica e clínica, gostaria de
infância” (Aulagnier, 1986, p. 88). terminar levantando algumas reflexões
Infelizmente não podemos apro- sobre o lugar de cada uma dessas dimen-
fundar aqui essas questões relativas à sões — a da teoria e a da prática clínica
história e à memória do sujeito em análise. — em psicanálise.
Simplesmente, como nos lembra Aulagni- Num texto em que critica a visão
er, diria que o sujeito é totalmente tributá- de Habermas (num capítulo de seu livro
rio da memória e do saber materno na Conhecimento e interesse, consagrado
reconstrução que se faz de sua história a Freud), o filósofo Bento Prado Jr. de-
quando essa toca a sua primeira infância. fende a tese de que a teoria do aparelho
Ele não tem o poder de se rememorar algo psíquico, desenvolvida no capítulo VII da

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Reflexões sobre a interpretação e sua relação com a teoria e a clínica psicanalíticas

Interpretação do sonho, estaria funda- te do psicanalista, é imprescindível pela


da na prática da interpretação, em lugar necessidade, que, antes de ser privilégio
de fundar essa prática original. dos analistas, é necessidade do ser huma-
no, a necessidade de criar um universo
A interpretação freudiana busca, nos simbólico que possa dar sentido e acrescer
textos que defronta (sonhos, sintomas, nosso conhecimento da alma humana.
discursos truncados), a deformação como
lei interna da construção do sistema
simbólico. Noutros termos, o sentido
REFERÊNCIAS
buscado coincide com a necessidade
do truncamento do sentido (Prado Jr., Aulagnier, P. (1986). Un problème actuel:
2000, p. 16). Les constructions psychanalytiques.
In P. Aulagnier, Un interprète en
Concordo com essa posição de quête de sens (pp. 83-115). Paris:
Bento Prado Jr. que não assimila a psica- Ramsay.
nálise a uma hermenêutica. Esse autor
mostra a grande mudança que se opera Diatkine, R. (1994). Introduction à une
no pensamento de Freud ao passar da discussion sur l’interprétation. In R.
teoria do aparelho psíquico do Projeto Diatkine, L’enfant dans l’adulte ou
para a da Interpretação do sonho. Nes- l’éternelle capacite de rêverie (pp.
ta última, a teoria não é mais uma axiomá- 65-82). Lausanne: Delachaux et
tica donde se pretende deduzir o material Niestlé.
clínico e o mecanismo do sonho, mas, ao
contrário, a teoria é extraída de uma Freud, S. (2004). L’interprétation du rêve.
prática original de interpretação do senti- In S. Freud, Oeuvres complètes
do dos sonhos. Esse “olhar que deslinda o (Vol. 4). Paris: PUF (Trabalho origi-
emaranhado de significações do sonho” é nal publicado em 1900.)
um olhar “desarmado teoricamente”, diz-
nos Bento. “A interpretação dos sonhos Freud, S. (1985). Constructions en
precede e fundamenta a arquitetura teó- analyse. In S. Freud, Résultats, idées
rica” (Prado Jr., 2000, p. 35). et problèmes (Vol. 2, pp. 269-281).
Enfim, pensar assim, invertendo a Paris: PUF (Trabalho original publi-
relação entre a prática e a teoria, como diz cado em 1937.)
Prado Jr., equivale a dizer que “a teoria
não tem fundamento objetivo”. Em psica- Green, A. (2002). Pour introduire la pensée
nálise a teoria vem depois da aplicação do clinique. In A. Green, La pensée
método interpretativo. No entanto, penso clinique (pp. 9-34). Paris: Odile Ja-
que a teoria, enquanto atividade teorizan- cob.

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José Martins Canelas Neto

Laplanche, J., & Pontalis, J.-B. (1981).


Interprétation. In J. Laplanche & J.-
B. Pontalis, Vocabulaire de
psychanalyse (pp. 206-209). Paris:
PUF.

Mannoni, O. (1982). L’amour de transfert


et le réel. Études Freudiennes, (19/
20), 7-14.

Prado Jr., B. (2002). Auto-reflexão ou


interpretação sem sujeito?:
Habermas intérprete de Freud. In B.
Prado Jr., Alguns ensaios (pp. 11-
28). São Paulo: Paz e Terra.

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Reflexões sobre a interpretação e sua relação com a teoria e a clínica psicanalíticas

SUMMARY

Reflections about the interpretation and its relations


with the psychoanalytical theory and clinic

The author develops his ideas about the psychoanalytic interpretation consider-
ing its clinical practice as well as its value as a revelation of a latent sense.
The interpretation depends essentially on the subjectivity of the analyst — i.e.,
the analyst’s way of being and thinking while working with the patient. Because of that,
the interpretation is approached in the article based on André Green’s concept of
“clinical thought”.
It is desirable that the interpretation emerges from the latency where it was. This
latent state is close to the idea of emptiness and vacuity, i.e., an emptiness that is
potentially inhabited by meanings that are ready to be expressed. The clinical thought
operates collaborating to this process. Therefore, it is essential to take into account the
uncertainty and the gap between theory and clinic. The clinical thought work introduces
a third element that allows the analyst to leave from a symbiotic and weak delimited
relationship with the patient and to introduce words of interpretative value.

Key words: Interpretation. Clinical thought. Emptiness.

RESUMEN

Reflexiones sobre la interpretación y sus relaciones


con la teoría y la clínica psicoanalíticas

El autor desarrolla una reflexión sobre la interpretación psicoanalítica, considerando


tanto la práctica de la misma dentro de la sesión, como su valor de revelación de un
sentido latente. Como la interpretación depende esencialmente de la subjetividad del
analista, siendo una manera de estar y pensar del analista, su comprensión fue
abordada recurriendo al concepto de “pensamiento clínico” de André Green.
Es deseable que la interpretación surja como una manifestación de la latencia
en la cual ella se encontraba. Esta latencia se aproxima de la idea de vacío como
vacuidad, o sea, un vacío potencialmente habitado por sentidos que están próximos al
“mise en forme”. El pensamiento clínico opera favoreciendo este proceso. Para ello es
fundamental que consideremos la incertidumbre y el hiato entre teoría y clínica. El
trabajo de pensamiento clínico introduce un tercer elemento que le permite al analista
salir de una relación mal delimitada, simbiótica, con el analizando para introducir
palabras con valor interpretativo.

Palabras-clave: Interpretación. Pensamiento clínico. Vacuidad.

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José Martins Canelas Neto

José Martins Canelas Neto


R. Baltazar da Veiga, 24 — Vila Nova Conceição
04510-000 São Paulo, SP
Fone: (11) 3842-4769
E-mail: josecanelas@uol.com.br

Recebido em: 20/11/2007


Aceito em: 04/12/2007

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