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o ESPECIAL

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"O contador não está invariavelmente
apresentando demonstrações de
empresas na falência
"(1).

da informação e que as dúvidas sejam resgatadas pelo


• JOÃO CARLOS HOPP fluxo de recursos produzidos .pelas operações dos ativos
Professor Titular no Departamento de Contabilidade, e não pela sua liquidação.
Finanças e Controle da EAESP/FGV. Os índices financeiros têm sido supervalorizados como
instrumento eficiente de previsão de falências de
• HÉLIO DE PAULA LEITE
empresas, sendo que ultimamente o fluxo de caixa
tem sido considerado como um melhor indicador de
Professor Assistente no Departamento de
dificuldades financeiras das empresas.
Contabilidade, Finanças e Controle da EAESP/FGV.

PALAVRAS-CHAVE: Índice de endividamento,


hipótese de continuidade, ativo circulante, passivo cir-
RESUMO: A análise financeira tradicional pressupõe
culante, capital circulante líquido, fluxo de caixa.
a liquidação da empresa no curto prazo e, arbitra-
riamente, classifica os chamados índices de liquidez em
padrões pré-estabelecidos. '
Embora esses índices sejam fáceis de calcular, é pri- 1. PATON, William A. "Valuation of Investories".In:
mordial que o usuário esteja ciente da condição estática The [ournal of Accountancy, dezembro, 1922.

Revista de Administração de Empresas São Paulo, 29(4) 63-69 Out./Dez. 1989


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O mito da lliquidez
o ESPECIAL

INTRODUÇÃO siderem as limitações características da matéria-


prima do trabalho do analista - o balanço patri-
monial - e o seu verdadeiro e singelo significa-
A análise financeira tradicional parece estar
inspirada pela hipótese pouco plausível de
que a empresa em estudo vai ser liquidada no
do: um levantamento instantâneo dos estoques de
direitos e obrigações, de origens e aplicações de
momento imediatamente seguinte ao do levanta- recursos em determinada data. Antes de con-
mento do balanço patrimonial. Ainda hoje, o con- denar uma empresa pelo alto endividamento ou
fronto e relacionamento de cifras extraídas do pela baixa liquidez, precisamos de lembrar que
lado esquerdo e do lado direito dos balanços con- suas dívidas atuais não serão saldadas pela rea-
seguem empolgar os usuários das demonstrações lização de seus ativos aos seus respectivos custos
contábeis e convencê-los de que o diagnóstico da mas, pelo fluxo de recursos produzidos por suas
saúde financeira dos empreendimentos é algo operações. Também é essencial que se afaste a
trivial: tudo de que precisamos é dominar o con- idéia simples, mas enganadora, de que o balanço
ceito da porcentagem, patrimonial deve refletir o valor da empresa. Mes-
Se a relação percentual entre o exigível total e o mo que estivéssemos utilizando o valor de merca-
ativo total for igual a 50% ou maior do que estes, do (e não o custo) como base para avaliação dos
estamos diante de uma empresa endividada; se a ativos, o patrimônio líquido não seria uma apro-
relação entre ativos circulantes e passivos circu- ximação válida do valor do empreendimento. A
lantes for inferior a dois, devemos começar a empresa vale pelo que sua operação pode pro-
desconfiar de sua solvência; se for menor do que duzir de rendas no futuro. Somente em caso de
um, podemos ter certeza de que ela está em crise. liquidação, o patrimônio líquido a preços de mer-
Em todos esses raciocínios, está subjacente o pres- cado teria alguma utilidade para o avaliador.
suposto ingênuo de que o pagamento das dívidas O MITO E SEUS PRECONCEITOS
da empresa depende da liquidação de seus ativos,
algo que somente ocorre quando a empresa está O hábito é tão arraigado que ao lermos um ba-
efetivamente sendo fechada. lanço pela primeira vez procuramos mentalmente
A análise do valor patrimonial das ações, por calcular, de início, a liquidez corrente da empresa
exemplo, é urna tentativa de se chegar ao seu e, a seguir, o seu endividamento. Há uma fixação
"valor intrínseco" pela liquidação dos ativos pos- irresistível quanto ao índice de liquidez e os
suídos pela empresa na data do balanço aos seus leitores das demonstrações contábeis geralmente
respectivos custos históricos (eventualmente cor- o supervalorizam. Mas, é preciso ter alguns
rigidos), simultaneamente à liquidação do cuidados ao se interpretar esse indicador. Em
estoque de dívidas reconhecidas nessa mesma primeiro lugar, a consistência parece não ser o seu
data. O próprio índice de endividamento geral, forte. Pedimos ao leitor que responda qual a con-
parâmetro tão decisivo em muitas análises finan- seqüência da contratação de um empréstimo
ceiras, tenta descobrir a "capacidade de pagamen- bancário de curto prazo sobre o nível do índice de
to das dívidas" que a empres~ tem pela li- liquidez de uma empresa. Intuitivamente, diría-
quidação de seus ativos. mos que um novo financiamento de curto prazo
A popularidade dos índices financeiros decorre diminuiria o índice de liquidez, mas tudo depen-
essencialmente de sua simplicidade conceitual e derá do valor do quociente entre ativo circulante e
da mística de precisão e conservadorismo que cer- passivo circulante antes do empréstimo. Fazendo
ca o balanço patrimonial. Para se alcançar um as contas, chegamos à desconcertante conclusão
diagnóstico financeiro mais útil e consistente, é de que se o índice era inferior a unidade, o novo
preferível afastar a hipótese predominante da li- empréstimo de curto prazo aumentará a liquidez
quidação da empresa, um ranço do conser- no momento seguinte ao do empréstimo pela
vadorismo extremado e um fruto da comodidade expansão igual do numerador e do denominador.
das supersimplificações. Apesar de ampliar a Simetricamente, o pagamento de uma dívida de
complexidade e os riscos da análise externa, a curto prazo reduzirá o índice de liquidez corren-
hipótese de continuidade das operações da te, caso ele seja menor do que um antes do paga-
empresa tem que ser restaurada no direcionamen- mento. Ironicamente, para aumentar o índice de
to dos julgamentos do analista, a não ser que, efe- liquidez corrente de uma empresa com problemas
tivamente, a empresa esteja para ser liquidada. de liquidez, deve-se ampliar ainda mais o seu
Sob essa ótica mais realista, devemos enxergar a passivo circulante!
empresa dando continuidade às suas operações, Em segundo lugar, há o problema dos "pa-
recebendo de seus clientes e pagando seus cre- drões" de liquidez que inconscientemente temos
dores. É essencial, nesse diagnóstico, que se con- gravados em nosso cérebro. Para liquidez cor-

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rente, o "ideal" é acima de dois; para a liquidez ;~6gr~'~


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seca, aceita-se um; e para a liquidez imediata, '00000000


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quanto maior, melhor. Certamente, nada pode ser


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mais arbitrário do que julgar a situação de empre- -00000000
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sas pelos nossos inexplicáveis preconceitos. Uma


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cadeia de lojas de varejo em expansão, compran- 0000000
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do a prazo e vendendo à vista, tenderá a apresen-


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tar índices medíocres de liquidez corrente; uma 000000
0000000

empresa na menopausa tenderá a apresentar ele-


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00000000 ,
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vados índices de liquidez imediata; uma empresa 00000000000


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em fase de retração de negócios (vendendo mais 0000000000000000


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do que compra) tenderá a apresentar índices cres- 00000000000000000000000
00000000000000000000000

centes de liquidez seca; uma empresa superesto- 00000000000000000000000


0000000000000000000000

cada (inclusive com itens obsoletos) e abarrotada


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00000000000000000000000

de duplicatas a receber em atraso, pode apresen- 000000000000000000000000


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tar um invejável índice de liquidez corrente.


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Em terceiro lugar, as limitações presentes ao


significado do balanço patrimonial (estoques como imobilizado?', A classificação de óleo cru
instantâneos de bens, direitos e obrigações) se estocado em tanques como ativo circulante e
transferem para todos os índices dele extraídos. A reservas similares existentes no subsolo como ati-
liquidez pode ser boa ou má através da análise de vo permanente parece não conter muita lógica.
um determinado balanço, mas, como o próprio Na verdade, o pressuposto básico da classifi-
balanço, ela se refere ao momento do fechamento cação circulante/não circulante é que os ativos cir-
das contas o qual não é, necessariamente, o mais culantes serão realizados 'ao longo do próximo
representativo da vida da empresa. Além disso, a ciclo operacional da empresa, ou, ao longo do
liquidez da empresa pode ser aparentemente ele- próximo exercício social. Nada impede, entretanto,
vada, mas pode haver uma concentração imediata de um ativo não circulante ser realizável no próxi-
dos vencimentos de seus compromissos contra mo exercício social. Aliás, a depreciação dos ativos
um prazo médio mais lento de realização de seus permanentes é uma forma de realização desses
ativos circulantes. Tudo isso faz com que a con- investimentos através de parcelas dos recursos
vencional interpretação dos índices de liquidez gerados pela operação da empresa. Por outro lado,
corrente - quantos cruzados novos se dispõem a venda de um item do estoque (realização),
de bens e direitos realizáveis a curto prazo para usualmente, obriga a empresa a repô-lo no mesmo
pagar cada cruzado novo de dívidas vencíveis a exercício social, o que significa que, de certa for-
curto prazo - se torne extremamente vulnerável. ma, esse investimento também é permanente (não
circulante). J.Fred Weston & Thomas E. Copeland
UMA QUESTÃO DE CLASSIFICAÇÃO referem-se a uma parte significativa do ativo circu-
lante como Ativo Circulante Permanente", para
li

o tema da classificação de ativos e passivos em destacar um tipo de aplicação de recursos que


circulantes e não circulantes foi tratado com muita tende a se ampliar quando o nível de operações da
propriedade por Loyd C. Heath em seu clássico ar- empresa está em expansão"; Mais uma vez, não é
tigo "Is Working Capital Real1yWorking?" Para ele, a realização total dos ativos circulantes que vai
"o único atributo que todos os ativos classificados como fornecer recursos para o pagamento das dívidas
circulantes têm em comum é que eles são ativos classifi- de curto prazo. A operação da empresa é que ge-
cados como circulantes dentro das atuais práticas aceitas, rará fluxos de recursos (conceito dinâmico, em
um atributo que não possui conteúdo informacional oposição à estática do balanço patrimonial) para o
algum para o usuário de demonstrativos financeiros pagamento dos seus compromissos.
preocupado com a avaliação da solvência da empresa; ...
uma obrigação circulante só pode ser descrita como uma
obrigação que é classificada como circulanteí'", 2. HEATH, Loyd C. "Is Working Capital Really Wor-
Entre os vários exemplos que Heath apresenta king?"In: The Journal of Accountancy, agosto, 1980, p.57.
para reforçar o seu argumento, vale a pena citar a 3. FESS, Phillip E. "The Working Capital Concept".
questão colocada por Phillip E. Fess quanto ao In: The Accountmg Review, abril, 1966, p.267, apud
fato de uma apólice de seguro, válida por três HEATH, Loyd C.Op.cit., p.56.
anos e paga antecipadamente, ser classificada co- 4. WESTON, J. Fred & COPELAND, Thomas E.
mo ativo circulante, enquanto que uma máquina Managerial Finance. (8a. edição) New York, The Dryden
com três anos de vida útil prevista ser classificada Press, 1986,pp.281-283.

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Também a classificação do estoque das dívi- operação por elas desenvolvidas e cuja renovação
das da empresa em circulante e não circulante, depende de novas negociações, a custos eventual-
tomada de forma estrita, é falaciosa e não tem mente crescentes. Mesmo aqui, pouca informação
grande conteúdo informacional. Muito mais útil, útil pode ser obtida pela comparação das dívidas
para efeito de diagnóstico empresarial, como contratadas com os ativos realizáveis a curto pra-
sugere Heath, seria a divisão das dívidas em zo. Mais importante é a comparação do lucro
financiamentos espontâneos e financiamentos operacional que a empresa obtém com os juros
contratados?', Os financiamentos espontâneos em que ela incorre (índice de cobertura das
são aqueles que nascem da própria operação despesas financeiras), tanto em empréstimos de
desenvolvida pela empresa (fornecedores, curto como os de longo prazos. No caso dos
impostos indiretos a recolher, imposto de renda financiamentos contratados, é essencial conhecer
a pagar, salários e outras contas a pagar que se em detalhe o perfil do endividamento total,
originam do fato de estar a empresa operando), importante informação que deveria vir obrigato-
enquanto que financiamentos contratados são riamente no rodapé das demonstrações publi-
aqueles contraídos pela empresa junto a agentes cadas pelas empresas. Para facilitar a previsão do
financeiros e que resultam de um processo fluxo de caixa da empresa em análise, esse perfil
decisório financeiro. Do ponto de vista da poderia ser subdividido em períodos convenien-
empresa em operação, essa distinção é funda- temente curtos (como um trimestre ou um
mental porque financiamentos espontâneos são semestre), para que o analista pudesse localizar
recorrentes e, geralmente, não são onerosos. Um acumulações de vencimentos das amortizações. O
fabricante de bebidas ou cigarros, por exemplo, custo médio de cada linha de crédito contratada
tenderá a acumular altos níveis de passivo circu- também deveria ser informado no rodapé.
lante através do item "impostos indiretos a reco-
lher"; quanto mais ele vende, mais ele deve. PREVENDO A FALÊNCIA
Segundo o "Balanço Anual" da Gazeta Mercantil
de 1988, a mediana dos índices de liquidez cor- É surpreendente como se tenta enxergar
rente de 40 empresas do subsetor de refrige- através do balanço a possibilidade da falência,
rantes e águas era de 1,00 (dessas 40 empresas, como se um demonstrativo essencialmente estáti-
apenas 7 tinham índices superiores a 1,39). O co pudesse dispensar o incômodo e arriscado
sub setor de cervejas e chopes apresentava a exercício da previsão. Na verdade, a estatística e
mediana de 1,03 (20 empresas) e o de cigarros e informações extra-contábeis, mais do que rela-
fumos, de 1,05 (8 empresasl'", cionamentos de débitos e créditos, constituem
O balanço patrimonial consolidado do Grupo instrumentos mais adequados para essa finali-
Souza Cruz em 31.12.88 revelava uma liquidez dade.
corrente de 1,51, aparentemente modesta quando Inúmeras pesquisas foram realizadas para se
julgada pelo velho padrão de liquidez corrente de determinar a capacidade dos índices financeiros
2:1. Tentando classificar as contas do Passivo Cir- em prever falências. Baruch Lev dedica inteira-
culante, entretanto, estima-se que apenas 0,58% mente o capítulo 9("The Prediction of Corporate
das dívidas a curto prazo da empresa se referem a Failure") de seu livro Financiai Statement Anaiysis:
financiamentos contratados, enquanto que 48,24% A New Approach ao levantamento e comentário
desse grupo do passivo eram constituídos por IPI desses estudos?', Em particular, a pesquisa rea-
a recolher, outros Impostos a Recolher e Provisão lizada por William H. Beaver merece atenção
para o Imposto de Renda. A participação dos especial'",
Fornecedores e Contas a Pagar no passivo circu-
lante era de 24,16%,enquanto que 16,25%se refe-
riam a dividendos a pagar (o restante do passivo 5. HEATH cita Pearson Hunt, Charles M. Williams e
Gordon Donaldson como proponentes dessa classifi-
circulante era constituído por Encargos Sociais a cação - veja notas de rodapé números 18 e 19 do artigo
Recolher e outras provisões). A propósito, os de HEATH, Loyd C. Op. cit., p.59.
financiamentos contratados com vencimento a 6. BALANÇO Anual. Gazeta Mercantil, outubro de
curto prazo eram os únicos do passivo total e re- 1988,p.156.
presentavam 0,21% do ativo total. Como é possí-
vel torcer o nariz diante do índice de liquidez cor- 7. LEV, Baruch. Financiai Statement Analysis: A New
Approach. Englewood Cliffs, Prentice Hall, 1974, pp.
rente de 1,51? 133-151.
Quanto às dívidas contratadas, estamos diante
de decisões de financiamento tomadas pelas 8. BEAVER, William H. "Alternative Accounting
Measures as Predictors of Failure". In: Accounting
empresas que representam fontes onerosas de Review, janeiro, 1968pp. 113-122,apud LEV,Baruch. Op.
recursos que não nascem espontaneamente da cit, p. 141.

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Os resultados obtidos por Beaver indicam que fluxos de caixa da empresa em análise e, por isso
o índice mais adequado para previsão de falên- mesmo, a análise da solvência torna-se mais com-
cias é a relação entre o fluxo de caixa (lucro líqui- plexa e mais arriscada do que a simples conferên-
do + depreciação) e o total da dívida. O segundo cia se o índice de liquidez corrente supera ou não
melhor índice, segundo esse estudo, é a relação o nível de 2. Para realizar esse diagnóstico, é
entre lucro líquido e ativo total. "Surpreendente- indispensável o domínio de técnicas de previsão.
mente, o índice de liquidez corrente estava entre os
piores previsores (de falências)"<9J. Por outro lado, NEM SEMPRE MAIS É MELHOR
relações entre fluxos de caixa e estoques de dívi-
das parecem mais efetivos na avaliação da sol- A tradicional análise de liquidez nos legou um
vência. terrível cacoete que é partir inconscientemente do
Com efeito, a previsão de falências (um evento princípio de que, quanto maior for o índice, me-
raro) e a previsão de dificuldades financeiras (um lhor a situação da empresa em análise, como se
evento mais comum) são exercícios de anteci- fosse esse um indicador da qualidade do
pação de cenários operacionais críticos para a empreendimento.
empresa, os quais somente podem ser esboçados Nesta época de juros estratosféricos, o único
a partir de um razoável conhecimento da ope- agente econômico disposto a assumir emprésti-
ração que ela desenvolve e das condições do setor mos é o governo que, por ter o monopólio da
específico onde ela está esfabelecida. Dados con- emissão de moeda, não se intimida diante do
tábeis constituem apenas parte da base de infor- absurdo do custo financeiro incorrido ao se tomar
mações sobre a qual apoiaremos nosso diagnósti- emprestado. As empresas, por outro lado, sub-
co, nossas previsões e nossas decisões. metidas ao mandamento da lucratividade, pas-
Com relação, especificamente, à contribuição sam a fugir do endividamento como o diabo da
de análise econômico-financeira tradicional ao cruz. Suas disponibilidades são canalizadas para
exercício da previsão de falências ou de crises de o Open Market, onde é possível ganhar um retomo
liquidez, cremos que ela tem sido supervaloriza- satisfatório e, em princípio, livre de riscos. Em
da. Um detalhado exame da seqüência de de- conseqüência, os índices de liquidez, especial-
monstrativos de fluxo de caixa irá ilustrar melhor mente os de liquidez imediata, começam a se ele-
a iminência de uma deterioração financeira que é var demasiadamente, não sendo incomum encon-
conseqüência e não causa do malogro econômico. trar empresas não financeiras na praça com
Num contexto analítico mais amplo, mais dinâmi- índices superiores a 0,40. Será que o fato de uma
co e menos sujeito a arbitrariedades contábeis, o empresa manter no disponível 40% do valor de
centro do diagnóstico será a análise, através de suas dívidas vencíveis em um ano é um sinal po-
uma série histórica suficientemente longa, das sitivo? Não é isto uma evidênca clara de que suas
tendências que governam a evolução do fluxo de operações estão rendendo menos que o Open
caixa gerado pelas operações. As dificuldades Market e que ela já não consegue fazer pelo seu
financeiras nascem da disritmia entre entradas e acionista mais do que ele pode fazer sozinho
saídas de caixa que somente pode ser detectada emprestando diretamente suas poupanças ao go-
pelo minucioso estudo de uma coleção de de- verno, sem a intermediação financeira da empresa
monstrativos de fluxo de caixa recentes da empre- (homemade leverage)?
sa em análise. O ritmo das entradas de caixa Em matéria de crises da economia brasileira, o
provenientes das operações deve estar coerente mais sensato que podemos dizer é que não se fa-
com os desembolsos por elas provocado e com a bricam mais crises como antigamente... Com
cobertura do serviço da dívida. O ritmo dos efeito, nas fases críticas anteriores às da década de
investimentos permanentes novos deve estar 80, altos endividamentos coincidiam com baixos
coerente com a disponibilidade de fundos levan- índices de liquidez, retração da demanda e
tados junto a acionistas, credores de longo prazo, explosão das despesas financeiras. Atualmente, a
ou acumulados pelas próprias operações. O diag- nova crise brasileira é caracterizada pelo baixo
nóstico se resume, portanto, numa análise de endividamento e alta liquidez das empresas
tendências desses fluxos, de forma dinâmica, por nacionais que, literalmente, estão encolhendo sob
um analista não apenas inteirado dos demonstra- o nefasto efeito da postergação indefinida dos
tivos financeiros básicos da empresa, mas, sobre- investimentos permanentes. O nosso parque
tudo, bem informado sobre o negócio da empresa
industrial está sendo precocemente sucateado
e situação do seu setor; jamais esse diagnóstico
pode se limitar a uma divisão elementar de saldos
devedores por saldos credores. O produto final do
diagnóstico deve constituir-se de projeções dos 9. LEV, Baruch.Op. cit.,p.142.

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o ESPECIAL

porque, há muito, a velocidade da depreciação adotar ou não o conceito de Capital Circulante


supera o ritmo dos investimentos, abrindo-se um Líquido.
perigoso hiato de reposição de máquinas, insta- Vale a pena refletir sobre a utilidade real da
lações, edifícios, veículos etc. Em comum, a nova informação trazida pela mensuração do Capital
e a antiga crise têm, apenas, a elevação do custo Circulante Líquido. Qual a utilidade de sabermos
financeiro, paradoxalmente, fazendo coincidir quantos cruzados novos de ativo circulante são
recordes de despesas financeiras com os menores financiados por fontes permanentes (patrimônio
índices de endividamento de nossa história líquido + exigível a longo prazo)? Não estaría-
recente. Enquanto isso, o ativo total segue mos aqui fazendo a ingênua associação entre
decrescendo em termos reais porque o imobiliza- itens do ativo e do passivo tão comum aos alunos
do não está sendo reposto no mesmo ritmo em que pela primeira vez fecham um balanço? Não
que está se depreciando. Nessas circunstâncias será uma supersimplificação grosseira tentarmos
tão particulares, como julgar o firme crescimento localizar, através de um único balanço, as fontes
dos índices de liquidez da empresa nacional que que financiam os ativos circulantes de uma
coincide com o seu virtual encolhimento? empresa? Da mesma forma como não podemos
Temos que reconhecer algum tipo de relaciona- dizer que "o patrimônio líquido financia o ativo
mento inverso entre liquidez e evolução do imo- permanente", não podemos fazer ligações entre
bilizado. Uma empresa industrial em início de pontos do passivo e do ativo circulante. Mais efi-
operação, normalmente, tenderá a apresentar ciente será considerarmos o passivo como uma
apertados índices de liquidez. Na medida em que mistura de financiamentos que deram origens a
o tempo for passando e a operação não gerar pre- uma carteira de ativos. O que realmente interessa
juízos, fundos relativos à depreciação migrarão é a composição e o custo do mix de financiamento
do imobilizado para o ativo circulante e ali se acu- e a rentabilidade operacional da carteira de
mularão à espera do momento apropriado para a ativos. Além disso, há o problema da arbi-
renovação do imobilizado: tudo mais constante, a trariedade e inconsistência da classificação circu-
liquidez se eleva. Uma queda abrupta de liquidez lante/não circulante.
no exercício onde a empresa renova seus imobi- O conceito do Capital Circulante Líquido (Ati-
lizados não deveria surpreender ou preocupar o vo Circulante - Passivo Circulante) conduz o ana-
analista externo. lista à posição simplista de saudar os aumentos
Quando ocorre uma calmaria nos negócios, a de ativo circulante e condenar o aumento do pas-
renovação do imobilizado é postergada sine die, sivo circulante. Nem todo o aumento de ativo cir-
caindo a sua produtividade e comprometendo a culante é desejável e nem todo aumento de passi-
atualização tecnológica da empresa. Se essa cal- vo circulante é prejudicial à rentabilidade opera-
maria se alonga por anos seguidos, como na atual cional e à saúde do fluxo de caixa do empreendi-
conjuntura brasileira, a elevação dos índices de mento. O caso do excesso de aplicações no Open
liquidez não refletem necessariamente saúde fi- Market e o caso dos financiamentos espontâneos
nanceira, mas, ao contrário, denunciam o nefasto de curto prazo ilustram bem essa constatação.
processo de encolhimento empresarial das em-
presas que vão para o Open Market enquanto es- CONCLUSÕES
peram melhores dias. Se essa espera consumir
anos seguidos não haverá mais como reverter a Não precisamos descartar totalmente todos os
tendência à extinção. O culto exagerado aos índi- instrumentos analíticos que herdamos da tradi-
ces de liquidez dão aos empresários, executivos e cional escola de análise financeira. Basta que
analistas externos a falsa sensação de que "tudo reconheçamos suas limitações e façamos a ade-
está sob controle", quando, na verdade, o empre- quação de seu real significado, não tomando ao
endimento se encontra seriamente ameaçado. pé da letra definições do tipo "quantos cruzados
O conceito de Capital Circulante Líquido (Net novos dispõem de bens e direitos realizáveis a curto
Working Capital) é outro instrumento que her- prazo para cobrir cada cruzado novo de dívidas a curto
damos da análise convencional de balanços cuja prazo". Tomando essas precauções, evitaremos
utilidade está sendo duramente questionada. Se definitivamente a adoção generalizada de pa-
esse conceito for descartado, a famosa Demons- drões (como o de 2:1 para liquidez corrente e 50%
tração de Origens e Aplicações (hoje de publi- para endividamento geral). Isso posto, precisamos
cação obrigatória) será também abandonada, nos convencer de que a previsão de falências e de
aparecendo em seu lugar a Demonstração do crises financeiras não depende exclusivamente do
Fluxo de Caixa. Com efeito, a única diferença acompanhamento desses índices tradicionais.
essencial entre esses demonstrativos reside em se Esse é um exercício mais complexo que requer

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novos índices que relacionem adequadamente lantes). Se a hipótese de liquidação for afastada, a
números retirados do balanço do demonstrativo classificação circulante/não circulante também é
de resultados e, principalmente, do demonstrati- inócua. Com efeito, como nos diz Loyd C. Heath
vo do fluxo de caixa. em sua resposta às críticas ao seu artigo, "o argu-
O analista externo cada vez mais deverá apoiar mento que o capital circulante líquido e o índice de li-
seu diagnóstico no estudo detalhado da demons- quidez corrente medem o grau de cobertura do passivo
tração do fluxo de caixa e em informações não circulante pelo ativo circulante está baseado na suposta
contábeis, como as condições específicas do setor mas inexistente relação entre fontes e usos de caixa.
de atividade da empresa em análise e sua posição Uma empresa gera caixa pela utilização conjunta de
relativa frente à concorrência. E a flexibilidade todos os seus ativos e não somente de seus ativos circu-
financeira da empresa que precisa ser avaliada lantes. É tão sem sentido se perguntar se o caixa da
diante de cenários macroeconômicos e setoriais empresa vem do uso de seus ativos circulantes ou não
alternativos, entendendo-se por "flexibilidade circulantes como se perguntar se a produção de uma
financeira" a "capacidade da empresa em controlar pessoa provém de seu coração, ou de seu fígado, ou de
seus recebimentos e pagamentos de forma a sobreviver seu pulmão"?".
em períodos de adversidade financeira"(!O). Análise econômico-financeira não pode estar
Quanto à classificação de circulante/não circu- cercada por classificações ambíguas e por í~dices
lante, cremos (como recomenda Heath em seu cujas fórmulas são, no mínimo, discutíveis. E pre-
artigo) que ela deva ser abandonada dando lugar ciso enxergar além dos números para se ter um
a uma nova classificação de maior conteúdo diagnóstico mais preciso. E preciso que nos li-
informacional (como, por exemplo, financiamen- bertemos dos mitos.?" O
tos espontâneos e contratados). De qualquer for-
ma, entretanto, não se trata de abandonar a tradi-
cional ordem de liquidez para a apresentação dos
ativos e dos prazos de vencimento para a dos ABSTRACT: The traditional financiaI analysis sup-
passivos. Como diz Heath, "ativos devem conti- poses that the company will be closed in a short period
nuar a ser classificados na ordem convencional (de li- of time and, arbitrarilly, classifies the so calIed liquidi-
quidez) porque alterá-la corresponderia a confundir os ty ratios in pre-established standards.
usuários da mesma forma que alterar a ordem das Though these ratios are easy to be calculated it is
teclas de uma máquina de escrever confundiria o mandatory that the users be aware of the Static condi-
datilógrafo"(!!) . tion of the information and that the liabilities will be
O artigo de Loyd C. Heath?" mereceu respostas paid by the funds produced by using the various assets
de três eminentes autoridades em teoria contábil: and not by its liquidation.
Leopold A. Bernstein, Kenneth S. Most e Max The [inancial ratios has been overvalued as an
Block. A defesa do conceito de Capital Circulante efficient tool for bankruptcy forecast but lately the
Líquido e dos índices de liquidez por esses três cash flow has been considered as a better tool in
autores consagrados aparecem na edição de forecasting the financiai problems of companies.
dezembro de 1981do Journal of Accountancy junta-
mente com a resposta de Loyd C. Heath a essas KEY TERMS: Debt ratio, going concern hypothesis, ,
críticas?", current asset, current liability, net working capital,
Resumindo essas críticas, pode-se dizer que o cash flow.
argumento mais forte em favor do conceito con-
vencional de liquidez está na sua grande popula-
ridade e na tradição que o cerca. Parece que o des- 10. HEATH, Loyd C. Op. cit., p.58 (nota de rodapé
tino dos índices de liquidez é o destino dos mitos: no. 17).
são aceitos sem discussão porque são populares.
11. Idem, ibidem,p. 61.
Entretanto, o conceito de liquidez é algo a ser
revisto pelo mundo acadêmico e pela profissão 12. Idem, ibidem.
contábil. A classificação circulante/não circulante 13. PROFESSIONAL Notes and Letters. In: Journal of
deve ser abandonada e substituída por uma clas- Accountancy,dezembro de 1981, pp. 82, 84, 86, 88,90,92
sificação de maior conteúdo informacional. Nem e 94.
mesmo diante da hipótese de liquidação da 14. HEATH,Loyd C. Resposta às críticas ao seu arti-
empresa essa classificação resiste às críticas. Afi- go - "Is Working Capital Really Working?" - in: [our-
nal, nessa hipótese, todos os ativos (e não apenas nal of Accountancy, dezembro de 1981, p. 94.
os circulantes) serão liquidados para o pagamento 15. Este texto faz parte do convênio PRICE/FGV de
de todas as obrigações (e não apenas as circu- estímulo à criação acadêmica.

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