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A (DE)JFORMAÇÃO DO PSICANALISTA
As condições do ato psicanalítico
Dominique Fingermann

EDITORA
Maria Cristina Rios Magalhães

CONSELHO EDITORIAL
Prof. Dr. Henrique Figueiredo Carneiro (UNIFOR)
Prof. Dr. Paulo Roberto Ceccarelli (PUC-MG)
Prof, Dr. Gisálio Cerqueira Filho (UFF)
Prof, Dr. Luis Cláudio Figueiredo (USP, PUC-SP)
Profa. Dra. Elisabeth Roudinesco (École Pratique des Hautes Études, FR)
Profa. Dra. Ana Maria Rudge (PUC-RJ)

A (DE)JFORMAÇÃO DO PSICANALISTA
As condições do ato psicanalítico
O by Editora Escuta para a edição em língua portuguesa
1º edição em português: setembro de 2016

CAPA
Ana Maria Rios Magalhães
Quadro de Sergio Fingermann, sem título (série “Noites particulares”),
pintura sobre papel, 0,70x1,00m, 2015.

PRODUÇÃO EDITORIAL
Araide Sanches
Criança, eu ficava fascinada com o anagrama de meu nome:
“Quinedimo”.
Tirei de letra e fui sendo psicanalista.
Alguns, no entanto, me deram as palavras.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Daí inventei certos nomes.
F497d Fingermann, Dominique
A (deJformação do psicanalista : as condições do ato psicanalítico /
Dominique Fingermann. — São Paulo : Escuta, 2016.
212p; 14x2 cm.

ISBN 978-85-7137-392-1

1. Psicanalistas. 2. Psicanalistas - Formação. 3. Supervisão


4. Lacan, Jacques, 1901-1981. 5. Psicanálise. [. Título.

CDU 159.964.2-51
CDD 150.195
Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo — CRB 10/1507 pour
Maurice Touchon
Augustin Ménard
Sergio Fingermann

EDITORA ESCUTA LTDA.


Rua Ministro Gastão Mesquita, 132
05012-010 São Paulo, SP
Telefax: (11) 3865-8950/ 3862-6241 / 3672-8345
e-mail: escuta(Duol.com.br
www.editoraescuta. com.br
Um charlatão é aquele que empreende um tratamento
sem possuir as capacidades requeridas...
Se fazer análises for necessário, é necessário que elas sejam
feitas por pessoas que receberam para isso
uma formação aprofundada. Enfatizo a exigência
segundo a qual ninguém deve praticar a análise sem ter
adquirido o direito disso com uma formação determinada...
Quais proposições precisas o senhor tem para fazer?
Ainda não cheguei nesse ponto e não sei se vou chegar lá algum dia.
FREUD, Sigmund (1926). A questão da análise leiga.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO, Marc Strauss

PARA COMEÇO DE CONVERSA


Homenagem a Lacan:
o primeiro Lacan a gente nunca esquece

INTRODUÇÃO
A prova de psicanalista: a sua deformação

DO PSICANALISTA: A PSICANÁLISE PURA


[. A FORMAÇÃO

II. A ANÁLISE DOS ANALISTAS


O fim que justifique os meios
A análise dos analistas

HI. O PASSE
A leveza do passe
O momento do passe
O cartel do passe
A presença do passador: atualidade da escola
O que faz diferença?
Uma carta nem sempre chega a seu destino
Como passa um Dizer”: contingência e responsabilidade
1

IV. A PSICANÁLISE E SEU ENSINO


O Cartel faz Escola
Ensino e saber
APRESENTAÇÃO
V. A SUPERVISÃO 173
Exigência de supervisão: necessidade e contradição 175

VI. A ESCOLHA DA ESCOLA 187


Da “ideia incompatível” à escolha da Escola 189
Os Analistas Membros de Escola: Marc Strauss*
os passadores da experiência 193

EríLOGO 207
Psicanalistas, “mais um esforço!”:
responsabilidade do discurso do psicanalista na atualidade 207
d'une expérience,
Qu'il puisse sortir des libertés de la clóture
de | "aprês -coup dans la signifiance.
c'est ce qui tient à la nature
1967
LACAN, Jacques. Proposition du 9 octobre

prefácio para seu


Quando Dominique Fingermann pediu-me um
do e aceitei sem hesitar.
livro sobre o fim de análise, senti-me honra
disso? Com alguns
Quem melhor do que ela tem crédito para falar ,
a, dentre os quais me incluo
outros lacanianos de formação e de prátic
a especificidade do ato
ela se esforça, sem descanso, para elucidar
disso.
analítico em suas finalidades. E este livro é prova
ato proce da da forma ção do analista
Que essa especificidade do
incalculáv el em suas conse-
é uma evidência. Mesmo que ele seja
iu, ele se produz somente
quências, como muitas vezes Lacan insist
a um outro efeito à sua
em condições precisas. Como um analista visari
ser o certo, por tê-lo
interpretação senão aquele que ele conhece por
vivenciado como tal em sua própria análise?
da formação do
A elucidação daquilo que se deve esperar
precisar o que se pode
analista é, portanto, a condição necessária para
esperar de uma psicanálise... e não.

Membro de Escola) e Membro Fun-


* Psiquiatra, psicanalista, AME (Analista
dos Fóruns do Campo Lacaniano.
dador da Escola de Psicanálise
12 APRESENTAÇÃO 8
MARC STRAUSS

que
A questão de saber por que as pessoas fazem análise, Lacan sexo outro, que pode eventualmente servir de parceiro, mas naquilo
seu corpo. O gozo do corpo do (ou
respondeu: “Porque elas têm medo”. Queria isso então diet que os vivencia, ele é e permanece só com
sujeito de seu perten ciment o
“analisados”, dentre os quais por definição estão os analistas, não da) parceiro(a) não assegura em nada o
as disso afirma ndo que
têm mais medo? Sabemos também que a temeridade, aarrogância a a um sexo. Freud havia enunciado as premiss
de uma
suficiência protegem do medo melhor do que qualquer escudo isso a pulsão sexual, enquanto tal, não existia, mas era a resultante
que não evitem em nada as catástrofes... Ademais, não ter medo de nada construção que tomava como suporte as pulsões parciais.
não é nada além de uma loucura, pois mesmo na Disney há malvados — A sexualidade é, portanto, o fato de uma construção, que repousa
é sem
e sabemos que na vida real nem sempre são eles que perdem... sobre um sonho de uma união possível até a unidade. Ela não
Se, contudo, os outros fossem como sonhamos, como a vida um resto, que disso assina o impasse .
to
seria boa! Mas isso jamais acontece, muito pelo contrário. É justa- Formar um psicanalista é levá-lo, por meio do evidenciamen
mente por aí que tudo começa, se lermos Freud no Romance familiar impasse sexual, a medir a
da consequência sintomática, para ele, do
do neurótico: “Existe sem dúvida um grande número de ocasiões em universalidade da segunda e a singularidade da primeir a.
que a criança é negligenciada, ou pelo menos sente que é negligen- A segunda é, à primeira vista, desagradável, mas, por fim,
o de se
ciada, ou que não está recebendo todo o amor dos pais, e principal- caridosa: a castração sendo para todos, torna-se tão ridícul
, a
mente em que lamenta ter de compartilhar esse amor pe seus irmãos queixar dela quanto de se esforçar em dissimulá-la. A segunda
e irmãs. Sua sensação de que sua afeição não está sendo estudo que para cada um faz suplênc ia à
singularidade absoluta daquilo
encontra abrigo na ideia...”.! sendo. Esta última não é, portanto ,
castração, é irredutível e permanece
Ê Destino do falante, de se saber sempre exilado de um sonho: de forma
compartilhável com ninguém, nem consigo mesmo. Para dizer
a conta não está aí”, diz Lacan. Nosso infeliz deve, então, se querer único. Isso pode
pôr de gí imagética, cada um é único em sua forma de
para encontrá-la. Freud diz, ainda no mesmo texto: “Se a outros, é é preciso,
a ser difícil de suportar, tanto para si quanto para os
com cuidado esses devaneios, descobriremos que constituem uma habituar a isso.
então, tempo, mas não há outra escolha a não se de se
É aí que a dificuldade começa, quando'se trata de suportar o real
realização de desejos e uma retificação da vida real. Têm dois
objetivos principais: um erótico e um ambicioso — embora um objeto tes...
que molda o ser do qual somos apenas sujeitos e bem impoten
erótico esteja comumente oculto sob o último”.? Lacan distinguiu três paixões do ser: o amor, O ódio e a ignorân cia.
É legítimo que tenhamos medo de não conseguir chegar, o que que ível em uma propor ção que
São elas que animam nosso irredut
quer que venha a ser esse lugar corretor. Não porque seja difícil mas imprevi síveis quanto incon-
permanece submetida aos encontros tão
porque é impossível. Com efeito, a psicanálise nos ensina que podemos ca
troláveis. É preciso esperar que conhecer a dimensão quase mecâni
sonhar o quanto quisermos, mas não podemos corrigir a existência tal paixão que é
disso atenue seu alcance de verdade última. Assim, uma
como ela é: fala-seres, somos divididos entre dois sexos, e entre eles não o psica-
acompanhada por um pouco de distanciamento não prejudica
há nenhuma relação [rapport]. Claro que existem relações [relations] e
nalisado, mesmo que ele saiba melhor que ninguém o que 0 anima
sexuais, e, de certa forma, não há nada além disso. Mas nenhuma dessas a em filosofia nos dispens ará aqui
aquilo que quer. Nossa incomp etênci
relações, mesmo a mais satisfatória que se possa viver, assegurará a se impõe
relação [rapport] de um sexo com o outro. Cada um sabe que há um de glosar sobre a prudência como virtude platônica, mas ela
deixar todo o seu lugar ao irre-
para o psicanalista. Em particular para
dutível daquele que se faz paciente disso.
, a
A virtude do retraimento, no fim das contas, se aprende
seus
1. FREUD, Sigmund (1909). Romances familiares. In: Edição standard brasi- experiência nova de cada caso não proíbe a experiência de
cabe
hábitos... Por outro lado, o que acontece com essa paixão quando
eira
lei das )obra Sp sicológicas
h gi completas.
pl Rio de Ja teiro: a Ima g o, s/l d (vi ersao

e a
2. Ibid. ao psicanalista comparecer com sua fala, para justificar sua prática
|

14 MARC STRAUSS

isso autorizar outros? E quais? Justamente aqueles que saberão dizer


por que seu incurável assim o é: não por capricho, mas porque ele é o
próprio efeito de sua estrutura de fala-ser. Eles saberão mostrar como
este incurável tomou o lugar daquilo que não tem sentido, entrevisto PARA COMEÇO DE CONVERSA
na hiância da castração. O passe permite, então, reconhecer a paixão
em ato, em sua pureza, antes que ela seja autorizada.
Uma vez autorizada, ela deve sustentar, não diante daqueles que O primeiro Lacan a gente nunca esquece
Homenagem a Jacques Lacan
%*
a julgam, mas diante daqueles que beneficiam do mesmo julgamento
que eles, os colegas. Para isso, ela não pode permanecer retraída e
revela-se, com efeito, que os psicanalista entre si têm uma tendência
às paixões extremas — e, antes, contrários, àquilo que deveria ser
idealmente o ideal da psicanálise: a serenidade, a compreensão mútua,
a doçura. Os grupos analíticos não cessam de disputar fundamentos de
sua garantia profissional, isso quando não brigam entre si. A fronteira na sua vida, qual foi o
Como Lacan e seu ensino entraram
entre uma paixão e outra é frágil, na verdade, neste caso entre a paixão e edesag
de seu ser de sujeito em atividade e a de seu ser de sujeito aposentado. impacto deste encontro € quais são ne efeitos deste
— foi a ques a a ê
E frágil, nosso psicanalista aposentado também é aos olhos de quem de psicanalista hoje, no século XXI?
16 de abril de 2014, n
provocativa — colocada pela Revista Cult em
faz da ação e não do dizer prova de existência... rando o a
Podemos impedir os psicanalistas de brigarem entre si? Eis ocasião de um debate entre diversos analistas celeb
pessoal em re E a
a questão secreta que corre sob a do fim da análise. Este livro a de Jacques Lacan. Ela indaga nossa implicação
ência partic ular e
responde? Ele nos diz, antes de tudo, que é inútil sonhar com isso. Vale atualidade do discurso psicanalítico, e sua incid
nossa prática, e em nossas vidas.
mais tomar a medida desse inevitável para precisar suas coordenadas.
E aí, este livro nos permite avançar, ele nos dá meios para aí nos
situarmos melhor. Há disputas entre psicanalistas como há castrações:
ECE
uma vez reconhecidas como inevitáveis, elas perdem seu privilégio O PRIMEIRO LACAN A GENTE NUNCA ESQU
passional. Este livro se sustenta, portanto, também por uma hipótese,
das quais o
sem a qual Dominique Fingermann não teria razão de se dedicar a Elenquei algumas das primeiras vezes a partir
ela com uma energia que posso testemunhar, a esperança de que essa causa efeito
« s atéaté | hoje, em a minha
encontro com Lacan “causou”,» ee causa
e“

vez repetida
elucidação permitirá aos psicanalistas de se distanciarem aí um pouco, maneira de interpretar a vida e a psicanálise, “primeira
para chegar a se entenderem sobre o essencial, que é tão pouca coisa. i te novo, ponto de i
partid d a a semprp e novamente
sempre como um instan
Muito pouca, para muitos dentre eles ainda... Tanto que não estaremos recomeçado.
aí, tentaremos nos igualar a este horizonte, e nos mantermos à altura
da exigência que se ilustra em cada página deste livro.
Assim, os lacanianos pretendem assegurar cada um a sucessão
Cult a TOO
de Lacan e, se possível, não sozinhos, mas com outros, que se * Texto apresentado no dia 16/4/2014 no Espaço
â ao i
anivers ári
ário do i
psican a ta
lista francês Jacques , Lacan. Er
entendem sobre o que ela deve ser: uma posição com relação ao real, moração Go ;
pações de Dominique Finger
icipaçõ Fir man, Ricardo bel
ntou com as partici
de reserva respeitosa. É preciso mensurar o que ela comporta de Miriam Debieux, Maria Lívia Tourinho Moretto
e Christian
Mine Virgínia EE,
recusa de toda submissão a qualquer palavra de ordem que seja. Dunker.
1

16 17
DOMINIQUE FINGERMANN FARA COMEÇO DE CONVERSA

* O primeiro Lacan ocorreu em 1969. Tinha 16 anos e estava no a-psicologia necessária ao psicólogo”, e nos pediu o
último ano do ensino médio, em que estudava filosofia por nove horas no segundo semestre, que havíam os passado em greve radical
semanais. Nas aulas sobre “linguagem”, a professora apresentou um o Simbóli co Ê o Imaginá rio
entusiasta, uma dissertação sobre “O Real,
Valéry : provoc ação,
texto recortado dos Escritos de Lacan. O Escrito causa: “Como é isso? nos recentes acontecimentos da Faculdade Paul
o
Não compreender e se deixar tocar, pelo choque, pelo impacto, pela convocação — Lacan político! Lacan falava lá em Paris sobre
egavam
reverberação das palavras!”. Discurso Universitário, mas, a 800 km dali, outros se encarr
É uma questão de estilo, o risco do estilete, é uma questão de 3 falar!
tenha
toque. As palavras roçam, tocam o corpo, são incisivas. Decisivas. ç O nois a orientação de minha formação permanente
Seguiu-se uma pequena cena edipiana, que talvez tenha de Psicaná lise e não pelo perotns o
optado desde cedo pela Escola
contribuído para meu envolvimento imediato. Meu pai queria me ou O ensino da psicaná lise
universitário, essa anedota sempre valoriz
risco
ajudar a entender os textos de filosofia, mas quando leu o texto de na universidade pelo seu poder subversivo e não pelo seu
Lacan, disse que não dava para compreender e que, inclusive, “o cara
não era muito sério”. ; CU elo Lacan inesquecível ocorreu também em dE
minha
“Deixe comigo!”, respondi. “Eu me viro!” primeiro encontro com a psicose. De 1 974 até 1983, iniciei
em am
Deixou Lacan comigo e começou uma bela virada! vida profissional trabalhando com pacientes ditos psicóticos
* O primeiro Lacan foi também impactante quando fui à procura vangua rda, e em seguida , em um ne a :
centro psicoterapêutico de
do analista, dois anos depois. Demorei dois anos para encontrar. Já s e adolesc entes ditos o :
especializado no atendimento de criança
co, o e :
relatei essa história: o primeiro encontro com o psicanalista “a gente A metáfora paterna, a forclusão do nome do pai, o Simbóli
nunca esquece”. Começou com um corte: “De agora em diante, é à o Imaginário, Schreber, a função do delírio: como suportar a o
opera
psicanálise que prevalece, não é a vida!”. De 1974 a 1982, três vezes e apreender o humano quando se tem 21 anos sem esses
por semana, me desloquei; um mês e uma semana de férias por ano, a clínica?
aconteceu,
não se trocava horários, nunca, e eu percorria 100 km para ir a cada “ MR também no Brasil que o meu primeiro Lacan
ana
sessão, que durava entre 10 e 20 minutos. De 1991 a 1994, voltei lá, quando a opção pelo exílio me fez chegar à Biblioteca Freudi
para “concluir” o trabalho interrompido nove anos antes pelo acting , convid ava e provocava as pessoas
Brasileira: lugar que causava
out brasileiro (isto é, minha opção pelo exílio). Eni com o texto,
a se debruçarem sobre “a coisa freudiana”.
OS,
O que aconteceu neste encontro inesquecível com um analista? a disciplina do comentário, o princípio do Eai, os PASSEIN
soltar alíngua”,
O que pegou? Tocou? Impregnou? Podou? Reduziu? Ampliou? a interlocução, a contradição. Era necessário
Esticou? Dissolveu? Deformou? engajar-se na transmissão: práxis da teoria.
Após tantos anos de deslocamentos, de vaivém, para lá para cá,
o que foi mesmo que causou assim esse descolar decisivo?
Um calar, um silêncio, uma constância, uma presença, uma
ausência radical de simpatia, nenhum pathos no acolhimento da
na neo a a
novela familiar; sem dúvida, é isso o que nomeio hoje, com Lacan, Cartel: pequeno grupo de trabalho proposto por Lacan
4 pessoas que se esco em em E
escola em 1964. Ele é constituído por
desejo de analista. Não há outro jeito para se desprender do Outro — de uma questão e escolhem um Mais-Um, suposto garantir esse proje
parceiro/cúmplice da neurose — a não ser pela experiência da solidão, À
ho.
(duas traduções possíveis para lalangue); O
da decisão e do laço que a psicanálise proporciona excepcionalmente. me le
aponta para a dimensão real incluída na língua; depósito no corp Cie pi
* O primeiro Lacan foi também meu professor de psicanálise, linguagem, que articula um signi
antes que ela se organize em
que declamou, na primeira aula do segundo ano universitário, “Da outro.
18
DOMINIQUE FINGERMANN PARA COMEÇO DE CONVERSA
19

* O primeiro Lacan a gente nunca esquece. Foi no Brasil que — providenciar eventualmente a ocorência do ato que separa
me “autorizei” a acolher pessoas que queriam falar da dor de existir, alguém de sua adesão ao Outro e lhe devolve os rastros de sua
e que me dispus a esta solidão: fazer o analista, sensação de um risco ex-sistência singular.
absoluto. Autorizar-se a sustentar a posição do analista consiste, antes
de tudo, em uma decisão de separação. (..)
* Então aconteceu o passo necessário: fazer o passe,) em 1995,
foi o salto e o engajamento que constitui, até hoje, o leme dessa e Para finalizar, não há último ponto, a não ser essas reticências,
“aberração”, como disse Lacan, o que me permite suportar as análises que apontam para um porvir que depende de nossa capacidade, ou
que conduzo. i
melhor, de nossa disposiçã ição para fazer valer na práráxis analítica, umum
* Em 1998, encontrei Lacan, de novo, via a palavra “dissolução”. Discurso, ou seja, um laço que permite suprir a “relação que não há” ;
A dissolução pode não se limitar a seus efeitos deletérios de nome mais preciso para a castração que a linguagem impõe ao sujeito,
rompimento de laços, e permitir outros enlaces e enodamentos e enfrentar, com ética e tática, as estratégias dos discursos da ciência e
facilitando novas trilhas. Abriu-se outro caminho: o movimento dos do capital que tendem e pretendem obsoletar o sujeito dividido e seu
Fóruns e a construção do Campo Lacaniano empolgou esse fazer desejo consequente.
escola, que leva a sério as sequências do ato psicanalítico. Fazer
escola era o caminho para sustentar esse hiato sempre recomeçado.
* Causou. Lacan causa. As consequências são vivas.
Seus enunciados fisgam, ainda hoje (e precisamos nos precaver
de usá-los como reza, remendo e mandamento); sua enunciação (o que
ele quis dizer?) ainda orienta, como questão, a prática da psicanálise
que sustentamos; e, sobretudo, o dizer de Lacan (Y a d'" Un!) que se
desprende de seus ditos, condiciona a minha opção lacaniana.
Esta opção reatualiza a cada dia a orientação da prática clínica
que sustento, no risco da sua re-invenção cotidiana:
— seguir as vias de acesso à “coisa freudiana” evidenciando, no
hiato das suas emergências imprevisíveis, a lógica das suas trilhas;
= topar com a contingência das ressonâncias do inconsciente,
mais além de suas elucubrações familiares:

5. LACAN, Jacques (1972-73). O seminário. Livro 20: Mais, ainda. Rio de


neiro: Jorge Zahar, 1985, p. 22.
a
6. Tê há não sexual [Il n'y a pas de rapport sexuel: um aforismo E
3. Passe: designa o momento de análise de passagem entre a tantas vezes repetido, pode ser lido de diversas maneiras. Aqui, o y
posição
a
analisante entre o analisante e o analista. É também o nome do disposi- a dimensão ética que conceme a prática da psicanálise como pro
tivo proposto, em 1967, por Lacan para recolher os testemunhos dessa evidência da solidão radical de cada Um, não sem a urgência Ego di
es
passagem e, eventualmente, verificá-la. por inventar e construir laços coerentes com esta premissa. Lacan,
4. Ya dFUn [Há Um]: pode ser considerado como o dizer de Lacan, algo que os anos 1970, anuncia esta “fórmula” como O dizer de Freud, ou
A emo
ele mesmo extraiu de seu ensino como fundando o seu último remaneja- tos E
o impossível de ser dito que funda e determina toda a série dos
DE E
mento de seus conceitos, mais além do “rochedo da castração”. Suplência Freud — a castração, a primazia do falo, a pulsão, o mais além do
do “Não há relação sexual”, “Há Um” indica Um da identidade de separação, de prazer. Há algo na sexualidade fundado numa heteridade radical: não
o Um do dizer, o Um do sintoma. complemento entre um sexo e outro.
INTRODUÇÃO

A prova do psicanalista:
a sua deformação

Antes de mais nada, um princípio: o psicanalista


só se autoriza de si mesmo. Esse princípio está inscrito
nos textos originais da Escola e decide sua posição.
Isso não impede que a Escola garanta que um analista
depende de sua formação.
1967
LACAN, Jacques (1967). Proposição de 9 de outubro de
sobre o psicanalista da Escola, p. 248.

“O analista só se autoriza de si mesmo”!! Não é preceito nem


. Com
receita, mas uma condição sine qua non da operação de analista
ade de
efeito, o que qualifica a sua eficiência específica não é a autorid
uma associação de pares ou à aplicaç ão
uma teoria, o pertencimento a
à demanda de
de uma cartilha técnica, menos ainda a conformidade
que não
quem solicita sua presença e sua escuta. “Algo do analista”?
dida por ocasião
procede de nenhum Outro e cuja certeza foi apreen
a a sua função
de sua própria análise, “decide de sua posição”, autoriz

Nota italiana In: Outros escritos. Rio de Janeiro:


1. LACAN, Jacques (1973).
Jorge Zahar, 2008, p. 311.
em que dizia “desejo de analista”,
2. Lacan acaba por dizer “de "analyste”,
, assim, que o que
“silêncio de analista”, “posição de analista”, marcando
mas uma função especí-
opera em uma análise, não é a pessoa do analista,
fica, que este livro pretende explicitar.
22
DOMINIQUE FINGERMANN PARA COMEÇO DE CONVERSA 23
“de” analista e sua intromissão nas análises dos outros.
O analista não suites|”:* as sequências excedem as consequências. As consequências
opera a partir do senso comum, mas a partir do ponto fora
do comum são da ordem do necessário lógico; as sequências dependem da
que causa a sua distinção: eis a deformação necessária
a sua posição. posição ética que se destaca de uma análise e suas continuações:
Ter vislumbrado, em sua análise pessoal, esse ponto
fora das as “interpretações” criativas, poéticas, inventivas, extravagantes,
medidas comuns pode precaver que o futuro eventual analist
a procure fora de série, aquelas que dis-pensam a lógica, a razão, ultrapassam
do lado de seus analisantes o complemento de sua falta-a
-ser e um as medidas (fálicas). A prova de analista é a sua distinção, é a sua
gancho para seus objetos libidinais. No entanto, ter exper
imentado a resposta singular, seu estilo, sua solidão, seu sinthoma dirá Lacan,
medida do encontro falho com o Outro e com o Real poderi
a resultar, isto é, sua resposta, sua responsabilidade, sexual, à “não relação
ao contrário, no solipsismo ou no cinismo, mas, então,
evidentemente sexual”, ou ainda à sua “heteridade”.º
não resultaria em um analista à altura do ato que o acomet
e. Freud estabeleceu a “regra de três” dessa provação: análise
Ser habilitado, pela sua travessia analítica, a
suportar o ato didática, estudo da teoria, supervisão. Lacan inscreveu a Escola
do psicanalista é necessário, mas não é suficiente, pois,
por um como lugar dessa prova. A deformação do analista, subsequente à
lado, é preciso que a provação do ato — sua
solidão, seu risco, sua subversão pela sua análise pessoal, precisa ser garantida pela
sua aposta — enuncie e decline as suas razões
clínicas, ou seja, a sua provação permanente; sua maneira de praticar o estudo da
lógica que o condiciona; por outro, é preciso que se ponha
à prova o teoria e de se arriscar na supervisão será suficiente se, e somente se,
posicionamento ético que decorre de sua operância.
permanecerem necessárias e não cessarem de se inscrever.
“O analista só se autoriza de si mesmo” e, justamente por
esse “Para que a psicanálise torne-se um ato por vir ainda”,” o que
motivo, ele está permanentemente à prova. Em permanênci
a — (de) podemos dizer hoje, a partir das lições de Freud e Lacan e, sobretudo,
formação continuada —, ele precisa atestar sua capaci
dade em ser a partir do que a “psicanálise nos ensinou” das três vertentes da
bassador da psicanálise.
formação de analista? Como “interpretamos” esses três eixos, em
Ser passador da psicanálise consiste em fazer valer a
potência do nossas elaborações teóricas e nossos dispositivos, para que eles
ato psicanalítico, e isso não decorre de nenhuma artimanha,
astúcia ou participem das “condições do ato”, isto 6, que análise didática, estudo
artifício retórico, mas procede de certo posicionamen
to, que sustenta da teoria, supervisão sejam coerentes com a deformação indispensável
8 comprova a “posição do inconsciente”, e de certa “prese
nça”, que à sustentação do ato e da ética da psicanálise operando a partir do
nomeamos “presença de passador”, que, pela graça das resson
âncias das “real em jogo na própria formação do psicanalista”.”»9
Palavras e do silêncio que lhe é próprio, evidencia a eficiên
cia do ato.
Presença, posição, distinção têm consequências no
laço que essas
qualidades promovem, um laço, ou melhor, um discurs
o, especificando
Com Lacan que melhor seria se fosse “um discurso sem palavr 4. LACAN, Jacques (1967). Réponse aux avis manifestés sur la Proposition
as”?
Não há otra prova de psicanalista a não ser à prova (versiom transcription), inédito.
do 5. Sinthoma: em 1975, Lacan passa a usar esta antiga ortografia da palavra
ato, e não há outra prova do ato a não ser em suas conse
quências sintoma (symptôme em francês contemporâneo). O sinthoma continua sendo
demonstráveis (lógicas) e, mais além, em seus
efeitos (reais) o que se tem de mais real e singular, mas a partir do qual um enlaçamento
mostráveis. “O aio se julga na sua lógica pelas suas com o iimaginário e simbólico passa a ser possível.
sequências [à ses
6. Heteridade: neologismo forjado por Lacan que funde as palavras heteros e
alteridade.
7. LACAN, Jacques (1968). Introdução de Scilicef. In: Outros escritos, p. 293.
8. LACAN, Jacques (1957). A psicanálise e seu ensino. In: Escritos. Rio de
3. LACAN, : Jacques (1969-70). À O seminário. - Li Livro Janeiro: Zahar, 1998, p. 438-439.
77. O avesso da j
psicanáli 9. LACAN, Jacques (1967). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psica-
Rio de Janeiro: lorge Zahar, 1992, p. 11.
Me nalista da Escola, p. 249.
24 DOMINIQUE FINGERMANN 25
FARA COMEÇO DE CONVERSA

QUANDO PODEMOS DIZER QUE UMA ANÁLISE É (FOI) DIDÁTICA? QUAL ESTUDO DA TEORIA COERENTE COM ESSA INVENÇÃO?

Uma análise se atesta como didática (isto é, deformadora da “Mas tal direção só se manterá por meio de um ensino Eta
neurose) quando alguém der prova de “formação suficiente”. deiro, isto é, que não pare de se submeter ao que se chama ea E
Esta prova é poética, se encontrar a voz própria para transmitir adverte Lacan no capítulo “A formação dos futuros analistas”, no texto
como soube eticamente tirar as consequências da lógica da cura: de 1955 “A coisa freudiana”.
O impasse da procura de saber no Outro e, em conclusão, a “firme A questão, para nós, é como produzir, proporcionar, um o
convicção da existência do inconsciente”!º e a sua orientação que seja coerente com a deformação estida pela ga ção o
consequente pela ex-sistência do Inconsciente real. analista. Como propor um “ensino verdadeiro”, isto é, “que não pare
Isso ocorre, e nesses casos apostamos que a análise foi didática, 3S er à novação” 92! ro
isto é, que o futuro analista pode suportar a transferência com e E à eo do “como”, pela via dos dm
flexibilidade, mas sem vacilo e sem angústia (sem tampouco pôr em que uma Escola de psicanálise assegura (o cartel em particular), pela
Jogo seu próprio engodo fantasmático), reinventando a psicanálise, via da sua ética inerente (a práxis da teoria), e sobretudo graças às
responsáveis por sua invenção cotidiana. brechas pelas quais o estilo pode irromper e romper a burocratização
A psicanálise é didática quando ela é “psicanálise pura”, indica da transmissão e da aplicação da doutrina, e ao princípio interno de
Lacan, para nomear o que ele chamará também de “psicanálise “crítica assídua” atento para quebrar a inclinação do achatamento do
em intensão”, conceito lógico que nos orienta para sustentar que ; i jargão.
toda extensão da psicanálise, tanto sua aplicação clínica como sua ie é a práxis de sua teoria, anuncia Lacan no
teorização e seu ensino não se funda senão dessa psicanálise pura. “Ato de Fundação” de sua Escola:!º a ética do analista, sua disposição
Uma Escola de Psicanálise tenciona acolher, na organização de para o ato, que, enquanto tal, dispensa qualquer modelo pisa pr
seus laços e instâncias, o artíficio institucional, “dispositivo furado”, depende de sua disponibil idade para algo que excede o simples estudo
que pode recolher os testemunhos desse momento clínico fora do da teoria. Esta não é um modelo que se aplica, mas uma práxis que a
comum, no qual se produz a “distinção de analista”, momento de produz à medida das ocorrências, e, por isso, é coerente com o que se
passagem que Lacan indexou como “o passe”. Alguns dos textos espera de um psicanalista à altura do ato e do real. cad E
apresentados no Capítulo 2 contribuem para o registro da experiência Do próprio exercício da transmissão da prática clínica epen te
e do funcionamento desse dispositivo atualizado nesse início do século a formação permanente do analista. A práxis da teoria é o exercício
XXI na EPFCL — Escola Psicanálise Fóruns Campo Lacaniano.'? do analista, o qual põe à prova seu saber, não seus conhecimentos.
Essa provação será retomada ao longo da sua formação contínua nos
cartéis, nos congressos, na comunidade de seus pares/ímpares (os
“esparsos disparatados”!º diz Lacan), nos textos que ele apresentará
10. FREUD,
e que o apresentarão, fazendo valer sua voz e sua presença na
Sigmund (1937). Análise terminável e interminável. In: Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud. Rio empreitada da práxis da teoria.
de Janeiro: Imago, s/d (versão eletrônica), v. XXIII.
11. Referência ao texto “Um dispositivo furado”, um de meus
primeiros artigos
escritos sobre a experiência do passe, que pode ser encontrad
o em Stylus 1 —
Revista de Psicanálise (Belo Horizonte: AFCL, 2000, p. 109-115).
13. LACAN, Jacques (1955). A coisa freudiana. In: Escritos, p. 437.
12. EPFCL— Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
criada em 14. Ibid.
2001, a partir dos Fóruns do Campo Lacaniano, cujo movimento foi iniciado á In: : Outros escritos. Ni:
15. LACAN, Jacques (1964). Ato de fundação.
em 1998, após a ruptura de seus membros com inglesa do Seminário 117. In:
a Associação Mundial de 16. LACAN, Jacques (1976). Prefácio à edição
Psicanálise (AMP).
Outros escritos, p. 569.
26 27
DOMINIQUE FINGERMANN PARA COMEÇO DE CONVERSA

A PRÁTICA DA SUPERVISÃO vs que ainda hoje prosseguem com a psicanálise, sua experiência e sua
teoria, na sequência da obra freudiana. ia
Após ter rompido com a IPA, em consequência de E
Uma prática da supervisão coerente com o Discurso do psicanalista
e a formação que o condiciona precisa manter o seu paradoxo inerente: desqualificação como analista didata, Lacan, em 1964, propõe
se alguém vai ao encontro de um psicanalista “mais experiente” para um dispositivo outro, a Escola de Psicanálise que, posta
poder sustentar a solidão do ato analítico, seria um contrassenso o lugar proporciona as condições de efetivação de uma “formação suficiente
da supervisão se transformar em um refúgio contra a solidão e o risco, e com seus órgãos de garantia. A Escola não é o lugar do ato, mas 0
que ela abranda “o horror do ato analítico” derivando como aula, acon- lupar que explora e acolhe oportunamente suas condições prévias e
selhamento, fofoca, deriva associativa; pois a supervisão de um analista recolhe eventualmente suas sequências, seus efeitos. o
funciona enquanto tal se for provocação, risco e provação. A escola de Lacan não é um lugar de aplicação de dispositivos
Há algo de inefável da experiência e a supervisão constitui o burocráticos de cooptação ou de mera associação de seus membros, é
lugar privilegiado para que o analista em formação permanente tanja e uma praça pública, fórum, ágora, que cada um perpassa caminhando,
tangencie esse impossível da transmissão, tornando a experiência audível andando e riscando seu caminho próprio. E um lugar de encontro,
para um terceiro que saiba ouvir “o que fica esquecido atrás dos ditos”.'7 de exposição, de risco e de prova, centrado e/ou petite (manto
Responsabilidade por tentar dizer o que não cabe nos ditos, descentrado pelo “real em jogo na formação do psicanalista”. Embora
engajamento, risco, quem se atreve em uma supervisão põe à prova “refúgio contra o mal-estar da civilização”? a Escola de Psicanálise
sua capacidade de sustentar a sua “própria” posição de analista que, constitui uma zona de desconforto e, por isso, se justificam tanto a sua
somente por essa via, garante. vulnerabilidade, quanto o seu princípio fundamental de dissolução que,
Engajar-se em um trabalho de supervisão coerente com o muitas vezes, tomba nos seus próprios equívocos, precipitando rupturas
discurso analítico, consiste, antes de qualquer coisa, em manter viva a e outros rompimentos danosos do laço e do pacto associativo.
sensação de um risco absoluto. O supervisor precisa estar à altura dessa Uma Escola de Psicanálise — “A Escola, a Provação” |! École,
responsabilidade se quiser colaborar para a manutenção da aposta do ato [Epreuve] como lança Lacan na primeira versão da Proposição
do psicanalista, que inquieta justamente o supervisionando. para um Psicanalista de Escola?! — não é nada mais, nada menos
do que a folha em branco na qual cada um que aí se inscreve tem a
oportunidade de fazer ressoar a sua prova de passador da psicanálise,
À ESCOLHA DA ESCOLA contanto que essa prova possa ser lida por alguns outros — Garantia
da Psicanálise: a letra da psicanálise pode chegar a seu destino.
A Escola de Lacan não oferece uma cartilha burocrática que
Além do imenso arcabouço teórico e das suas orientações
regularia os três polos do tripé da “formação” do psicanalista (análise
técnicas precisas, Freud havia proposto um tripé para garantir a
pessoal, supervisão, estudo da teoria); ela propõe, antes, uma articulação
manutenção da psicanálise e a renovação de seus operadores de
dos três em um espaço topológico em constante deformação, a fim
acordo com sua ética. Ele deixou como herança esse modelo para a
de promover o desassossego como critério princeps da formação do
formação do analista, que ainda hoje é praticado, não somente nos
institutos pertencentes à IPA,'* mas também é reivindicado por todos
19. LACAN, Jacques (1967). Proposição de 9 de outubro sobre o psicanalista da
Escola, p. 249. ns o"
17. LACAN, Jacques (1972-73). O aturdito. In: Outros escritos, p. 448. 20. LACAN, Jacques (1964). Ato de fundação, p. Ê o
18. IPA: International Psychoanalytical Association, criada por Freud, em
1910, e 21. LACAN, Jacques (1967). Primeira versão da Proposição de 9 de outubro
da qual Lacan foi expulso, em 1964. sobre o psicanalista da Escola, p. 249.
28
DOMINIQUE FINGERMANN

analista: um “turbilhão” diz Lacan. Entre análise


pessoal, transmissão da
teoria, supervisão, as vizinhanças, as bordas, as ruptur
as de continuidade
não cessam de interrogar e convocar o analis
ta, para sempre em
formação, colocando-o à prova do analítico,
não para incentivar seus
discursos e profissões de boa-fé, ou de filiação corret
a, mas para acolher
a sua responsabilidade pelo Discurso do qual ele
é agente de tantas
consequências subversivas para os sujeitos, enfim,
em questão.
Ao desdobrar detalhadamente os três eixos
da formação do
analista nos capítulos seguintes, constataremos,
mais de uma vez, suas
sobreposições, intersecções, implicações recípr
ocas. Dedicaremos
um capítulo à parte ao passe, seu dispositivo,
seus desdobramentos
e as questões que isso levanta. O passe e o cartel
são paradigmáticos

I
da articulação borromeana, segundo a qual se
um dos três se solta,
os três do tripé da formação do analista não se
sustenta mais. Caso
contrário, o Discurso do Analista deriva, e logo
vira para qualquer
um dos outros três, perigando na histerização, na
universalização do universitário.
maestria ou, pior, na
A FORMAÇÃO DO ANALISTA:
Concluiremos com um capítulo que apresenta textos
diversos momentos dos últimos anos e que tenci
escritos em
onam fundamentar a A PSICANÁLISE PURA
escolha da Escola como nó exclusivo, permitindo o
enlace do analista
que se autoriza de si mesmo com a garantia da
psicanálise, que a
civilização e seu mal-estar incurável exige de
nossa proficiência.
A Escola de Psicanálise é o sinthoma que permi
te o enodamento
da tripla procedência da formação contínua do
analista, ela garante
a sua formação, ou, antes, a sua deformação perma
nente para que
os sintomas dos analistas não lhe façam perde
r o rumo da sua
responsabilidade nos tempos que correm.
Este livro organiza uma série de textos e intervenções
apresentados ao longo dos últimos quinze anos,
que pretendem
transmitir um engajamento contínuo na questão
da transmissão da
psicanálise e da formação do psicanalista. Manti
vemos um certo risco
de repetição, já que esta possibilita a insistência
de um movimento em
espiral que nunca repisa exatamente no mesmo
lugar, e tangencia, a
cada vez, novamente, um pouco mais, o cerne da
questão.
Estes textos, na sua progressão contínua e
insistente, testemu-
nham o rigor e o estilo próprio que a orientação pelo
ensino de Lacan
e a opção decidida pela Escola de psicanálise me permi
tirem sustentar
em minha relação, sempre reinventada, com a
experiência ímpar da
psicanálise.
A FORMAÇÃO DO ANALISTA:
A PSICANÁLISE PURA*

Não queremos ser confundidos com adeptos de qualquer


ciência oculta, mas fomos obrigados a reconhecer e publicar,
onde for possível, que ninguém tem o direito de se
meter com a psicanálise sem ter adquirido anteriormente
as noções bem determinadas que somente uma análise
pessoal é capaz de proporcionar”.
(FREUD, Sigmund [1932]. Nouvelles Conférences sur la
psychanalyse, In: /dées. Paris: Gallimard, 1971, p. 94).

O que me salva do ensino é o ato.


(LACAN, Jacques [1970]. Alocução sobre o ensino. In: Outros
escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 309).

A PSICANÁLISE PURA

A questão da formação do analista consta como causa dos


maiores desconfortos e desassossegos na história da psicanálise
passada e presente; todavia, o seu futuro depende dessa intranguilidade

*
Texto originalmente publicado em Revista Livro Zero, n. 2: O sintoma, sua
política, sua clínica, com o título “A formação do analista: A psicanálise pura”
(São Paulo: EPFCL-SP, 2011, p. 9-30).
32
DOMINIQUE FINGERMANN À FORMAÇÃO DO PSICANALISTA: A PSICANÁLISE PURA 33

para que se produzam dispositivos que não a


reduzam a uma mera Lacan, há muito tempo ocupado e preocupado pela questão
técnica desfalcada de sua orientação ética.
a colocou em primeiro lugar como “Seção de Psicanálise Pura” no
É uma questão que interessa não somente a exten
são da “Ato de Fundação da Escola Freudiana” de Paris em 1964, quando,
psicanálise e o controle que os próprios psicanalista
s devem exercer expulso da International Psychoanalical Association (A er mantas
para que a sua extensão esteja coerente com a
sua ética, mas interessa relativos à formação, ele criou a sua “Escola” de Psicanálise: SEÇÃO
cada analista em qualquer momento do ato específico
que o qualifica, DE PSICANÁLISE PURA, ou seja, práxis e doutrina da psicamálizo
quando interroga o que autoriza seu risco, seu engaj
amento, sua propriamente dita, que não é nada além... da psicanálise didática o
opção em qualquer momento de sua práxis: acolhi Lacan subdivide essa “Seção de psicanálise pura” em três
mento, silêncio,
interpretação, ou seja, as conjunturas diversas de seu subseções: “doutrina da psicanálise pura, crítica interna de sua práxis
ato específico.
É um problema que interessa, apaixona, atorm como formação e supervisão dos analistas em formação : j
enta os
psicanalistas desde a invenção da psicanálise, se datarm É a psicanálise propriamente dita que é didática: a operação
os o início
da psicanálise do encontro e desencontro Freud/Breuer da análise e o produto dessa operação, a sua práxis, deformam o
, no qual
se escancarou e se concluiu que Breuer não tinha analisando e “formam” o operador futuro. O agente da psicanálise é
dado “prova de
formação suficiente”! para suportar o lugar onde o produzido e só pode ser produzido pela sua operação. Ninguém pode
colocava Anna
O. Não tinha se produzido em Breuer à de-formação conduzir a experiência psicanalítica sem ter atravessado e ter sido
necessária, que
permite sustentar, bancar as “formações clínicas”, transformado (deformado) pela experiência mesma. e
oriundas do “estilo
do inconsciente e da resposta que lhe convém”? Em consequência a psicanálise é, por sua vez, condicionada,
As formações clínicas
que se encontram no decorrer do tratamento por garantida enquanto tal, pelo seu operador; não há experieHeta
conta de sua estrutura
de fala dirigida a um outro: transferência, resist de psicanálise se esta não for conduzida por um paga alicia A
ência, sintomas,
angústia, decorrem do inconsciente e dependem de psicanálise é o tratamento que se espera do psicanalista” afirmava
um tratamento
conveniente para que a exploração da neurose que simplesmente Lacan, desde 1955. os
a análise permite
não se degrade em exploração do neurótico! Essa pirueta lacaniana, que se apresenta como tautológica, tem o
A questão da formação dos analistas, aliás, interes
sa, apaixona,
valor inestimável de devolver a responsabilidade da psicanálise a seu
atormenta também os não psicanalistas, não somen operador, o psicanalista, e interroga sua formação (Bildung), como é
te os seus
detratores, que questionam sua validade e sua imperícia, fabricado, do que está feito, e como funciona? .
mas também
qualquer ser humano que procura um psicanalista Em 1967, na “Proposição sobre o analista de Escola”, apenas três
para endereçar a
sua dor, angústia, questão, falta-a-ser, qualquer que seja anos depois da fundação e já no momento de uma grande reviravolta
a sua maneira
de fazer valer, em uma queixa endereçada ao outro, no âmago de sua própria Escola, Lacan usa um termo de lógica — a
o âmago da sua
humanidade singular e incerta. “intensão”* — para precisar o conceito (e não os preceitos) do qual
Como abordar essa questão da prova de de-formaçã
o suficiente
que qualifica a formação de um analista? Como avança
r propostas 3. LACAN, Jacques (1964). Ato de Fundação. In: Outros escritos, p. 236.
convincentes e eficientes em resposta ao problema?
id., p. 237.
E: PRA Jacques (1955). Variantes do tratamento-padrão. In: Escritos, p. 331.
6. Intensão e extensão: termos da lógica, que na lógica de Port Royal se
1. LACAN, Jacques (1967). Proposição de 9 de chamavam compreensão (de um conceito) e extensão (dos objetos para os
outubro sobre o psicanalista da
Escola (Primeira versão). In: Outros escritos. quais se aplicam o conceito). Ver Enciclopedia Britannica, verbete Intension and
Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001, p. 570. extension: “(...) Intension and extension in logic, correlative words that indicate
2. LACAN, Jacques (1957). A psicanálise the reference of a term or concept: “intension” indicates the nene content of a
e seu ensino. In: Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 449. term or concept that constitutes its formal definition; and “extension Nip its
range of applicability by naming the particular objects that it denotes”.
34 DOMINIQUE FINGERMANN A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA: A PSICANÁLISE PURA
35

depende a “extensão” da qualificação de psicanalista. Veremos que O que faz o analista, aquilo que produz a sua gi ce
a referência “du psychanalyste” (“algo de psicanalista”) denota, algo operar psicanaliticamente, é a sua relação singular com o Real, o
,
impredicável, que Lacan nomeia “ato”, “desejo do psicanalista”, “desejo aquilo que está fora de cogitação e de indigna ção, e com o qu ú
inédito”, é uma referência vazia de substância, mas que tem efeitos. clínica o confronta. O que forma um psicanalista é psicanálise pura”, é
Uma referência vazia de substância que tem efeitos não remete à isso não se aprende nos programas de formação, não cabe nas elias
nenhuma mistagogia, nem pedagogia, nem farmacologia, mas assinala apreende-se na experiência: “O que salva do ensino, é o ato... vas
a operação analítica como uma operação lógica com sequências éticas.
ainda, como diz Estamira no filme-documentário de mesmo nome,” na
O recurso à lógica (a relação intensão/extensão), não é puro escola não se aprende, não! se copia. Se aprende é nas ocorrências”.
efeito retórico, pois da mesma forma que Frege” extrai do conjunto
Apreende-se na ocorrência da travessia de sua análise com sustentar as
vazio o número zero — que, por se destacar como conjunto com aii coa
diversas ocorrências das análises dos futuros analisantes.
único elemento, passa a ser nomeado como Um é permite a sucessão de “formação seja
No entanto, ainda que uma proposta
dos números —, o produto da operação psicanalítica permite a sua na esteira de Freud e Lacan, não tentar
paradoxal, não podemos,
sequência e a sua extensão na série dos analistas por vir.
responder a seu desafio.
Lembrar essas premissas desde a introdução de nosso estudo é
uma maneira de anunciar, de saída, que evidentemente não se pode
responder à questão da formação do analista com preceitos, cartilhas
EXIGÊNCIAS E CONTRAEXPERIÊNCIA: |
e programas, estabelecidos como sabemos com as melhores das
100 ANOS DE SOLIDÃO EM UMA COMUNIDADE IMPAR
intenções. Consequentemente, as propostas de formação de analistas
coerentes com o ensino de Lacan não se dedicam a promover um
“ensino” da psicanálise nem a responder às demandas de formação Freud não começou sua empreitada de extensão da psicanálise
de psicanalista: não se trata de formar ou formatar analistas, mas de com muitas exigências. Bastava que os alunos/discípulos estivessem
propor um campo de experiência e de interlocução no qual estará convencidos da sua descoberta, e algumas conversas com ele
eram
à prova o desejo de analista, ou seja, a deformação que as análises suficientes como “formação” psicanalítica. Max Eitington fez uma das
pessoais teriam eventualmente produzido. primeiras “análises didáticas”, e Freud escreve a Ferenczi: “Eitington
No entanto, não devemos nos furtar em tentar responder a está em Viena, duas vezes por semana, depois do almoço, ele vem
questão de “como se forma um analista”, que apaixona e desassossega
andar comigo. Durante esse passeio, ele se analisa”.
1 129? 10

há tanto tempo! Com efeito, esquivar-se da questão e sua resposta A experiência com Breuer tinha-o, no entanto, pn não
seria tomar ao pé da letra a injunção de Lacan “não há formação a o
é apenas uma questão de técnica, pois nem todos
analítica! O que há são formações do inconsciente!”,º desconhecendo da clínica analítica, ou seja, suportar a trans pa As
especificidade
que aquilo que o psicanalista francês queria mesmo era martelar, mais as interpre tações selvagen s, oa a à
inaptidões no seu manejo,
uma vez, o fato de que é na escola do inconsciente que o analista se com os primeiro s discípul os forma os
dos analistas e as decepções
transforma, não na escola dos professores.
não demoraram para alertá-lo e inaugurar a sequência infinita, até hoje,
de tentativas para resolver o paradoxo das formações dos analistas.

7. FREGE, Gottlob (1884). Os fundamentos da aritmética. São Paulo: Abril


Cultural, 1974. (Os Pensadores)
8. LACAN, Jacques (1975). Intervention sur la passe, au congrês de La grande irigido por Marcos Prado.O
j (2004), dirigi ;
9. ênciia ao filme Estamira
Referênc
PER
Moite, inédito. “(...) Je n'ai jamais parlé de formation analytique, j'ai parlé des 10. FREUD, Sigmund; FERENCZI, Sándor. Sigmund Freud & Sándor
formations de Finconscient”. correspondência (1908-1911) — Volume 1. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
DOMINIQUE FINGERMANN 37
À FORMAÇÃO DO PSICANALISTA: A PSICANÁLISE PURA
1910: A criação da primeira associaç
ão de psicanalistas — a IPA —
no congresso de Nuremberg, é É impressionante o número de vezes em que Freud usa é a. T
o primeiro ensaio de organização
“comunidade de trabalho”, cujo de uma “exigência” nesse texto; independentemente das modali , a F
intuito explícito é permitir a exte
da psicanálise, ou seja, da sua intensão, proporci
nsão formação
; já conhecidas na época,
Ê o que ele enfatiza
iza éa
é a Easi ai ridade
ca
onar a extensão de sua da qualificação e essa exigência de dimensão ética mais do q
especificidade, para além de Viena
e da transferência com seu fundador
1918: A fundação do Instituto de . simples prescrição. A o
Berlim precipita a precisão e a
promoção dos princípios dos três , O modelo clássico do tripé “Análise pessoal — PR teórico
pilares irremissíveis: análise pessoal,
estudo da teoria, supervisão. - supervisão” já era bem conhecido na época, e Freud o lembra m
Max Eitington, responsável pela Ima vez aqui: ,
sua fundação, levará 30 anos
para formular, traduzir, exportar,
universalizar q regulamentação i
Nesses institutos, os candidatos estãoâ eles mesmos Gta É s E em
formação do psicanalista nos mold da análises, recebem um ensino teórico na forma de aulas so Ri o E
es mais ou menos idênticos aos
princípios em vigor na IPA hoje (a os assuntos importantes para eles e beneficiam-se de na
não ser a extensão do tempo, já que,
no início, um ano e meio era sufi analistas
i maisi experientes,
i â o est
e sój então estão
ã autorizado
i us
sa dar seus
ciente para o pacote análise didá
— estudo da teoria — supervisão). tica primeiros passos com casos bastante difíceis. Conta-se mais ou men
1926: é um ano crucial para a dois anos para essa formação.
aa 12

questão da exigência de uma


formação específi ca. Em defesa de Theodor Em 1937: em “Análise terminável, interminável”, Freud E
Reik, acusado de
charlatanismo, Freud escreve a questão. Sem entrar nos detalhes e nas precisões, podemos ap
“Questão sobre a psicanálise
qual ele argument lei ga”, no
a com veemência e bom humor destacar a lucidez de Freud: |
a atopia da psicanálise perante o a especificidade e
discurso da ciência. Não é apenas Detenhamo-nos aqui por um momento para garantir ao analista que
Reik que ele defende, é a espe
cificidade da psicanálise. Freu ele conta com nossa sincera simpatia nas exigências muito Gia
nesse texto, passador da experiên d,
cia, desenvolve seu argumento a que tem de atender no desempenho de suas atinidades, (Quase p e
defesa da singularidade da qualific em
ação do psicanalista, explicando como se a análise fosse a terceira daquelas profissões ERA e
minuciosamen te o que é o tratamento psicanal
ítico, suas dificuldades, quanto às quais de antemão se pode estar seguro de chega
seus caminhos e descaminhos. resultados insatisfatórios.º
Mas a particularidade dessa experiên
cia e de sua transmissão não Em 1949: dez anos mais tarde, Lacan, por sua Vez, Já ci
reduz o rigor necessário à sua sust
entação, pelo contrário: envolvido nas questões institucionais relativas à formaçãodo a o
Um charlatão é aquele que empreend Temos o testemunho da sua colaboração na redação o a
e um tratamento sem possuir as
capacidades requeridas... Se fazer
análises for necessário, é necessár
io que regulamenta o percurso da formação no Instituto da Socieda
que elas sejam feitas Por pessoas
que receberam para isso uma Psicanalítica de Paris (SPP):
formação aprofundada. Enfatizo
a exigência segundo a qual ninguém
deve praticar a análise sem ter
adquirido o direito disso com uma ARTIGO PRIMEIRO ;
formação determinada... Sobre a formação de psicanalista e sobre a regularidade de sua
Quais proposições precisas o senh transmissão pela Sociedade Psicanalítica de Paris:
or tem para fazer?
Ainda não cheguei nesse ponto e
não sei se vou chegar lá algum dia."

11. FREUD, Sigmund (1926). A


questão da análise leiga. In: Ediçã
brasileira das obras psicológic o standard a FREVO Sigmund (1937). Análise terminável e interminável. In: Edição
as completas de Sigmund Freud
Janeiro: Imago, s/d (versão . Rio de standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio
eletrônica), v. XX.
de Janeiro: Imago, s/d (versão eletrônica), v. XXIII.
39
DOMINIQUE FINGERMANN A FORMAÇÃO
Ã
DO PSICANALISTA. A PSICANÁLISE PURA

reduz em conceitos visando à


1. - O conhecimento e o exercício da psicanálise exigem uma o “ensino” — que organiza, formata,
experiência de sua própria matéria, a saber, das resistências e transmissão das consequências desse saber.
funda a Esco la
da transferência que só se adquire essencialmente na posição do 1964: “Tão só quanto sempre esteve”,!º Lacan
a em EO os o
psicanalisado. É por isso que a psicanálise dita didática é a porta Freudiana de Paris, ou seja, formula e coloc
sta: a artic u o E
de entrada de um ensino em que a formação técnica comanda a princípios inegáveis da formação do anali
inteligência teórica em si, formação que a E a
“autorizar-se de si mesmo” e a garantia de a
2. — Experiência didática, análises sob supervisão e ensino teórico são ação. O ape o
dispensa, quando ela põe à prova essa form E
seus três degraus, de que a Sociedade psicanalítica assume o cargo e a põe os analistas para E
articulação realiza-se no Cartel: Lacan
homologação. Sem a experiência que a funda, de fato, toda colocação da psicanálise na Esco A
em jogo dos determinismos psicanalíticos é incerta e perigosa, e “transferência de trabalho”, diz ele, a garantia
para O analista manter-s
nada pode garantir que essa experiência seja efetiva, a não ser sua é produzida, antes de tudo, pela exigência
:
transmissão regular por sujeitos eles mesmos especialistas.!“ ) ição analisante.
própr ia form ação do
E LT Ronisto um real em jogo na dá
o psicanalis ta
Reconhecemos, desde já, o estilo de Lacan, um certo tom de psicanalista”.” A “Proposição de 1967 sobre
++ Ecole, / e
provocação e a severidade de sua convocação intergiversável. Escola” institui a Escola como provação do ato:
Em 1953: a polêmica e a disputa dentro da SPP a respeito da izar- se de si mesm o não é inefável; a
(A Escola, a Provação): autor
formação resulta na primeira cisão no grupo francês e já contém as ação e à, sua Cred
testemunho pode tanger a sua demonstr
cute na instituição ana 1 a
premissas da exclusão de Lacan dez anos mais tarde. dispositivo do passe — que acolhe e reper
de “mp an pe
“Situação da psicanálise e formação do psicanalista”, em 1956, o passe clínico, isto é, a passagem necessária
doravante, in lisso Ve
e “A psicanálise e seu ensino” (1957) desenvolvem as preocupações praças a experiência da análise — Será,
iza definitivamen
precoces de Lacan em relação à questão e ao caráter indissociável da da orientação lacaniana da psicanálise e vetor o
doutrina psicanalítica, da sua experiência e da “formação” de seus à ão do analista.
sobre o ensino”, intervenção por ocasião
operadores. mr Eno
O Ensino, Lacan tira E
As questões abertas, em particular no primeiro texto acima do encerramento de um Congresso sobre
relação à questão a
citado, terão uma resposta institucional em 1967, na própria escola consequências da “teoria dos discursos” em
obstáculo, barreira, para
de Lacan, criada em 1964: as questões do grupo e de seus efeitos transmissão da psicanálise: o ensino faz
perniciosos, dos mestres e da hierarquia com suas consequências
anita é qa
inibidoras e constrangedoras contrapondo-se aos princípios e à gre “Aquilo que ele [o grupo] tem de
sta”. “Na Nota pragas :
dinâmica de uma comunidade de Escola de psicanálise. autorizar-se de si mesmo, haja apenas O anali
O analista é o por e
“A psicanálise e seu ensino”! coloca no cerne da problemática o Lacan precisa as condições do ato do analista.
seu horror de saber
paradoxo “O que a psicanálise nos ensina, como ensiná-lo?”, ou seja, demonstrar como “circunscreveu a causa de
entus iasmo ”.!” A Escola se distingue
a incompatibilidade entre o “saber” (inconsciente), fundamentalmente mostrar como ele é “levado ao
imprevisível e singular que sustenta a experiência, e, por outro lado,

In: Outros escritos, p. 236. cia.


16. LACAN, Jacques (1964). Ato de Fundação.
ição de 9 de outubr o de 1967 sobre o Pp
17. LACAN, Jacques (1967). Propos
nalista
“nalis j s, p. 249.
tad da Escola”. In: bi: Outros escrito
14. Publicado na Revue Française de Psychanalyse julho de 1949, tomo XIII,
s, p. 312.
n.3, p. 426-435 (tradução nossa). 18. LACAN, Jacques (1973). Nota italiana. In: Outros escrito
15. LACAN, Jacques (1957). A psicanálise e seu ensino. In: Escritos, p. 438-460. 19. Ibid., p. 313.
40
DOMINIQUE FINGERMANN Á
À FORMAÇÃO DO PSICANALISTA: A PSICANÁLISE PURA “41
4

não como instância, instituto de formação, mas como


lugar da prova A ANÁLISE DO ANALISTA: UMA ANÁLISE DIDÁTICA
da deformação necessária ao psicanalista para suportar
a psicanálise.
1980: A “Dissolução”?º apresenta-se como soluçã
o para
dissolver os efeitos de cola que minam os princípios de Freud argumentou, de diversas formas e em diversos momentos
uma Escola
de psicanálise, ou seja, os efeitos de grupo (identificação de seu percurso, a necessidade da análise do analista para preservar a
, cooptação,
sedução etc.) contrários à preservação, na comunidade própria análise dos charlatões e dos embustes.
a

analítica, das
condições do ato. Em “Questão da análise leiga”, ele persiste com as suas
PU

1980, ano em que Lacan também escreve “Dºescolagem exigências e alerta: “É obrigatório para o analista — fazendo-se
”:2!
des/colar será o propósito da contraexperiência da Escola analisar profundamente — tornar-se capaz de acolher sem parti pris
da Causa
Freudiana. “Trata-se de que a Causa Freudiana escape o material analítico”? | o
ao efeito de
grupo que denuncio... instauro um turbilhão que lhe será Muito cedo, portanto, precisa-se e formaliza-se que é necessária
propício... é
isso, senão será a cola garantida”.2 uma modificação libidinal radical para providenciar uma mudança
1998: O “Campo Lacaniano” posiciona-se na sequên na relação do analisante com o inconsciente e a pulsão, que o
cia/ qualifica eventualmente para o ato do psicanalista, e para que suas
consequência da dissolução e da contraexperiência
de 1981, a Escola
da Causa. interpretações sejam independentes de suas características pescar
O

Hoje, cá estamos nós, dando sequência a essa emprei toquem no ponto certo, alerta Freud em “Questão da análise leiga 5
tada,
tirando as consequências da obra de Freud e do ensino Embora permaneça sempre uma “equação pessoal”, a análise do
de Lacan e
de nossa experiência da psicanálise, da sua transmissão analista deveria evitar o uso de interpretações selvagens e os abusos e
e da Escola:
“Para que a psicanálise torne-se aquilo que nunca deixou atrapalhações no manejo da transferência, e produzir uma renúncia ao
de ser, um
ato ainda por vir”. uso do poder, às satisfações narcísicas e às tendências sádicas.
Para que a psicanálise torne-se um ato por vir ainda, Mas onde será que o coitado vai adquirir essa aptidão ideal da qual
o que
podemos dizer hoje, a partir das lições de Freud e Lacan ele necessitará em seu ofício?” — indaga Freud em 1937; “A resposta
e a partir do
que a “psicanálise nos ensinou” dessas três vertentes da será: na análise pessoal, pela qual começa a sua preparação para sua
DELLA

formação de
analista: análise pessoal, estudo da teoria, supervisão? futura atividade.
Como interpretar esses três eixos da formação do analist Exigência intransponível, cujo objetivo ele precisa aqui
a,
nas nossas elaborações teóricas e nossos dispositivos
, para que firmemente, embora curiosamente aparente temperá-la:
eles participem das “condições do ato”, isto é, que análise
pessoal, Por razões práticas, esta só pode ser breve e incompleta, pois seu
estudo da teoria e supervisão sejam coerentes com
a deformação objetivo essencial é dar ao mestre a possibilidade de julgar se O
indispensável à sustentação do ato e da ética da psicanálise,
operando candidato pode ser admitido para prosseguir na sua formação. A sua
a partir do “real em jogo na própria formação do psicanalista
”.* tarefa está realizada quando ela traz para o aprendiz a firme convicção
MERO à : . 7
da existência do inconsciente”.?

20. LACAN, Jacques (1980). Carta de Dissolução. In: Outros escritos,


p. 319-320.
21. LACAN, Jacques (1980). D'écolage: Actes de Fondatio
n et autres textes, 25. FREUD, Sigmund (1926). A questão da análise leiga. In: Edição standard
inédito (Extraído do Annuaire 1982 de PECF).
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. o
22. Ibid. terminável e interminável. In: Edição
26. FREUD, Sigmund (1937). Análise
23. LACAN, Jacques (1968). Introdução à Scilicet
In: Outros escritos, p. 293. standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud,
24. LACAN, Jacques (1967). Proposição de 9 de
outubro de 1967 sobre o psica- grifos meus.
nalista da Escola. In: Outros escritos, p. 249.
27. Ibid.
42 DOMINIQUE FINGERMANN A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA: A PSICANÁLISE PURA 43

Resta saber se essa firme convicção da existência do A psicanálise ensina, abre o caminho da passagem ao ato do
incons-
ciente, vale por seus efeitos didáticos de informação
ou de psicanalista, ela não é somente informadora sobre o inconsciente e
transformação. suas manifestações, mas produz uma transformação.
Os seguidores de Freud tomaram disposições que indicam
duas Lacan, no seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na
vertentes dos argumentos a favor da análise didática:
técnica da psicanálise, em (1954-1955), formulará a questão da
* Uns justificam a análise do analista como formação, pelo transformação em relação às funções do Eu:
seu aspecto demonstrativo, e, nesse sentido format
ivo, didático,
para compreender “o estilo do inconsciente e à respos Se se formam analistas é para que haja sujeitos tais que neles o Ei
ta que lhe esteja ausente. É o ideal da análise que permanece virtual. Não há
convém”.* Eitington (cuja análise durou alguns passeios
com Freud jamais um sujeito sem eu, um sujeito plenamente realizado, mas é
e cuja “compulsão” para regulamentar durou 30 anos)
chega mesmo precisamente o que é necessário visar obter sempre do sujeito em
a precisar que, para saber começar uma análise, é preciso
ter noção de análise. 4 análise deve visar à passagem de uma verdadeira fala,
seu fim, mas não tira as consequências dessa constatação. que liga o sujeito a um outro sujeito, do outro lado do muro da
*A outra vertente insiste no aspecto do “tratamento” da linguagem?
análise
didática, pois permite uma função diagnóstica, ou seja,
de seleção, Na sequência dos próximos 20 anos, até o final de seu ensino,
mas também proporcionaria e garantiria a futura dispos
ição para a
posição de analista, insistindo sobre o aspecto “transformad Lacan destaca diversos aspectos ou balizas que assinalam uma
or” da modificação da posição do sujeito em relação àestrutura: o desejo do
análise pessoal.
Nesse sentido, Ferenczi insistirá sobre a questão de um final analista, a travessia da fantasia, a destituição subjetiva, a produção
de análise que tão somente permitiria a disposição/posição de um desejo inédito, o analista como “santo”, a circunscrição
de um de seu horror de saber, a identificação ao sintoma, o entusiasmo,
analista capaz de re-produzir/produzir a operação. Análise terapêu
tica a satisfação. Essas mudanças na relação com o saber e o gozo,
e didática começam a se confundir.
Balint e Bernfeld, nos anos 1950, vão ser os primeir qualificam e distinguem o analista não a partir de sua relação
os a refletir
verdadeiramente (depois de Freud e Ferenczi) a respeito da com o eu Imaginário e o sujeito Simbólico, mas com o Real ea
análise posição de objeto (o a-sujeito) que daí decai. O “real em jogo na
didática, criticando os modos e os moldes da IPA que, em
vez de formar
analistas “à altura”, impediria a formação (deformação-transformaçã formação do analista” exige uma profunda modificação da relação
o) com os semblantes (imaginários e simbólicos) que o oculta, com
do analista,já que a dependência do reconhecimento, da aprovação e do
julgamento invalidaria as virtudes transformadoras da análise consequências definitivas em relação ao saber e o gozo que devem
pessoal, poder ser demonstradas e manifestadas.
reduzindo-a a uma formatação contrária à disposição singular
requerida Sabemos que Lacan nunca cessou de se interrogar a respeito dos
para um analista. Bernfeld chega mesmo a contestá-la, na medida
em efeitos didáticos da análise para além de seus efeitos terapéuticos. A
que ela seria um instrumento de normalização, asseptização,
fazendo invenção do passe, em 1967, foi a invenção de um dispositivo para
perder o poder virulento da análise (a peste).
Lacan, como sabemos, chamou a psicanálise didática recolher esses efeitos.
de
psicanálise pura, e escreve “A psicanálise, (vírgula) didática”.

29. LACAN, Jacques (1954-55). O seminário. Livro 2. O eu na teoria de Freud e


na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 287.
30. LACAN, Jacques (1967). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psica-
28. LACAN, Jacques (1957). A psicanálise e seu ensino. In: Escritos,
p. 449, nalista da Escola. In: Outros escritos, p. 249.
44 DOMINIQUE FINGERMANN A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA: A PSICANÁLISE PURA
45

Ágora chegou nossa vez de responder às questões, da foram chamados analistas da APF, Daniel Widlócher, então presidente
especificidade da análise do analista para garantir a sua qualifi çã da IPA, e outro do Quarto Grupo,” os quais deram contribuições
Voltemos às questões: , Ee importantes para elaboração de respostas ao debate iniciado.
Em que uma análise é didática? Em que ela qualifica alguém Constatamos que a questão está em aberto para todos: O que
para suportar a transferência em geral, os tratamentos em particular, a devemos exigir do final de uma análise para formar analistas à altura
experiência, sua lógica, sua finalidade e finitude? Em que uma atrálisa do ato do psicanalista, à altura da “resposta que convém ao estilo do
pessoal pode contribuir para a “formação” de alguém? O que tem inconsciente?”
que ser produzido do começo ao fim para que haja transformação Na esteira de Freud, talvez possamos atualizar a sua resposta:
deformação, “giro” no tratamento do gozo, ou seja “oiro nó podemos exigir que a análise do analista produza no fim “a firme
Discurso”, que capacita, qualifica para suportar a persistência do convicção da existência do inconsciente” e do recalque originário:
ofício do psicanalista e a emergência contingencial de seu ato? “Essa análise terá realizado seu intuito se fornecer àquele que aprende,
Quais são as condições do ato analítico produzidas pelo próprio uma convicção firme da existência do inconsciente”. Precisamos
pra Como se verifica o “giro do discurso” que possibilita com Lacan: podemos exigir que a análise dos analistas os conduza
a topar com a ex-sistência do inconsciente, ou seja, essa instância
As questões estão em aberto para todos. (sistere:) que permanece fora (ex), e que nenhuma elucubração, ficção
Apropriamo-nos dessas questões, pois elas orientam constan- da neurose logra esgotar ou circunscrever. O que se espera, o que Se
temente nossa prática da psicanálise, nossa posição na transmissão almeja no final das contas e dos contos, é que a análise do analista lhe
da psicanálise e nossos dispositivos, elas são temas das elaborações permita concluir que o inconsciente é real, um saber não sabido (insu)
dos Cartéis do Passe, dos Encontros da Escola de Psicanálise ão cujas ressonâncias indeléveis afetam o corpo e a linguagem para que
Fóruns do Campo Lacaniano, elas são instituintes e constituintes de se possa dar prova disso e fazer bom uso na sua prática análítica e na
uma comunidade de Escola. Uma comunidade de Escola não é uma sua vida.
instituição que institui os critérios de pertencimento e hierarquia deste Pois é só então que o analisante não encontrará mais O
nem tampouco uma mera associação de pares; ela se constitui no psicanalista que sustentava o seu suposto saber. “Uma análise termina
ponto de intersecção dos ímpares produzido a partir dessas questô quando analista e paciente deixam de se encontrar para à sessão
do debate que elas fomentam. PRRRaE analítica” Não obstante, com Freud ainda, desejamos que “ele não
O leque dessas questões foi aberto e colocado em discussão cesse de aprofundar” a sua análise, e com Lacan nós diríamos “que
em 2004 na ocasião de uma mesa redonda em Buenos Aires com o ele não cessa nunca de repassar o passe”, isto é, que ele não cessa, é
título A análise dos analistas: o que devemos exigir de seu fim?” sempre, de fazer a prova do ato ao qual sua análise o capacitou.
Participaram desse debate três analistas da EPFCL e dois analistas
da IPA argentinos.” Na ocasião da publicação do debate na França,”

33. Cf. “O fim que justifique os meios” (capítulo 2), p. 67-71.


Sigmund (1937). Análise terminável e interminável. In: Edição
34. FREUD,
Freud (Cf.
standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
31. Eus ocorrido em julho de 2004, na ocasião do Encontro Internacional da capítulo 7).
alterei O Buenos sds Participaram da mesae redonda em questão Abel Latim-Português: sisto-is ere statum: para, subsistir,
, Domini : 35, Dicionário Escola
Soler. que Fingermann, Miguel Leivi, Gabriel Lombardi e Colette manter-se, existir.
36. Ibid. (Cf. capítulo 2).
32. Cf.
Si Revue du Champ p L Lacanien,
j n. 2 — Psychanalyse iti
et politique/s . de la passe. Omicar?, n. 12-13.
Paris: 37. LACAN, Jacques (1977). Sur "expérience
Paris: Navarin, 1977.
46 47
DOMINIQUE FINGERMANN À FORMAÇÃO DO PSICANALISTA: A PSICANÁLISE PURA

; 5.5 a
AS CONDIÇÕES DO ATO
a convicção de um inconsciente “sem sujeito”, fora de alcance E
i
suposição, dos semblantes, que ex-siste “do outro lado do mur o da
A firme convicção da existência do inconsciente
arHá analista quando se tem “a firme convicçã icçãoo da da existênc ia do
exi anca
A condição do ato analítico é simplesmente que haja
analista inconsciente”, ou seja, quando se orienta a partir da ex-sistência
para sustentar a análise, ou seja, é necessário, mas não Inconsciente real. o
suficiente,
que haja apenas analisante. Este trabalha e funciona A interrogação da EPFCL*” sobre a sua experiên cia do Ea
a partir do
“sujeito suposto saber”, isto é, ele se orienta pela suposi desde a criação dessa Escola e do i
disposit ivo
iti que acolheu isia de
ção de um a
saber inconsciente subjetivável. Esta hipótese é a suposi cem testemunhos de passe nos atuais quinze anos de sua experi
ção inicial do A
neurótico, que alimenta a sua novela particular, ela é indisp
ensável retoma diversa e precisamente essa questão: para cada pass
para sua entrada em análise e fonte das narrativas, remem ouvido via testemunhos dos passadores (mas também eh o
orações, RR
construções, ficções do longo “tempo para compreende
r” de uma passador!! designado), põe-se à prova “a firme convicção
análise. A condição do ato do psicanalista depende de
sua disposição -sistência do inconsciente” como condição do ato do psicana (tas
para suspender, e até mesmo dispensar o que se demonstra e se mostra (ou não) no dispositivo = o n
o pensar que está sempre em
um encadeamento de uma suposição de articulação entre a posição do inconsciente como real e a disposiç
saber. . o
O ato do analista é a-normal, ele se apresenta (a-presenta) em ara o ato do psicanalista.
descontinuidade em relação à neurose, º Desdobramos a seguir algumas das formula ções Ee
e não em continuidade, por
das “deformações” exigidas para contemplar as condições do
sé ”

isso se manifesta como corte, discordância, desconcerto


em relação à
previsão neurótica, que segue o trilho da sua suposição transfe analítico”:
rencial
depositando o saber no outro e não saindo do lugar.
O ato do analista é a-normal pois sua “norma” é o objeto O giro no discurso: passe
a,
isto é, essa função lógica que, ao mesmo tempo, marca o limite
da linguagem e funda a sua lógica de encadeamento infinit A “teoria dos discursos” em Lacan permite esclarecer e E
o. Por ar
isso podemos dizer que o ato de psicanalista se a-presenta, lizar a de-formação topológica possível da estrutura, dm
ou seja, disposto para. o ato o pa pede
que o analista se dispõe a intrometer nas cadeias signif ciente para que alguém esteja bem
icantes da
associação livre, uma presença do objeto a, objeto do qual não o passe é a efetivacão desse giro inaugural, “experiênci
se sabe
nada, mas que fundamentalmente descompleta o sujeito, do analista.
indica sua
incompletude. Lacan indica essa função elementar do analist
a quando
o localiza como “semblante de objeto a”.
É preciso um analista para flagrar, nos interstícios das ficçõe em
s 38. LACAN, Jacques (1969). O ato psicanalítico. In: Outros
rei Ê EA
da neurose, as notícias do inconsciente real, o que pode permit Fóruns ! do a
Campo Lacanian miudos
riada
ir ao 39. EPFCL: : Escola de i
Psicanáli se
álise dos
l
analisante, ao cabo de seus rodeios nas suas ficções rtir dos Fóruns do Campo Lacaniano, cu) men
, inventar uma de
outra cena. et q a ruptura de seus membros com a Associação Mundial
icanálise (AMP).
A propensão para o ato é adquirida em dedução de sua própria se dispõe a testemunhar a passagem ao analista ocorrida
40 sad Ai
análise, didática, portanto, quando levada até esse ponto em sua análise. : daria
de conse- nomeado A.M.E. p!
quência lógica, mas, sobretudo, ética, na medida em que 41. Passador. designado por seu analista (ele mesmo
é responsabili- i
de passagem que o qualifica a p oder
dade e disposição relativa a uma “posição do inconsciente Escola), por estar em um momento
”, ou seja, ouvir os testemunhos dos passantes.
À FORMAÇÃO DO PSICANALISTA: A PSICANÁLISE PURA 49
DOMINIQUE FINGERMANN

Discurso da histérica lei do significante: a sua lei de representação. O significante (S)


representa o sujeito (por isso mesmo barrado, dividido, 8), mas
pasa representação, substituição metafórica, estabelecida desde a
fecuperação por Lacan da fórmula saussuriana, condena à metonímia,
pu seja, o significante S, representa o sujeito 8 para outro significante
É, sempre outro.

S, —» 8,

=
8

A mudança na perspectiva lacaniana, que transforma a “estru-


fura” em “operação”, permite incluir no seu efeito um elemento que
não é significante, que não é sujeito nem sujeitável, denominado
por Lacan como “objeto a”. O objeto a nomeia e localiza algo do
“aparelho psíquico” lacaniano, que se apresenta tanto como resto
quanto como sua causa, e escreve essa dimensão parcial do gozo que
a divisão do sujeito pelo significante permite.
Lacan mostra que os discursos constituem tanto as maneiras
possíveis de tratamento de gozo (dependendo do lugar do objeto a
no “matema”), quanto determinam os laços sociais possíveis, já que
articulam o sujeito, O significante, o outro e o gozo. Os nomes dos
Discurso Universitário

s a discursos estão dados pela sua dominante na operação, isto é, seu


fg apente.
As fórmulas dos quatro discursos possibilitam a escrita da
peurose e das suas possibilidades de transformação a partir dos giros
permutativos dos elementos. As mudanças possíveis na estrutura vão
decorrer da posição na qual se encontram os elementos: a operação
Os quatro discursos”? apresentam uma escrita que modeliza
eq : 2

as consequências lógicas da estrutura do sujeito determinado pela do agente em direção ao outro tem um produto e procede da verdade
que a causa.

agente rt ouiro
42. Quatro discursos: os quatro discursos são as quatro formas
de laço social que
Lacan escreve em decorrência da estrutura do significan
te. terá a verdade — * produção
estrutura do significante como representando o sujeito para outro
significante
incluindo o resto da operação que transborda o sujeito como algo
cante, Lacan designa esse resto com uma letra — objeto a. Um
não signifi Lacan explicita e escreve a báscula que explica a passagem
ES E
define a partir dos quatro termos da estrutura (18,8, Sa) e da posição :
para o Discurso do Analista a partir do giro que impulsiona o próprio
lugares definidos como verdade, agente, outro, produto. ?
donos Discurso do Inconsciente — dito Discurso do Mestre.
DOMINIQUE FINGERMANN A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA: A PSICANÁLISE
Á PURA 51
Vale ponderar o quanto a própria estru
tura do significante Discurso da histérica
promove uma busca de sentido, orienta uma movi
mentação, ocasiona
um laço. De fato, se um significante semp 8 s
re diferente e diferencial —> 1
apenas representa substitutiva e parcialm a ss
ente a coisa representada, 2
ele, porta nto, necessita da articulação, da trans
ferência, para outro
significante com fins de produzir a signi
ficação almejada. A partir de
uma incógnita nunca extinguida e sempre
reconduzida (inconsciente), O Saber produzido em S, não toca na relação do sujeito com O
dirige-se o encadeamento metafórico
e metonímico das represen- gozo (a), a sua verdade, a sua verdade enquanto tal, a :
tações. O inconsciente primordialmente fora
de sentido faz laço, faz que fundamentalmente escapa ao sentido ecatodo o Par pro = o.
discurso — o Discurso do Inconscien
te é o Discurso do Mestre, o seu
agente é o significante que determina à sujei Há quem interrompa sua análise nesse ponto: ni , ama
ção e orienta a subjetivi- xixi na cama, agora eu sei por que eu estou fazendo! diz a piada.
dade em direção ao Outro. Esse discurso,
ou laço, opera com a trans- firme convicção da ex-sistência do inconsciente”, condição da trans-
ferência de um saber a respeito do sujeito
$ subposto, do SjatéosS,, formação didática de um analista, não se confunde com à propina
ou seja, a partir do significante primeiro que
representa o sujeito, para e conformação em relação à produção S, do saber USiNRICOs icção,
um outro suposto completá-lo. O objeto,
aquilo que nessa operação elucubração, gozo do sentido e sentido-gozado (jouis-sens”) sobre o
não se subjetiva, permanece aqui na posiç
ão de produto, de dejeto. 1OZ Í nçável. go!
Discurso do Mestre
no a do analisante, dito Discurso da Histérica, não é o
Discurso Analítico — o DA é o Discurso do Analista. Uma análise
8I Sa é didática se (trans)formar um analisante em analista, ao lhe propor-
Biot ha cionar um giro na estrutura, DHS DA, que promove uma up yeIÃo
na sua relação com o saber e o gozo: a /S, que, por sua vez, possi-
bilita o ato do psicanalista (causa e efeito da análise didática). No
Essa impotência do Mestre em resolver esse DA, o objeto a não é mais a coisa que falta, mas a falta que causa, A
resto que permanec e
não subjetivável, fomenta a histérica saber não mais o produto das elucubrações, mas o enigma que funda
e seu laço (discurso) típico. Com
efeito, o resto inapreensível da opera a operação toda.
ção subjetivação (alienação) do
Discurso do Mestre, chamado objeto a, passa a suste
ntar, enquanto
verdade, o semblant'* — “próton pseudo”, menti O saber “no lugar” da verdade: consequências clínicas
ra original — do
Discurso Histérico. O sujeito 8 põe o Significante
Mestre S, para
trabalhar, a fim de produzir um saber Do Há uma certa posição do inconsciente, um lugar certo para o
saber inconsciente, que sustenta o ato que podemos escrever as
essa letra a e sua flecha, que indica a causa, vertente ativa do agente
43. Semblant: do francês “faire sembl
ant, fazer de conta. Indica o valor
funda-
do Discurso: (a —).
mentalmente equivocado do significante
como aquilo que encobre e oculta
o Real. O simbólico e o imaginário são
ditos “semblant' em relação ao Real.
A operação de cada discurso dispara quando um semblante
se coloca como
agente que pretende dominar o outro, o
gozo.
44. FREUD, Sigmund (1895). Projeto
para uma psicologia científica. In: Ediçã
standard brasileira das obras psicológic o 45. Jouis-sens (gozo de sentido): O nó borromeano permite extrair três icaiad
as completas. Rio de Janeiro: Imago, lidades de gozo — o gozo do sentido (jouis-sens) equivoca com jouissance,
s/d, v. | (versão eletrônica).
uma modalidade de gozo logrado entre imaginário e simbólico.
52 À E PURA 53
DOMINIQUE FINGERMANN A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA: A PSICANÁLIS

No Discurso do Analista, no laço e na operação que o analista (“Vinsu que sait”) que sabe da castração imposta pela linguagem.
proporciona, no “lugar da verdade” se posiciona o saber (S,); ou “Une bévue”, “equívoco”, ressoa
. em francês
A
com 4a
“une baie vue”,
seja, onde se supunha a verdade como referência localiza-se o saber com E
“ma hiância vista”, articulando o inconsciente, Unbewusst,
. .
ú

inconsciente (S,) fora de alcance (S,//S) para os significantes S, que manifestações e com a castração, à falta original de onde ps pa
o sujeito 8, causado pelo ato do psicanalista a — $, produz. saber inconsciente, o saber que não se sabe, posicionado im im :
verdade, “posição do inconsciente”, inscreve O Não todo”**,
a ' “NS de onde
2

Discurso do Analista
emerge a contingência do ato.
Umas das consequências em colocar o saber no lugar da verdade
a 48 implica “um saber da impotência”, como diz Lacan nas conferências
s ss,
“O saber do psicanalista”, e não como no Discurso Universitário (DU),
no qual o saber “está podendo!”.
é A [7
a
Pode-se verificar (ou não) a passagem da suposição do saber
' O saber do DU, “que pode”, é um saber “canalha ”. A psicanál ise
inconsciente localizável nas elucubrações, localizando, referenciando
formaria po
.

didática tem que se preservar do saber canalha, us


?

O sujeito nas suas ficções, para a apreensão de um saber que ex-siste


da
ao sujeito, um “saber sem sujeito”, que o põe em causa como objeto jeitos segundo seu bel prazer, que fabricaria meros ensinantes
(destituição subjetiva) e condiciona-o como indecidível desde as
psicanálise”.
leis do significante atribuídas ao Outro. Essa conclusão está ao
Discurso Universitário
avesso do Discurso do Mestre e da neurose, que supõe no Outro essa
determinação necessária. s a
No fim, a decisão do ser é insondável pela via da fuga do sentido,
a sua cisão/separação é apenas apreensível pelo que escapa ao sentido.
Pt 1
DAL

No lugar da verdade, sempre da ordem de um meio-dizer,


posiciona-se o saber. A verdade pode se dizer, mas não toda, é sempre Colocar o saber inconsciente no lugar da verdade é desalojar a
não :
um meio dizer. O saber S, na posição da verdade implica que não todo verdade mentirosa do discurso histérico, é revelar o saber que
sabe como “corpo do saber” — saber no corpo — sítio ea j
pode ser dito, não todo vai poder se produzir como S, permanece um
corpo falante, ou seja, de algo no corpo que não faz sentido , o Ro
não sabido, ['insu. O inconsciente é um saber que permanece fora
O que sustenta o ato do analista é que sie não comp à
de alcance, a não ser que se manifeste pelos rateios, pelos tropeços
“o saber no lugar :
da língua e do corpo: insucessos do Unbewusst, que Lacan escreve demanda de saber do analisante, colocando
irredutí ve
“Pinsu que sait de [une baie vue...” (insuccês de | “Unbewusst) no verdade”, ele posiciona o inconsciente na estrutura como
título de seu penúltimo seminário.“ Este título escreve, assim, o à demanda, a suposição de saber no Outro.
equívoco fundamental do fala-ser” procedente desse saber não sabido

46. LACAN, Jacques (1976-77). Le séminaire. Livre 24. Vinsu que sait de Pune-
bévue s'aile a mourre, inédito.
47. Fala-ser. em francês, pariêtre, amálgama do verbo parter (“falar”) com a e da piel apa
o subs- 48. O Não Todo: a partir da releitura da lógica de
tantivo être (“ser”). A partir de 1974, Lacan passa a incluir a dimensão
É da sexuaç ão condensamÉ e e e :
do sicional de Frege, que as fórmulas
real não somente como o impossível de atingir pelo simbólico, mas como
a â Todo, o ingular
singu I de cada um não decorrent
ço! e do
i
Lacan designa como Não
dimensão da estrutura que ex-siste fora de alcance, que o afeto, o sintoma, o ade E
particular da castração. O Não Todo designa em Lacan
testemunha. O pariêtre inclui essa dimensão real que o sujeito não implicava. particular que o Universal da castração determina.
aquilo que não decorre do
54
DOMINIQUE FINGERMANN A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA: A PSICANÁLISE PURA 55

“Fazer semblant de objeto”


o sujeito e derroga o saber suposto. Responder de outra forma seria
selar um mal-entendido em primeiro lugar para a demanda da neurose,
Com Lacan, chamamos ato psicanalítico a prese
nça de psica- que, embora enderece ao psicanalista uma demanda Ea aa entrega
nalista, a sua acontecência (son évênement);
al go de analista acontece, :
ocorre, quando ele posiciona o objeto como causa, junto seu “horror ao saber”, “sua paixão da ignorância :
como agente No fim, o que não se sabe não precisa ser mais transforma o
da operação no laço social que ele determina.
Enquanto objeto — em “horror”, o saber que não se sabe ex-siste: “firme convicção da
não sujeito, nem assujeitado, nem subjetivado
— objeto que falta, inconsciente”. E
furo no saber, ele é agente, causa, de uma operaç sxistênci
ão. O psicanalista à transferência com o ato, a verdade do o
não é sujeito; ele causa a operação do sujeito p=
8 que produz seus não precisa mais se procurar no saber do Outro: S / 8 — S, como n
Significantes Mestres S, como desprovidos de qualq
uer sentido, já Discurso do Mestre: No final de uma análise o paciente deixa de ir ao
que não há relação entre S,eS,: no fim, não há
relação O,-28,).0 encontro do seu analista, diz Freud”!
significante S, não representa o sujeito para outro
significante. O ato do psicanalista causa, sem o saber, escapando ao o
“O analista faz semblant de objeto”,*º diz Lacan;
no momento
do ato, ele faz do objeto um semblant. Ou seja, o psican suposto (e nisso se confirma como conveniente para o esti E o
alista, no laço
social que garante, não coloca o objeto como produt inconsciente e a resposta que lhe convém), para que a psicaná ise
o, dejeto (como no er
DM), nem como Verdade (como no DH), tampouco seja trans-formadora, ou seja, didática, transformadora da
consome o objeto neurótica do sujeito suposto saber na hipótese lacaniana de um saber
produzido pela neurose.
Lembremos, no Seminário 1 6, a referência ao Tao sem sujeito, que localiza S,, o corpo do saber, ou o sono ii
Te King: “onde
se faz ver, não veja, onde algo se faz ouvir, não ouça saber inconsciente que ex-siste e resiste à representação ( ERadoras 3
etc...:5 ali onde
o objeto se fazia ver, tocar etc., o analista produz anuncia o Seminário 20, Mais ainda), mais além do princípio de
um corte, uma não
correspondência, ele abre uma brecha, uma prazer, “do outro lado do muro da linguagem”. » 52
via (o “Tao” é a via, à
brecha: um dos motivos pelos quais Lacan dizer ser
um pouco chinês!).
Fazer-se de semblant de objeto é esvaziar o
objeto de seus
revestimentos, é encarnar (emprestar seu corpo) o O ESTUDO DA TEORIA
silêncio com sua
voz, a não complacência de seu olhar, uma dispo
nibilidade sem
devoração, um distanciamento sem abandono, para
fazer valer, em ato, “Mas tal direção só se manterá através de um ensino veniado o,
que o real da alteridade “ultrapassa” a verdade do
fantasma e permite iisto é,ç que nãoã pare de se submeter ao que se c hama novação”, ç
mais jogadas, mais flexibilidade, um jogo mais descol i E
ado. adverte Lacan no capítulo “A formação dos analistas por vir”, no texto
de 1955 “A coisa freudiana”.
Suportar a transferência com o ato?
A questão para nós é: como produzir, proporcionar, um E
que seja coerente com a deformação exigida pela formação do
O psicanalista é quem suporta a relação com o SsS
— Sujeito
suposto Saber — a partir da posição de objeto, uma
função que excede

51. FREUD, Sigmund (1937). Análise terminável e interminável. In: Edição


49. LACAN, Jacques (1969). Resumo do seminár
io O ato psicanalítico. In: o tandard; brasileira
ileli das obras psicológicas
icológi comp letas.
Outros escritos, p. 375.
52 LAGE Jacques (1954-55). O seminário. Livro 2. O eu na teoria de Freud e
50. LACAN, Jacques (1 968-69). O seminário.
Livro 16: De um outro ao Outro. o na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 307.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 338.
53. LACAN, Jacques (1955). A coisa freudiana. In: Escritos, p. 437.
56
DOMINIQUE FINGERMANN À
À FORMAÇÃO DO PSICANALISTA: A PSICANÁLISE PURA 57

analista? Como propor “um ensino verdadeiro, isto é, que não pare de A experiência: ocorrência da contingência do singular
se submeter ao que se chama novação”?º!
A questão do “como” será respondida pela via dos dispositivos, Não há ensinamento possível sem a experiência prévia, mas o
da sua ética inerente e das brechas pelas quais o estilo pode irrompe que da experiência tão singular, tão “própria”, tão “de si mesmo”,
r
e romper a sua burocratização. pode e deve ser transmitido pelo ensino, e como? Como resolver esse
paradoxo, já que o singular, que passa aos ditos do ensino, perde sua
Condição da receptividade à teoria psicanalítica praça, sua singularidade por recorrer ao minimamente universal, que
são as palavras que servem à comunicação, e periga esterilizar ou
Insistimos, mais uma vez, sobre a própria experiência sendo a ensimesmar o “de si mesmo”? ua
premissa didática obrigatória. A capacidade de transmissão da teoria Retomemos a questão de Lacan, de 1956, “O que a psicanálise
psicanalítica a partir de um ensino depende do acesso prévio do sujeito nos ensina, como ensiná-lo”,;” questão que ele persegue na página
à experiência. “Quando ministramos aos nossos alunos”, escreve seguinte “algo que a psicanálise nos ensina ser-lhe próprio, ou o mais
Freud em 1926, “instrução teórica em psicanálise, podemos ver próprio, o verdadeiramente próprio?” o
quão
pouca impressão lhes estamos causando, para começar. Eles absorve O que é próprio do fala-ser [parlêtre| (não o particular do sujeito
m
as teorias da análise tão friamente quanto outras abstrações com castrado), o que não se sujeita, vai ocorrer na experiência, ocasião da
as
quais são alimentados... Como então poderia esperar convencê-lo, sua emergência, de sua acontecência: a poética e a lógica possibilitam
a Pessoa Imparcial, da correção das nossas teorias, quando só posso apreender o que escapa ao sentido comum do humano, a repetição e
pôr diante do senhor um relato abreviado e, portanto, ininteligível das o poema.
mesmas, sem confirmá-las pelas próprias experiências do senhor?”
5
Lacan, na “Alocução sobre o ensino”, em 1970, será categórico a Os dispositivos: disposições éticas para a práxis da teoria
respeito: “Je ne peux être enseigné qu'à la mesure de mon savoir*:5 é
apenas na medida de meu saber (S,) que posso ser ensinado. Ele opõe A ética da psicanálise é a práxis de sua teoria, diz Lacan.
aqui o saber ao ensino “o sono da razão” que, em vez de permitir Com efeito, o próprio da psicanálise é o seu ato, o que se produz
o
acesso a esse saber, faz barreira, obstáculo. a partir do real: fazer da teoria não um modelo que se aplica, mas uma
O saber em questão aqui é o saber que não se articula, não faz práxis que a produz à medida das ocorrências, isto é, coerente com o
cadeia com outro significante para representar o sujeito, é o saber que se espera de um psicanalista à altura do ato e do real.
aquém da linguagem, corpo do saber, o saber da alíngua, sítio do Inventar, inovar, “acolher cada caso como se não se soubesse
inconsciente real porque fora de acesso do simbólico e do imaginário. nada” dizia Freud, não repetir, não fazer uma psicanálise aplicada,
O saber que se coloca no lugar da verdade no Discurso do Analista aplicando preceitos em vez de usar os conceitos que balizam os
é o saber que, em uma análise, se evidencia, se manifes fenômenos, explicar-se e assim desenvolver a psicanálise. “O próprio
ta como
radicalmente singular lá onde havia o encadeamento da verdade desenvolvimento daquilo que eu tinha que explicar colocou-me
mentirosa encobridora. problemas e abriu novas questões”,* reconhece Lacan.

54. Ibid. 57. LACAN, Jacques (1955). A coisa


i freudiana.
i In: ; Escritos,
| p . 439. o
55. FREUD, Sigmund (1926). A questão da análise leiga. In: Edição standard 58. LACAN, Jacques (1967). Conférence à la faculté de Meeleicimes de
brasileira das obras psicológicas completas. Strasbourg, inédito. “(...) Le développement même de ce que fasais a
56. LACAN, Jacques (1970). Alocução sobre o ensino. In: Outros escritos, expliquer m'a posé des problêmes et a ouvert de nouvelles questions”.
p. 303.
59
58 DOMINIQUE FINGERMANN A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA: A PSICANÁLISE PURA

na contramão da
Explicar-se orienta o analista para a direção da cura enquanto, Pela graça da transferência e do ato que responde
uma análise, se faz valer à
simultaneamente, contribui para a elaboração contínua dos conceitos, «ua demanda, o estilo se autoriza dentro de
da verdade, é desvalido.
“sem o que não há chance de que a análise continue a dar dividendos medida mesmo que o Outro, como garantidor
nálise só e
ao mercado”* adverte o psicanalista francês, em 1973. Quem lança mão de transmitir algo da psica
que intriga, E ga
A práxis da teoria consiste em colocar o analista na posição alcançar a sua tarefa se souber usar O estilo
inesperado: ad
analisante. O psicanalista em formação é o psicanalista psicanalisante; desperta, abre os ouvidos para o inaudito e o
brechas no pr ma a
psicanalista, portanto, deformado pela sua análise didática, psica- do psicanalista. A incisão do estilo abre
ção. “A verda de pode
nalisante, portanto, que passa seu tempo repassando o passe. compreensível, no necessário da repeti
do estilo.
Quais são os dispositivos propícios a um ensino verdadeiro que convencer, o saber passa em ato” no talho
abre os sulcos que
não cesse de submeter-se à novação? O cartel, e as ocasiões insistentes O talho do estilo não se transmite, mas
tenha alo de EA
propiciadas pela comunidade de trabalho (jornadas, congressos, deixam passar o que não tem sentido; talvez não
everyíhing, that's apo e
publicações) são os dispositivos nos quais cada um pode responder mas tem valor de uso. “There is a crack in
é por aí que passa à luz,
ao desafio ético da psicanálise — o real em jogo na formação do licht gets in”,º há um rasgo em cada coisa,
psicanalista — e pôr à prova a sua resposta estilosa. H d Cohen.
ção do analista)
Uma Escola de Psicanálise é o lugar da formação dos psica- aa comunidade de Escola (base da forma
um, uma comunidade
nalistas-psicanalisantes, é um lugar de “trabalho graças ao qual ainda é fundada sobre o que se tem de mais incom
rsos disparatados
existe o psicanalista à altura daquilo que supõe que se lhe faça sinal”,*º inconfessável do estilo de cada um, dos “espa
suas respostas a
como precisa de saída Lacan quando do ato de Fundação da Escola em que, descolados da verdade, arriscam-se a expor
à prova com es E pd
1964, desde já condicionando a garantia da autorização do analista a e poéticas: explicar-se, pôr-se à prova, pôr 0 ato
— na melhor das hipót eses — passai
um trabalho que “faz Escola”. que nos faz eventualmente
da psicanálise.
E
; A via do estilo
os
E Necessidades epistêmicas e éticas dos estud
“Qualquer retorno a Freud que dê ensejo a um ensino digno
e pessoal, didática
desse nome só se produzirá pela via mediante a qual a verdade mais A transformação de um analista pela sua anális
teoria. Laca n espaniaverso
oculta manifesta-se nas revoluções da cultura. Essa via é a única por definição, não o dispensa do estudo da
s o E e
formação que podemos pretender transmitir aqueles que nos seguem. sempre com relação à negligência de algun
não saber do analista,
Ela se chama um estilo”. pretando suas primeiras injunções em prol do
O estilo é o rastro, o sulco, do “próprio mais próprio”, do sin- : justi ivas para a ignorância.
gular, “de si mesmo”, é aquilo que não se autoriza de um outro e, por o red dito LAG deram insistentes orientações a
para estar à altura
isso mesmo, rasga, atravessa, fura o sentido comum. “O que se torna respeito do que o psicanalista tinha que saber,
a pulsão depois da travessia do fantasma?”, perguntava Lacan: um
estilo, podemos responder.
In: Outros escritos, p. 31 E
62. LACAN, Jacques (1970). Alocução sobre o ensino.
“Anthem”, de Leonard Cohen In: http://ww.youtube. com
63. Cf. a música
no o
59. LACAN, Jacques (1973). Nota italiana. In: Outros escritos, p. 314. « watch?v= e39UmEngY8 11. In:
(1976). Prefácio à edição inglesa do Seminário
60. LACAN, Jacques (1971). Ato de fundação. In: Outros escritos, p. 241. 64. LACAN, Jacques
61. LACAN, Jacques (1957). A psicanálise e seu ensino. In: Escritos, p. 460. Outros escritos, p. 569.
60
DOMINIQUE FINGERMANN A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA: A PSICANÁLISE PURA

de sua operação. A lista é infinita: literatura,


história das religiões, À PRÁTICA DA SUPERVISÃO
antropologia, linguística, matemática, poesi
a etc. Lacan, em “Talvez
em Vincennes” (1975), insistia sobre as
pistas e os arcabouços
epistêmicos que devem servir de apoio para
o psicanalista, convidan- Uma prática da supervisão coerente com o Discurso do E
do-os a usar esses descaminhos como
“esticadores de horizontes”, canalista e a formação que o condiciona não pode se equivocar no
mas também a se responsabilizar para oferecer dos discursos universitários, histéricos, do mestre. Isso o Rr
a esses ensinamentos
uma oportunidade de se renovar: “Talv
ez em Vincennes” — nova que a supervisão funcione a partir apenas do Discurso do Psican po
esperança de Lacan nas relações da psicanális seria incorreto e impossível, mas não pode ser uma cena que a
e com a Universidade
— “venham a se reunir os ensinamentos em v laço na sedução, no poder do saber ou na certeza. Er uma pd a
que Freud formulou que
o analista deveria apoiar-se”,5 apoio e renov
ação mútua da linguística, de controle, inerente à especificidade do ato analítico: somente à e te
lógica, topologia, antifilosofia e psicanálise. riori [aprês coup] podemos falar da ocorrência do ao e aval ar a
A aparente incompatibilidade entre o ensino pertinência e sua eficiência; por essência, 0 ato é de um sora U:
e a experiência não
pode ser um motivo, uma desculpa, para não seria perigoso para quem está engajado aí com o parceiro E a
saber nada, satisfazer-se
na posição do não saber, da ignorância (com este se creia único. Colocar o ato à prova é sair da solidão, O ne o
o ocorreu na própria
Escola de Lacan segundo ele mesmo). do impensável. Em geral, a supervisão é O primeiro lugar n e
“O saber da impotência”, como descreve
Lacan nas conferências
pratica a “práxis da teoria”, exercício do analista que põe : p a
em St. Anne,” não é um motivo para se confi
nar na impotência. A seu saber e não seus conhecimentos. Essa provação será re mac
ignorância pode, precisa, fomentar uma paixão: ao longo da sua formação pertinentes nos carteis, nos a o
a paixão da ignorância
(não no sentido de se apaixonar pela ignor na comunidade de seus pares/ímpares, “esparsos nar os a ros
ância), mas colocar a
ignorância como causa. textos que ele apresentará e que o apresentarão, fazendo val aa o
A “paixão da ignorância” e o “gaio saber” e sua presença na empreitada da práxis da teoria. Na supervis Ed pu
são orientações para
não suspiorar* na impotência do saber e presta sempre “jovem” analista, transforma o O ia em
r ouvido às ressonân-
cias, aos efeitos poéticos d"alíngua para que algo que atinge um outro enquanto lugar da alteridas a a
se subverta o sentido
comum da neurose. e quando explica o caso do seu analisante —a direção E a
a construção de seu fantasma, a renúncia às suas identi ea da
achados de seu estilo — é a sua capacidade de sustentar a sua poa
posição de analista que ele põe à prova, e somente por essa via, garante.
A experiência não é inefável. Garantia da psicanálise. a di
Engajar-se em uma supervisão é (re)fazer o passe, ou seja, o
a um outro neutro e benevolente testemunhar sua passagem ao a
- BARROS, Manoel de (1993). XI. In: O livro das ignorã
ças. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1993, p. 99.
a neisesa em um trabalho de supervisão coerente com o ns
- LACAN, Jacques (1975). Talvez em Vincen
nes. In: Outros escritos, p. 314. analítico consiste, antes de qualquer coisa, em manter o a nr
- LACAN, Jacques ( 1971-72). Le séminaire
Le savoir du psychanalyste. Paris:
Seuil, 2001 (Aula de 04/11/
1971). “(...) Un savoir qui n'en peut mais, de um risco absoluto. Um supervisor “suficientemente bom contri uirá
le savoir
de Iimpuissance voilã ce que le psychanalyst
e, dans une certaine perspec- para a manutenção dessa aposta: a aposta do ato do psicanalista.
tive, une perspe
ctive que je ne qualifierai pas de progre
ssive, voilà ce que le
psychanalyste pourrait véhiculer”.
. LACAN, Jacques (1973). Resumo do
seminário ...ou pior. In: Outros escrito
p. 544. s, 69. LACAN, Jacques (1976). Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. In:
Outros escritos, p. 569.
H
A ANÁLISE DOS ANALISTAS
O FIM QUE JUSTIFIQUE OS MEIOS*

A análise dos analistas:


o que devemos exigir de seu fim?

Por estarmos falando da psicanálise há mais de cem anos,


acabamos por “bem dizer”, aqui e acolá, o que ela é e a que veio. E
isso apesar da ciência e de seu sucesso esmagador, e da Lei que não
vessa de querer se meter nesse jogo que escapa à sua razão.
Apesar da ciência e da lei, que se obstinam em reduzir o real a
seu saber, insistimos no “bem dizer”.
Por estarmos falando da psicanálise há mais de cem anos,
deveríamos finalmente saber dizer alguma coisa que preste sobre o que
é um psicanalista que valha. O que é um psicanalista que valha sufici-
entemente para não conduzir o humano rumo à besteira ou à canalhice?
O que é um psicanalista que valha suficientemente para não conduzir a
psicanálise para onde a ciência e a lei a precipitariam se os psicanalistas
não se provassem à altura da manutenção de suas vias e de sua lógica?
Então digamo-lo um pouco, na medida do possível, porque seria
o cúmulo se o princípio da operação analítica permanecesse inefável.
O que diz Freud? O que diz Lacan? O que dizem os uns e os outros?
Essa breve provocação introdutória não nos permite recorrer a nossos
parceiros costumeiros para tomar partido e responder à indagação.
Como, na ocasião do ato que nos faz psicanalistas, estamos sós e

Texto originalmente publicado na Revista Literal n. 8 (Transmissão da psica-


+

nálise e formação do analista). São Paulo: Literal, 2005.


66
DOMINIQUE FINGERMANN À MMALISE DOS ANALISTAS
67
na pressa para sustentar o que é que “faz o analista”, nim
ou seja, o que se tornar, não há reprodução da experiência, nem pa
produz um analista em consequência da experiência
de sua análise e Identificação. O que se inicia, a cada vez, é um momento inaug
autoriza afirmar que, ao fim das contas, ela se atestou cada
como didática? gue recomeça a psicanálise e começa pela transferência.
Qual “exigência”? quanto à análise do analista pode a cada vez, de novo, isenta
orientar Suportar a psicanálise é —
nossa clínica e nossos dispositivos institucionais ne e
para que o futuro da portar a transferência. Devemos exi gir da análise de um o
psicanálise não seja uma ilusão, ou, infelizmente, que º ato que e Ve
limitado pelo efeito seu fim possibilite e justifique os meios,
de nossa negligência?
sustente a tarefa, o trabalho e a transferênc ja até 0 fim, até po :
O que baliza, mais uma vez, nossa intervenção
é a clínica. deles as consequências que fazem uma psicanálise tomar um m ,
Não porque saibamos de nossos analisantes que se pt
metem a “fazer o É necessário, portanto, nesse ponto, precisar datas
analista”, já que de nosso lugar não podemos saber,
por causa do ato! e que é a transferência? Como a possibilidade de poi A é pro
da sua estrutura, como eles operam, como eles Dito
“fazem o psicanalista”, pelo fim de uma análise que põe termo à transferência”
No entanto, a prática da supervisão, frequentemente obertrá gia — éatr :
nos esclarece A transferência é a transposição —
sobre o que faz com que um sujeito se embarace psíquico”, o
com a neurose, [erência da estrutura, ou seja, do “aparelho
quando, justamente, ele deveria se pôr em posiçã
o de suportar a dispositivo analítico em decorrência da Memmanto id nb Ea
psicanálise. O que as supervisões nos indicam precis e
amente é como analista. É um trabalho, uma dinâmica, diz Proud: o des a
alguns se embaraçam com a pulsão e suas vicissitudes, "trans er
com a fantasia, “representações” e de seus “investimentos ", OU seja,
ou seja, com o que disso se manifesta no dispositivo o. ativo”
analítico pela dos significantes de que a associação livre dá e
transferência.
Esse trabalho tem como efeito um produto, cléito quanti ê id É
Se sabemos que, ao final das contas, após múltiplas
voltas e revi- diria Freud, que toma “forma” em decorrência “da regressão Ri
ravoltas, a análise pode conduzir a seu fim. como
cingir e transmitir Como no trabalho do sonho, o que não tem vez nem lugar ee cm
que o que se conclui nesse ponto, faz o analisante passar
a analista, toma forma e figuração nas representações ao alcance da E o
ou seja, lhe permite suportar a análise dos outros, ato da reali
lhe permite não se A transferência, precisa Lacan, é “a colocação em
embaraçar com a neurose (a pulsão, a fantasia, a
a transferência)? sexual do inconsciente”.* Há, no dispositivo freudiano,
Suportar a psicanálise é, a cada vez, reinventá-la a neurose no ;
— essa da satisfação pulsional. Ela se transfere aí, tal como
declaração não é um mero efeito retórico, é uma
posição ética. Não « [az disso seu destino atado pela fantasia que hic et nunc imph
há continuidade entre o psicanalisante e o psicanalista
que ele pode ali > se mete nessa parada.
qse a transferência é dar um suporte ao vabalho cão
produto: quer dizer, trata-se de suportar essa HHicinão Sei ca
nela nem tropeçar topando com sua contratransferência. | p o
1. LACAN, Jacques (1 968-69). O seminário. Livro 16: De um Outro ao outro. «aber tratar esse enlace pela satisfação pulsional, manejá-lo, ma o
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. Na aula de pias a
ambiguidade da expressão “faire Panalyste”.
4/6/1969, Lacan comenta a brá-lo, até esvaziá-lo do sentido que lhe dá a neurose.
» analista, de saber se aproveitar da ocasião, e fazer uso E a Ç A
2. A palavra “exigência” é usada inúmeras vezes por
Freud quando ele fala da lugar,
formação dos analistas, e em particular no texto “A análise
leiga”. implicar-se na estrutura do sujeito, sabendo manter aí seu
3. LOMBARDI, Gabriel (2001). 2007: résultats
des analyses et formation analy-
tique dans IPA. (Seminário pronunciado
em Paris em março de 2001 dentro
das Diagonales de Foption de Vinternationale
des Forums e publicado pelo
Forum du Champ Lacanien). No original: “(...) de
par la structure de ['acte
ce ne sera pas lui 'analyste qui pourra dire commen
t son patient est devenu 4 LACAN, Jacques (1963). Le séminaire Les noms du pére. Paris: Seuil, 1964,
analyste à son tour”,
p. 137.
68
DOMINIQUE FINGERMANN É AMÁLISE DOS ANALISTAS
69

que vai aí mesmo produzir um certo espaço,


um espaçamento, um pulsão, colaborar com a fantasia e colmatar o objeto. Soa
intervalo, um “ab-sens”5
analista” é isso: é quando a transferência encontra o analista para
A experiência da transferência é a experiência como
artifício, volaborar com a satisfação pulsional de aobettiuição que a acido é
Experiment, mas também Erfahrung — travessia
Erlebnis — o “vivimento”* —, que a análise do analist
— e também se deu como destino. O lugar onde o analisante “encontra : an N E
a lhe permite ailua o ponto onde se trata de responder com o que Freu ça aa
suportar na medida em que ela lhe deu acesso, de a
uma maneira “Die Versagung”, O fracasso, o impedimento dessa satis aç
tangível, a um certo lugar (a vaga, o intervalo, o espaça
mento, lugar duzido, em geral, por “frustração” e que podemos traduzir com
vazio que possibilita o ato). no
“Dizer-que-não”.
Como então? Como se produz o fim da experiência faz silêncio, io
que dá lugar E e da satisfação esperada, o analista
ao ato? o e. im Sa
upar, abre um espaço, O espaço onde se alojar
No fim, o analisante não se encontra mais com a
o analista, diz vhamado por Lacan de “desejo do psicanalista . O desejo
simplesmente Freud.” Não é, no entanto, assim tão simple eg a ni
s; passa-se é o destino pulsional que opera na análise dando
alguma coisa na transferência que faz isso, que do destino e da e a
produz isso: ele nperação, e pode, eventualme nte — acaso
não encontra mais o analista no encontro marca a é a atua to d
do de sua fantasia, constituir também o seu produto. Se a transferênci
e não há mais encontro com aquele suposto suport éo lance e o lançar io
ar o saber do “pantomima” neurótica, o desejo do analista
inconsciente. Nesse ponto irremediável de não encont
ro, produz-se do analista com o objetivo de “um remanejamento possível E ii
uma modificação profunda, um remanejamento do destin
o pulsional por causa da pulsão, em prol da pulsão e de seu resto incurável: 5
que faz passar da “realidade sexual” do inconsciente
atualizada na ] PE Es War. .
transferência onde se encontra o analista ao pulsional a
colocado em E aid analista é um destino pulsional
ato pelo desejo do analista, que vai permitir ao sujeito
o encontro sem nais se em baraçar com a neurose, mas qualifica o analista para e
adiamento nem meios-termos com sua divisão subjeti
va. No lugar do concertá-la. O analista desconcerta a neurose quando põe a s uu a
encontro necessário com o analista, há um encont
ro com o real. pelo avesso: passando da lógica da fantasia à lógica do ato: (8a)
No lugar da neurose de transferência (um sinto
ma que não (a co de Freud, nós podemos exigir que a análise
cessa de escrever a relação sexual), um destino do o
pulsional outro, um
“sinthome” que não cessa de escrever a não relação. a
produza, no fim, “a firme convicção da existência do q
Com suas pantomimas e artimanhas. a transferência convoc no final das contas ele po
a o diremos, a sua ex-sistência, isto é ee
analista a “fazer relação”, isto é, de diversas formas,
fazer cola para conclui > O inconsciente é o real.
E e ó analisante não encontra mais O psicanalista e
sustentava o seu suposto saber. Não obstante, com abra e
5. Ab-sens: neologismo usado por Lacan em “TÉtourd
desejamos que “ele não cesse de aprofundar” a sua aná 186; e
it” para sinalizar como Í acan, diriamos “que ele não cessa nunca de repassar o passe”, isto é,
Real a ausência de sentido própria ao significante
e que seu equivoco funda- do ato.
mental indica. Esse ab-sens confirma o ab-sexe
, OU seja, a não relação que cle não cessa, e sempre, de fazer a prova
sexual, que fomenta a procura do sentido sexual
em todas as significações,
como Freud bem destacou
6. ROSA, Guimarães (1956). Grande Sertão: Veredas
. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1983,
7. FREUD, Sigmund (1937). Análise terminável
e interminável. In: Edição
standard brasileira das obras psicológicas
completas. Rio de Janeiro: Imago,
s/d (versão eletrônica), v. XXIII. h Ibid.
É & Ibid.
À ANÁLISE DOS ANALISTAS 71

As consequências dessa prática clínica não são misteriosas: a


psicanálise tem sérias consegiências no tratamento da angústia e dos
À ANÁLISE DOS ANALISTAS* sintomas que atormentam osseres humanos. De saída, atribui-se um
valor de verdade aos sintomas: se valida a angústia como indicadora da
singularidade real de um sujeto. Que extravagância nesses tempos de
vólera do discurso da ciência edo capitalismo: como ousar dar um valor
de uso para algo que não tem valor de troca (os sintomas e a angústia)!
Subsequentemente a essa atribuição de valor, a experiência
própria da psicanálise decorre de seu procedimento próprio, que
transforma a dor e o mal-egar em fala dirigida ao psicanalista. A
[nula da associação livre produz logicamente deslocamentos das
Existe algo que se possa chamar de término de uma análise —
há de levar uma análise a tal término? À julgar pela conversa representações e uma elaboração de saber consequente, mas, mais
comum dos analistas, assim pareceria ser já que frequentemente além dessa construção epistênica, a fala manifesta, na sua superfície,
os ouvimos dizer, quando deploram ou desculpam as imperfei à sua vetorização pela transferência, vetor e palco da experiência
ções
reconhecidas de algum mortal seu colega: “Sua análise analítica. A transferência — Ubertragung, transposição — é um
não foi terminada” ou “ele nunca se analisou até o fim. trabalho, uma dinâmica diz Freud, que desloca e transporta dentro
da cena analítica, as “representações” e os “investimentos” que,
(FREUD, Sigmund (1937). Análise terminável e interminável.
In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. no se desenrolarem nos percalços da associação livre, tencionam
Rio de Janeiro: Imago, s/d — versão eletrônica, v. XXI). enrolar a pessoa do analista. O manejo pelo analista dessa estratégia
transferencial constitui a singularidade da experiência analítica e a
condição de sua eficiência,
Essa experiência da pstanálise, tensionada pela transferência,
O QUE É A PSICANÁLISE?
almeja e produz um remanejamento dos destinos pulsionais constran-
pidos pelo desencontro traurrático com a sexualidade, sempre inade-
“A psicanálise (...) é o tratamento que se espera do psicanalista”.! quado e excedendo os limit:s do eu em construção. A experiência
Essa resposta de Lacan, em 1953, pode parecer uma pirueta retórica conduz a uma desorganização das soluções de compromisso pulsionais
um enunciado tautológico que não quer dizer nada. De fato, é encerradas pela escolha da reurose e a sua formatação pela fantasia
is
provocação, que visa provocar, isto é, “fazer falar” os analistas fundamental. A experiência acolhe, desestabiliza, abre brechas,
, para
que eles não esqueçam que, se a psicanálise é um tratamento, desanuvia as trilhas, solta 03 laços, desata alguns nós, joga alguns
ou
melhor dizendo com Lacan, uma cura? — uma prática clínica que tem baldes de água fria, trança cordas, pula abismos, cava silêncios,
consequências —, eles são a causa dessa operação.
atravessa desertos.
É o manejo da transferência pelo analista que proporciona
Texto originalmente
! publicado no Jornal de Psicanáli 'se, São Paulo, v. 41, n. 4 redução do enredo neurótico, a sua simplificação, e ocasiona,
74, 2008 (A análise do analista).
Í : simultaneamente, a desenvotura libidinal, que descerra e renova os
1. LACAN, Jacques (1955). Variantes do tratamento-padrão. In: investimentos e a disponibilidade do sujeito analisado no laço social
Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 331.
2. DUNKER, Christian. Estrutura e constituição da clínica psicanalítica. tno amor, no trabalho e na criatividade).
São
Paulo: AnnaBlume, 2011. Também insiste a respeito da tradução
da palavra
A psicanálise — experiência da transferência e de sua manobra
cure” por “cura”. é uma operação lógica de qual o analista é a causa. Espera-se do
72
DomiNIQUE FINGERMANN
A ANÁLISE DOS ANALISTAS
73
Psicanalista que ele suporte essa
experiência. Espera-se da análise
do analista que ela seja uma expe analítico, mas um embaraço; paradoxalmente, Lacan designa o Eta
riência de formação, ou melhor,
deformação de sua aparelhagem de tla demanda transferencial com o nome “desejo de analista”. O e e
psíquica que lhe dê as qualificaçõe
necessárias e suficientes para pode s analista não é o desejo da pessoa do analista, mas sua maneira ao
r suportar a direção desse trata
mento do começo ao fim. isto é, - de ocupar a função “de analista” que manobra, ou seja, acolhe e objeta
do começo ao fim da transferênci
de seus analisantes. a à demanda transferencial. Trata-se para o analista de saber aproveitar-se
Os textos freudianos que orientam dn ocasião oferecida pela transferência do sujeito para fazer Uso q:
os psicanalistas há mais de
cem anos explicam bem o que é implicando-se na estrutura do sujeito, eupends manter aí seu a e
a psicanálise como prática clínica:
O seu dispositivo (o setting) os manutenção da posição “desejo de analista”, a despeito da do
seus conceitos, os seus exempl do sujeito vai, de fato, produzir um corte, um certo espaçamento,
clínicos, os seus im passes continua os :
m referenciando os tratamentos
sustentamos no mundo contem porâ que intervalo, uma descolagem, uma descontinuidade com o intuito de
neo. Freud explica.
pavaziar o sentido complementar que lhe dá o enredo neurótico.
Muitas vezes as sessões de análise se parecem com essas partidas
de tênis intermináveis: um dos parceiros se esfola correndo para a
O QUE SE ESPERA DE UM PSI
CANALISTA? para cá, enquanto o adversário responde imperturbável, devolven o
à bola sempre no lugar onde não se esperava, dpsconcertando E de
Lacan questiona incessanteme desarmando as jogadas, revelando seus truques. A ori entação deci : a
nte o que “faz” o psicanalista
— embora, em 1958, em seu escrito “A dire do gesto do analista determina a direção do Jogo Re E o
ção do tratamento e o pouco a pouco, um outro “tempo”, desestabilizando o senti o comu
princípio de seu poder”, ele afir
me a responsabilidade sem escapató
do psicanalista: “o analista diri ria la neurose, um silêncio se instala: “posição do ineonisetente » que
ge a cura”) Desde sempre, os
lacanianos inquietam e questionam: textos possibilita ouvir além do barulho e do agito da fantasia, “the sound of
o que se espera de um psicanalista
para que ele opere? O que é um silence” e suas resonâncias tão singulares. " at:
psicanalista? O que opera no psic
nalista? É uma posição? Uma funç a- Se a transferência é a atualização da “pantomina neurótica, o
ão? Um desejo singular?
À procura do enigma de seus desejo do analistaé o lance, é o lançar mão do analista com o Objetivo
sintomas e daquilo que estes de um “remanejamento possível do eu” por causa da eds, E
encobrem de sua identidade perd
ida, o discurso do analisante pres
a expor e transpor a sua “transfe ta-se prol da pulsão e de seu resto “inamensável” diz Freud, incurável, diz
rência”, ou seja, sua maneira: próp
de produzir laços libidinais, ativa ria Lacan: “sol! Tech werden, wo es war”, con a
e passivamente se fazendo e faze
o outro de objeto desses laços. ndo O que se espera do analista? Desejo, ato, função, discurso.
Espera-se que O psicanalista supo
direção desse tratamento da neur rte a O ato do analista, quer seja via silêncio, neutralidade ou pe
ose pela transferência e seu mane
começo ao fim. Suportar jo do prolação, produz uma descontinuidade na continuidade transferencia
a transferência é dar suporte
produto deste: quer dizer, trat ao trabalho e ao ma qual o sujeito tenta enrolar o analista. . Ho
a-se de suportar essa inclusão
do analista sem se enrascar nela, nem trop da pessoa 4 função do analista se interpõe na equação pessoa
eçar na sua função de analista analisando ocupando o lugar de constante de uma operação que
ao se embaraçar com a sua cont
ratransferência. Segundo a orie
lacaniana, a contratransferência ntação Evidencia as variáveis e reduz as variações possíveis dos sintomas e
não é um operador do tratamen outros avatares da angústia.
to

3. LACAN, Jacques (1958). A direç 4 TREUD, Sigmund (1937). Análise terminável e interminável. e Edição
ão do tratamento e os princípios
poder. In: Escritos, p. 592. de seu standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago,
E
sid (versão eletrônica), v. XXIIL
74
DomiNiQUE FINGERMANN É ANALISE DOS ANALISTAS
75

O desejo do analista não obtem pera com


a demanda de trans-
ferência, ele desconcerta as suas estratégia
s, embora explore os seus
meandros e, no fim, acabe por isolar o p B
seu objeto: o próprio sujeito
feito objeto do desejo do Outro como
se assim encontrasse aí uma
falsa consistência.
O discurso do analista
começa e termina com um silêncio
um silenciamento da inclusão do outro —
nas razões do sujeito e de Exame obrig, tório; mas O p o
seus tremo res. O discurso analítico produz,
no fim, o silêncio e a
solidão que legitima a criação e autoriza 0
criador, passando do “estou
sozinho!” ao “eu sou sozinho”, que valid
a o ato e suas consequências.
O que se espera de um psicanalista não se | 1 v | g 4
apresenta como uma 4 F lá é . |

posição de conforto! Entendemos, então


. porque Lacan falou do posição de analista:
“horror” do ato analítico, insistiu tanto
para frisar que a resistência,
na análise, era resistência do próprio anali o
m arquer fr e quentemente, Ê
essa experiência do passe “ É 5sim p les-
sta a seu ato singular, é Como

ao avesso do operador “desejo de analista”, mente o q que cu p oponho


P' aqueles
t] q que são su icientem
n ente edicados
Por fim, ele até mesmo ponto
observou que a passagem de analisante Pp ara se exporem
p ai tt
s omente aos dtÍ ns de informação & obre um

à função analista, que se SL suma,El, no q que se afi irma


I da maneira
Ei
produz ao cabo de uma análise, constituía muito| delicado e q ue consiste,
cons em
uma espécie de “aberração”, é inteiramente a-nor mal a objeto “4 normal es que
a ponto de interrogar essa passagem a mais segura, É que
à E e 1 a EÉ x4
analista — “o passe” — no l
E f
az
'
uma
a + FS|
3
psican o dise n
q queira Sei Pp: sicanalista . Pp reciso
dispositivo institucional que orienta tanto alguem
E que

sua teoria da qualificação do ver dadeiramente uma especie de aberração que valesse a pena Ser
analista quanto sua reformu lação da insti ; k
recolher ; de testemu
ã nho”.
26
tuição analítica e da formação oferecida a tudo quanto pudéssemos
dos analistas que a Escola de Lacan garan
te há mais de 40 anos.
Aberração
A análise do analista produz o desejo de
analista
O que se espera da análise do analista? Esper
a-se que ela pro-
duza os acima mencionados desejo, ato,
função, discurso, dos quais moda. j
depende a prática consequente da psicanális
e e seu futuro. k à E Pp 4

Avesso aos standards que formatariam


a priori as condições
de acesso a qualificação de analista, Lacan
, em 1967, propõe um

3 êminai
1971-1972). Le séminaire Le savoirj du psychana: lyste.
5. O dispositivo do passe foi proposto por
Lacan em 1967. O passante produz , Basa a E de 1/6/1972). “Comme Je lai souvent ima
0 testemunho de sua passa gem de analisante à analista perant
e dois passa- expérience de la passe est simplement ce que js ab oc
dores, sorteados numa lista de pessoas e
indicadas pelos seus analistas para syoués pour s'y exposer à des seules fins d'informa o
essa função, por estarem no “momento do passe”. Os passadores expõem 7 Eco c'est que c'est tout à fait anormal que quelqu'un e da
o testemunho dessa passa gem do
passante perante uma comissão de o chanalyse veuille être psychanalyste. H y faut vraiment pq Re
garantia: o “cartel do passe” + Que nomei
a (ou não) o passante “Analista de ader qui valait la peine d'être offerte à tout ce quon pouvai
Escola” (A.E,).
témoignage [...]".
À ANALISE DOS ANALISTAS "
76 DOMINIQUE FINGERMANH
essa finalidade: não
; Paradoxo: A posição que esse desejo ocupa na equação do ana- à analista? A análise de qualquer um produz
seu saber
lisante confina o analista em um paradoxo. Antes de tudo, porque a precisar mais de um Outro que complete o seu sintoma com
do sintoma esteja
demanda transferencial é paradoxal, como evidencia o esstapio que suposto. No fim, não é mais preciso que a verdade
estar mais
Lacan propõe para uma tal demanda: “Te peço de me recusar o que te contida no saber do Outro. Finalizar uma análise é não
o, segundo a qual o enigma da
ofereço, porque não é isso!” entivado por, nem cativo da suposiçã
saber do Outro. Lacan sublinha
Subsequentemente, porque é paradoxal sustentar, por um lado existência de Um estaria contido no
já que, tendo passado
a demanda e a operação que a oferta do analista causa, e, por cui que este é um dos paradoxos do ato do analista
do Outro, ele,
bancar a posição de “neutralidade benevolente” que o exonera de toda por conta própria por essa provação da inconsistência
seus analisant es.
resposta complacente e subordinada às armadilhas fantasmáticas do no entanto, tem que sustentar essa posição para com
um desastre,
analisante. No fim, a ausência de resposta do Outro não é mais
Extravagância: O “passe” é o momento clínico em que se pro- tras uma causa.
duz essa ultrapassagem do desejo do sujeito formatado pela fantasia
e a passagem extravagante para o desejo de analista. O desejo na Duração da análise
neurose é formatado pela fantasia, o desejo de analista é um desejo
quando
inédito, seu lance não é editado pela fantasia; esvaziado de ana As análises são longas, mesmo na época de Freud,
os pacien tes queixavam-se
e de gozo; é uma falta que causa. ainda eram muito curtas (alguns meses)
ido após muitas
Contraponto: O conceito de desejo em Lacan se diferencia de sua duração. O final feliz de uma análise é produz
Esse tempo é
de demanda e de gozo: no mínimo, o que se espera da análise do peripécias da transferência, longos rodeios e desvios.
os de suas
analista é que ela o qualifique a não usar da transferência do paciente necessário para que o analisante possa percorrer os meandr
armadilhas de
em benefício de sua demanda de amor, nem de seu gozo singular. determinações inconscientes assim como contornar às
um tempo para
mas possa manobrá-la a partir de um desejo inédito. Nem mestre suas relações objetais na cena transferencial. É preciso
mesmo a partir
nem perverso, ele não vai usar a transferência em benefício vós rodear as significações que o sujeito constrói de si
Tampouco vai reagir à sua inclusão na transferência do paciente cói as suas ficções e identif icações, até
de sua novela familiar e exaurir
dade como algo fora de série
a angústia e seus avatares. Nem angústia, nem demanda, nem gozo na vingir o ponto de origem de sua identi
e após um longo desvio
contratransferência: um contraponto, o desejo de analista, uma função que não se identifica com o outro. “É soment
o origin al” * Ao
lógica que move e desconcerta a entropia da neurose. que pode advir para o sujeito o saber de sua rejeiçã
ar o proces so
longo da história da psicanálise, as tentativas de encurt
icaram tanto a
Finalidade hão foram bem-sucedidas e, de qualquer forma, prejud
lúpica quanto a ética da psicanálise.
os seus
A análise do analista, tanto quanto a análise de qualquer um, é Saber de sua “rejeição original” é deduzir, de todos
de origem como ser único,
orientada pelo seu fim: tanto seu término quanto sua finalidade. O seu enredamentos, que o que lhe dá marca
fim justifica os meios.
= Já mencionamos esse simples toque freudiano quando, em seu
té. ” »” x “e «
Era testamento” “Análise terminável e interminável”, Freud nos
e interminável. In: Edição
isse que a análise termina quando o paciente não encontra mais FREUD, Sigmund (1937). Análise terminável
standard brasileir a das obras psicológ icas complet as.
9. L'identification, inédito
LACAN. Jacques (1961-62). Le séminaire. Llivre
2). “(...) Ce n'est quaprês un long détour que peut advenir
(Aula de 14/3/196
7. Ibid. (Aula de 9/2/1972). pour le sujet le savoir de son rejet originel (...)".
78 DOMINIQUE FINGERMANN

é algo da ordem do recalque originário, que não se liga nem se


representa, mas condiciona todas as ligações e representações.

Estilo

A análise do analista precisa produzir um ponto a mais: além da


queda da transferência e da suposição de saber do Outro, a prova do
desejo de analista é a prova de “uma outra satisfação”, uma prova de
separação.
Para que um passe de analista prove o desejo de analista, ele
precisa dar essa notícia e essa demonstração de que algo da sua
análise produziu uma maneira outra de se relacionar com a satisfação
pulsional. Nesse sentido, é interessante observar que, embora Freud
termine seu texto de 1936 sobre o rochedo da castração que constitui
HI
o impasse de toda análise, ele contempla seriamente no início de seu
texto uma dimensão pulsional inamensável. O PASSE
O desejo de analista é a prova de um destino pulsional não
formatado pela neurose. A análise do analista precisa deixar escapar
algo como uma extravagância, uma aberração, um estilo.
O desejo do analista é um destino pulsional que permite não
mais se embaraçar com a neurose, mas qualifica o analista para
desconcertá-la. A análise dos analistas precisa levar em conta o
“inamensável” da pulsão, pois o rigor das análises que ele conduz não
se sustenta sem estilo.
A LEVEZA DO PASSE*

Por incrível que pareça, há algo de uma leveza excepcional no


passe, no que passa no dispositivo. Isso foi particularmente notável
para o Cartel do Passe! reunido por ocasião dos passes de alguns
passantes da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano,
em outubro de 2005. Ao cabo de três dias intensos de trabalho ouvindo
os passadores, separadamente e depois juntos, antes do momento
da decisão, podemos concluir concordando com a nomeação como
Analista de Escola,? ou seja, A.E., de um des passantes, tendo ouvido
e percorido outros percursos analíticos im pressionantes, mas que não
nos permitiram decidir a favor de uma nomeação. Muitas questões e
dúvidas tinham surgido e atravessado o ambiente confinado daq uele
pequeno grupo efêmero, que trabalhava com o mate rial extremamente
delicado, denso, tenso, do labirinto de diversas análises que, por meio
dos passadores, desdobravam e explicitavam suas vias, seus impasses,

* Texto originalmente publicado em Wunsch 3 — Boletim Intemacional da


Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, 2005.
| Cartel do passe: os cartéis que vão escutar os testemunhos dos passantes
al
via relatos dos passadores se constituem dentro do Colegiado Internacion
da Garantia da Escola, eleito pelos Membros da Escola.
Analista de Escola (A.E.): após ouvir os testemunhos dos passantes, O Cartel
na
do passe pode decidir nomear o passante Analista de Escola. OA.E. terá
escola uma responsabilidade de transmissão, a despeito dos pontos cruciais
da experiência da psicanálise.
82 83
DOMINIQUE FINGERMANN O PASSE

suas saídas, seus atalhos, sua travessia:


O seu passe. No entanto,
foi a os passadores e, por fim, as cinco
i pessoas no o
iado
palavra “satisfação” que desi gnou melhor o que a
pudemos compartilhar Internacional
i da Garantiai p ara constituir
itui um ai
carte o passe.
no final da experiência.
O cartel não estava sob o efeito de um desl se deslocam de suas acomodações, de seus países, de E eo
beatitude, nem suficiência. O grupo não
umbramento: nem de suas ideias feitas. Não há encontro marcado com as i E ns
ficou atolado ou assober- com o esperado (l'aitendu); o acaso, desde o início, inaugu
bado com argumentação, pesos e medidas ou cálculos, não ficou ' "o uma trave ssia do campo do
traversée du champ de [attendu”?
embaraçado com sentimentos ou emoções, o
mas fomos tomados de esperado. O passe ultrapassa as esperanças. O acaso, O ga mento,
surpresa por um afeto, do qual o primeiro
efeito foi nossa certeza o inesperado, a ultrapassagem, o escapamento, a fuga são
compartilhada. O que passa no dispositiv
o é um efeito pulsional dientes dessa leveza que o dispositivo recolhe/colhe. a
que induz um laço social inimaginável, é
algo tão sutil quanto um Algo “no que se ouve” é inoui, inaudito, ultrapassa o € ent
chiste que produz um efeito de satisf ação
(Lusinebengewinn). É algo mento, mas tem um efeito inesquecível
i Í de transmissãoissã a ade ciça
sutil, porém inesquecível, inoubliable, ao
avesso daquilo “que se icanáli ise, de uuma experiência
incríea que é a4 psicanálise,
incrível iência queq produz efei E
diga permanece esquecido atrás do que se
diz no que se ouve” É o provação e de prova da psicanálise, qualquer que seja a conclusã
efeito de leveza de um dizer inesquecível
atrás dos ditos, um dizer trabalho do cartel e da eventual nomeação. dores: massa
que escapa, que ultrapassa o testemunho.
“C'est inoui” dizemos em O inesperado, em primeiro lugar, veio dos passado e
francês para dizer de uma coisa que ultra
passa o entendimento e o geiros, intermitentes, evanescentes, voláteis, pi pur en o e
esperado. n
cobrirr , q o
Embora Lacan jájá 4 tivesse
ti tivesse avisado,
avi i L i
foi inesperado des 0
É incrível porque o que aparece à primeira rato
vista é o peso, o peso ssadore que co nstituem o passe, eles:
os passadores i É ; sã são constituintes
do dispositivo, do aparelho, de um edifício
extremamente complexo iênci iisso em tod os os sentidos
experiência, i gua a at
que a: língu alemã emo declina
e complicado, que necessita de uma máqu
ina enorme para se pôr em diversas palavras que usa para dizer da experiência: pi
marcha. Mais do que simplesmente um apare
lho institucional, é toda Probe —Erfahrung (travessia) — Erlebnis (vivência). Os pas e
uma “comunidade analítica” que constitui E sa Cy pas pé éé oo passe”)”
e sustenta essa máquina |
“fazem” o passe: “o “o passador passe”; 7 anuncia
ciava a
e prenunc Cia!
complicada: analistas, vários e diversos,
estatutos, votações, várias Lacan, ele constitui o passe. Ao receber o testemunho, ps ana
língu
as, traduções, comissões propondo A.M.E di o c

. (Analistas Membros passante enquanto tal, ao transmitir para O cartel ele constitui
É ...

de Escola?), colegiado nomeando AM.E


., análises, analisantes, aos do passe enquanto tal. o um on
quatro cantos, A.M.E. designando passadores
, secretariado: uma ' O cartel se prova não como instituído pela sus E co -
máquina gigantesca até chegar em um ponto.
Esse ponto precipita uma tituído pelo testemunho que passa de : passantepass a passador. rare os
decisão em demanda até um sorteio (dos passa Re
dores) que vai produzir singela
i qui aconteceu, so
a ssim que
demais,i masé foi i assi com o rm
efeito formidável de deslocamento.
A partir desse instante, que convoca a sorte, da orecipitação: o cartel se precipitou, se constituiu quando o a
instala a con- assador entrou e falou. O cartel não ordem da iminstituição, mas, é
ão éé da ord
tingência no dispositivo, não é mais à máquina
que se põe em marcha, ei designado pela sorte, ele é constituído pelo que escapa do
são os atores do jogo. Primeiro é o passante
quem se desloca, depois testemunhos para atravessar esse instante: o instante do passe

3. LACAN, Jacques (1972). O Aturdito. In:


Jorge Zahar, 2003, p. 448,
Outros escritos. Rio de Janeiro: LACAN, Jacques (1964-65). Le séminaire. Livre 12: Problêmes cruciaux pour
4. lyse, inédito (Aula de 19/5/1965).
Analista Membro de Escola (AM.E.):
é o analista nomeado pelo Colegiado E Taeq (1967). Proposição de 9 de outubro sobre o analista da
Internacional de Garantia como alguém
que dá prova do psicanalista. Escola. In: Outros escritos, op. cit., p. 260.
DOMINIQUE FINGERMANN

No instante do passe, o que passou? Nome


io isso leveza,
porque
O que passou e se passou não tem o
peso do afeto como estorvo, mas
proveio de um efeito apreensível: as quest
ões, construções, deduções, O MOMENTO DO PASSE*
de repente — tempo e termo de uma lógic
a coletiva — se resolvem,
se simplificam no momento da deci
são que cai. É um efeito de
transmissão (Uberseizung/Ubertragung
). Ao mesmo tempo poema
e matema: uma letra chega a seu desti
no. Em todos os tempos da
experiência: entre o passante e cada
passador, entre cada passador
e o cartel, um a um, se produz algo de
até agora inaudito. Acontece
um transporte da psicanálise além do
que se imaginava, concebia,
esperava; o que se colhe aí no ocorrido
não vem confi rmar o já sabido
da experiência da análise, mas produz
a psicanálise em ato. Por isso
podemos entender como o passe constitui
verdadeiramente “a única
proteção possível para evitar à extinção
da experiência”? frase que Como marquei frequentemente, essa anperiénia do e
Lacan usa na “Proposição de 9 de outub
ro de 1967” para indicar o simplesmente o que eu proponho àqueles que são ER to
cuidado de Freud quando criou a IPA.
dedicados para se exporem aí somente aos fins de infor e a
O que passa do passante aos passadores
até o cartel é a certeza um ponto muito delicado e que consiste, em suma, no jd afir a
da operação analítica, na sua dimensão
de ato, inaugural de uma maneira mais segura, é que é inteiramente a-normal — 0 jeto a : me
relação outra do sujeito com o que escap — que alguém que faz uma psicanálise queira ser E is re
a ao seu entendimento. O
efeito dessa operação é notável quando preciso verdadeiramente uma espécie de aberração que “a Gai e ,
se deixa apreender as suas
consequências, como diz Lacan na “Not ser oferecida a tudo quanto pudéssemos recolher de festemaçi E
a italiana”: “não há, por isso,
nenhum progresso que seja notável por não LACAN, Jacques (1971-1972), Le séminaire Le savoir du
se conhecer sua conse-
quência”.* O passe é o efeito notável de psvchanalyste. Paris: Seuil, 2001 (Aula de 1/6/1972).
uma operação que “faz saber
as consequências” do ato que o produziu,
consequências nomeadas
aqui como “desejo de analista”. Por
incrível que pareça, poder
acolher esse efeito permitiu experimentar
a leveza da comunidade O MOMENTO
analítica quando ela faz Escola, ou seja,
quando recolhe o inesperado
e o incomum de uma tradição: Úberlief
erung, “entrega além”, do
esperado e do lugar comum, passa para O “momento”, de acordo com o dicionário, não é o instante
frente a psicanálise que se
transmite, a condição de uma série de desl i
que designa ;
um corte, um ponto no tempo; : oo momento
m designa
ocamentos.

Texto originalmente publicado em Revista Stylus 14, Rio de Janeiro: AFCL,


2007. ros | i
No original (grifos nossos): “(..) Comme je Vai souvent aa
expérience de la passe est simplement ce que o irao pe E
assez dévoués- pour s'y) exposer à dess seules 5 fins d' e
point
i três
Ê délicat...
i cest
: que c 'est tout à fait E
a-normalnando
— obje Rm
7. Ibid,, p. 250, uelqu'un qui fait une psychanalyse veuille €
8. É A aa sorte d'aberration qui valait la peine d'être offerte à tout ce
LACAN, Jacques (1974). Nota italiana.
In: Outros escritos, op. cit. p. 313.
qu'on pouvait recueillir de têmoignage”.
86
DOMINIQUE FINGERMANN 1) PASSE 87

um intervalo de tempo que pode ter certa duração. No


entanto, no concluir. Pode-se interpretar esse “logicamente mais além” de dio
sentido de ocasião, ocorrência, evento, volta a ideia
de instante; como maneiras, embora ambas se refiram ao mais além do automaton da
“momento oportuno”, ele é a ocasião que tem gue ser captad
a na hora lógica significante, não no sentido de sua impotência, mas de seu
para agir.
impossível, ou seja, seu limite matemático. | ta E
Momentum, em latim, é derivado por contração de movime
ntum, Por um lado, a conclusão da análise é necessária, embora não
de movere, e significa propriamente movimento,
impulsão, suficiente para que se verifique a passagem, o momento de háscula
modificação; ele também designa concretamente o peso que
determina da passagem do analisante à analista,* o salto da via analisante ao ato
o movimento e a impulsão de uma balança. Daí decorre, desde o do analista (extravio, extravagância). .
século XVII, seu uso na física e na matemática para
conceitualizar O momento de concluir seria o “momento oportuno” em que
forças, vetores, movimentos por um lado, e probabilidad
es por outro. surge o limite da série, ele obsoleta 0 pdonenmento Sa e
Sem exaurir as suas extensões semânticas, vale sequência e resulta em um corte conclusivo: in-sucesso de |"Unbe-
notar que
“momento” alcança igualmente sentido como “causa que outro suceda ao Um, a fuga
determina wusst: não há mais necessidade de que o
uma ação em um sentido, influência. motivo”. s de [une bévue
do sentido é interrompida : insucesso [L'in-succê
O momento do passe é o momento de báscula que produz
essa Vaile à rre].
“ab-erração”: o desejo de analista, errância, [erre?] extrav
agância, o li do passe, nesse caso, seria da ordem do evento
orientada pelo ponto fora de série, objeto a-normal,
ponto muito (“événement”), quando se produz essa “ocorrência” verificando o
“delicado”, para o qual “vale a pena oferecer um dispos a
itivo para efeito manifesto, deste corte no lance [erre].
recolher o testemunho”.
| O momento de concluir seria o termo de uma demonstração ló-
Quando falamos em “momento do passe”, é necessário, pica, que dá acesso à emergência impensável do ato (renina o
portanto,
discernir quando falamos do instante decisivo, “o bom
momento”, e momento do passe seria a autenticação do salto nas suas sequências,
quando nos referimos à duração, que pode se estender
durante um na sua “mostração”, ;
bom tempo. a não
Poderíamos desenvolver esse ponto para argumentar
nomeação de alguns passantes dizendo: “O cartel não eu
localizar, flagrar, a prova “viva”, desse real — mais além — ora
MOMENTO DE CONCLUIR/MOMENTO DE PASSE da série, prova ao vivo daquilo que foi demonstrado. Ó cartel ouviu
o sentido da neurose, mas não o fora de sentido, a aberração, que o
Lacan usa precisamente “momento” nas expressões: “mome passante se permitiria e que sustentaria o desejo de analista.
nto Por outro lado, como ler então esse “momento do passe logi-
de concluir” e “momento do passe”, que são correla
tas, mas não camente mais além do momento de concluir” quando Lacan situa
equivalentes, para designar o que a psicanálise tem
de melhor: o também o momento de passe antes da conclusão da análise, já que é
seu fim [tanto a sua finalidade quanto seu limite]. A experi
ência da
análise confirma: o momento de concluir de uma análise é
correlato
do momento do passe, mas o primeiro não se sobrepõe
ao outro: o
momento do passe se situa logicamente mais além do momen
to de
3. Automaton e tyché designam para Aristóteles (Livro IV e V da Fisica) o
acaso e a fortuna como causas acidentais, O acaso concerne homens, io
também objetos, plantas. A tychélfortuna concerne o homem, pois o
acontecimentos por acidente poderiam ter também acontecido por e | Ra
2. Erre, usado por Lacan em particular no seminário “Les non dupes errent” à. LACAN, Jacques (1967). Discurso na EFP. In: Outros escritos. Rio
(Aula de 13/11/1973). Erre remete a erro - mas também
errância e lance. Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 279.
88 DOMINIQUE FINGERMANN O passe 89

nesse momento clínico que ele designa o passador (designação hoje a uma dimensão ética de escolha (de acordo com a insistência de Colette
cargo dos AME da Escola)? Soler sobre este ponto).
Antes de tudo, convém diferenciar o momento do passe, que se Vemos que isso introduz a questão delicada da relação entre fim
testemunha e verifica eventualmente no procedimento, e os momentos de análise e desejo de analista. Quem ainda está na via analisante pode
de passe que são momentos cruciais da análise, que a direção da suportar o desejo de analista?
análise tangencia até que o produto das tangentes cinja e saque o Suspendo essa questão delicada com uma frase de Lacan, que
ponto fora da série que é a sua razão. abre uma pista que podemos seguir em outra ocasião:
Os momentos de passe que pontuam uma análise são momentos Pois então, ou uma porta está aberta ou ela está fechada, por isso ou
de angústia, momento de encontro com o real, ou seja, com o desejo estamos na via do psicanalisante ou no ato analítico. Pode fazê-lo
do Outro sem a proteção fantasmática que dirige o automaton e alternar como uma porta que bate, mas a via do psicanalisante
previne da tiquê. não se aplica ao ato analítico que se julga na sua lógica pelas suas
Podemos destacar dessa experiência clínica dos momentos sequências.
de passe que se verificam após algumas voltas na análise, que “o O momento de concluir resulta da demonstração do impossível
momento de passe”, no caso, não é o “instante”, mas um intervalo
inerente à estrutura.
de tempo que tem uma certa duração, durante a qual o analisante O momento do passe, que pode se verificar no dispositivo como
oscilará e será desassossegado por vários “momentos de passe” até passagem, báscula via o desejo do analista, evidencia, destaca algo da
que ele possa dizer “É o momento!”. Essa certa duração permite ordem da contingência, correlata ao impossível, mas no mais além,
explicar que os passadores designados permanecem um “certo” tempo excesso exceção, ex-cessão.
na função. O passador balança e o passante bascula quando declara
“É o momento!”. Essa temporalidade peculiar precisa ser levada em
conta em nossos dispositivos institucionais — quanto tempo alguém
O PROCEDIMENTO DO PASSE
passa no “momento do passe” e pode figurar na lista dos passadores?
Alguém que interrompeu sua análise (interrompeu a oscilação) —
pode continuar na lista dos passadores, supostamente capacitados Desde 1967, ninguém mais discute a existência do “momento
por estarem “no momento do passe” para ouvir os passantes e de fato do passe” na clínica, a controvérsia se faz em torno do procedimento
sustentar o dispositivo? (CO passador é o passe”). que, diz Lacan “duplica o momento do passe com sua colocação em
Essa duração é o tempo da oscilação, do vacilo do movimento causa nos fins de exame?”
pendular de uma balança que perdeu o peso, o lastro, e não equilibrou, Que procedimento é este? É um aparelho, uma experiência,
ainda, a sua gravidade. Ainda não, quase, por um fio, é o começo um palco? Qual é o modo de proceder, qual é o modo de produção,
do fim que pode dar muitas voltas ainda, oscilando entre o conforto exame, testemunho. chiste? Qual é o produto: um julgamento, um
subjetivo da transferência e suas vicissitudes e uma destituição passe de mágica, um dizer, uma nomeação?
subjetiva que não se conforma ainda com o de-ser do analista e a
inconsistência do Outro, ainda não: momentos depressivos indicados
por Lacan (momentos inimitáveis — diz ele — não adianta fingir).
Um começo do fim que pode dar muitas voltas e até mesmo cair em SOLER, Colette. Variantes da destituição subjetiva: suas manifestações,
suas causas (Aula 1). Stylus, Belo Horizonte, n. 5, 2002.
tentação de infinitização ou de reação terapêutica negativa, em que se LACAN, Jacques (1967). Réponse aux avis manifestés sur la Proposition
apreende que se a direção da análise se orierita tangencialmente para (version transcription), inédito (Tradução nossa).
o passe, além da lógica própria do tratamento, tem que ser incluída LACAN, Jacques (1967). Discurso na E.F.P., op. cit, p. 276.
DOMINIQUE FINSERMANN O PASSE 91
O procedimento é o acolhimento institucional do
momento lógica do significante e o “pas de sens”" que ela permite: como passa
clínico, é o dispositivo/aparelho, cujo funcionamento
permite que o nos ditos o que não está nos ditos?
momento do passe — fugidio, desvanescente, por excelê
ncia — seja Christian Dunker!! desdobrou a estrutura do chiste do passe
recolhido.
incluída na sua letra: passe — passant — pas sans — pas de sens —
pas de sens...
Testemunho Le dire du passant passe pas sans le dit [O dizer do passante
passa não sem o dito. |
O dispositivo (passante — A.M.E. — passador — Le dire du pas de sens du passant passe au pas de sens [O dizer
cartel do
passe)* é um aparelho destinado à produção de um produt - fora do sentido do passante passa no passo de sentido.
o: apreender
um momento, isto é, recolher o testemunho de uma ocorrê O passe, diz Lacan, é “pas sans le savoir”2 não sem o saber, o
ncia.
O momento, mudança, báscula, ocorrência, precisa ato passando o saber: “passant le savoir”, ultrapassando o saber.
ser testemu-
nhado — isto é, passado aos ditos — para que, na sequên
cia dos ditos,
se verifique (“se julgue”) seu dizer. O dizer é da ordem
do real impos- Passe de mágica: L'étourdit'
sível dos ditos que sustenta a sua repetição, a sua sequên
cia, é a causa
e o limite da série (que, na matemática de uma maneira
exemplar, se O dizer — o que está fora dos ditos, aquilo que o dito não conta,
cifra e permite mil feitos).
a volta não contada dos ditos — não passa sem os ditos (testemunho)
O testemunho é passado ao crivo pelo cartel para
reter da ditosos que o cartel precisa ouvir dos passadores. O dito ditoso — o
experiência analítica aquilo que conta para sua reprod
ução: o seu chiste — diz mais do que a boca, mostra o “mais além”, algo que não
dizer. O que conta é a identificação, localização da volta
não contada está nos ditos, que aí está esquecido (“gu 'on dise”).
nos ditos, causa do ato, o furo do saber que especifica a verdad
e como O “momento” precisa ser passado aos ditos para que se
não toda. No testemunho do passe, não se diz “Toda” à
verdade; pelo manifeste o seu dizer, a sua volta não contada, no cálculo do
contrário, é um testemunho do não todo que deve “passa
r” para ser “étourdi”, do esquecido, a volta é não contada, mas contável, ela não
nomeado, ou seja, como diz Beatriz Oliveira, “o que se
transmite no é inenarrável. No passe, esse giro esquecido no cálculo neurótico pode
passe é um intransmissível.
ser contado e contar como causa inesquecível do ato.

Chiste

O passante diz para o passador que diz para o cartel: esse


disse
que disse que não é fofoca; ele tem uma estrutura de
chiste muitas
vezes comentada (em particular por Alain Didier Weil)
que remete à 10. Pas de sens: muito cedo, no Seminário 5, e depois no Seminário 9, Lacan
usa o equivoco entre pas (“passo”) e pas (ímarca de negação”). Pas de sens
do chiste, do trocadilho, do lapso que, ao mesmo tempo, subverte, nega o
ido e permite um passo além.
It. a pe no Espaço Escola do Fórum do Campo
8. DUNKER, Christian. Questão de Christian Dunker a respeito da “hipertrofia Lacaniano em São Paulo, 2006.
do dispositivo e escassez dos resultados” durante
o Espaço Escola do 12, LACAN, Jacques (1967-658). Le séminaire. Livre 15. L'acte psychanalytique,
FCL-SP, 2006. inédito (Aula de 10/1/1968).
9. OLIVEIRA, Beatriz. Apresentação no Espaço Escola
do Fórum do Campo 13. NOMINÉ, Bernard (2005). Le tour dit plus. In: Mensuel 16. Paris: Champ
Lacaniano em São Paulo, 2006.
Lacanien France, 2006, p. 66-72.
92
Dominique FINGER MANN É PASSE 93
O produto
sempre mais adiante na cadeia, no desenrolar dos enunciados, mas as
O produto do cartel é uma nome dirigindo-se aos enunciados, por isso mesmo, na enunciação ele é : e
ação: é nome
ada “A.E.” à algo que é, propriamente falando, o que ele não pode saber, asa a
apreensão do momento do passe e
seus efeitos, a apreensão a poste- o nome daquilo que ele é enquanto sujeito da eo CaÇÃO: No ato da
riori (Nachtreiglich) da análise, das
ressonâncias do neo todo desanu- enunciação há essa nominação latente, que é concebível como sendo
viado pela operação analítica. A nome
ação de uma aberração (naming) o primeiro núcleo, como significante, daquilo que, em pigs a E
é a localização da sua beira, é um nome
que flagra e captura esse real, organizar como cadeia giratória, tal como representei para vocês da
algo inimaginável fora do sentido que
não tem nome: fixão!* de real. sempre, desse centro, do coração falante do sujeito que chamamos de
“A.E.” não quer dizer nada, isso nome inconsciente."
ia algo que não tem sentido,
mas tem efeitos. A nomeação
não é um batizado,
uma sanção, um
reconhecimento, uma condecoração, A produção do cartel é o seu funcionamento, ele é coerente com
nem iniciação: “nomear é, antes seu produto. A nomeação é o produto que desamarra o cartel, que se
de tudo, algo que tem a ver com uma
leitura do traço 1, designando a dissolve após sua decisão. =
diferença absoluta” precisa Lacan
em 1962.15 Da mesma forma que o funcionamento de uma análise produa
A nome
ação, produto do cartel, flagra
uma ocorrência, isto é, um analista e que o funcionamento do cartel produz um Rio,
O real em jogo de onde procede a enun
ciação de “Um sozinho”: é à à funcionamento do cartel do passe produz, eventualmente, o A.E.
localização dessa acontecência que interessa para averigua
de um analista. A Escola topa esta parad r a formação
a, “o real em Jogo na própria
formação do analista”! pois é isto
o “enjew”, a parada com a qual se
topa, o ato analítico lança mão deste À COMUNICAÇÃO DOS RESULTADOS
real em jogo e o supo rta na direção
das curas. A nomeação, produto do
cartel, flagra uma ocorrência do
não todo, ocorrência de al go impensáv Depois do trabalho do cartel e da eventual nomeação de um
el, que não pertence à série dos
significantes que representam o sujeito
para outro si gnificante. Analista de Escola, o jogo continua: dá trabalho para os membros do
No Seminário 9: 4 identificação, Laca
n tange a questão da no-
minação, tão delicada e crucial do
ponto de vista lógico e ético. No
“ato da enunciação” — q que ele cham
ará mais tarde de “o Dizer” —, |. LACAN, Jacques (1961-62). Le séminaire, livre 9: anual dep
há uma “nomeação latente” do ponto
“radical”, “arcaico” deste “cerne (Aula de 10/1/1962). “(...) Ce point radical, atehaique, qu il nous faut de E e
falante do sujeito a que chamamos
inconsciente”. nécessité supposer à l'origine de Vinconscient, cest-à-dire de ce que e
chose par quoi, en tant que le sujet parte, il ne peut faire que de ps
(...) Esse ponto radical, arcaico, que
precisamos com toda a neces- toujours plus avant dans la chaine, dans le déroulement des enono mê )
sidade supor na origem do inconscien que, se dirigeant vers les ênoncés, de ce fait même, cant 'énoncia Rr E
te, isto é, desse algo pelo qual,
na medida em que o sujeito fala, ele élide quelque chose qui est à proprement parter ce qu it ne peut Fi o
não pode senão fazer se avançar
savoir le nom de ce qu'il est en tant que sujet de !énonciation. Dans I'a o
lênonciation il y a cette nomination latente qui est concevabie comme é E
le premier noyau, comme signifiant, de ce qui ensuite va s'organiser a
14. Fixão: neologismo forjado por chaine tournante telle que je vous l'ai aa pala Uno ec
Lacan que produz um equívoco
palavras ficção e fixação (ver L'Etou entre as r parlant du sujet que nous appelons Vinco
rdit. In: Autres écrits. Paris: Seuil,
p. 483). 2001, . ale ti selo por um cartel como alguém encarregado de ao
15. LACAN, Jacques (1961-62). funcionar esse grupo, para que a ignorância de cada um, a sua apre e
Le séminaire. Livre 9. Lidentification
(Aula de 10/2/1962). , inédito produza um trabalho e, no final, um produto ag de ser compartilhado
16. LACAN, Jacques (1 967). Propo contribuindo, assim, para o saber.
sição de 9 de outubro sobre o
Escola. In: Outros escritos, analista de À pg nda, Apresentação durante o Café Cartel do Fórum do Campo
op. cit., p. 249.
Lacaniano em São Paulo, 2006.
94
Dominique FINGERMANN
O PASSE 95
cartel, para o passante nomeado A.E.
e para a Escola. De fato, é este
trabalho que faz “escola”, constitui a comu blanc? — semblant, sentido em branco, cuja significação é vazia:
nidade analítica. Não é “obtenho alguma coisa”, diz Lacan, “que não é absolutamente da
a comunicação dos resultados que faz
a comunidade analítica, mas
toda a experiência de comunidade de ordem do discurso do mestre”2º
Escola que os possibilitam Temos, sim, algumas indicações que norteiam a escuta dos
“faz escola”. No entanto, surge e insist
e, premente, a questão: como testemunhos: transferência, interpretação, castração, Édipo, luto,
divulgar os resultados do recolhimento
/colheita desse momento, que
se averiguou não inefável? angústia, fantasia... n
Em geral, ouvimos este lamento: “Vocês São balizas conceituais que os relatos dos passantes vão per-
não dizem nada!” Uns correr para organizar os seus desdobramentos.
e outros parecem se queixar na esper
a dos resultados da experiência,
lembrando as promessas de Lacan em Mas essencialmente, temos como fio para nos orientar no
1967: “É desnecessário indicar labirinto dos ditos — o fio cortante de uma lógica — a lógica do
que essa proposta implica uma acumulaç
ão da experiência, sua coleta significante e seu limite, e as consequências disso para a estrutura do
e sua elaboração, uma seriação de sua
variedade e uma notação sujeito e para a vida: o limite da lógica do significante, o Não todo,
de seus graus”. Promessa moderada
por Lacan em 1975, quando tem consequências que abrem a dimensão do mais além, do real.
avisa: “pois ao final, da parte do júri
de habilitação só podem vir
testemunhos de perplexidade e embaraço
”?!
Vocês não dizem nada! No entanto, desd
e 1967, centenas de
textos, encontros desencontros, rupturas A INVESTIGAÇÃO TOPOLÓGICA: A PRODUÇÃO
se fizeram a partir das elabo-
rações sobre o passe. No entanto, parece que se esper
a ainda a última
palavra,” a significação derradeira, a
senha que abra o “sésamo” O funcionamento do cartel, o seu modo de produção do produto,
da “sombra espessa”? que encobre esta
conexão da passagem entre é uma experiência bem singular que indica (índex) o que se procura
Psicanalisante e psicanalista. Como
observa Lacan, não se pode e produz,
“entregar o ouro da lábia para o pass
ador”,* pois não há senso Mas o que o cartel busca, caça, no final das contas?
comum que explique essa passagem. Não
há sen ha, “mot de passe”; Os cartéis do passe têm estilos e conduções um tanto diferentes,
já em 1953, em Real, Simbólico, Imag
inário, Lacan fala do “mol embora isto não mude o eixo em torno do qual giram. Em alguns dos
de passe” como essencialmente sem
significação, assim como a cartéis dos quais participei, houve um roteiro muito parecido: ouvia-se
palavra de amor. O “mot de passe” —
senha, segredo — é um sens tim passador depois do outro, e, depois de diversas voltas entre os
cinco do cartel, na beira da conclusão, os dois passadores juntos.
Outros cartéis nunca proporcionaram este encontro dos passadores na
cena do testemunho da análise do passante, mantendo como enigma,
20. LACAN, Jacques (1967). Proposição de 9 de e talvez como eixo, o hiato entre os relatos dos dois passadores,
outubro sobre o analista de
Escola. In: Outros escritos, op.
21. LACAN, Jacques (1975). Journées
cit, p. 261, Cada um dos passadores geralmente vem com um texto mais ou
sur la passe, inédito. '(...) Parce qu'ap menos linear, mais ou menos construído. Uns tentam seguir a linha
tout du jury d'agrément il ne peut venir rês
que des témoignages de perplexité et
d'embarras".
- FRANCO, Silvia. Espaço Escola Fórum do Campo
Lacaniano em São Paulo,
2006.
- LACAN, Jacques (1967). Proposição de 9 de outub
ro sobre o analista de 25. LACAN, Jacques (1976-1977). Le séminaire. Livre 24. Linsu que sait de
Escola. In: Outros escritos, op. cit. p. 258.
- LACAN, Jacques (1967). Discurso na EFP., op. cit "une bévue s'aile à mourre, inédito. “(...) Le sens blanc (...). ,
“(..) on ne peut vendre “6, LACAN, Jacques (1973). Sur la passe (03/11/1973). Lettres de École freu-
la mêche pour le baratin des passeurs
[...]".
dienne, Paris, n. 15, p. 191, 1975.
96 DOMINIQUE FINGERMANM O PASSE
97

cronológica do que ouviram, para não deixar escapar nada, outros Em algum momento, se produz uma red ução da encenação
trazem as ordenações e construções dos passantes, outros organizam topológica em conclusão lógica — se reduzem os fenômenos, se isola
a sucessão das entrevistas, e cada um segue uma ideia, um método, a estrutura até que se identifique melhor (eventualmente) a ocorrência
com muito cuidado. Às vezes se embaraçam com os conceitos, às do excesso, exceção, mais além da estrutura do significante e do
vezes porque o próprio passante se embaraçou com eles. Às vezes, sujeito suposto.
um pouco tímidos e constrangidos no começo, e depois, por causa O texto se transforma em toro, o cartel, torcendo e cortando,
das intervenções do cartel e da cena que se abre aí, os passadores se vai fazer aparecer os diversos giros dos ditos: 1 1 1, que, uns após os
revelam mais atuantes. outros, permitem deduzir o dizer que os condiciona. Os passadores
O cartel, primeiramente quieto, reservado e atento, não demora se inquietam um pouco com o assédio do cartel: conte de novo,
muito para se meter e se intrometer com seu estilo e seu estilete dife- como foi? Quando? Quem? Com quantos anos? Sem esquecer que
renciado. Uma surpreendente investigação topológica se configura as perguntas e respostas surgem, cortam o texto em qualquer língua:
então: esticar as superfícies dos relatos, explorar as vizinhanças, francês, português, italiano, inglês, espanhol.
visitar as extensões, evidenciar os furos, os verdadeiros e os falsos E necessário esclarecer que o intuito dessa insistência não é
(lembrando que em topologia um furo verdadeiro é um furo que reconstruir, nem completar a verdade histórica do drama do sujeito,
permite a travessia). Cada membro do cartel participa do jogo trans- mas verificar uma certa coerência lógica, usar as incongruência para
formando o texto em superfície topológica, eles seguem os contornos, fazer aparecer os giros ocultados e, sobretudo, decompor os textos na
pegam atalhos, cortam desvios, põem o testemunho de cabeça para sua trama e, pouco a pouco, nas sequências, nas séries infinitas 1-1-1-
baixo, produzem uma outra perspectiva. O intuito não é descon- |-1- das quais os lances, as jogadas do cartel fazem, pouco a pouco,
certar os passadores, que, em geral, se espantam e depois se deixam produzir o princípio de recorrência, a cifra que impõe a sua lógica de
surpreender e colaboram com gosto à exploração/transformação de deciframento às cadeias significantes que amarravam o passante à
seus textos em superfícies topológicas. suposição de um sujeito representado para um Outro. a
Em todos os casos os passantes e os passadores foram extrema- Isso é o primeiro movimento dessa investigação topológica.
mente aplicados e dedicados em explicar a neurose e sua construção O texto, assim desdobrado e recortado, permite verificar o
pela análise e, nesse sentido, a participação em um Cartel do passe trabalho da análise do analisante eventualmente até seu termo,
proporciona o privilégio de “aulas” de psicanálise extraordinárias! evidenciar 0 toro que as voltas exaustivas da demanda configuram
Este cuidado é necessário, mas não suficiente, ser fiel aos fatos e seu complemento neurótico, e construir como um cross-cap a
e dizer a verdade, toda a verdade, não alcança o real em jogo. Com estrutura da fantasia. O trabalho do cartel a partir dos testemunhos
eleito, não deixar escapar nada, tentar passar despercebido, neutro, evidencia como a fantasia providencia para um sujeito uma ocultação
transparente, produz uma coisa muito redondinha, mas o trabalho do do furo verdadeiro da estrutura, até que o ato analítico, o corte do
cartel, a sua produção, cuida de desestabilizá-la para que a demons- desejo do analista, saque a sua constante, obturando a estrutura de
tração não encubra nem obture a monstração. repetição — e saque e destaque a sua causa — o objeto a-normal: a
O procedimento transforma um texto em uma cena em que razão da série. l
cada um é ator da investigação topológica, se engaja aí sem tirar o No segundo movimento, o testemunho precisa dar notícias
corpo fora. O modo de produção do cartel, o tratamento desses textos da separação, dar prova do passo fora do espaço desenhado pela
cruzados, precipita, na cena do cartel, a sua deformação, transformao suposição de um sujeito ao saber do Outro. O passo fora, o momento
texto linear em cross cap, evidencia um toro neurótico enlaçado com o em que o prisioneiro sai de sua lógica neurótica e faz o passo fora do
toro do Outro, corta no toro uma banda de Mcebius, passe de mágica: vetor do sujeito suposto saber, mais além da instituição subjetiva: a
aparece a volta não contada... destituição subjetiva.
DOMINIQUE FINGERMANN O PASSE 99

No segundo movimento, o testemunho precisa


dar a prova analista, a função dita “desejo de analista” por exceder à compreensão
de uma identidade de separação” (ou seja, que
não retorna como e não ceder à demanda.
alienação”), dar prova do esvaziamento da consistência
dada pelo Até os últimos instantes, tentava-se furar a demonstração para
cálculo neurótico do gozo. A prova é dada pelo
vazamento (“la que se averiguasse “uma mudança radical na relação com o saber e
jJuite du sens”),º o esvaziamento do sentido
que interrompe a o gozo”, uma extravagância, uma mudança radical na modalidade de
sua fuga infinita e que deixa escapar, vazar, uma
extravagância vozo, uma modalidade logicamente outra. nom
(aberração). Neste segundo tempo, não se trata mais
de verificar a A fantasia “conforma” o gozo ao possível. ou seja, à impetência
análise e seu trabalho extenso, mas se trata de provar
o seu produto do gozo fálico, do gozo do sentido (jouis sens); atravessar afantasia é
eventual, a função “do” analista, ou seja, a dispos
ição do desejo de revelar, descobrir o seu artifício, a sua ficção de falso furo (“não posso
analista no lugar mesmo onde o objeto tinha a forma
da fantasia — gozar”: o outro não deixa, eu não consigo etc.). Atravessar a fantasia
desmascarando o objeto a como semblant lógico.
é se deparar com o impossível — verdadeiro furo da estrutura: o gozo
O testemunho, no dispositivo, passa pelo crivo da
deformação do Outro que não existe. Deparar-se com o impossível e npntgae
topológica, até averiguar a deformatação da fantasia.
Isto é, provar que mente poder topar com a contingência, o que permite (ou não) Julgar
a fantasia é impotente para suturar a impossibilidade,
que a fantasia é o ato pelas suas consequências na sua lógica”. A contingência está
um plano furado, ou seja, “atravessável”.
fora da lógica do automaton, do necessário; quando ela é escolhida
(1vché) como causa de um ato, que se destaca como fora do senti do e
do pensamento, ela é prova do impossível com o qual o sujeito topou,
O PRODUTO: A NOMEAÇÃO consentiu.
Essa prova pode ser feita dentro da análise, dentro da trans-
Haverá “produto” se a produção, 0 funcionamento lerência? Ou o momento do passe se prova necessariamente fora
do cartel,
flagrar o que não pertence à série, O que excede a série, da transferência? Um mais além da transferência que não seja um
pois como diz
Lacan, “o ato que se julga na sua lógica pelas suas conse dcting-out, mas um ato. Ou ainda, será que o passe como procedi-
quências”3!
Nos diversos passes que tive a oportunidade de escuta mento é necessário para provar O passe como momento?
r, até o
último minuto do encontro com os passadores almejo A prova de que o sujeito se deparou com o impossível e topou
u-se produzir o
flagrante, a surpresa, o inesperado, o inaudito que com a contingência é prova de uma modificação da modalidade
provaria “algo de”
de gozo que não seja incompatível com o desejo de analista eo
ato, sua consequência, que, por sua vez, suportará o impossível e
q contingência. A prova do “topar com o real”, e levar em conta
tanto o seu impossível quanto sua ex-sistência, é condição do ato do
- SOLER, Colette. L'inconscient reinventé. Paris: PUF, 2009, p.
28. LACAN, Jacques (1 960). Posição do inconsciente. In:
92, psicanalista.
Escritos. Rio de Para prestar contas dessa modificação da modalidade de gozo,
Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 858.
29. LACAN, Jacques ( 1973). Introdução à edição alemã dos Escritos
. In: Outros
os passantes e os passadores nos falam de amor, da mulher, do gozo
escritos: Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 551-552, leminino, da relação modificada com a angústia, com o luto, com a
30. Fuite du sens (fuga do sentido): em
1 974, no texto “Introdução à edição castração, com o não todo.
alemã dos Escritos”, Lacan usa do equivoco
semântico da palavra fuite, que
indica a fuga, o percurso do sentido, seu desloca Mas falar não é tudo, o dizer é preciso.
mento, mas também a fuite
enquanto vazamento, escape — aquilo que escapa
do sentido como gozo. Mas então, qual é o mot de passe? O segredo? Tomo emprestado
31. LACAN, Jacques (1967). Réponse aux avis
manifestés sur la Proposition «de Lacan o segredo do passe: L'insu que sait de !'une-bévue s'aile à
(version transcription), inédito.
Muurre,
DoMINIQUE FINGERMANN O PASSE 101

Que “traduzo” livremente, por ora: o não sabido (L'insu) que surgir um tipo de sentido que esclarece os outros sentidos, a por de
sabe da mulher não toda (/'une-bévue) permiteo acesso à contingência
colocá-los em questão, quero dizer, a ponto de suspendê-los”.
do amor (s'aile à mourre) à condição de topar com o “in-sucesso” É assim que, por enquanto, consigo responder à questão bibli ca
(insuccês/insu que sait)? retomada por Freud nos “Estudos sobre Histeria”: “Wie kann ein
Então, mais uma vez: “vous ne dites rien!"”, “vocês não dizem solches Kamel durch das Nadelóhr?”;* quando, justamente, interroga
nada!” a possibilidade de transmissão da experiência da análise:
Seria, então, justificado que se fale da “hipertrofia do dispositivo
e da escassez dos resultados”?
“Se fosse possível, depois de um caso ter sido completamente
Vou concluir, no entanto, com uma coisa muito pequena, muito elucidado, mostrar o material patogênico a outra pessoa naquilo que
fútil se comparada ao estorvo magnífico do labirinto de uma neurose, agora sabemos ser organização complexa e multidimensional de tal
Algo minúsculo que passou nesse crivo (0 passe) que deixa passar
o caso, com razão nos seria perguntado como foi que um camelo como
incrível, permite uma nomeação: fixão outra do real. esse passou pelo buraco da agulha”.
Em uma análise imensa, (décadas) cheia de cireunvoluções
tão complexas de descrever quanto um cross-cap, destaco um ponto
em torno das vicissitudes do objeto olhar, com certas consequências
para o feminino, confinando o sujeito muito aquém “da mulher sem
vergonha”, Recorto um significante. “bolsa”, na qual carregou vida
afora diversas formas das pedras, lastro da insustentável leveza
do ser, “cálculo” neurótico do gozo. Após a análise, ocorre essa
pequena cena, traço minúsculo no labirinto dessa análise, mas, junto
com alguns outros, conseguiu chegar até nós, cinco de um cartel
trancafiados em um hotel no Rio de Janeiro.
A passante conta esse pequeno detalhe: ela entra desprevenida
(sem vergonha), em um elevador onde se encontra, por acaso, com sua
ex-analista, que lhe diz: “que bolsa bonita!”.
O cartel gargalhou, o passador também. Depois daquela trama
montada, que nos tinha deixado à beira de um drama, horas a fio, a
neurose de X não fazia mais sentido.
Concluo com uma frase de Lacan do seminário Les non dupes
errent: “pois essa prática, não somente tem um sentido, mas faz

33. LACAN, Jacques (1973-1974). Le séminaire. Livre 21. Les non dupes errent,
inédito (Aula de 14/5/1974). “(...) car ceite pratique, non seulement a un sens
32. Linsu que sait de 'une-bévue s'aile à mourre é O título do Seminário 24, mais fait surgir un type de sens qui éclaire les autres sens au point de les
de Jacques Lacan. Essa frase pode ser “traduzida” de muitas maneiras, o
a remettre en cause, je veux dire les suspendre”.
partir das diversas ressonâncias que se desdobram, deixando forçosam
ente . FREUD, Sigmund (1895). Estudos sobre a histeria. In: Edição standard brasi-
escapar O sentido e apontando para algo que não se traduz — o incons- leira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, s/d (versão
ciente —, mas se apreende no equivoco.
eletrônica), v. Il.
DISPOSIÇÃO DO ANALISTA
O CARTEL DO PASSE*
Sustentar essa posição é5 uma aberração,ão dizdi Lacan. 1
Como alguém pode se prestar a pôr novamente em jogo algo
que lhe custou tanto perder, ceder, largar. destituir, esvaziar? Pois é
justamente apenas na medida em que alguém se “acha” fora da medida
a K cu E a

comum, se apreende como ponto fora de série, que pode se a a


suportar essa posição paradoxal, condição do ato analítico. a
paradoxal de sustentação da função do sujeito suposto saber, quando
justamente custou-lhe tanto produzir o impasse dessa função na sua
úpria análise!
o a do Passe é um dispositivo disposto a acolher € recolher
o testemunho dessa aberração, ou seja, desse passe clínico, passa
CARTEL e PASSE constituem os dois
pilares que alicerçam o que além da alienação, “insurreição”, “separação” que possibilita concluir:
vem a ser uma ESCOLA de psicanálise.
São duas funções que verificam “Ça c'est quelgu un!”2 “Tem alguém aí!”, 8 portanto, “ly a de
a Escola se, e somente se, alguns x, y,
z se engajarem no cartel e no DPunalyste”, ou seja, há aí algo da função analista, ;
passe para aí fazer argumento e, com
isso, fazer va ler a psicanálise. O passe clínico é o momento” de análise que presa uma
A Escola de Psicanálise nunca é const
ituída: é um “fazer” escola báscula, uma virada além do impasse do Sujeito Suposto Saber: prova
que possibilita sua ex-sistência atóp
ica e intempestiva e, por isso da impudência do ato, que garante a disposição desse analista para o
mesmo, lhe garante um lugar no mundo
e na atualidade, risco e a prudência do ato analítico.
O CARTEL DO PASSE configura o nó
que conecta a intensão da
psicanálise (passe como lugar de veri
ficação do analítico) com a sua
extensão no mundo (cartel como órgão da transfer
ência de trab
alho). DisPOSITIVOS: O FUNCIONAMENTO DOS CARTÉIS DO PASSE
Em um cartel do passe se põe em jogo
, se coloca à prova, o
“analítico” que está no cerne da Escola
e da formação que ela garante,
O passe é a provação da Escola. Os Princípios Diretivos para uma Escola Orientada pelo A:
A Escola de Psicanálise dos Fóruns do de Sigmund Freud e Jacques Lacan* que balizam a orientação | a
Campo Lacaniano aposta
no passe como vetor da clínica psicanalít Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e a prática
ica e como dispositivo insti-
tucional que permite (eventualmente) institucional consequente de formação do analista, explicitam os
verificar quando uma análise
proporcionou a báscula que faz alguém
suportar a posição de psica-
nalista. O dispositivo do passe em uma
escola de psicanálise coloca
em jogo a hipótese de uma verificação
possível das condições do ato LACAN, Jacques (1971-72). Le séminaire Le savoir du psychanalyste. Paris:
analítico.
Seuil, 2001 (Aula de 1/6/1972). a
LACAN, Jacques (1970). Radiofonia. In: Outros escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2003, p. 413.
Cf. “O momento do passe”, nas páginas 85-101 deste livro. :
Texto originalmente Publicado em Revist Cf. Princípios Diretivos para uma Escola orientada pelo Ensino de ga
a Livro Zero 4. São Paulo: FCL-SP,
novi2013. Freud e Jacques Lacan. Disponivel em: <htip:/Awww. champlacanien.ne
public/docu/4/epPrincipes2012.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2016.
104
DOMINIQUE FINGERMANN O PASSE 105
dispositivos institucionais que configuram a
opção pelo passe e os em Wunsch, Boletim Internacional da Escola, publicado por vias
órgãos de garantia da psicanálise, que a Escola
almeja pôr em função eletrônicas nas diversas línguas da Internacional dos Fóruns.
na dimensão internacional que escolheu para seu
funcionamento. Mas o que talvez provoque mais curiosidade é essa parte do
São os membros do Colegiado Internacional da
Garantia (CIG) trabalho de Cartel em que consiste seu encontro com os passadores, a
eleitos pelo conjunto dos membros da Escola
internacional, que deliberação e a decisão que segue. Na Escola Freudiana de Paris (EFP)
compõem os “cartéis do passe”. Os três cartéis
do passe acolhem essa instância chamava-se júri, o que condiz com sua responsabilidade
durante um período de dois anos, as deman
das de passe transmitidas de decisão em três tempos (testemunho-deliberação-sentença). O
pelos Secretariados do Passe locais.
nome “cartel” surgiu na Escola da Causa Freudiana, e foi retomado
No decorrer de uma entrevista, os secretariado
s acolhem (ou assim na experiência da Escola dos Fóruns.
não) a demanda do passante, e iniciam a
experiência com o sorteio Como sustentar que esse tempo transitório da experiência
dos passadores, constitui um trabalho de cartel?
A partir desse momento, o jogo acontece entre Vale notar que se trata aqui de um trabalho de cartel bem
o passante e os
passadores. No final dessa experiência, o Cartel peculiar, não somente porque seu produto final consiste em uma
do Passe é chamado
a entrar em campo: é o terceiro tempo da partid decisão (sim/não), mas porque esse tempo do cartel se caracteriza
a que conclui 0 jogo.
Logo após a eleição do CIG, os cartéis do passe pelo efêmero e pela pressa: é uma temporalidade lógica em três
estão consti-
tuídos na base do sorteio, mas levando em conta momentos que precipitam o momento de concluir, logo após o tempo
uma distribuição
linguística equilibrada, na medida do possível. de compreender (a deliberação) que seguiu imediatamente o instante
Cada cartel se reúne
quando pode ouvir pelo menos três passes.” de ver do encontro com os passadores.
Essa temporalidade de pressa é parte integrante da tarefa e do
trabalho do cartel do passe (mesmo se alguns cartéis se dão, às vezes,
O TRABALHO DE CARTEL um tempo maior de deliberação antes de poder concluir).
O que distingue o laço particular que instaura um cartel como tal
é a “identificação ao grupo”, sublinha Lacan em 1975,” localizando
Em que consiste o trabalho de “cartel” do cartel o ponto de identificação como sendo o objeto a, tal como está escrito
do passe?
No decorrer de seus dois anos de funcioname no nó borromeano, ou seja, como “falha no saber”.
nto, cada cartel
do passe responde por três níveis de atuação: a O cartel do passe começa assim, e recomeça assim a cada passe,
experiência própria
do encontro com os passadores, o aprês-coup “ mesmo a cada passador: um ponto de partida e da partida comum que
da elaboração dessa
experiência e a “comunicação dos resultados”. vai ser jogada é a identificação a um não saber, a priori, daquilo que
Os tempos dois e três acontecem entre os episód vai ser ouvido pelo cartel a partir de cada testemunho de cada passador.
ios de escuta
dos passadores e a decisão consequente; trata- O encontro com os passadores confirma: é inesperado! O que
se aí de um trabalho
“ordinário” de cartel, com modalidades diversas se acolhe é sempre muito particular, depende da peculiaridade do
segundo os cartéis
a elaboração desse trabalho, e o “produto de cada
um” é comunicado
para o conjunto da comunidade de escola nas
Jornadas de Escola é
Cf. Wunsch — Boletim Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do
Campo Lacaniano. Disponivel em: <http:/Avww.champlacanien.net'public/41
puWVunsch.php?language=4&menu=1>. Acesso em: 20 jan. 2016).
5. Esses procedimentos institucionais relativos ao LACAN, Jacques (1975). O seminário. Livro 22. RSI, inédito (15/4/1975).
funcionamento dos cartéis do SOLER, Colette (2007). Cartel d'École. In: Mensuel 25. EPFCL-France, 2007
passe são sujeitos a revisões permanente, pois
cada Colegiado Internacional Disponível em: <http://ww.champlacanienfrance.net/IMG/pdfiMensuel25
de Garantia escolhe a sua modalidade de trabalho
. CSoler.pdf>. Acesso em: 20/1/2016.
106
DoMiINIQUE FINGERMANN
O PASSE
o
passante, do momento de sua análise, de seu
estilo e capacidade ativa nessa parte do trabalho do cartel se finaliza. O testemunho do
de transmissão, depende de cada passa
dor e dos momentos de segundo passador que vem em seguida, muitas vezes transtorna tudo,
suas análises que foram discernidos por anali
stas diferentes como evidenciando, no entanto, que quase sempre os enunciados e a enun-
momentos de passe. O que se pretende recolher
procede igualmente ciação que se diferenciam, e às vezes divergem, apontam para um dizer
do inesperado e de inaudito (“uma travessia
do cam po do “attendy” e
do “entendu”)º portanto, algo de imprevisto único, Dizer que, por estrutura, permanece esquecido, mas que otrabalho
— encontro mesmo — e
da ordem da surpresa e do singular que se faz do cartel pode deduzir pela sua tripla operação: lógica, ética e poética,
ouvir pelo cartel.
A disposição do cartel começa, portanto com A deliberação constitui o segundo tempo da experiência do
essa disposição cartel, na sua função de júri: trata-se de deduzir dos testemunhos
preliminar para o inesperado e o inaudito.
O passador, antes de tudo, fura qualquer preco o lugar do dizer esquecido, e como este se manifesta além da
nceito do cartel,
e podemos dizer, com Vicky Estevez,!º que historicização de uma análise, quando destaca como esta “faz
a sua presença," se ele é
mesmo um passador, encarna aí o Mais-um diferença”. Esse tempo do cartel se parece muito com qualquer
do cartel.
O encontro, no entanto, tem um certo protocolo trabalho de cartel (exceto a pressa): um diz, o outro desdiz, o terceiro
necessário para
O que se almeja recolher do testemunho: silên constrói, o quarto puxa uma carta que transtorna tudo que tinha sido
cio do cartel, fala dos
passa dores: fluente, organizada, improvisada, estabelecido, e todos dão mais algumas voltas, até que a decisão caia
tímida, angustiada
,
assertiva, bagunçada, meticulosa. como uma evidência — o passante, sim, atestou o que é um analista
Essa fala desenha uma narrativa, organizada de Escola, ou não, não podemos concluir isto.
em capítulos, temas,
tempos dos testemunhos do passante. O traba Uma carta nem sempre chega a seu destino:!! é responsabilidade
lho do cartel consiste,
então, no que podemos chamar de uma “inve do cartel? Do passador? Do passante? A questão permanece aberta
stigação topológica”, ou
seja, para cada um.
(...) esticar as superfícies dos relato
O momento de concluir não termina o trabalho, pois a resposta,
s, explorar as vizinhanças, quando é negativa, na nossa comun idade de Escola, costuma ser
visitar as extensões, evidenciar os furos,
os verdadeiros e os falsos acompanhada de um argumento sucinto como sinal de gratidão e de
(lembrando que em topologia um furo verda
deiro é um furo que
permite a travessia). Cada membro do reconhecimento do trabalho do passante.
cartel participa do jogo
transformando o texto em superfície
topológica, eles seguem Essas mensagens “dão trabalho” para o cartel, que procura en-
os contornos, pegam uns atalhos, cortam
uns desvios, põem o contrar as palavras mais adequadas e respeitosas, embora, na maior
testemunho de cabeça para baixo, produzem parte das vezes, não sejam bem recebidas pelos passantes.
uma outra perspectiva. O
intuito não é desconcertar os passadores, que, Se o trabalho do cartel do passe termina depois dos seus dois anos
em geral, se espantam e
depois se deixam surpreender, e colaboram de compromisso com a Escola, a sua responsabilidade! não tem tim,
com gosto à exploração/
transformação de seus textos em superfícies
topológicas,” pois o seu trabalho repercute na Escola como provação da sua operância,
Depois de algumas voltas e reviravoltas,
o passador, de uma
+ a sua responsabilidade ecoa por muito tempo com a presença dos
maneira evidente, não tem mais o que acresc Analistas de Escola (A.E.) nomeados e também com os outros.
entar, a sua participação

9. Cf. “A leveza do passe”, nas páginas


81-84 deste livro.
10. ESTEVEZ, Vicky. “Interrogations” In: Cf. “O que faz diferença", nas páginas 124-134 deste livro.
Mensuel 81. Paris: EPFCL-France,
2013, pp. 69-71, Cf. “Uma carta nem sempre chega a seu destino”, nas páginas 135-141
11. CE. “A presença do passador: atuali deste livro.
dade da Escola”, nas páginas 108-123
deste livro ASKOFARÉ, Sidi (2010). Política do passe: a responsabilidade do cartel. In:
12. Cf. “O momento do passe”, nas páginas 85-101 Wunsch 9 — Boletim Intemacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do
deste livro.
Campo Lacaniano. IF-EPFCL, 2010, p. 6-8.
O PASSE
109

se impunha. O que é que faz um passador? O que é que o qualifica


como tal?
A PRESENÇA DO PASSADOR: Sua presença notável na experiência procede da distinção que
E fa ! xe proporciona a sua designação pelo analista, aposta da sua disposição
ATUALIDADE DA ESCOLA ao longo de todo o procedimento. Aposta de um passador que se avalia
na disposição ética do analisante — a dignidade de sua relação com
o real — e nas suas qualidades lógicas e poéticas destacadas pela sua
cura analítica.
“Ele o é ainda, esse passe”? anuncia Lacan na “Proposição”: é no
presente que o passador declina o passe, é sua presença que fará valer
a dos outros que se prestam à provação do passe.
A atualidade da Escola, para nós que somos engajados em sua
Para que a psicanálise, não obstante, volte a ser O que nunca obra de enlaçamento entre a intensão e a extensão, é a atualidade
deixou de ser - um ato por vir; ainda.
da psicanálise. De fato, o ato que a condiciona e sua persistência
nos tempos que correm, depende de nossa insistência em “fazer
LACAN, Jacques (1968). Introdução de Scilicet.
In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, Iscola”. “A Escola, ou a Prova” nota Lacan em sua primeira versão
p. 293, da “Proposição”, podemos dizer na esteira de sua declaração: “o
(.) 0 ato psicanalítico, que se julga na sua passador, é a prova”, prova da atualidade da Escola e da psicanálise.
lógica pela suas consequências. Para que haja analista são necessárias análises que levam até o passe,
LACAN, Jacques (1967), Réponse aux avis manifestés sur la Proposition uté esse ponto em que uns possam ser designados passadores, e os
(version transcription), inédito. outros decidirem-se passantes.
4 verdade pode não convencer, o saber passa em ato. O que faz um passador? Essa questão que se impôs no centro
da experiência de nosso cartel (e depois de ter escutado o testemunho
LACAN, Jacques (1970). Alocução sobre o ensino”.
de seis passadores) impõe-se a nós cotidianamente no cerne de nossa
In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.
310. experiência de analista.
É uma responsabilidade dos A.M.E. São eles que respondem,
insiste Lacan, por essa designação dos passadores que farão a prova
A QUESTÃO DO CARTEL da Escola.
No decorrer desse trabalho — “produto” de cartel. que esse texto
Foi um consenso sem hesitação, nem deliberação: na sequência n PReR A a desej Es pranto ú examinar, sondar, rango dessa
da cautelosa elaboração de nossas respostas aos passantes e uma Eisondável desisão do sur +quesenenta pra eng ao ua
vez redigidas suas formulações, o tema de trabalho de nosso cartel! fue eventualmente pode provar que um passante é A E.

Texto originalmente publicado em em Wiunsch 11 — Boletim Internacional LACAN, Jacques (1967). Proposição de 9 de outubro sobre o analista da
da Escola. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 260.
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Brasil, Nov/2011.
LACAN, Jacques (1967). Proposição de 9 de outubro sobre o analista da
Esse cartel do Passe funcionou de 2010 a 2012 e foi composto por Anita
Escola (Primeira Versão). In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
Izcovich, Dominique Fingermann, Marc Strauss, Pascale Leray
e Rosa Escapa. 2003, p. 582.
DOMINIQUE FINGERMANN 111
O PASSE

No decorrer de dois anos de exame dessa questão, e para fazer Essa escolha não constitui uma promoção, nem reconhecimento
ressoar a experiência do cartel do passe, conto evidentemente me de análise finita, nem atribuição de selo de análise bem-sucedida.
beneficiar das particularidades do trabalho em cartel: a experiência É preferível que o passador escolhido não seja informado
dos encontros com os passadores de nossa Escola (sua voz, sua fa- dessa designação, orienta Lacan, mas fazê-lo pode decorrer de o
la, seu discurso), a experiência do trabalho com os 4+1 (reflexão, i
A cortesia”, i
em resposta da qual ele pode declinar a honra outorgrgada.
argumentação, formulações, reviravoltas, desassossego, suspiros,
fulgurâncias, achados etc.). Enfim, espero poder avançar nas elabo-
Eles estão no passe
rações contando com os poderes da experiência e da fala (seu efeito
sofístico) que favorecem uma abordagem tangencial do real em jogo Enquanto o passante declara ter transposto o passe, isto é, não
na experiência. mais estar na via analisante que supõe a transferência e o enlace
Levarei em conta os trabalhos publicados pelos CIG atuais e analisante com o Sujeito Suposto Saber, o passador, por sua vez,
passados. está no passe, porém aquém do passo fora de jogo da via analisante,
Utilizarei também alguns interlocutores como Walter Benjamin, aquém da de-cisão. Ele tem a experiência de analisante “ainda ligado
Barthes, Blanchot, Lévinas e alguns outros que me auxiliam em ao desenlace de sua experiência pessoal”.
geral a expandir meu campo de visão, mas mais particularmente aqui O passe inscreve-se, portanto, em uma duração que precede o
no que diz respeito a noções como: a experiência, a neutralidade, o instante do ato. Indicação que nos abre para o campo e o canteiro de
testemunho, a narrativa, a tradução, a presença, a voz. obras de nossas elaborações pós-experiência. Isso levanta a questão
O texto que segue é, portanto, apenas um primeiro passo em de nossa medida institucional dessa duração: o tempo limite em que
sequência à primeira experiência de trabalho desse cartel. uma pessoa pode permanecer indicada como passador e ser sorteada
pelos passantes.
Isso implica a discriminação daquilo que, neste momento-du-
As referências de Lacan
ração do passe, permite predizer aí a potência do ato, ou ao menos á
Mas retomemos as coisas do princípio: quais são as indicações capacidade para o futuro passador de apreender a “diferença absoluta
de Lacan a esse respeito, já que lhe devemos a nomeação do momento de onde se proporcionam seus efeitos. O que será? Quais são os
clínico do passe assim como a invenção do dispositivo cujo passador “index” desse momento? Será um tratamento novo da repetição, como
é o elemento-chave? Exceto o lance inicial da “Proposição de 1967”, princípio de repetição? Serão modalidades diferentes da resposta à
as referências de Lacan são sucintas, embora precisas, e nosso angústia? Será abalo ou rachadura da solução fantasmática? Será um
certo rasgamento na tela da verdade?
comentário se baseia nessas formulacões.
Trata-se sem dúvida da avaliação pelo analista da relação com
um certo furo (trou) nesse ponto de percurso analisante, que se
Os passadores são escolhidos verifica então mais como zrou-matismo* do que como traumatismo.
Eles são escolhidos, nomeados, eleitos, designados por seus
analistas, indica diversamente Lacan. Estes têm a responsabilidade
desse discernimento a encargo deles: eles respondem por essa 4. Troumatismo: neologismo inventado por Lacan em 1974 que equivoca trau-
indicação declarando, perante a Escola, que esses analisantes estão no matismo e trou (“furo” em francês). O furo da castração, da “não relação
momento do passe. Está acordado, portanto, que o momento do passe sexual”, da falta do Outro, é traumático. Mas ao mesmo tempo, 0 trau ma que
incide sempre contingencialmente é estrutural o que deveria aliviar algo da
possa ser discernido, na experiência, pelo analista. sua carga dramática.
112
DOMINIQUE FINGERMANN O PASSE 3

Efeito que, em certa medida, justifica o afeto da dita posiçã
o depres- se surpreender com eles, e daí se deixar causar e saber dizer alguma
siva do passe, da qual “não pode se dar ares”: o trauma
não passa de palavra que impacte o colegiado “de advertidos”!
um furo; não há um Outro que sustente, nem mesmo o
outro da inde- Se há, portanto, uma descontinuidade, entre a posição depressiva
cência do trauma, o abuso ou o abandono do outro traumá
tico podem notada por Lacan em 1967 e o entusiasmo da “Nota italiana”, de 1974,
ser verdadeiros, porém não dão conta do furo inaugu
ral e real que trata-se da distância entre os dois extremos do passe e uma relação
nenhum sentido poderá cerzir (indécence — inde-sens).
topológica entre o oco da posição depressiva (“o horror próprio
O passador — “passoire” (coador) —, é utensílio
furado cingido”) e o eco, o ricochetear do lance de entusiasmo.
(Iroué), propício para recolher os achados (trowvailles).
O passador
é esse “corredor, essa falha, por onde quis fazer passar
meu passe”,
diz Lacan: é isso a “outra diz-mensão” do passador,
outro sítio do Nossa EXPERIÊNCIA
dizer: “Para recolher (esse testemunho) de um outro,
é preciso outra
diz-mensão: a que comporta saber que o analista, da queixa,
não faz
senão utilizar a sua verdade”.º O passador é, portanto, As observações e recomendações de Lacan são sucintas, mas
advertido por
sua experiência de que a verdade que dá sentido à queixa constantes no transcorrer dos quase 12 anos de sua participação na
é utilizada
apenas para fazer limite ao saber do inconsciente (real). experiência do passe. Em contrapartida, desde o princípio de nossa
O passador
não é tapado, nem tapeado pela verdade, ele topa. liscola — 15 anos — de múltiplos textos, em todas as línguas da
Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano (IFCL), trataram
Eles são próprios para quê? da questão do passador: sua competência, sua performance e sua
experiência são examinadas e avaliadas pelos cartéis do passe e pelos
O que é que os qualifica para o acolhimento do testemunho próprios passadores. Dizer “a questão” do passador não é colocar em
ea questão a competência ou o desempenho desse ou daquele passador,
transmissão da experiência?
Eles são distintos, é a sua honra, e ei-los empenhados mas sublinhar o aspecto único, paradoxale capenga de sua posição.
em um Poderíamos dizer “o paradoxo do passador”, como Lacan dizia
Ofício e em uma dignidade de que se trata de não desonrar.
Constatamos “o paradoxo do ato analítico””: como sustentar a experiência da
que Lacan não hesita em qualificar os passadores a partir
de carac- transferência uma vez tendo saído da via analítica, perguntava-se
terísticas propriamente éticas, isto é, sua “consideração”
para com o Lacan a respeito do analista? Como dar voz ao ato, reverberar seus
real.
Eles são capazes de acolher, diz Lacan, e de recolher os efei eleitos quando ainda se está sob o jugo da transferência e trilhando
tos do 1 via analítica, podemos talvez dizer a propósito do passador?
ato, e de testemunhar, em seguida, as notícias da experiê
ncia do passe | embremo-nos dessa advertência de Lacan: “Porque, afinal, é preciso
do passante, isto é, a passagem da via psicanalisante ao
ato analítico. que uma porta esteja aberta ou fechada, e é assim que se está ou na via
Podem-se demonstrar as condições dessa passagem, as
vias de psicanalisante ou no ato psicanalítico. Podemos fazê-los alternar-se
invalidação do impasse da transferência: é o que Lacan
chama de “a tal como uma porta bate, mas a via psicanalisante não se aplica ao
análise lógica do passe”. Mas esse momento crucial de
passagem ao ato psicanalítico, cuja lógica se julga na sua lógica pelas suas conse-
ato do passante só pode se provar em seus efeitos: possa
o passador quências”* E então perguntamos: como o passador pode testemunhar

5. LACAN, Jacques (1973). Sobre a experiência do passe. LACAN, Jacques (1968-69). O seminário. Livro 16. De um Outro ao outro.
Ornicar?, Paris. n. 13, Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 333. o
p. 117.
6. LACAN, Jacques (1974). Nota sobre a designação dos LACAN, Jacques (1967). Réponse aux avis manifestés sur la Proposition
passadores, inédito. (version transcription), inédito.
114 DOMINIQUE FINGERMANN O PASSE
115

da lógica do ato e de suas consequências se ele ainda está no passe, esse tópico, mas preferimos trilhar a “insondável” virtude do passador
“ainda ligado ao desenlace de sua experiência pessoal”. por outras vias.
O paradoxo do passador decorre sem dúvida da duração do
momento do passe, em que se alternam como uma porta que bate o
impasse e o passe, a angústia e o sinthoma por vir, momento paradoxal A SENSIBILIDADE DO PASSADOR
do ato em potência: esse tempo desconfortável é o tempo do passador.
Em nossas elaborações desses 15 anos, quer elas provenham dos A metáfora da “placa sensível”, emprestada da linguagem
passadores ou dos cartéis, uma expressão entre outras, distingue-se
técnica da fotografia, foi utilizada por Miller em 1990 em um texto
para elucidar a capacidade do passador em testemunhar os efeitos do
chamado “A Escola e seu psicanalista”.”” Ela nos pareceu, até então,
ato cuja firmeza, no seu caso, escapa-lhe ainda: o passador funcionaria conveniente para dar conta do paradoxo do passador e de sua qualifi-
como “placa sensível”. Essa expressão parece se impor com uma certa cação indispensável para a experiência.
evidência e com o assentimento de todos aqueles que participaram da Desdobremos essa referência analógica” interessante por mais
experiência, o que nos inclinou inicialmente a escolhê-la como tema de um motivo, pois ela supõe um dispositivo em dois tempos, o tempo
do trabalho de nosso cartel. do negativo e o tempo da revelação, assim como é aparelho de passe
Notemos, contudo, que, até onde sabemos,º essa ex pressão não supõe um primeiro tempo, em que o passador está impressionado, e
foi utilizada por Lacan para falar do passador. um segundo, em que ele impressiona o cartel. me
Lacan utilizaria duas vezes essa expressão em seus seminários: Refiro-me aqui ao artigo “Fotografia” da Enciclopédia Uni
em 1954, no seminário O eu na teoria de Freud e na técnica psica- Universalis.!*
nalítica, para precisar o que não é o aparelho psíquico, no decorrer de
(...) A placa sensível é o elemento químico receptor, sensível à luz e
um comentário de O “Projeto...”!º e em 1967 em O ato psicanalítico, que o aparelho fotográfico (analógico) vai colocar um instante em
para precisar o que não é a interpretação."
contato com a luz emanante do objeto fotografado.
Inclusive, não é desinteressante reler essa passagem do As partes claras do sujeito fotografado, que emitem uma quanti dade
Seminário 15, em que Lacan procede, mais uma vez, a uma releitura importante de radiação em direção à camada sensível, produzem mais
do Mênon. É, para ele, uma boa ocasião de interrogar o lugar do saber, escurecimento ou formação de corante do que suas partes escuras, que
esse saber sem sujeito em relação ao qual Platão evoca a reminis- absorvem uma fração importante da radiação incidente, reenviando
cência da alma, e que Lacan, à procura desse saber insabido, encon- bem pouco em direção à camada sensível. A imagem primária gravada
trará do lado do em-corpo (en-corps/encore), conforme desenvolvido encontra-se, portanto, invertida; é qualificada, então, de negativa. Para
no giro do Seminário 20: Mais, restituir o aspecto inicial, é necessário repetir a operação para obter a
ainda (Encore). Eventualmente, ed
emergem “do nada” acontecimentos de corpo, lapsos e repetição, imagem positiva.
Se por um lado, basta uma quantidade de energia mínima para
saber emanente, imanente, mais do que eminente. preciso uma quantidade de
impressionar a superfície sensível, é
É a respeito do escravo inocente/i gnorante do Mênon que Lacan
evoca a “placa sensível”; poderíamos certamente desenvolver mais

(2. MILLER, Jacques-Alaini (1990). L'école


: et son psyc hanalyste. Disponivel em:
<http:/Awwnw.causefreudienne.net/lecole-et-son-psychana lyste-2>. Acesso em:
9. A pesquisa foi feita pelos membros do cartel auxiliados por Patrick Valas. 2/3/2016.
10. LACAN, Jacques (1954-55). O seminário. Livro 2. O eu na teoria de Freud e |3. Essa metáfora é hoje menos acessível àqueles que só conhecem a foto-
rafia digital! o
na técnica psicanalítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
11. LACAN, Jacques (1967-68). O seminário. Livro 15. O I4, OWAL IS P: GLAFKIDES, P. (1996). Verbete “Photographie”. In: Ency-
ato psicanalítico,
inédito. clopédie Universalis. Paris: Universalis, 1996, p.132 (Tradução nossa).
DOMINIQUE FINGERMANN O PASSE 17
energia infinitamente maior para transformar, por
meio da revelação, A metáfora foto-gráfica e, portanto, a referência à luz, pode
a imagem latente em imagem visível (...).
também levar à confusão, isto é, à mistificação. De que luz se trata?
O extenso lembrete a essa referência nos permite
constatar Não se trataria, antes, de um vento novo, seja ele brisa ou
imediatamente que essa analogia pode nos servir
em diferentes borrasca, que sacudiria as aleias bem alinhadas ou atravancadas do
aspectos. Vamos nos utilizar deles eventualmente.
passador: um vento que passaria pela porta aberta pelo ato e que se
“Placa sensível”: o passador teria, portanto, adquir engolfaria do lado do passador (“esse corredor, essa falha”), como em
ido da ex-
periência de sua análise uma “sensibilidade” que permit
iria a essa uma brecha. O interesse da metáfora da luz, todavia, é que ela passa
espécie de depósito opaco da experiência se deixar
impressionar, por buracos e fissuras das quais não temos a menor ideia, e, no melhor
tornar-se ativo, disparar uma reação, em resposta à
“luz” do passante, dos casos, isso nos faz acordar! “There is a crack in everything, that's
e que a experiência com o cartel permitiria desenvolver,
isolar, revelar, how the light gets in” canta Leonard Cohen,” que nos permite talvez,
transformando o latente em explícito, o opaco
em transparência. assim, reencontrar a metáfora da luz.
Reação de precipitação “química” à “luz” do passan
te, ou seja, não A sensibilidade do passador parece-nos, portanto, algo que é,
uma ação direta de causa/efeito, mas um efeito secund
ário de sua antes, da ordem de suas quebras, ranhuras, hachuras, por onde passaria
própria “presença”, uma consequência irresistível
(“por pouco que a “fuga/escoamento!* do sentido”; a fuga/escoamento daquilo que
O passador seja um passador”) de sua distinção,
de seu estilo, do escapa ao sentido, o estilhaço, o transbordamento, o sopro, a “venta-
impacto de sua “identidade de separação”, O passan
te despertaria no neira” do passante, ou seja, daquele que se arriscou a “romper o
passador um acesso a um saber inconsciente desencadea
do (fora da semblante” da verdade, aquele que, a pouco, deu a largada.
cadeia da linguagem), algo um pouco da ordem dessa
dimensão de
um “novo amor” de que Lacan fala a partir do Seminá
rio 20. É talvez
por isso que um passador blasé, sob o pretexto de neutra
lidade e de O DISCERNIMENTO DA EXPERIÊNCIA DAQUELE QUE É O PASSE
imparcialidade, parece nunca ser de bom augúrio
para o cartel.
O passador nunca é blasé; ele é reativo, e ativo,
sua atualidade
no passe manifesta-se por intermédio de sua presen O que é que faz, portanto, um passador? O que é que faz com
ça notável, isto
é, vivaz, acordado, perspicaz. Um dos inconvenient que nós, como A.M.E., distingamos um momento de seu trata-
es do uso da
metáfora da “placa sensível” seria. portanto, fazer mento como um momento de passe? Qual é a experiência daquele
passar o passador
por um elemento passivo, quase inerte. Isso seria momento que qualifica sua “sensibilidade” e nos faz apostar no
não apostar em
sua disposição ética, ao passo que mensuramos bem bom ouvido do passante e seu discernimento dos efeitos de sua
nos cartéis a
importância para a transmissão do impacto da angúst passagem ao ato?
ia e da inibição
ou, ao contrário, de entusiasmo que contribuem à recepç Freud em seu discurso para “A questão da análise leiga”, na
ão ou não do
testemunho pelo cartel. lalta de argumentos lógicos, postulavajá essa aporia da transmissão
Isso seria também não contar com o potencial lógico
oriundo de
sua própria experiência (com a condição de que o passad
or seja um
passador) que proporciona a demonstração lógica dos
diferentes cortes 15, Referência à música “Anthem”, de Leonard Cohen. “(...) Em cada coisa há
da análise do passante. uma brecha, é assim que entra a luz”.
Seria também não contar com sua retórica própria, 15. Em francês fuite du sens. Fuite, em francés, possui um duplo sentido: o que
ou seja, O seria equivalente a “fuga” em português, mas também de “vazamento” (como
bem-dizer adquirido em sua cura, que lhe fez encont
rar no testemunho na expressão “uite deau” — vazamento de água). o
do passante as boas palavras para que o Dizer manife
ste-se (apofân- |”. FREUD, Sigmund (1926). A questão da análise leiga. In: Edição standard
tico), em sua transmissão do testemunho. brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, s/d
(versão eletrônica), v. XX.
118
DOMINIQUE FINGERMANN O PASSE 119

da psicanálise: seus interlocutores/objetores fictícios não podiam hystorização do passante e dar conta de seu testemunho. Aquilo que
ouvir o que ele dizia, pois eles próprios não tinham “a experiência” da se concebe (Begriff) bem se enuncia claramente.
psicanálise. Já alertava que essa transmissão não dependia da razão, A hystorização da análise do passante no procedimento do passe,
mas do réson,'* da repercussão de suas ressonâncias. O passador, se ou seja, a demonstração de suas passagens em torno do troumatismo,
ele estiver “no passe”, precisa ter uma experiência da análise que não atestam a travessia do plano da verdade, isto é, a saída do plano do
seja simplesmente a do analisante e de sua neurose de transferência. traumatismo, ela implica que o passante tenha topado com o ab-sens.
O passante testemunha — ele fala, sua fala desmonta, demonstra Para que o passador tenha o “entendimento”, “ouvidoria” disso
e mostra: o passador deve disso ter o “entendimento”, e ser bom de [entendement] é preciso que ele tenha sido sensibilizado por sua cura
ouvido [entendement].'º ao impossível acesso ao real, e que daí possa flagrar os seus achados
Ele deve, primeiramente, ser um bom entendedor [entendeur] próprios inventados para se virar com isso, sensibilidade que seu
da demonstração do passante. A decupagem de sua cura em seus tratamento da angústia, da repetição, e do sintoma atestam: é a prova
momentos cruciais, suas soluções de descontinuidade, as diferentes ética do passador.
passagens da angústia produzidas pelo topar com o real, a evidência O que prova um passador é sua “consideração” pelo real, sua
do tapar fantasmático, e os cortes do analista que irrom pem de vez na relação com o saber (do inconsciente real) e paradoxalmente, a po-
solução de continuidade que é a transferência, devem suficientemente tência do ato (o ato em potência) que daí se deduz. O que prova um
impressionar sua placa sensível. É preciso um passador lógico.” Não passador é a constatação, em sua cura, de uma porta que bate em
seria conveniente, de fato, que ele rebaixasse a hystorização”! do alternância, rasgando a cada vez um pouco mais a verdade na qual ele
passante a uma historieta de sua vida. conforma sua fantasia. É a repetição que rasga a verdade, se o ato do
Walter Benjamin?” distingue dois níveis de experiência: Erlebnis, psicanalista souber esvaziá-la de seu drama e produzi-la como furo
a experiência vivida, o choque do real saturado de acontecimentos da trama.
e sensações, e Erfahrung, a experiência da travessia do vivido. O Topar com o ab-sens é encontrar o equívoco fundamental de
passador lógico deve, portanto, ter uma certa experiência de sua todo significante no cerne dos mal-entendidos de sua neurose, não é
própria travessia da verdade, e não simplesmente estar sob efeito da sem consequências poéticas: pois como na poesia, o sentido sacado
experiência da transferência vivenciada para poder estar sensível (sens issu”) do sem saída (sans issue) surgiu do fora de sentido
à
insabido; o passe é sacado (e “sacada”) do impasse. Para além de sua
demonstração, o passante “mostrará” (apophanai) por sua fala, pelo
18. Réson: termo usado por Francis Ponge que produz uma consonância
entre tcor e a modulação de sua voz, os efeitos do ato que lhe soltou alíngua
raison (“razão”) e réson, e evoca a ressonância que o significante carrega,
independentemente de seu sentido, ou seja, de sua razão. presa com as palavras, constrangidas pelo sentido. A experiência da
19. LACAN, Jacques (1958). A direção do tratamento e os princípios
de seu
análise do passador ainda “no momento do passe” deveria dar-lhe
poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 622 '[...] Ce que entendimento-ouvido [entendement] suficiente para que ele esteja
jécoute est d'entendement”. Expressão destacada e comentada por Colette
sensível ao passe do passante. Assim como a escuta da música afina
Soler em seu seminário 2007-08 — O inconsciente: o que é isso? (São
Paulo: AnnaBlume, 2012), capítulo IIL.
cada vez mais a orelha e permite ter acesso repentinamente àquilo a
20. Referência ao “analisante lógico" notado por Colette Soler. «ue éramos surdos no instante anterior.
21, Hystorização/Hystória: neologismo que condensa hystérie (histeria)
e histoire
(história), apontando para o fato de que aquilo que faz história, o romance
de cada um, é a suposição no significante outro do enigma da identidade:
princípio da histeria. “3. Sens-issu: Lacan usa o trocadilho entre sens-issu e sans-issue no Discurso
22. BENJAMIN, Walter. Expérience et pauvreté. In: CEuvres lle CEuvres na EFP (06/12/1067); no entanto, a tradução em português da Zahar não
Il. Paris:
Folio Gallimard, 1933, p. 364 e p.114 (respectivamente). marca o equ Ívoco.
120 DOMINIQUE FINSERMANN 121
O PaSsE

O passador precisa pelo menos ter entrevisto (ou, melhor,


entre- A verdade do testemunho
ouvido) algo da ordem das armadilhas do sentido, ter
a-bordado o
limiar, o oco do ab-sens, de tempos em tempos (momen Alguns se aplicavam em relatar o filme restabelecendo dele a
tos de passe),
no limiar em que não há mais nada a des-cobrir, senão continuidade de uma história verossímil, em que o sentido da história
escancarar
portas abertas. decorria de uma tradução edípica coerente. Outros se REETE
Indicamos, portanto, os passadores para o dispositivo do mais pela descontinuidade e por detalhes que os teriam in aniado s
passe
quando distinguimos que um analisante tem, a partir da pois se “a verdade pode não convencer, o saber passa em ato S
experiência
da análise, sensibilidade suficiente, ou seja, ouvidos Ainda que no geral os passadores de nossa escola sejam adver-
para ter a
“ouvidoria” (entendement) do passe do passante. Isto é, tidos de que o cartel não espera que eles venham depor à barra do
que nós lhe
supomos a ética daquele que tem o entendimento do não acesso “tribunal” “a verdade, toda a verdade”, acontece de eventualmente
ao
real, a escuta das repercussões poéticas do trou-matismo, eles se descolarem pouco da verdade do romance familiar, conferindo
a lógica das
“passagens” que permitem essa conclusão. O que não se conceb uma espécie de continuidade às vias e desvios dos acontecimentos
e bem
não vai se enunciar claramente. existenciais, reconstituindo às vezes em seus testemunhos a coerência
Se para ouvir o testemunho ele precisa ter bons ouvidos, que apenas a constância do fantasma outorga a uma vida, e isso a
para
a transmissão ele precisa de sua voz, A qualificação do passado despeito da preocupação do passante em desmontar essa consistência,
r, na
experiência do cartel, depende de sua presença, ou seja, como denuncia às vezes o testemunho do segundo passador.
da voz que
vai dar corpo ao seu testemunho.

A narratividade

O TESTEMUNHO DO PASSADOR A experiência do filme havia tocado os espectadores quer


como “Erlebnis”, quer como “Erfahrung”. Essas duas espécies de
Melancholia, filme de Lars Von T rier,” deu-nos a ocasião
de experiência dão sequência, segundo Benjamin, a dois tipos de narra-
examinar em que consiste o efeito “passador” de certos testemun tividade do testemunho. O choque com a experiência vivida contribui
hos,
confirmando e detalhando o que a experiência do cartel nos para um tipo de testemunho que ele associa ao “romance”, ou pi or, a
havia
indicado. Esse filme foi um acontecimento clínico, pois, “jornalismo”, testemunhos que encontramos no cartel como Hits.
no decorrer
da semana, a maioria dos analisantes dedicou um bom tempo rieta” ou romance-verdade, ou relatório puramente “informativo :
de sua
sessão a testemunhar daquilo que lhes havia afetado. Todos Ser tocado pela experiência (Erfahrung) permite uma narratividade
tinham
visto o mesmo filme, mas haviam sido tocados de maneira diversa do tipo “narrativa” (récit) que associamos à hystorização da verdade
por
sua experiência visual, auditiva, simbólica — e os testemunhos como mentirosa, ou seja, uma distância com relação à dimensão
eram
completamente diferentes uns dos outros, é até mesmo contrad épica de uma análise, mas uma precisão de suas passagene lógicas e
itórios.
Além do fato de que isso trazia indícios clínicos preciosos com uma proximidade “poética”. “A diferença da informação JE explica
relação
ao afeto e às suas soluções singulares em diversos momentos Benjamin — “a narrativa (récif) não se preocupa em transmitir o puro
das curas
analíticas, isso fornecia indicações precisas sobre o que qualifi em si do acontecimento; ela o incorpora à própria vida de quem conta,
ca um
testemunho como “passador”. para transmiti-lo como sua própria experiência àqueles que escutam.

24. Referência ao filme Melancholia (2011) do diretor dinamarquês Lars von 25. LACAN, Jacques (1970). Alocução sobre o ensino. In: Outros escritos, op.
Trier.
cit., p. 305.
122
DOMINIQUE FINGERMANN O PASSE 123

Assim, o contador deixa ali seu traço, “como a mão do oleiro sobre o de uma capacidade daquilo a que Lacan chama de “um novo amor”,
vaso de argila”. isto é, de uma abordagem do outro no nível de sua mais radical estra-
nheza, uma conexão oblíqua com o litoral de seu saber inconsciente.
O ato fotográfico A “sensibilidade” do passador deve-se talvez a uma certa “amizade”,
no sentido de um bom “ouvido” (entente) pelo inaudito, no sentido em
Reencontramos a metáfora fotográfica, mas dessa vez evitando que Blanchot, falando de Bataille, diz:
relegar o passador à passividade que poderia evocar a metáfora
A amizade, essa relação sem dependência, passa pelo reconhecimento
da “placa sensível”. Há no testemunho algo da ordem do ato da estranheza comum (...). Devemos acolhê-los na relação com
fotográfico,” isto é, um flagrante do instante em que o referente (os o desconhecido, em que eles nos acolhem também em nosso
momentos cruciais do filme ou o ato do passante) faz sinal, produz distanciamento (...) distância infinita, separação fundamental a partir
efeitos e justifica que se dê testemunho disso. da qual o que separa torna-se relação.”
O que em uma fotografia testemunha do ato do fotógrafo é
quando aquele que a olha pode ali discernir algo como um punctum, A voz do passador
diz Barthes, distinguindo-o do studium. O punctum, cujo referente é
um ponto fora de linha, fora de campo do studium, é fora de código, Há uma diferença absoluta, uma “identidade de separação”!
“é um suplemento: é o que se acrescenta à foto, e que, entretanto, está que deve passar: não sem a voz de um em que, a partir do “inevitável
Já ali”* um pequeno detalhe pontudo que não se mostra forçosamente equívoco da palavra viva”,”? pode re-soar a alteridade singular do
intencionalmente, que denota uma incoerência para com o resto da outro — o passante — a fim de que “a repercussão mesmo do ser”,
imagem. No testemunho do passador, no sentido do ato fotográfico, esse desejo inédito, impressione suficientemente o cartel.
apreensão de um instante fora de campo, é muitas vezes um detalhe
que averigua o passe: “Um detalhe fisga toda a minha leitura: é uma
mutação viva de meu interesse, uma fulguração. Pela marca de algo,
a foto não é mais qualquer”

O amor do narrador

Um passador blasé, desafetado, assim como um passador


exaltado por sua mensagem, não honraria o que é esperado de sua
presença. “Não há amizade que esteja ali que esse inconsciente
suporte”, adverte Lacan em seu “Prefácio à edição inglesa do
Seminário 11”, mas talvez seja preciso que o passador seja dotado

26. BENJAMIN, Walter. Sur quelques thêmes baudelairiens. In: CEuvres Ill. Paris,
Folio Gallimard, 1940, p. 335.
27. DUBOIS, Philippe. L'acte photographique. Paris: Nathan, 1990.
28. BARTHES, Roland. La chambre claire. In: CEuvres Complêtes— Vol. V. Paris: 40. BLANCHOT, Maurice, L'amitié. Paris: Gallimard, 1971, p. 328.
Seuil, 1980, p. 833. 51. BARTHES, Roland. La chambre claire, op. cit. p. 833.
29. Ibid., p. 828. 32. BLANCHOT, Maurice. L'amitié, op. cit., p. 328.
O passe 125

cada um se vira com a castração e dá sentido à sua vida. O signo da


diferença absoluta é signo de algo que em cada Um não depende do
O QUE FAZ DIFERENÇA? complemento esperado do Outro que amarra as significações e faz
sentido. A travessia de uma análise pode permitir extrair esta marca,
e, ao cabo do percurso pelo caminho da transferência, isto deve ter
efeitos notáveis.
A apreensão pelo cartel desse inapreensível, ao qual a trans-
missão dos passadores precisa dar voz, é contingencial: contingência
dos encontros e desencontros possíveis entre o passante (e em
primeiro lugar sua capacidade de transmissão do inaudito), os dois
passadores e os cinco do cartel.
No passe, o que faz a diferença entre um passante nomeado A.E.
e um passante não nomeado procede da disposição de todos e de cada
um e da capacidade em poder dar voz e ouvido às consequências do
(...) se nomear for, antes de tudo, algo que tenha que lidar com uma
ato, ou às sequências éticas atestadas do encontro com o Real, ou
leitura do traço unário que designa a diferença absoluta. ainda à “responsabilidade sexual”! no que diz respeito à não relação
LACAN, Jacques (1961-1962). O seminário. Livro 9. A identificação,
cao ab-sens, ab-sexo como diz Lacan no seu escrito “O aturdito”.
inédito (Aula de 10/1/1962). Há uma divisão inaugural do sujeito entre signo e sentido: a
experiência do passe deveria permitir que se demonstre o impasse do
“To make difference”, em inglês, é uma expressão que articula
sentido em chegar em um ponto de identidade e proporcionar que se
a diferença e suas sequências, suas consequências. No passe, o que
mostre a prevalência e a valência da fixão do signo.
faz a diferença entre um passante nomeado A.E. e um passante
Antes de toda e qualquer história, há um ab-sens primordial,
não nomeado, é quando esta diferença consegue passar o crivo da
a emergência de um sujeito é emergência do real, desde o real de
disposição em chicana do dispositivo institucional e suas regras de seu ab-sens. À história começa com a suposição de um Outro e
montagem.
com a atribuição de sentido à sua resposta e/ou a sua não resposta.
Há uma fuga do sentido que percorre e vetoriza a história de No começo, um encontro traumático fixa uma letra, fixão que dá
cada um; de um significante ao outro transcorre o gozo particular que sequência ao sujeito e suas ficções, se acreditarmos nas elucubrações
um sujeito persegue dando sentido a sua castração e sua falta-a-ser. de sua neurose, isto é, tudo o que o espraiamento do significado
Este “jouis-sens”, gozo do sentido, amarra e orienta o que pode ser escreveu.
lido como destino. No fim de uma análise — ah! boa hora! (à la bomne heure!? — o
Não é esse “gozo do sentido” e a hystoricização que ele deter- encontro, não menos trou-mático, O faz tomar a medida, ou antes, a
minou na vida do sujeito que necessita passar no crivo do dispositivo
para que se apreenda a diferença absoluta de um passante: é uma
“fuite du sens”, enquanto “fuite” é o que vaza, escapa à vetorização 1. Responsabilidade sexual: Lacan usa essa expressão no Seminário 23 para
do sentido, ou seja, o signo. indicar o quanto a não relação sexual não exime o sujeito da sua responsa-
“Faz diferença”, a apreensão pelo cartel do que faz signo, e bilidade: qual resposta singular cada Um pode inventar perante o fato estru-
tural da não relação sexual.
não do que faz o sentido da neurose. O signo da diferença absoluta,
2. Interjeção em francês para marcar a surpresa de uma boa notícia e que
é signo de gozo singular, ou seja, não do gozo particular com o qual consoa como “bonheur”, felicidade.
126 DoMiNIQUE FINGERMANN O PASSE 127

diz-mensão daquilo que ele foi, como resposta do real. É ali que ele encontra? O que é que ressoa, o que é que re-soa (ré-sonne)? “Ao
se encontra — ali onde ele não se procurava —, já que ele estava em melhor que se pode esperar da psicanálise em seu fim”, uma outra
busca de sua verdade perdida. É ali que ele se encontra, puro fala-ser, música pode tocar a letra; uma outra ressonância ultrapassa o crivo do
nessa resposta do Dizer, essa é sua responsabilidade inicial diante da mal-entendido e conseguimos nomeá-lo: Analista de Escola.
alteridade (A) que, subitamente, marcou-se no em-corpo (en-corps) Podemos testemunhar isso, como o faz Lacan, passador de
para todo sempre. E ali que ele se encontra, único em resposta à Duras, quando afirma “que a prática da letra converge com o uso do
alteridade radical do Outro, que o deixa totalmente só. Onde havia inconsciente é tudo de que darei testemunho”;” podemos testemunhar
repetição, ele encontra sua unicidade (uniqueness). quando o uso que o sujeito faz do inconsciente converge com a letra
“To make difference” é quando podemos dizer “Isto é alguém”; e o que ele, com efeito, faz dela (e não com o sentido) que podemos
quando um “gozo opaco” não deixa mais dúvidas nem esperança de declarar: passe!
verdade. Evidenciado assim, a constatação e localização de um gozo Algumas vezes, nos testemunhos, transmite-se alguma coisa que
opaco que não deriva em “jouis-sens”, em gozo do sentido, tira do carrega os efeitos da letra, se destaca ali o percurso de suas peripécias,
anonimato o que pode ser nomeado como Há Um (Ja d'"'Un). se escancara como o jogo da decifração embaralhava sua cifra e a
De fato, podemos constatar que a experiência do passe está havia feito passar do signo (de gozo) ao sentido gozado (jouis-sens).
acontecendo em nossa nossa comunidade psicanalítica: os analistas “O real no passe... e o que se pode atestar de seus efeitos”* foi
não somente pensam no passe mas dão um passo adiante, arriscan- a questão de nosso cartel, e as elaborações de seus diversos membros
do-se na experiência. O cartel do qual participei, em 2010-2012, prestam contas dessa indagação.”
ouviu nove passes, portanto, dezoito testemunhos de passadores. O No entanto, com relação ao passe, será que poderia haver uma
Colegiado Internacional da Garantia (o conjunto de todos os cartéis outra questão? Esperamos que os passantes nos ensinem, cada um a
do passe), no mesmo período ouviu 25, ou seja, 50 testemunhos de seu modo, sua maneira de responder à questão que cada análise coloca,
passadores. como: “a passagem pelo real, e seus efeitos, efetivamente modificou,
Em alguns deles, pudemos decidir e concluir “há analista”, ou mudou, transformou sua relação ética com seu próprio gozo”.
seja, “Isso, é alguém” (“Ça c'est quelgu 'un!”). Alguma coisa levou Poderia haver outra questão, se o passe como procedimento
algo, um signo de uma diferença absoluta até os cinco do Cartel, verifica o passe clínico, isto é, o deslastrar da verdade mentirosa em
isto é, “aquilo que entendo que uma carta/letra carrega para chegar a seu encontro com o real (re)produzido na clínica, ou seja, na trans-
seu destino”.* Nos testemunhos verdadeiros. a verdade está no lugar ferência. Poderia haver outra questão se ele testemunha a redução
do reú, pode haver, no entanto, por essa via, a transmissão de uma da verdade ao semblante que, por definição, não recobre o Real. Há
“suspeita” de real, um rastro de real. alguma outra questão além de tentar fazer saber como a operação do
Outras vezes, a maioria delas, não pudemos concluir. Por quê?
O que é que faz a diferença? O que é que se encontra, ou que não

LACAN, Jacques (1971). Lituraterra. In: Outros escritos, op. cit., p. 15.
o

7. LACAN, Jacques (1965). Homenagem à Marguerite Duras. In: Outros


3. LACAN, Jacques (1970). Radiofonia. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: escritos, op. cit., p. 200.
Jorge Zahar, 2008, p. 413. 8. BOUSSEYROUX, Nicole. Satisfazer os casos de urgência. Wunsch 11.
4. LACAN, Jacques (1971). Lituraterra. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: IF-EPFCL, 2011, p. 29-30.
Jorge Zahar, 2003, p. 17. ' 9. Cf. Wunsch 10, 11 e 12 — Boletim Internacional da Escola de Psicanálise dos
5. Lacan, no Seminário 27, fala de um “soupçon de réel"; é uma suspeita, mas Fóruns do Campo Lacaniano, disponíveis em <http://mww.champlacanien.
também indício, rastro, conforme indica o uso de “soupçon” em culinária: um net/public/4/puWunsch
php? language=4&menu=1>. Acesso em: 20/2/2015).
tiquinho de nada (de leite, sal, especiaria). 10. Ibid.
129
128 DomiNIQUE FINGERMANN O PASSE
do passe conclui que só há maus
Será, então, que a Escola à prova AME.
sujeito suposto saber, por causa do analista, descobriu o horror de que põe em questionamento os
passantes, passadores pífios (o hor?
saber que justificava todas as suas elucubracões?' ficientes que poderiam fazer mel
que os indicaram) e Cartéis insu Lacan:
Mencionamos frequentemente a invenção da psicanálise pelos princípio do ensino de
Pôr o analista na berlinda era um as esta mos,
passantes, o inaudito de seus achados: de fato, mas tudo isso nos e e sua prestação de cont
ao sustentar a experiência do pass co
limites da lógica da estrutura tal como Lacan a proclama enfim: R.S.I o. Mas será que podemos ir um pou
ne ao menos, à altura deste princípi r de noss a
e de suas consequências. da intranquilidade e, no rigo
mais longe do que à manutenção )?
de boa hora/felicidade (bon hewr
ética, encontrar um pouco mais
Em princípio isso parece bem simples: trata-se de reduzir as
voltas e reviravoltas de uma análise à:

* lógica do impasse do Sujeito Suposto Saber, que prova que sua A PROVA DA TRANSMISSÃO
verdade veio para a corte, sentar-se mais no banco dos réus do
deparamos como Cartel é a da
no banco das testemunhas." 0 Uma dificuldade com a qual nos ível,
* poética do gozo da alíngua que ex-siste e ressoa como portadora da amos fazer da melhor forma poss
transmissão que a cada vez tent você s
letra para além do sentido extraído (sens issu*).!* (“não ouvimos nada no que
e que parece sempre insuficiente cartéis no
. ética: ética de uma escolha entre a verdade que abandonamos à sua publicações insistentes dos
dizem!”), e isso apesar das rços dos
as dos esfo
própria ficção e o saber com o qual se identifica a fixão. Ética de Wunsch, Boletim da Escola, que prestam cont
la, à
uma escolha que se experimenta em saber fazer: “saber fazer uma cia e prestar contas dela na Esco
cartéis para elaborar a experiên faça laço e orie n-
conduta”! para si acordada à “responsabilidade sexual”! | cia, e não a cola,
fim de que a renovação da experiên
ados”.
tação para os “esparsos disparat
passe equivalente para O cartel,
; Então, apesar do entusiasmo e a decisão dos passantes, apesar Na verdade, há uma prova do se pode
do ânimo e a coragem dos passadores, apesar da empolgação, da fazer passar algo de que não
os passadores, os passantes: É assim,
seriedade e o empenho dos cartéis, por que, no fim das sofia é se testemunha a verdade.
testemunhar da mesma forma que disso,
tão difícil fazer argumento à função do passe, e por que é tão dificil a no procedimento, sabemos
contudo, que o passante entr alguns
elaborar a experiência a ponto de transmiti-la? Por que há tão poucos vezes mais de vinte anos — a
reduzindo anos de análise — às açõe s, dese nlac es, que
A.E. nomeados, e isso desde o começo da experiência e em todas as ulas, precipit
momentos cruciais, algumas básc que perm ita dist in-
em um testemunho
zonas da Escola que praticam o passe? ele vai organizar e concentrar onde r ao sans
do sentido, permite resp
guir como o sens issu, à saída sem
deve seguir essas vias labirínticas
issue, ao sem saída. O passador as nota s
por suas múltiplas € minucios
perder a sua saída. Mais do que rá O
fazendo ouvir! que ele convence
escritas. é por sua presença € Se dos
srité àà | a barre). Wunsch 11,
5 Marc. É Corte com a verdade!e! ( (La vérité a, deverá produzir o eco dos acha
cartel. Este último, em contrapartid
é : pm
11. STRAUSS,
ção e
passando pelo escrito: outra redu
E .“Discurso
Ver In:
n a EFP” “In: Outros escritos.
j Rioi de Janeiro:
i Jorge Zahar, dos passantes nomeados A.E.,

12. Cf. Patricia Mufioz. Razão que ecoa, e Patricia Dahan (2011) Unidade da
63 una singularidade d'alíngua, op. cit., p. 52-56 e 33-37 respectivamente
i nas páginas 108-123
: pos , Luis. A dox ae i
a comunidade de Escola. Wunsch 11, op. cit., p.
: atualidade da Escola,
15. Cf. A presença do passador
deste livro.
14. NGUYÉN, Albert. Satisfação da castração. Wunsch 11, op. cit., p. 58-62.
130
DOMINIQUE FINGERMANN O PASSE 131

tradução em que o que se perde necessariamente aí não deve fazer


O que o anima, na maior parte do tempo, é uma certeza, e é isso
esquecer o que aí se encontra (redução lógica e translação poética).
que ele deve fazer passar. Um problema surge pelo fato de que, para
O que é que faz diferença entre um passante e um passante? demonstrar os efeitos da operação — um saber atestado como real —.
ele deve remontar às causas e desmontar os caminhos da equivocação
* Sua análise. do saber suposto. Alguns se perdem nas causas e perdem de vista seus
* Seus passadores. efeitos, eles desfiam os ditos da neurose sem que não se possa mais se
* O cartel. suspeitar de seu Dizer. Outros anunciam uma certeza que, por certo,
Como o real em jogo na formação do analista pode facilitar se apresenta fora do sentido da neurose, mas sem que sua evidência
ou entravar a experiência nos três níveis em que a possibilidade de seja demonstrada como relativa ao impossível e a todas as voltas dos
sua transmissão se desenrola: a análise do passante, o passador ditos que giram em torno dela, até que caia, como uma evidência o
do
passante, o cartel do passante? aturdito,!º essa “volta” do Dizer sempre esquecido.
Sua certeza deve se apoiar em provas da mudança de posição
A análise do passante no que diz respeito ao real no nível de suas manifestações clínicas
mais patéticas: a angústia, o sintoma, a repetição, dos quais a análise
Todos estão engajados, interessados, convencidos. apressados estanca o pathos.
por uma urgência. A angústia pode ser “regulada” em uma análise graças à
Todos têm longas análises, diversos analistas, às vezes, inacre- regulagem daquilo que a ela responde, ou seja, o sintoma; a repetição
ditáveis — mas verdadeiros — “caminhos que não levam a lugar pode ser reduzida a Um que marca o compasso do real (não há):
nenhum”, que não levam a um grand finale estrondoso, do tipo eureka, o sintoma pode ser decidido no fim como aquilo que sempre faz
aletheia, enfim, descoberta como um eldorado. Com efeito, na melhor suplência (há) e pode, ainda assim, fazer laço entre as três consistên-
das hipóteses — “no melhor do que se pode esperar da psicanálise cias (sinthoma).
no
seu fim” — a verdade é descoberta, apreendida como mentirosa: “Todo homem é um animal, salvo que ele se n"homeia”, escreve
à
prova do real acaba por pegá-la em flagrante delito de mentira. Lacan em 1968. A nomeação procede do dizer, ela nomeia o ato
O que é que faz a diferença entre um passante e um outro da enunciação: “o sujeito é o que se nomeia — se nomear é, antes
passante? Como podemos estar certos de que essas condutas e seus de tudo, algo que tem a ver com a leitura do traço 1, designando a
afetos manifestam uma mudança radical com relação à sua resposta diferença absoluta”, lemos no seminário A Identificacão. É por
ao
real, e que essa “insurreição” produzida pela análise, garanta que aquilo que faz diferença que alguém pode ser, enfim, nomeado, ou,
seja
precisamente ali um analista que se autoriza de si mesmo? antes, que a evidência de seu dizer o nomeia por si mesmo, efeito de
Em primeiro lugar, o que o distingue é que ele esteja ativamente
na experiência, o tempo do verbo que qualifica sua posição o atesta:
“passante"* E de sua posição atual e atuante que ele demonst
ra,
desmonta e mostra o que, de sua análise, faz autoridade. 16. LACAN, Jacques (1973). O aturdito. In: Outros escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2003.
17. LACAN, Jacques (1967-68). Le sêminaire. Livre 15. L'acte psychanalytique,
inédito (Aula de 20/3/1968). No original: “(...) Lhomme est un animal, sauf à
* ce qu'il se nhomme”.
Em francês, os verbos com a terminação -ant pertencem ou ao
gérondif 18. LACAN, Jacques (1961-62). Le séminaire. Livre 9. Lidentification, inédito
[gerúndio, seria equivalente ao —ndo do português] ou ao participe
présent (Aula de 10/2/1962). No original: “(...)..
le sujet est ce qui se nomme —, si
[particípio presente, que em português normalmente dá origem
a substan- nommer c'est d'abord quelque chose qui a affaire avec une lecture du trait 1
tivos com as terminações ante, -ente e -inte).
désignant la différence absolue”.
132 DoOMINIQUE FINGERMANN O passE 133

sua diferença absoluta revelada pelas peripécias da letra ao longo de passe, mas em outro não, funcionar em um cartel e em outro, não. É
seu testemunho da verdade mentirosa. de maneiras diversas que eles “honrarão sua tarefa”, como diz Lacan.
“Pes rien” (Cê não é nada) poderia ser o que, das coisas vistas e A tarefa do passador é, antes de tudo, um enorme trabalho de
ouvidas, marcou o lugar passante Y e as peripécias de suas ficções, foi escuta, de entendimento, ou melhor, de ouvidoria, de construção, de
o equívoco original, ponto de partida das suas suposições, cujo sentido presença e de voz. Parece que o procedimento é bem mais difícil para
viu-se confirmado por todas as repercussões do significante que se eles do que para os outros, e eles não estão menos à prova do real do
encadearam na sequência. Proprietário (propriétaire) e Dono da Terra que os passantes.
(Jerrien)* e toda a cantilena de mal-entendido facilitaram o acesso ao A angústia de seu momento capenga os faz, algumas vezes,
“se calar” (se faire) e se “se esconder” (se terrer): serão necessários perder a competência própria que devem “honrar” e que lhe cabe
voltas e furos e bordas antes que o nada de origem deslastre e não ou ainda recuperar suas velhas soluções ready-made para remediar
faça mais destino como alguém que não vale nada (vau-rien) e outras a angústia e, assim, malograr o caráter único do testemunho, por
safadezas. A letra chega ao seu destino quando ela não quer dizer deslumbramento ou desconfiança excessivos, extraviando-se em suas
mais nada, desvalorização do gozo-sentido, mas “carrega” ainda/no construções desalinhavadas demais, ou demais engessadas, a ponto de
corpo (encore/en-corps), “um não sei o quê e um quase nada” do qual não deixar passar nada.
podemos fazer uso para muitas outras coisas (fazer poema, laço e. por
que não?, amor).
O cartel do passante
O passante pode ser nomeado A.E. quando a letra chega ao
destino e faz efeito no cartel, tocado por uma certa graça daquilo
A culpa, então, é do cartel? — como declina Ana Martinez? e
que, uma vez o sentido depreendido, se pode suspeitar daquilo “que
como Colette Soler evoca a hipótese.”
invisivelmente retém os corpos”.
O que faz a diferença entre um passante e outro passante pode
ser o cartel. O cartel pode, por vezes, fazer obstrução a um testemunho
O passador do passante de analista da escola, quando os “esparsos disparatados” pôem-se a
fazer grupo, esquecendo sua ignorância fundamental. Nosso cartel,
O que faz a diferença entre um passante e um outro passante é, a cada vez, se colocou a questão: não estamos nos enganando? Uma
também, seus passadores. Há “maus” passadores? Por definição, eles vez chegamos mesmo a convocar novamente os passadores a fim
estão em maus lençóis (“ils sont dans une manvaise passe” diriamos de pôr à prova nossa decisão primeira. Uma das melhores vias de
em francês),” isto é, para eles, a passagem ao real não está decidida, acesso ao real é a surpresa e o inesperado: o cartel deve saber fazer o
ainda que estejam numa situação oscilante, de vacilo, “como uma acolhimento necessário e suficiente para que o passador não se feche
porta que bate”? em suas defesas familiares: desconcertá-lo, cortar sua narrativa, trazer
Estão em um momento em que o amor do saber ainda os à tona seus esquecimentos e preconceitos, tendo muita consideração
sustenta, e as reações deles diante do horror de saber que excede à por seu trabalho e sua dificuldade.
verdade são diversas. Um mesmo passador pode funcionar em um

* : 3 “ . a a E
22. MARTÍNEZ, Ana. Depois do final de análise e do passe, uma experiência.
Homofonia entre T'es rien e terrien, que têm-a mesma pronúncia em francês. Wunsch 11. IF-EPFCL, 2011, p. 37-42.
19. LACAN, Jacques (1972-73). O seminário. Livro 20. Mais, ainda. Rio de 23. SOLER, Colette. As condições do ato, como reconhecê-las? |WWunsch 8.
Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 125. IF-EFCL, 2010, p. 21-24.
20. SOLER, Coleite). Os passadores. Wunsch 12. IF-EPFCL, 2012. 24. APARICIO, Sol. A ignorância dos cartéis. Wunsch B. IF-EPFCL, 2010, p.
21. LACAN, Jacques (1967). Discurso na E.F.P. In: Outros escritos, op. cit. p. 280. 21-24.
134
DOMINIQUE FINGERMANN

O Real no passe, o que permite a sua suspeição, como diz Lacan


no Seminário 21, diz respeito às três instâncias em presença, e cada
um — passante, passador e Cartel — deve se fazer responsável por
isso. UMA CARTA NEM SEMPRE
CHEGA AO DESTINO*

Supomos que se uma análise produziu um analista à altura de seu


ato, isso deveria ter efeitos notáveis.
Isso deveria ser notado no testemunho dos passadores. O passe
é feito para isso, é feito disso: a aberração! que conduz alguém a se
colocar como analista em sequência à sua análise é um salto inaudito,
fora do senso comum. É sempre muito difícil explicar isso a um leigo,
ou seja, para quem não tocou essa dimensão de salto, de hiato, de
ato. Difícil, e portanto necessário, se não se quiser contribuir para a
equivocação de uma iniciação misteriosa que não prestaria nenhum
serviço para a valorização e a extensão da psicanálise no mundo.
Escolher ocupar a posição de analista quando se atravessou uma
análise não é normal, porque a posição — o desejo do analisante à
procura da verdade que encobre o real, orientando-se a partir de uma
suposição de saber no outro — é, de fato, diametralmente oposta à
posição e ao desejo de analista. O desejo de ser analista, de ocupar
essa posição, não decide do “desejo de analista”. O desejo de ser
analista com o qual muitos analistas iniciam a sua “formação”, nos
tempos de escolha de profissão, se revela frequentemente no decorrer

Texto originalmente publicado em Wunsch 13 — Boletim Internacional da


EPFCL-Brasil, dez/2012.
1. LACAN, Jacques (1973-74). Le sêminaire. Livre 27. Les non-dupes errent,
inédito.
136 DOMINIQUE FINGERMANN O PASSE 137

da análise pessoal como fundado nesse amor à verdade que se O que se passa no passe quando não há nomeação? O que não
contrapõe ao que orienta uma análise, ou seja, suportar o real. passa?
Alguns testemunhos de passe demonstram precisamente a Produzir um analista à altura de seu ato representa muito
passagem do desejo de ser analista ao desejo de analista. Uma análise trabalho (beaucoup, “belo custo” (beau coit)º pode-se, afinal, dizer
se prova como didática somente em consequência de seu percurso; com Lacan), muitas voltas e desvios, vaivéns: tece o texto, passa por
entendemos, portanto, por que a concepção lacaniana da formação cima, por baixo, corta, amarra, afasta, dobra, reduz, por baixo, por
analítica diverge tão categoricamente do dispositivo de formação cima, pula um ponto, retoma o fio. corta, amarra, um ponto no avesso,
de analista proposto nas instituições ligadas à IPA, que decide dois no envesso: enodar de outra forma.
antecipadamente e segundo critérios preestabelecidos, da pretensão Enodar de outra forma? A análise poderia fazer isso: subverter o
didática da análise. drama da neurose evidenciando e proporcionando uma outra versão da
A passagem à posição de analista não é normal, é uma trama que trança originalmente as três dimensões da estrutura.
extravagância, e uma aberração assim não passa despercebida! No começo do fala-ser, o enodamento repentino do corpo, do
Constatamos, entretanto. que na experiência do passe que símbolo e do real acontece, ocorre de uma maneira imprevisível: o
proporciona o dispositivo institucional, na maior parte do tempo essa nó se faz e firma a emergência de um sujeito no real. O trauma é um
marca não é notada nos testemunhos, essa carta (lettre”) não chega ao dos nomes dessa acontecência, embora logo esquecido em benefício
seu destino." Ela permanece em espera, em suspenso, “en souffrance”é do encadeamento significante que produz o sentido das coisas. O
A questão de como a carta tem efeito, alcança, impacta, é aparelho significante, isto é, seus elementos discretos, marcadores da
salientada por Lacan a partir de “Lituraterra”: “Pois ainda seria experiência, possuem esta propriedade inesgotável de se articular um
preciso, para isso, que se desenvolvesse aquilo que entendo que a ao outro na tensão, na busca daquilo que da experiência falhou em se
carta tenha efeito (porte) para chegar sempre ao seu destino”5 O que inscrever na marca primeira: é uma “suspeita do real” que tensiona o
constitui o “alcance” da carta? Como isso se produz? Como se produz encadeamento significante. É só assim que alguém se salva; é só assim
um efeito do signo que não seja efeito de sentido? que alguém sobrevive, por uma suposição de um outro significante,
Desde sempre, desde os primórdios da experiência do passe, isto é, a suposição de um outro que corresponda, responda. Essa
constata-se a diferença entre o número de demandas de passe e a suspeita de uma marca real, índex de um saber de si ligado à marca se
pequena proporção de passantes nomeados A.E. Passam os anos, vão transforma na suposição de uma verdade que o Outro garante; é nesse
e vêm as Escolas, que se seguem e não se assemelham, vacilam as momento que o laço com o Outro (significante) inaugura a Aystória e
palavras de ordem, oscilam as doutrinas: a psicanálise permanece, o romance, e “todo tipo de construções”. ]
a experiência do passe persiste e o número de Analistas da Escola “Claro, o suspeitável é muito respeitável, como o resto, não é? E
nomeados não varia. o que nos é preciso suspeitar como sendo Real, e isso leva bem longe,
isso leva a todos os tipos de construções”,! indica Lacan no seminário
Les non-dupes errent.
Lettre, letra/carta: em francês a palavra lettre, pode significar tanto “carta”
quanto “letra”, o que gera polissemia. Além disso, há uma consonância entre
o vocábulo lettre e a expressão [être (o ser). Homofonia entre o advérbio francês beaucoup [muito] e a expressão beau
LACAN, Jacques (1955). O seminário sobre A carta roubada. In: Escritos. Rio coút [belo custo).
de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 45. LACAN, Jacques (1973-74). Le séminaire. Livre 271. Les non-dupes errent,
Em francês “rester en soufirance”, expressão que pode ser traduzida para inédito (Aula de 12/1/1974). No original: “(...) Bien súr, le soupçonnable, c'est
“em espera”, “em suspenso”, mas “em sofrimento”. três respectable, comme le reste, n'est-ce pas, c'est ce qu'il nous faut soup-
LACAN, Jacques. (1971). Lituraterre. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: conner comme étant Réel, et ça mêne três loin, ça mêne à toutes sortes de
Jorge Zahar, 2003, p. 13. constructions”.
DominIQUE FINGERMANN O PassE 139
As construções, elucubrações, teorias sexuais infantis e outras
pode-se até reprovar os cartéis por isso, mas há uma orientação ética
maquinações não preservam totalmente do inesperado, pois o sintoma,
do passe, ou seja, daquilo que se entende como desejo do analista:
a angústia, o sexo, entre suspeita e certeza, escancaram o real. Má ou
esperamos poder observar os efeitos de lance, e propulsão do impacto
boa hora, infelicidade ou felicidade (Mal heur, bon heur*), aventuras
do real para um passante, as consequências de sua separação para com
ou desventuras, depende; é inesperado, é o im pensado, insensato, não
o palmo da fantasia que mede e ordena sua realidade, e realmente não
é aquilo que se esperava. se pode dar ares disso!
Desde a suspeição de uma ex-sistência na qual alguém se
Sustentamos que um analista de Escola deve poder mostrar
acha repentinamente em um acontecimento de gozo impensado e
os efeitos do impasse do sujeito suposto saber que a análise lhe
impensável, engaja-se a primeira suposição em que alguém se busca
demonstrou, isto é, o fato de que suas ficções, por mais verdadeiras
(e não se encontra) nos trilhamentos, nos trilhos do significante que
que sejam, nunca podem dar conta do real único que o causa.
representa o sujeito para um outro.
Um A.E. deve poder fazer ouvir o poema que ele é, repitamos,
Onde se encontra o saber perdido, ou melhor, o saber que não
à porfia, na esteira de Lacan. Um poema não é para ser lido, mas
se encadeou ao Outro, mas que “invisivelmente retém os corpos”? O
ouvido, como dizia Joyce em Himnegans Wake: “Ah, não é de forma
saber de separação que garante o estilo, o poema, o amor, o analista?
alguma escrito. Não é, tampouco, feito para ser lido. E feito para ser
Ele se enodou, inicialmente, à neurose, aos significantes mestres
olhado e ouvido”.!? Esse poema é traçado no lance do real, efeito da
do Outro e à sua falta fantasmada: pode ele se “enodar de outra
letra (fettre), na medida em que ela designa o que, do significante, não
forma”?
carrega o sentido do Outro, mas faz soar esse saber de si que retém o
Sustentamos que um analista — para estar à altura do ato, para
corpo e que faz com que se autorize de si mesmo.
suportar o ato do analisante que passa à psicanalista — deve poder
Na experiência do passe, muitas cartas (lettres) permanecem em
sustentar a posição do inconsciente na medida em que este é real,
suspenso, em instância, o cartel não as recebe. E um problema.
na medida em que ele está não todo encadeado ao Nome do Pai,
É um problema?
na medida em que, ao se fazer de tolo, é possível largar o lastro
do Estamos inclinados a pensar que, se há um problema, trata-se de
fantasma e das identificações e percorrer alguns nós!" sobre o lance
um mal-entendido que procede dos três polos em jogo, ou de um dos
(erre) da separação, sobre seu impulso. “Talvez vocês saibam o que
três, ou da dinâmica do dispositivo.” Mas isso não nos desencoraja:
isso quer dizer, um lance (erre)? É algo como um impulso. O impulso
cem vezes voltemos, e novamente, ao nosso trabalho (“cent fois sur
de algo quando para o que o está propulsionando e continua ainda à
le métier remettons notre ouvrage”")...e, certamente, os passantes, os
correr”, explica Lacan. passadores, os cartéis trabalham com afinco, admiravelmente.
Não se pode dizer que escutamos os passadores e seus testemu-
Não é, portanto, o fim, mas as sequências que interessam na
nhos dos passes dos passantes sem nenhuma orientação preliminar;
experiência do passe: a tomada em consideração do real e o “enodar de
outra forma” aos quais conduzem uma análise podem ser verificados.

8. Homofonia entre as expressões mal heur (má hora) e bon heur (boa
hora) é
as palavras malheur (infelicidade) e bonheur (felicidade).
9, LACAN, Jacques (1972-73). O seminário. Livro 20. Mais ainda.
Rio de 12. Joyce citado por BIDENT, Cristophe. Joyce enfin libre sur scéne. Magazine
Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p, 125. Littéraire, n. 515, p. 21, jan. 2012.
10. O nó (noeud) é uma unidade de velocidade utilizada em navegaçã
o maritima 13. Cf. O que faz diferença?, nas páginas 124-134 deste livro.
e aérea. 14, Célebre verso extraído da Art poétique de Nicolas Boileau (1633-1711),
11. LACAN, Jacques (1973-74). Le séminaire. Livre 21. Les non-dupe
s errent, poeta clássico francês que postulava que o verso deveria ser “polido”, visto,
inédito (Aula de 13/11/1973).
revisto, trabalhado e retrabalhado antes de vir a público.
140
DominiQUE FINGERMANN O PASSE 141

Supomos que se uma análise produz um analista à altura do ato, (erre/air) de insolência em que re-soou o eco de um Dizer, em que a
isso deveria ter efeitos notáveis. Isso deveria ser notado no testemunho marca de “suspensão do singular pode se fazer ouvir”, como formula
dos passadores. Marc Strauss.!*
Quando escutamos os testemunhos, sempre ficamos impres- Anita Izcovich desdobra os diferentes efeitos de corte que
sionados, tocados, pelo efeito da psicanálise: é extra-ordinário! Como levam um analisante à passagem à analista; acrescentemos aí que um
a experiência trata uma história, como ela enuncia, desdobra seus testemunho conduz a uma nomeação quando se verifica, para além
impasses na transferência, denuncia suas equivocações, e, por fim. do corte, um “enodar de outra forma” pelo “efeito de afeto, um efeito
extrai essa cifra que faz destino por um lado e, por outro, a história de ser afetado pelo real do testemunho do passante”,!” que passa do
que faz romance. Rosa Escapa precisa justamente isso, assim: “O passante aos passadores e depois aos cinco membros do cartel, ou
passe é uma experiência que brinda uma ocasião sem igual para se seja, que faz laço.
dar conta de como a significação fálica vestiu a letra, de como o gozo Concluirei, provisoriamente, a elaboração que esse trabalho
fálico animou o gozo do corpo, da escrita que se sedimentou e do que de cartel me permitiu trilhar no decorrer desses dois anos da minha
na análise se escreveu de novo”, !º implicação neste dispositivo, com essa observação de Pascale Leray,
Graças aos passadores, à sua coragem, à sua seriedade e também colega de cartel, pois o interesse, a esperança, o rigor
entusiasmo, e também apesar deles, apesar de seu excesso de zelo, para a análise que representa o passe, é de que ela deve sempre ser
de notas, suas faltas de precisão ou excesso de angústia, tivemos — recomeçada: “Essa renovação é o que participa desse passe sempre a
verdadeiramente — acesso a experiências fantásticas que a análise recomeçar, para cada analista”
fabrica e que fabricam analistas.
Verdadeira-mente, verdadeiro demasiado, muitas vezes. para
que passe o ar (air) do real e que o lance (erre) do ato possa nos fazer
apreender as sequências — outras — do Dizer. Sequências outras,
de forma que — o poema que ele é — as torne manifestas, evidentes
em sua conduta ou sua tomada em conta no laço com o outro, da não
relação sexual.
Portanto, não é o que faz “verdade” que o cartel pode ouvir, mas
o que faz Dizer: o que faz Dizer não é verossímil; Lacan fala de “a
impudência do Dizer”, em outras palavras, sua aberração, ab-erração.
O dizer cai sob o sentido;” o que nos permitiu decidir uma
nomeação não foi a profusão inacreditável, mas verdadeira, da
construção analítica da verdade mentirosa, mas um lance e um ar

15. Na data deste escrito, o cartel do qual participava tinha ouvido (9 passes, 18
testemunhos de passadores uma nomeação). ! 18. STRAUSS, Marc. Se fazer ouvir, ou a marca de suspensão do singular.
16. ESCAPA, Rosa. Faltar de outro modo ao real. Wunsch 12, p. 63, 2012. Wunsch 12, p. 51-55, 2012.
17. No original, “tombe sous le sens', expressão que quer indica que algo é 19. IZCOVICH, Anita. Efeitos de corte. Wunsch 12, p. 65-67, 2012.
evidente. 20. LERAY, Pascale. O passe e o Real. Wunsch 12, p. 63-65, 2012.
O passE me

O passe é feito para isso, é feito disso: a aberração que conduz


alguém a se colocar como analista em sequência à sua análise, é
COMO PASSA UM-DIZER? um salto inaudito. No entanto, o eco dessa passagem deve poder
CONTINGÊNCIA E RESPONSABILIDADE ser ouvido. Ocorre que, na maior parte do tempo, essa marca não
é notada nos testemunhos, e não permite que o Cartel decida por
uma nomeação dessa aberração: essa carta (lettre) não chega ao seu
destino.
Passantes, passadores, cartéis, analistas dos passantes, e os
que indicaram os passadores se perguntam: entre contingência e
responsabilidade, como passa um Dizer?
Em geral, quem se engaja na experiência, antes e durante, não se
pergunta muito a respeito do dispositivo, não tem dúvidas, pois parece
levado por uma evidência, que faz saltar de um episódio ao outro
O passe, encore! com leveza e convicção. No entanto, quando o cartel não responde
O passe sempre. Sempre recomeçado. “Se há alguém que passa com uma nomeação, cada um do atores, ainda empolgado pelo feito,
seu tempo a passar o passe, esse sou bem eu”,! dizia Lacan. indaga: “O que se passou? O que não passou?”, “Como esse vigor
Sustentar a prática da psicanálise determina essa urgência e essa do dizer não foi interceptado?”” Quem não soube dizer? Quem não
teimosia em repisar novamente nos rastros que a experiência sulca, e soube ouvir? É pura contingência ou poderia se localizar e/ou dividir
falar novamente do passe, enquanto experiência em curso que orienta responsabilidades?
do começo ao fim nossa prática clínica da psicanálise. De fato, a Antes de qualquer elucubração, é preciso reavaliar a questão
experiência do passe, o vetor que constitui, a leveza que promete nos própria da transmissibilidade do Dizer, precisando essa “instância”,
piores momentos da travessia (“vai passar!”) nos implica nos mínimos função, lógica e ética que excede e condiciona a dimensão própria da
detalhes de nossa prática da psicanálise. Essa referência fundamental linguagem. É o que fomenta a sua emergência e os encadeamentos
que condiciona a posição que ocupo, se alicerça na experiência mais dos ditos, mas como localizar essa instância ética que antecede
do que em uma teoria (esta sempre correndo atrás da experiência e os enunciados, ou essa função lógica, que se deduz da sua série?
deixando a desejar!): na minha própria experiência do dispositivo, a Inapreensível? Intangível? Intransmissível? Todas essas características
dos analisantes que acompanhei até este beiral, a dos passadores que não exoneram da responsabilidade do Dizer enquanto ponto de
pude indicar, a dos passes que ouvi nos cartéis. partida.
Não temendo a repetição, e apostando nos seus efeitos criativos, A aposta do passe desafia essa intransmissibilidade.
retomo a questão colocada anteriormente. Tomo emprestada de Lévinas e de Lacan a expressão “a
A hipótese do passe, que orienta nossa Escola, supõe que se uma responsabilidade do dizer”, brincande com a palavra em inglês
análise produziu um analista à altura de seu ato, isso deveria ter efeitos “response ability”, o dizer como a capacidade, habilidade, de
notáveis. Isso deveria ser notado no testemunho dos passadores. responder perante o outro em função de sua alteridade radical.
Proponho que essa seja nossa maior responsabilidade enquanto
psicanalistas, na nossa prática e em nossa instituição. É uma questão
que remete não somente às consequências políticas da prática da
t. LACAN, Jacques (1973). Intervention dans la séance de travail 'Sur la
passe du samedi 3 novembre
psicanálise em cada caso, mas ao que o psicanalista pode dizer,
(aprês midi). Lettres de IÉcole freudienne,
Paris, n. 15, p. 185-193, 1975. produzir, trazer como posição e transmissão dessa posição para pensar
144 DOMINIQUE FINGERMANN O PASSE 145
melhor o “viver juntos” e, eventualmente, agir no nível do laço social emergencial e originário que fomenta todas as demandas. Trata-se
que se impõe no discurso contemporâneo. de uma chance, pois acaba por suspender a re-petição infinita das
A questão do laço interessa diversamente aos psicanalistas por demandas e possibilita que se extraia, e que se conte como Um, o
causa das aventuras e desventuras do laço no decorrer da experiência, transfinito da demanda,* localização, nomeação de algo inapreensível,
mas precisamente porque esta se ocupa, desde sempre, da transmissão ou quando o conjunto vazio, pode se contar como Um, algo pode
do fundamentalmente intransmissível. cessar, enfim.
A aposta do passe acata e desdobra a questão: como fazer com que Na experiência do passe, o Dizer está à prova, à prova de atestar
seja transmissível, compartilhado em uma comunidade, aquilo que torna sua instância pelo seus efeitos. Nessa aposta de uma nomeação de psica-
alguém ímpar, singular, fora de alcance de qualquer diálogo, exeto o nalista de Escola, Um-dizer precisa ser destacado, distinto, na aposta
“diálogo” analítico síricto sensu que responde por um laço entre o Dizer que este Um dizer poderá ser colocado em função para conduzir as
da demanda analisante e o Dizer da interpretação do analista. análises dos analisantes do começo ao fim, para ter chance de responder
Como fazer laço — na análise, no passe, na Escola, no mundo ao dizer da demanda analisante, em termo deste Dizer chamado Ato.
contemporâneo com aquilo que, essencialmente, não faz laço? Vemos que aí está contido o paradoxo fundamental do passe:
como o Dizer, forçosamente impudente e desligado do Outro, pode se
prestar a esta prova e provação do laço que ele implica? Como pode
Como PASSA UM DIZER? ser transmitido e recebido? A sua transmissão é forçosamente contin-
gencial, e, no entanto, depende de uma disposição particular e de uma
Na experiência da análise, o que faz diferença no final — a responsabilidade: uma capacidade de responder de/por/a aquilo que no
chance de fazer diferente — é quando ao dizer da demanda responde Outro consiste em sua fundamental heteridade, diferença, alteridade?
o dizer apofântico? da interpretação. A interpretação do analista no Lacan introduz o termo Dizer, como um termo lógico de
transcorrer de uma análise, no final das contas, não quer dizer nada, exceção, que sinaliza que, para além das funções da fala e da
nada revelador, espantoso, encantador. A interpretação do analista linguagem que determinam o fala-ser, tem que se levar em conta algo
apenas quer dizer, ela comporta um “Dizer que não” radical: dizer que não está incluído na série, mas a causa e a sustenta: é uma função
que não às demandas, aos enunciados da ficção, às elucubrações, ela ética e lógica, mas que só pode ser apreendida nos efeitos poéticos,
indica simplesmente o lugar de emergência dos ditos. Lacan apresenta quando alíngua passa da sua opacidade solipista.
essa precisão da articulação entre dizer e interpretação no seu escrito É em “L'Étourdit”* que ele precisa as consequências eminen-
PEtourdit (O aturdito), quando propõe essa nova instância singular temente clínicas das funções lógicas e éticas daquilo que permanece
e real — o Dizer — que transcende a lógica do significante e os esquecido, atrás do que se diz: “que se diga permance esquecido atrás
efeitos da fala e da linguagem, e, mais tarde, que ultrapassa as três do que se diz no que se ouve”,º
diz-mensões decorrentes da estrutura RSI do fala-ser. Sem querer rebater a originalidade e a pertinência clínica de
Encontrar um analista que “tem chance de responder” não é Lacan, podemos lembrar que essa instância do Dizer foi longamente
encontrar um analista que responde à demanda, mas um analista desenvolvida por Lévinas, desde os anos 1950.
que responde por um dizer ao dizer da demanda; ou seja, ao ponto

2. LACAN, Jacques (1972). O aturdito. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: 4. Ibid., p. 495.
Jorge Zahar, 2003, p. 474.
5. Ibid., p. 448-496.
3. Ibid,, p. 452.
6. Ibid,
DOMINIQUE FINSERMANN O PASSE 147

Não podemos deixar de lembrar as suas formulações muitas colocando como Dizer que faz laço, para que se sustentem as 3
vezes iluminadoras, embora remetam a um arcabouço conceitual diz-mensões do fala-ser decorrentes da fala, o Dizer-sinthoma que
diferente e, digamos, um tanto divergente. Ficamos surpresos com a possibilita uma desvalorização do gozo opaco, e uma validação do
coincidência de alguns enunciados que não explicam nem reduzem uso do Um-dizer como laço consigo mesmo, com o outro, com o
a precisão clínica do conceito em Lacan, mas que talvez ajudem um mundo.
pouco a entender a sua complexidade e especificidade paradoxal.
A responsabilidade fundamental do dizer para Lévinas, o seu Colette Soler marca nitidamente como uma análise pode permitir
impudor, diz ele, é a responsabilidade por responder à provocação que se passe do gozo opaco do sintoma-letra ao sinthoma-dizer
de alteridade que constitui o Outro, é exposição ao outro. Responder O Dizer da origem insondável do sujeito, assim como o dizer
é Dizer a partir de nenhuma essência prévia. Essa resposta é marca do final de análise da identificação ao sintoma, pode ser demonstrado
da origem ética e não ontológica. Ponto de ruptura, mas também de logicamente, é da ordem de uma posição ética, uma opção, e pode se
“enodamento”,” pois a separação “é a conversão em responsabilidade” mostrar quando faz eco na voz, na letra e na “conduta”.
da “positividade do infinito”.
“A alteridade do próximo daí invoca, evoca, à singularidade
insubstituível que está em mim”;58 princípio de “relação entre termos Como passa um dizer? Responsabilidade ou contingência?
desparelhados, sem tempo comum”?
A responsabilidade à qual uma análise dá acesso é o que Lacan
“O Dizer descobre o um que fala”,'º um “desnudamento até o um
chama de “responsabilidade da não relação sexual”; os passantes, os
inqualificável, até o puro alguém, único...” etc.
passadores e os cartéis devem poder ter essa medida, sensibilidade,
Sem retomar todo o percurso de Lacan a respeito da ex-sistência
ressonância ao impacto contingencial daquilo que não faz laço, porque
do Dizer , lembremos alguns pontos cruciais:
procede da evidência do “Há Um” (Ja d"!" Un) e da demonstração da
“Não relação sexual”. .
* o “dizer que não” à verdade e à demanda se deduz do que se excetua
Retomo a questão inicial avançada, que deixo sem resposta,
de todos os ditos;
embora ela interesse demais nosso dispositivo/disposição coletiva para
* o Um-dizer como positivação à não relação sexual denota logica-
o passe: se o Dizer é funamentalmente único, separado, hétero, como
mente o “Ya de PUn”";?
dar conta de seu vetor, da sua tensão, de endereçamento, enlaçamento,
*e, por fim, o Dizer-sinthoma que permite o enodamento borromeano
enodamento em direção ao Outro?
com 4; o sinthoma (o que temos de mais real) inesperadamente se
Lacan, no “Discours de Tokyo”, em 1971, contribui para essa
indagação à minha quesão sem resposta:

LÉVINAS, Emmanuel (1978). Autrement qu'être ou au-delá de Vessence. O que chamava há souco de impossível de dizer é, no fim das contas,
Paris: Le Livre de Poche-Biblio Essais, 1996, p. 27, aquilo que sempre tuscamos dizer. Trata-se de não se enganar, há uma
Ibid., p. 239. armadilha aí. E cre; que essa rocha se endereça a alguém.*
“ Ibid.,p. 14.
: Ibid., p. 83.
« Ibid.,p. 85.
- Ya dYUn [Há Um]: pode ser considerado como o dizer de Lacan, algo que 13. SOLER, Colette (2015). .acan, Lecteur de Joyce. Paris: PUF, 2015.
ele mesmo extraiu de seu ensino como fundando o seu último remaneja-
14, LACAN, Jacques (1971, Discours de Tokyo, inédito. No original: “(...) Ce
mento de seus conceitos, mais além do “rochedo da castração”. Suplência que jappelais tout à lheyre l'impossible à dire, c'est en fin de compte ce que
do “Não há relação sexual", “Há Um” indica o Um da identidade de nous cherchons toujoursã dire, Il s'agit de ne pas se tromper, il ya un piêge,
separação, o Um do dizer, o Um do sintoma. lã. C'est de croire que ceroc s'adresse à quelqu'un”.
DOMINIQUE FINSERMANN O PASSE 149

O dizer que vetoriza e fomenta as demandas não se endereça a Cada um faz de seu jeito, cada cartel tem sua dinâmica e seu
alguém, ele visa, antes de tudo, à alteridade radical, cujo desafio faz estilo. Agora, então, é a vez do cartel fazer funcionar sua estrutura
emergir, levantar, a voz de Um “alguém”. peculiar e devolver para a comunidade análitica o produto de seu
trabalho: uma nomeação, ou não, e, ao longo de dois anos, suas ela-
borações baseadas na experiência.
CONTINGÊNCIA E RESPONSABILIDADE Contingência e responsabilidade. A cena do dispositivo se parece
com uma mesa de bilhar, com a tensão, a esperança, o risco que o
impacto e a reverberação do impacto entre um e outro encontre o furo
O que se passa no passe não acontece dentro de uma lógica
certo para que a letra chegue a seu destino.
lincar e infinita do encadeamento do inconsciente-linguagem que
O furo certo, isto é “verdadeiro”, de acordo com a topologia, é
articula um significante ao outro S,-S,. pretendendo exaurir sua marca
aquele que pode ser atravessado, e é ele que resulta na satisfação final:
real intangível nas suas construções e ficções. A experiência que o
satisfação de um dizer que, no final de todas as voltas, atesta o ato e
dispositivo do passe proporciona, propõe um espaço topológico que
pode resultar na nomeação de um analista.
acolhe a neurose e suas transformações e reviramentos possíveis,
A cena, o espaço, estão dispostos para configurar um dispositivo
desdobrando uma cena complexa, multifocal e polifônica, de onde se
furado, que proporciona um jogo de chicana, cujo sucesso vai
deve extrair um Dizer único: nomeação.
depender da sequência lógica do que se deposita e pode ser recolhido
Tudo começa por um triz: uma decisão, de repente o passo se
aí, mas, sobretudo, da contingência e da responsabilidade de cada
torna evidente e irrepreensível; continua com uma demanda, a qual
um. Uma disposição ética peculiar é precisa: a responsabilidade
segue uma entrevista na qual a evidência do momento precisa ser
compartilhada do saber-fazer com a contingência. Lógica e ética
argumentada e escutada, o salto se dá a partir do sorteio dos passa-
estão, portanto, especialmente convocadas para que o poético singular,
dores. Já se passou um tempo, até mesmo contratempos, espera e
o saber fazer com alíngua, encontre nos furos do dispositivo o oco
adiamentos: o dispositivo está furado. Marcar hora com os passa-
necessário para que reverbere, ressoe, o eco do dizer.
dores, sempre surpresos e impactados, implica outras complicações,
Todavia, a experiência do passe em nossa Escola mostra que
alguns deslocamentos (é possível que se tenha que atravessar o
uma letra/carta nem sempre chega a seu destino. Não podemos,
Brasil ou a América do Sul), certos giros e bastante flexibilidade. Os
no entanto, simplesmente deduzir, do problema evidenciado pela
encontros com os passadores que vão recolher o mais precioso de
escassez de nomeações, que o passe ou a Escola sejam um fracasso.
um longo percurso de análise, de vida, são sempre imprevisíveis: a de A. Didier Weil quando, em 1977,
Lembremos a exclamação
experiência constitui uma provação da “responsabilidade”, ou seja,
no Seminário 24, disse: “pessoalmente, suporto mal a ideia de um
da habilidade para responder ao real e à contingência. Uma vez as
fracasso do passe, já que o passe me parece garantir o que se pode
entrevistas com os passadores terminadas, depois de três, quatro, preservar de essencial e de vivo para o futuro da análise”.
cinco, cada qual sabe da sua medida certa, é a vez de os passadores Podemos questionar, mais uma vez, o que faz a diferença entre
ficarem na berlinda. um passante nomeado A.E. e outro passante; a resposta é delicada,
Depois da surpresa e do entusiasmo dos encontros com o depende de três coisas e de seu enodamento topológico, que configura
passante, começa um embaraço certo e a sensação aguda da responsa-
bilidade desmedida que os acomete. Passa um tempo, pode haver
contratempos e deslizes até eles serem convocados pelo Cartel do
passe que vai ouvir o seu testemunho. O dispositivo é furado. Tempo,
deslocamentos, hora marcada com o cartel: haverá encontro? 15. LACAN, Jacques (1976-77). Le séminaire. Livre 24. L'insu que sait de Fune-
bévue s'aile a mourre, inédito.
150
DOMINIQUE FINGERMANN O PassE
151
dobras, furos, vizinhanças, reviramentos, produzindo essa cena furada
ressonância do efeito, afeto, impacto da letra, para que repercuta,
que proporciona a contingência e convoca a responsabilidade:
reverbere o Dizer intangível, não sem a pulsão “eco do Dizer no
corpo”.
I. A análise do passante e sua responsabilidade com relação à
O que importa em relação à letra é seu efeito, seu afeto, seu
transmissão da “impudência do Dizer” UM de sua análise, sua
impacto, suas sequências, e talvez seja por isso que Lacan, no
aberração;
Seminário 24, disse que, no passe, é no escuro que se pode chegar
- Os passadores e sua disposição para ouvir o inaudito, o qual
a ser distinguido o nó borromeano: é uma questão de impacto, tato,
depende de sua capacidade de desprender-se da angústia e de sua
apreensão que permite “se reconhecer entre s 'avoir (saber/ter)”.
resposta predileta, o fantasma;
A letra não pode ser transmitida tal qual, precisa fazer-se poema,
- O cartel, que não pode esquecer sua ignorância fundamental, para
“artificer”" para poder passar pelo furo do Outro.
acolher o passador e seu embaraço (excessos, faltas, esquecimentos
Lacan, no Seminário 24, refere-se ao “apelo que o fez responder
etc.) devido ao desconforto de sua posição.
com o passe”. Será que podemos dizer que há “um desejo de passe”?
Ou, melhor dizendo, que o que há é um dizer que, ao se decantar é
Ao entrar no dispositivo, cada um e todos (passantes, passadores,
se demonstrar em uma análise como impossível de ser dito, precipita
cartéis) são igualmente responsáveis pelo furo e as voltas em torno
a urgência da mostração dos efeitos poéticos que testemunham da
dele, dispostos (posição e disponibilidade) para dizer e ouvir que
procedência do inconsciente alíngua? O que há é uma precipitação
“o que se diz fica esquecido atrás do que se diz no que se ouve”,
lógica e uma urgência poética que ultrapassa as medidas do sujeito.
decididos e com disposição para “se reconhecer entre saber”,!º como
No entanto, a disposição para o dispositivo procede de uma
disse curiosamente Lacan no Seminário 24, disposição para que a
decisão, enquanto tal, ética. É uma decisão que possibilita topar com
carta chegue a seu destino. algo que está fora, algo que ultrapassa a análise e a transferência, e
O conteúdo da carta não tem importância, o que vale, é seu
não pode ser incluído. É algo como uma exceção em relação à análise
valor de letra. A letra que marca singularmente uma existência vale
e ao Outro, que impele ao desejo de dizer no testemunho: há um
como Um quando é localizada, nomeada, identificada enquanto
desejo que procede do impossível de dizer.
conjunto vazio [0], o conjunto que comporta Um elemento, o próprio
Decisão, demonstração, monstração ocupam o espaço topológico
conjunto vazio, ou seja, algo que não faz sentido, não quer dizer nada,
no qual a pulsão pode eventualmente se fazer eco do Dizer, ultra-
embora indexe a ex-sistência de Um. A lógica de Frege se mostrou
passando as medidas do previsto e do previsível pelo modelo
incontornável para orientar nossa prática da psicanálise.
fantasmático. Travessia.
O conteúdo da carta não importa, o que conta é seu valor
de letra, de “signo de gozo”, signo de separação. O que importa,
sobretudo, é seu alcance, seu efeito, seu impacto, que faz valer seu
valor de letra. O Dizer faz valer o valor de letra quando transporta q.
letra até seu destino .
O dispositivo do passe é um espaço topológico, com furos,
bordas, contornos, vizinhanças e funciona como uma caixa de

16. LACAN, Jacques (1976-77). Le séminaire. Livre 24. U'insu que sait de
"une If. LACAN, Jacques (1975-76). O seminário. Livro 23. O sinthoma. Rio de
bévue s'aile a mourre, inédito (Aula de 15/2/1 977).
Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
IV
A PSICANÁLISE E SEU ENSINO
O CARTEL FAZ ESCOLA

Para que a psicanálise, ao contrário, volte a ser o que nunca deixou


de ser: um ato ainda por vir.
LACAN, Jacques (1968). Introdução à Scilicet. In: Outros escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 293.

Jacques Lacan fundou, em 1964, a Escola Freudiana de Paris


após sua ruptura notável com a International Psychoanalitical
Association (IPA). O duplo objetivo dessa Escola foi declarado e
formulado desde seu “Ato de fundação”, e cada nova formulação da
proposta lacaniana até 1980 reitera e precisa essas duas premências: a
extensão da psicanálise e a formação do psicanalista. O texto anuncia
que esta Escola planeja providenciar e produzir o trabalho necessário à
sobrevivência da psicanálise, assim como zelar pela formação peculiar
do psicanalista. A proposta é clara: na Escola de Lacan não se distribui
o conforto de uma nomeação vitalícia; não há analistas supostos, nem
didatas alistados. A Escola é um lugar que cada analista faz ao expor
“as razões de sua clínica” e, assim, contribuir para o saber singular e
paradoxal que orienta a prática da psicanálise. A Escola não institui o
analista; pelo contrário, é ele quem, pela exposição de seu trabalho,
constitui a Escola suscetível de garantir a psicanálise. A Escola de
Lacan é um lugar de desassossego condizente com a virulência da
descoberta de Freud, não é de se espantar que as instituições oriundas
dessa proposta foram (são) tantas vezes o cenário de um tumulto
surpreendente, embora talvez proveitoso, para que a “crítica assídua”
garanta que o futuro da psicanálise não seja uma ilusão.
DOMINIQUE FINGERMANN A PSICANÁLISE E SEU ENSINO 157
Desde este primeiro texto fundador, explicitando os princípios
de partida. Tanto o princípio motor quanto o ponto de chegada. É
da constituição de uma comunidade analítica, Lacan propõe um
desconfortável e arriscado.
instrumento, um dispositivo adequado para que o grupo enverede para
O cartel começa com um incômodo, um não saber que
a tarefa proposta (extensão e formação): “Para a execução do trabalho,
atormenta, um sintoma, que pela graça da aposta, se transforma em
adotaremos o princípio de uma elaboração sustentada dentro de um
questão. O não sabido não é inefável, ele pode se formular, e fazer
pequeno grupo”. Este pequeno grupo, o cartel, constitui a matriz, O
questão. A questão formulada por cada um no grupo chamado cartel
“órgão de base” que permite a experiência e a multiplicação de uma
tem consequências: ela expõe e compromete quem a formulou e
nova modalidade de laço social entre analistas em torno da elaboração
assina o seu engajamento de uma produção, de uma elaboração de
do saber que sustenta a psicanálise.
saber digna da psicanálise perante a comunidade analítica. A questão
O dispositivo é simples. Lacan inventou-o em 1964, ao mesmo
formulada é “declarada”, endereçada a uma comunidade, “faz”,
tempo em que a Escola, seu conceito e seus dispositivos; o Cartel é
produz essa comunidade na base da aposta, do risco e da “transfe-
indissociável da proposta de uma Escola de psicanálise lacaniana.
rência de trabalho”. Não é a transferência de saber, a suposição de
O “Ato de fundação” dá a sua fórmula que, até hoje, funciona e faz
saber no Outro que, no caso, produz este novo laço. Em princípio, os
escola: quatro se escolhem em torno de um projeto de trabalho é
três, quatro ou cinco juntam-se em torno de suas ignorâncias feitas
designam um Mais-Um. O produto desse trabalho é próprio a cada
questões; escolher os parceiros desta partida é escolher quem põe
um, e deve ser declarado, exposto, posto à prova da Escola,
a falta de saber em causa de sua produção. No princípio do cartel é
Nem mimetismo, nem ritual nem trejeito lacaniano, o cartel
proposto um novo tipo de laço, um novo tipo de identificação engan-
se tornou o caminho indispensável para quem se responsabiliza por
chando um ao outro desde este ponto do grupo designado como a
sua formação permanente e se engaja na tarefa de transmissão da
causa do desejo.”
psicanálise que possibilita uma Escola de Psicanálise. Quem não tiver
A escolha do “Mais-Um” corrobora este princípio: não há o
esta disposição, então “que ele não se autorize como analista” — diz
Outro do saber. Esta suposição invalidaria a invenção esperada de
Lacan na sua “Nota italiana” em 1974 —., “pois nunca terá tempo
cada um. O Mais-Um é simplesmente “um a mais” que baliza o
de contribuir para o saber, sem o que não há chance de que a análise
princípio do cartel, ele é lembrete da estrutura: há sempre mais um,
continue a ter sucesso de mercado” 2
um significante a mais que marca e presentifica a falta do significante:
O dispositivo é simples, a experiência é, muitas vezes, menos
menos-um, S(A). Presentificação, incarnação da falta: o objeto a pode
evidente, pois ela necessita de uma certa disposição à intranquilidade
muito bem escrever este ponto do grupo incarnado pelo Mais-Um, e
e um cuidado especial com relação ao “real em jogo na formação do
ao qual cada um se identifica como a causa do funcionamento deste
analista”.
laço peculiar O Mais-Um também figura o conjunto vazio, enquanto
Nada fácil esse jogo; engajar-se em um cartel não é confortável
é elemento, mais-um, de qualquer conjunto. É assim que a função do
nem aconchegante, “fazer” cartel não é brincadeira, é “jogo duro”,
Mais-Um, antepara o recurso ao Discurso do Mestre e proporciona o
assim como todos os tempos da formação do psicanalista, porque
trabalho de invenção de cada um,
o não sabido, o Unhewiisst, o saber que falta, constitui o ponto

1. LACAN, Jacques (1964). Ato de fundação. In: Outros escritos. Rio 3. LACAN, Jacques (1973-74). Le séminaire. Livre 21. Les non dupes errent,
de inédito.
Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 235.
2. LACAN, Jacques (1974). Nota italiana. In: Outros escritos, op. cit., p. 314. 4. LACAN, Jacques (1974-75). Le séminaire, livre 22: R.S.|, inédito (Aula de
15/04/1975)
DOMINIQUE FINSERMANN

À invenção, “o produto” de cada um está na mira do cartel desde


o início, desde a questão inicial, mas a sua realização sinaliza o fim
da tarefa e da experiência: dissolução. Paradoxalmente, um cartel ENSINO E SABER
bem-sucedido é o cartel que alcança a sua dissolução: o produto
de cada um vai para fora, para a comunidade analítica, na qual vai
produzir outras questões, outros laços.
Depois do fim, há a permutação: outra questão, outro grupo,
outro trabalho... A formação do analista, a garantia da sua deformação,
da deformação do sujeito na sua relação com o saber e com o gozo,
é interminável.
Muitas vezes o funcionamento não condiz com o propósito, mas
cada um que esbarra com os efeitos de grupo, de cola, de inibição, de
domínio, cooptação pode ainda contar com o “mais-um”, ou mesmo
com os efeitos “mais-um” do dispositivo que não preservam do Real
que a formação do analista põe em jogo: assim, a declaração de cartel, É, no entanto, indispensável que o analista seja, no mínimo, dois: o
o engajamento em torno de uma questão a tratar e expor, O prazo, a
analista para ter efeitos e o analista que teoriza esses efeitos.
exigência de produção, fazem despertar, insistentemente, dos efeitos (LACAN, Jacques. Le séminaire. Livre 22. RSE inédito,
soporíficos que um grupo pode produzir. O Cartel faz Escola. Aula de 10/12/1974).
Por toda parte, por todos os tempos e continentes, Jornadas,
Café-Cartel etc. testemunham a vitalidade e o movimento incansável Tanto Freud quanto Lacan, embora com metodologias e estilos
dos lacanianos em torno dos cartéis! Função elementar da Escola bem diferentes, mostraram entusiasmo e rigor incansáveis para
à qual cada um pode fazer argumento — é um nó que se faz e se sustentar com suas elaborações a questão que Lacan, em 1957,
desfaz ao sabor das permutações e do qual os encontros locais e formula tão simplesmente: “O que a psicanálise nos ensina, como
internacionais, assim como as publicações assinadas por tanta gente ensiná-lo?”! Devemos às suas insistências e ousadias o que chamamos
diversa, trazem as repercussões. habitualmente de “a obra freudiana” e “o ensino lacaniano”. Cada um,
Muitas vezes, eles constituem um lugar onde o laço social que ao longo de seu percurso teimoso, contando com inúmeras parcerias e
faz a comunidade dos “esparsos disparatados” dá também muita driblando seus percalços e “acidentes” das épocas que atravessaram,
satisfação, como atestam o humor e o riso que nele circulam a maior perseguiu a indagação: “qual é... esse algo que a psicanálise nos
parte do tempo. Muitos poderiam testemunhar com prazer a graça do ensina ser-lhe próprio, ou omais próprio, o verdadeiramente próprio,
cartel, que, assim como os trabalhos produzidos, comprova a validade verdadeiramente o máximo, o mais verdadeiramente?”
do dispositivo inventado por Lacan, dispositivo que os analistas Alguns dizem: Freud explica, Lacan complica.
referidos a seu ensino se apropriam e reinventam, desde 1964, para Freud inaugurou não somente o campo de experiência inédito
reinventar a psicanálise. dessa Outra Cena, o inconsciente, até então desconhecido, mas

1. LACAN, Jacques (1957). A psicanálise e seu ensino. In: Escritos. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 4385-439,
2. Ibid., p. 441.
160 DOMINIQUE FINGERMANN A PSICANÁLISE E SEU ENSINO 161

também a prática do conceito que possibilita, até hoje, rastrear, prática da letra segundo os dois eixos que seguirão até o final de seu
organizar, balizar o campo da experiência, se for constantemente ensino, a formalização e a via da ressonância poética: o matemático e
reavaliado à medida da experiência da clínica. Impossível esque- o maternal, o matema e o poema.
cermos a formidável aula de epistemologia freudiana, à altura do rigor A persistência e a coragem, tanto de Freud quanto de Lacan, não
e do estilo da psicanálise, que abre o seu ensaio metapsicológico sobre lhes impediram de apreender a dificuldade, para não dizer a aporia,
o conceito de pulsão: que o ensino da psicanálise encontra forçosamente. Para Freud, a
Tais ideias, que depois se tornarão os conceitos básicos da ciência, transmissão da experiência combinava dois “impossíveis”: educar e
são ainda mais indispensáveis à medida que o material se torna psicanalisar. Por outro lado, em 1926, em “A questão da análise leiga”
mais elaborado. Elas são da natureza das convenções, embora tudo ele desdobra, com bastante humor e lucidez, o paradoxo da transmissão:
dependa de não serem arbitrariamente escolhidas, mas determinadas como alcançar com palavras alguém que não passou pela experiência?
por terem relações significativas com o material empírico, relações
Sei que não posso convencê-lo. Isto está além de qualquer possibi-
que parecemos sentir antes de podermos reconhecê-las e determiná-las
lidade e, por esse motivo, além de minha finalidade. Quando minis-
claramente. Só depois de uma investigação mais completa do campo
tramos aos nossos alunos instrução teórica em psicanálise, podemos
de observação, somos capazes de formular seus conceitos científicos
ver quão pouca impressão lhes estamos causando, para começar. Eles
básicos com exatidão progressivamente maior, modificando-os de
absorvem as teorias da análise tão friamente quanto outras abstrações
forma a se tornarem úteis e coerentes numa vasta área Qu)?
com as quais são alimentados. Poucos deles talvez desejam ficar
Em continuidade com o “conceito” freudiano e as construções - convencidos, mas não há qualquer vestígio de que estejam. Mas
que ele possibilita, propomos “a prática da letra”! que Lacan persegue também exigimos que todo aquele que quiser praticar a análise em
ao longo de seu ensino, de acordo com as diversas interpretações/ outras pessoas se submeta ele próprio a uma análise. E somente
leituras da letra que incidem sobre e inflexionam sua abordagem “do no curso dessa “autoanálise” (como é confusamente denomi-
texto psicanalítico” e o que se pode transmitir a partir daí. nada), quando eles realmente têm a experiência de que sua própria
pessoa é afetada — ou antes, sua própria mente — pelos processos
De fato, “A instância da letra no inconsciente e a razão desde
afirmados pela análise, que adquirem as convicções pelas quais são
Freud” explicita, a partir dos recursos da linguística, uma continui-
ulteriormente orientados como analistas. Como então poderia esperar
dade com relação aos conceitos freudianos, quando desdobra, como convencê-lo, a Pessoa Imparcial, da correção das nossas teorias,
metáfora e metonímia, a instância da letra freudiana que 4 interpre- quando só posso pôr diante do senhor um relato abreviado e, portanto,
tação dos sonhos explicava como condensação e deslocamento das ininteligível das mesmas, sem confirmá-las pelas próprias experiên-
representações inconscientes. É, no entanto, uma descontinuidade cias do senhor?”
em relação à sua releitura de Freud que o ensino lacaniano propõe
Lacan menciona igualmente esse impasse, embora seu ensino,
progressivamente ao introduzir, para sua leitura do inconsciente, uma
em um primeiro tempo, tentará forçar esse obstáculo — apostando nos
efeitos de formação como “indução mesma que meu ensino visa”* até

3. FREUD, Sigmund (1915). Os instintos e suas vicissitudes. In: Edição


standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 6. LACAN, Jacques (1971-72). Le séminaire. Le savoir du psychanalyste. Paris:
sid (versão eletrônica), v. XIV Seuil, 2001 (Aula de 4/5/1972).
4. LACAN, Jacques (1965). Homenagem a Marguerite Duras. In: Outros 7. FREUD, Sigmund (1926). A questão da análise leiga. In: Edição standard
escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 200. brasileira das obras psicológicas completas, op. cit., v. XX.
5. LACAN, Jacques (1957). A instância da letra no inconsciente e a razão 8. LACAN, Jacques (1964). Ato de fundação. In: Outros escritos. Rio de
desde Freud. In: Outros escritos, op. cit., p. 496-535. Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
162 DOMINIQUE FINGERMANN A PSICANÁLISE E SEU ENSINO 163

que conclui e constata o fracasso do que chamou de sua “missão”, e ENSINAR: UMA POSIÇÃO ÉTICA
finalmente extrair da letra outras vias de transmissão do saber in-
consciente —, concluindo, nos anos 1970, com um antagonismo entre
Inúmeras vezes, Lacan menciona o início da sua “missão” com
o ensino e o saber,
relação ao ensino da psicanálise que ele mesmo inaugura desde 1951.
Podemos ler nessa provocação do seminário sobre O ato
A situação da psicanálise na França no anos 1950 (no pós-guerra e
psicanalítico uma posição sensivelmente diferente da observação
depois da morte de Freud), a falta de orientação, de rigor, as derivas e
de Freud em “A questão da análise leiga”: com efeito, Lacan, depois
as leituras equivocadas da obra freudiana engajaram essa guerra contra
de ter escrito na lousa a frase “/"homme est un animal, à moins qu'il
o obscurantismo que ele travou incessantemente durante 30 anos.
ne se n'homme”? adverte, de uma certa forma, o público sobre esse
O que podemos extrair de seu percurso que sirva para nossa
antagonismo, dizendo que provavelmente eles não vão compreender orientação da prática da psicanálise? Antes de tudo, o fato de que o
nada; no entanto, o jogo que evidencia o equivoco da linguagem vai
ensino da psicanálise procede de uma “posição”, posicionamento e
produzir suas ressonâncias, pelo deslize das palavras, pelo devaneio:
responsabilidade — ética, portanto.
“le côté rêverie” que fisga mais além da compreensão e do pensar.
Recorto três pistas que até hoje participam da implicação e do
Essa pequena fórmula não tem a pretensão de ser um pensamento. Pode engajamento no ensino da psicanálise :
ser que, apesar de tudo, sirva de ponto de engate, de pivô para um certo - a responsabilidade em relação à psicanálise;
número de vocês que não compreenderão nada, por exemplo, do que - a responsabilidade em relação ao psicanalista,
direi hoje, não é impensável. Não compreenderão nada, o que, mesmo * e, consequentemente, uma necessidade do analista de se pôr à prova
assim, não lhes impedirá de sonhar com outra coisa (...). O lado de
na provação insistente da transmissão do intransmissível em que
devaneio daquilo que sempre se produz em todo tipo de enunciado com
consiste o desafio ético próprio à psicanálise na sua relação com o
pretensão “pensatória”, ou que se acredita como tal, deve ser sempre
levado em conta, e, por que não, dar-lhe seu pequeno ponto de engate?"
Real.

No intuito de esclarecer algumas mudanças da posição de Lacan


A responsabilidade em relação à psicanálise
em relação ao ensino da psicanálise, vamos agora desdobrar três
aspectos da questão:
No início, parece que o objetivo de Lacan (“mon dessein”) foi a
* À posição ética do ensinante;
urgência de uma retificação “no campo aberto por Freud, restaurar a
* À sensível diferença entre conceito, formalização e saber; sega cortante da sua verdade”!! para que o ensino da psicanálise tivesse
* O antagonimo entre ensino e saber.
efeito de formação para com os futuros operadores, e que sua extensão
espaço-temporal prolongasse a manutenção de sua via original.
(...) Fui chamado, pelas condições difíceis com que se deparou o
9. LACAN, Jacques (1967-68). Le séminaire. Livre 15. L'acte psychanalytique, desenvolvimento dessa prática na França. a assumir nela uma posição
inédito (Aula de 20/3/1968).
que é uma posição de ensino.”
10. Ibid. No original: “(...) Cette petite formule n'a pas la prétention d'être de
la pensée. Il se peut que ça serve quand même de point d'accrochage,
de pivot, à un certain nombre dentre vous qui ne comprendront rien,
par exemple, à ce que je dirai aujourd'hui, ce n'est pas impensable. Ils ne
comprendront rien, mais ça ne les empéchera pas de rêver à autre chose
(...). Le cóté rêverie de ce qui se produit toujours dans toute espêce d'énoncé
11. LACAN, Jacques (1964). Ato de fundação. In: Outros escritos, op. cit., p. 235.
à prétention pensatoire ou qu'on croit telle, il faut toujours en tenir compte et 12. LACAN, Jacques (1966). Pequeno discurso no O.R.T.F. In: Outros escritos,
pourquoi pas, lui donner son petit point d'accrochage”.
op. cit., p. 226.
DoOMINIQUE FINSERMANN A PSICANÁLISE E SEU ENSINO 165

Em seus Escritos e seminários dos anos 1950, a empreitada de Vejamos como ele expõe esse objetivo explícito de seu ensino:
leitura dos textos freudianos e o retorno a Freud estão constantemente (...) Foi preciso que a insuficiência do ensino psicanalítico eclodisse
entremeados com longos desdobramentos criticando os mal-enten- na luz para que nos empenhássemos na tarefa de exercê-lo (...). O
didos e contrassensos que circulam na literatura psicanalítica e nos que quer dizer isso, senão que nunca estivemos interessados senão na
congressos de então. Sessenta anos depois, podemos indagar se essas formação de sujeitos capazes de entrar numa certa experiência que
polêmicas interessam ainda para nossa formação analítica e se fazem aprendemos a centralizar onde ela existe? Onde ela existe — como
parte do corpus do ensino de Lacan, da mesma forma que a construção constituída pela verdadeira estrutura do sujeito, que, como tal, não
é inteira, mas dividida, deixando cair um resíduo irredutível, cuja
dos tão valiosos operadores conceituais da clínica. Todavia, essa
análise lógica está em andamento.
“crítica assídua” interessa mesmo e tem um efeito didático inegável,
na medida em que oferece o exemplo de um analista extremamente Sabemos que este vetor do seu ensino não passou desaperce-
atento e curioso das elaborações de seus contemporâneos, extraindo bido, foi interpretado como abuso (passar recados “selvagens” para
dos desvios expostos, indicações precisas para a manutenção do seus analisantes durante seus seminários!) e foi incluído no extenso
procedimento freudiano e do seu tratamento tão preciso das conse- processo que resultou na sua exclusão da posição de didata e, portanto,
quências do inconsciente e das suas “formações”. assinou a sua “excomunhão”.
Além disso, muitas dessas críticas e observações estão, infeliz- Sabemos igualmente que o impacto e a ressonância das palavras
mente, bem atuais, e gostaríamos de ter a mesma ousadia que Lacan entre fala-seres é singular, incalculável e contingente, é feito de trans-
para colocar nossas diferenças à altura de um debate conceitual. ferência e — muito além de seus efeitos simbólicos e imaginários —
de sua repercussão do real em jogo e do mistério do corpo falante que
A responsabilidade em relação ao psicanalista ela encaminha. Sabemos, por experiência, como a leitura do textos de
Freud e Lacan impactou e orientou nossa relação com a psicanálise.
Logo mais, no entanto, Lacan apreendeu que a questão dos
desvios e mal-entendidos não era somente uma questão de explicações Necessidade do analista se pôr à prova na provação insistente da
claras e precisas, mas, que o que estava em jogo era a formação transmissão do intransmissível, em que consiste o desafio ético
analítica do analista enquanto agente da operação. Nada surpreen- próprio à psicanálise na sua relação com o Real
dente, já que ele retoma novamente a insistência e a exigência freu-
dianas a respeito da análise pessoal. Muito cedo, Lacan precisa que a prática do ensino, “a práxis da
O seu ensino, então, comportou uma meta explícita de ter efeitos teoria”, tem um valor ético inegável: “a ética da psicanálise que é a
de formação, podendo induzir a uma mudança de posição em quem práxis de sua teoria”.
estava ouvindo com incidências para a prática da psicanálise, arti- Os trinta anos de seu ensino assíduo só confirmarão e precisarão
culando, desde então, a estrutura do sujeito com a lógica da cura, e essa orientação.
abrindo o capítulo da psicanálise pura e mais além da articulação da Se no início a “missão” parecia se endereçar aos outros psica-
intensão (o mais próprio da psicanálise) com a sua extensão, que o nalistas. o tempo, a experiência e a sensação de um fracasso em
dispositivo do passe almejava “resolver”, relação à missão fazem com que ele insista nos últimos anos em

14. LACAN, Jacques (1966). Apresentação das Memórias de um doente dos


nervo, In: Outros escritos, op. cit., p. 222.
13. LACAN, Jacques (1964). Ato de fundação. In: Outros escritos, op. cit. p. 235. 15. LACAN, Jacques (1964). Ato de fundação. In: Outros escritos, op. cit., p. 238,
166 “DOMINIQUE FINGERMANN A PSICANÁLISE E SEU ENSINO 167

precisar que o ensino tem efeito de formação para ele próprio. É por essencialmente em extrair desse testemunho imenso, de uma prática
isso que Lacan aponta insistentemente a posição de ensinante como exigente na sua elucidação e explicitação constante, os conceitos que
uma posição analisante: daí se distinguiram como fundamentais.
A estrutura da análise pode ser “formalizada de maneira inteira-
(...) O que realmente me cabe acentuar é que, ao se oferecer ao
ensino. o discurso psicanalítico leva o psicanalista à posição do
mente acessível à comunidade científica, por pouco que se recorra a
Freud, que propriamente a constituiu”.
psicanalisante, isto é, não produzir nada que se possa dominar,
malgrado a aparência, a não ser a título de sintoma.!* Com efeito. será na precisão e no rigor dos conceitos tão
cuidadosamente lapidados por Freud que se reencontrará a direção da
No Seminário 22: RSI, ele não hesita em aproximar sua posição cura e os princípios de seu poder para se contrapor à desorientação
de ensinante à supervisão: geral dos anos 1950: “Não há limite para o desgaste da técnica por
(...) Que eu testemunho de uma experiência que especifiquei como sua desconceituação”
sendo analítica e minha, é suposto como verídico. Lembramos que ao se separar da Associação Internacional de
Ver até onde essa experiência me conduz pelo seu enunciado, tem Psicanálise (IPA), ele prossegue no seu ensino no mesmo ano com um
valor de supervisão/controle (sei as palavras que utilizo).” seminário intitulado Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise,
fazendo um recorte pessoal do arcabouço conceitual freudiano (o
O analista, para funcionar enquanto tal, precisa ser pelo menos
inconsciente, a repetição, a pulsão e a transferência), que marca não
dois: um atento e firme na condução dos tratamentos, e o outro para
somente a ruptura com a IPA, como também, de certa forma, anuncia
teorizar essa condução e esse tratamento.
um caminho diferente daquele do suposto mero “retorno a Freud”.
A proposta do dispositivo do cartel leva em conta essa função
O seminário de 1964 conclui provisoriamente os anos de
didática da sua “práxis da teoria” para o próprio analista. A “Alocução
garimpagem e formalização que fizeram, até o final, Lacan declarar
sobre o ensino” precisa, mais uma vez, essa evidência do impacto do
“sou freudiano”, pois ele se dedicou a fazer dos termos com os quais
ensino sobre o ensinante que se dispõe a ser analisante da psicanálise:
Freud definiu a experiência conceitos e não preceitos.
“Só posso ser ensinado à medida de meu saber, e ensinante, já faz um
Com os pós-freudianos em primeiro lugar, e depois com o
tempão que todos sabem que isso é para eu me instruir”.!*
próprio Freud, a formalização lacaniana se esforçou para elucidar “a
flagrante incerteza da leitura dos grandes conceitos freudianos”, como
diz ele em 1957.
O QUE SE ENSINA?: CONCEITO, FORMALIZAÇÃO, MATEMA, SABER
Desde os primeiros escritos e seminários, e de acordo com seus
estudos de matemática e o rigor que ele almeja, Lacan nomeia esse
Conceito esforço e orientação como “formalização”. Recorrendo aos avanços da
linguística para este primeiro lance, ele não hesita em reconhecer em
O ponto de partida do ensino de Lacan foram os textos freu- Freud um mestre nessa tentativa, considerando que a Traumdeutung
dianos. Sua empreitada de leitura e de retorno a Freud consistiu antecipava-se em muito às “formalizações da linguística”.
22]

16. LACAN, Jacques (1970). Alocução sobre o ensino. In: Outros escritos, op.
cit., p. 310. 19. LACAN, Jacques (1957). A psicanálise e seu ensino. In: Escritos, op. cit.,
17. LACAN, Jacques (1974-75). Le séminaire. Live 22. RSI Paris, inédito p. 439.
(annexe |). 20. Ibid., p. 618.
21. LACAN, Jacques (1957). A instância da letra no inconsciente e a razão
18. LACAN, Jacques (1970). Alocução sobre o ensino. In: Outros escritos, op.
cit, p. 304. desde Freud. In: Outros escritos, op. cit, p. 516.
168 DOMINIQUE FINGERMANN À PSICANÁLISE E SEU ENSINO 169

Da formalização ao matema que os matemas com que se formula em impasses o matematizável,


ele mesmo a ser definido como o que de real se ensina de real, são
Preocupado inicialmente em “assegurar a nossa disciplina seu adequados para se coordenar com essa ausência tomada do real.”
lugar nas ciências”? Lacan localiza o problema como “problema
de formalização, na verdade muito mal introduzido”,? e não hesita O matema e o saber
em se apropriar do exemplo da matemática, com sua extensão lógica
e topológica como anuncia no texto “Função e campo da fala eda A invenção, elaboração do conceito de alíngua, em 1972 em O
linguagem em psicanálise”: saber do psicanalista, modifica a concepção do saber inconsciente,
Vê-se por esse exemplo como a formalização matemática que inspirou modifica a lógica da cura e também a transmissão da experiência:
a lógica de Boole, ou a teoria dos conjuntos, pode trazer à ciência da o saber-alingua não se transmite pela via do matema, mas, sim, do
ação humana a estrutura do tempo intersubjetivo da qual a conjectura saber-fazer com alíngua: o poema.
psicanalítica necessita para se garantir em seu rigor” Lembramos aqui a apresentação do conceito de alíngua no
Lacan nunca desistirá do esforço, sempre renovado, para fundar Seminário 20: Mais, ainda:
a prática da psicanálise no rigor da matemática: A linguagem, sem dúvida, é feita de alíngua. É uma elocubração de
Ela só dará fundamentos científicos à sua teoria e à sua técnica saber sobre alíngua. Mas o inconsciente é um saber, um saber-fazer
ao formalizar adequadamente as dimensões essenciais de sua com alingua. E o que se sabe fazer com alíngua ultrapassa de muito
experiência, que são, juntamente com a teoria histórica do símbolo, a o de que podemos dar conta a título de linguagem. Alíngua nos afeta
primeiro por tudo que ela comporta como efeitos que são afetos. Se
lógica intersubjetiva e a temporalidade do sujeito”
se pode dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem,
No entanto, em torno dos anos 1970, Lacan realiza um salto é no que os efeitos de alíngua, que já estão lá como saber, vão bem
notável em relação à sua referência à formalização: esta não é mais além de tudo o que o ser que fala é suscetível de enunciar.”
descritiva de um recurso, a referência do que se transmite na psicaná-
lise, no que diz respeito à estrutura da linguagem, é a lógica formal:
“A lógica matemática não é, como só nos pode ser imputado de má ENSINO E SABER
fé, uma oportunidade de rejuvenescer um sujeito cunhado por nós”.
O matema configura, então, o que se ensina, “o ensinável”: o
Há uma continuidade no longo percurso do ensino de Lacan
que pode se ensinar daquilo que interessa precisamente Lacan é sua
procedente de sua posição ética (não ceder na sua responsabilidade do
orientação ética da prática analítica pelo real. O matema é o único.
acesso para transmitir o que está fora do sentido, “ensinar” o impasse, dizer) e do rigor lógico que dela decorre. No entanto, podemos marcar
o impossível, o real, sem recurso a qualquer experiência: “E nisso. três tempos na sua concepção do que é um ensino da psicanálise que
“não a dissolve naquilo que ela propaga”, ou seja, que possibilita que
novas gerações “reencontrem a mensagem da experiência freudiana
e seu motor”,
. LACAN, Jacques (1953). Função e campo da fala e da linguagem em psica-
nálise. In: Escritos, op. cit., p. 285.
. Ibid.
. Ibid., p. 288,
. Ibid., p. 290. 27. LACAN, Jacques (1972). O aturdito. In: Outros escritos, op. cit. p. 480.
. LACAN, Jacques (1969). Resumo do seminário O ato psicanalítico. In. 28. LACAN, Jacques (1972-73). O seminário. Livro 20: Mais ainda. Rio de
Outros escritos, op. cit, p. 373. Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 190,
170 DOMINIQUE FINGERMANN À PSICANÁLISE E SEU ENSINO 171

* o retorno a Freud; fenomenal é a explicitação de um cuidado e uma relação ímpar com a


* o “nosso” ensino; clínica psicanalítica e as tentativas teimosas de abrir as vias possíveis
* o fracasso do ensino incompatível com o saber. de sua formalização.
O que Lacan nomeia “nosso ensino” consiste em um caminho
O retorno a Freud em espiral que se arrisca, ousa, lança mão de tantas referências
surpreendentes e volta iterativamente sobre as mesmas questões
O ponto de partida foi o “retorno a Freud” e a leitura cuidadosa estruturais e clínicas, com os mesmos termos, mas deslocando a cada
dos textos e dos conceitos que a obra freudiana legou. O formidável vez um pouco a perspectiva, abrindo assim o horizonte e as vias de
testemunho da descoberta do inconsciente e da invenção da psi- acesso ao real da clínica, “necessárias à inteligência do texto de nossa
canálise é lido, citado, rastreado, mapeado em torno de seus conceitos experiência”.
fundamentais no decorrer de uma apaixonante “prática do comentário” Desvios, atalhos, piruetas, aforismos, demonstrações, lapidações,
compartilhada pela geração que inaugurou, desde os anos 1950, o ingressos na literatura, filosofia, teologia, linguística, poesia, chinês,
estilo próprio da “psicanálise francesa”. amplificações, reduções, matemática, construções, formalizações, neo-
Embora os recortes, o mapeamento e a interpretação do legado logismos: “nosso ensino” deposita conceitos, trilha e sedimenta campos
freudiano marquem desde já o estilo próprio e a perspectiva de Lacan, e caminhos. Talvez, mais do que qualquer coisa, produz excepcional-
este faz questão de demonstrar que a psicanálise que ele pratica e mente a orientação e a intranquilidade juntamente imprescindíveis para
ensina é coerente com a letra freudiana e suas formalizações. suportar “o real em jogo na formação do analista”.*
O recado está dado: ser psicanalista, de acordo com a orientação
e os conceitos próprios da sua invenção subversiva, só pode valer se O fracasso do ensino: incompatível com o saber
for atravessado pelo estilo de cada um que adentra esta aventura:
Qualquer retorno a Freud que dê ensejo a um ensino digno desse Sabemos que por volta dos anos 1970, Lacan passa a colocar o seu
nome só se produzirá pela via mediante a qual a verdade mais oculta ensino de cabeça para baixo. Ele faz isso com os conceitos, as referên-
manifesta-se nas revoluções da cultura. Essa via é a única formação cias, reformulando a sua concepção do inconsciente com as devidas
que podemos pretender transmitir âqueles que nos seguem, Ela se consequências para a direção da cura e a concepção do final de análise
chama: um estilo.” e, portanto, do passe e da formação do psicanalista. Na esteira dessa
reviravolta, é também a sua concepção de ensino que está na berlinda.
O “nosso” ensino Desde 1967, sua “Proposição sobre o psicanalista de Escola”
e seu seminário contemporâneo sobre O ato do psicanalista, Lacan
Rapidamente topamos nos Escritos e seminários com uma refe- confessava o “fracasso” de seu ensino, embora tanto a “Proposição...”
rência constante ao que aparece insistentemente designado como “meu quanto a formalização do que vem a serum “ato” subvertessem o
ensino”, “nosso ensino”, impasse próprio à via do significante, em “passe”.
Mais além da leitura e do comentário do texto freudiano, fica Em 1970, por ocasião do encerramento de um Congresso sobre
patente que o que está em jogo na construção desse arcabouço teórico o ensino, Lacan pronuncia a sua “Alocução sobre o ensino”.

30. LACAN, Jacques (1967). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o


29. LACAN, Jacques (1957). A psicanálise e seu ensino. In: Outros escritos, op. psicanalista da Escola. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
cit., p. 460. 20083, p. 249.
DomiINIQUE FINGERMANN

Esse texto eleva a questão para um nível além de simples


lamento ou ressentimento, como salto condizente com suas reformu-
lações conceituais.
Lacan se mostra severo e radical: “há um antagonismo entre
ensino e saber”! e ele adverte mesmo que “nosso discurso não se
sustentaria se o saber exigisse a intermediação do ensino”?
O saber do inconsciente real, inconsciente sem sujeito, O
saber d'alíngua que não se encadeia e não faz sentido, esse saber é
antagônico, incompatível com o que passa no ensino, esse saber passa
em ato, na “monstração” e não na demonstração.
Quando lemos, na mesma época, que é na via do matema que
consiste o que é propriamente “ensinável”, que a transmissão que
v
possibilita é uma transmissão integral podemos ficar perplexos com
essa incoerência aparente.
De fato, há duas vias de “acesso” ao real próprio à estrutura,
intangível, impossível, de alcançar: demonstrar o real na medida em A SUPERVISÃO
que é o limite intangível das vias significantes, e isto é o que “ensina”
a via do matema, e possibilitar, em ato, uma caixa de ressonância para
o real que ex-siste.
“A verdade pode não convencer, o saber passa em ato”? já dizia
Lacan. “O que me salva do ensino é o ato”,” precisa ele no final desta
alocução.
A prática do ensino de Freud e Lacan foi suficientemente subver-
siva para transmitir os eixos teóricos que asseguram a persistência da
psicanálise no mundo de hoje e, sobretudo, a responsabilidade própria
do analista por estar à altura do real, a responsabilidade de invenção
para tangenciar suas bordas e a-bordar seus efeitos e outros afetos:
“Mas tal direção só se manterá através de um ensino verdadeiro, isto
é. que não pare de se submeter ao que se chama novação”.*

. LACAN, Jacques (1970). Alocução sobre o ensino. In: Outros escritos, op.
cit., p. 308.
“ Ibid.
“ Ibid.
« Ibid., p. 309.
. LACAN, Jacques (1955). A coisa freudiana. In: Escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1998, p. 437.
EXIGÊNCIAS DE SUPERVISÃO:!
NECESSIDADE E CONTRADIÇÃO

Que eu testemunho de uma experiência que especifiquei como


sendo analítica e minha, é suposto como verídico. Ver até onde essa
experiência me conduz pelo seu enunciado, tem valor de supervisão
controle (sei as palavras que utilizo).
LACAN, Jacques (1974-1975). Le séminaire. Livre 22. RSI,
Paris, inédito (annexe 1).

A questão da Formação do Analista consta como causa dos


maiores desconfortos e desassossegos na história da psicanálise
passada e presente, Seu futuro, no entanto, depende dessa intran-
quilidade, para que a partir dela se produzam dispositivos que não a
reduzam a uma mera técnica desfalcada de sua orientação ética.
A questão da Formação do Analista interessa não somente à
extensão da psicanálise e ao controle que os próprios psicanalistas
devem exercer para que a sua extensão esteja coerente com a sua
ética, mas a cada analista, em qualquer momento do ato específico
que o qualifica, quando interroga o que autoriza seu risco, seu
engajamento, sua opção em qualquer momento de acolhimento,
silêncio, interpretação: conjunturas do seu ato específico.
Desde Freud e o início da IPA, a resposta à questão da formação
do psicanalista é tripla: análise pessoal, estudo da teoria, supervisão.
A consequência do ensino de Lacan conduz a uma resposta única: a
Escola. Fazer Escola se apresenta como uma convocação para cada

1. LACAN, Jacques (1967). Discurso na E.F.P. In: Outros escritos. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 274.
176 DOMINIQUE FINGERMANN A SUPERVISÃO 177

analista, que articula “a sensação de um risco absoluto” do ato e a ur- silêncio de respeito e uma pontuação quase lacônica na forma de um
gência de pôr o seu ato à prova no laço com “alguns outros”. “É isso aí!”.
Quando respondemos à questão da formação com a Escola de Sinto-me convocada hoje a prosseguir nessa reflexão, além do
psicanálise, explicitamos com Lacan: “passe e cartel”, como se esses já expressado, e tratar desse hiato entre a necessidade da supervisão e
dois dispositivos, que articulam a intensão com a extensão, fossem sua contradição intrínseca com a solidão e o impensado/impensável do
suficientes para pôr à prova a nossa relação singular e solitária com ato psicanalítico. As duas expressões utilizadas por Lacan no seu “Ato
a psicanálise. de fundação da E.F.P.”, em 1964, apontam para esse hiato: “o analista
A aposta no “passe” compromete de uma maneira muito dife- se autoriza de si mesmo”? e “a supervisão se impõe”,* contradição que
rente de que simplesmente dizer “análise pessoal”, pois supõe que repercute quando conectamos o Ato e a Escola, a práxis e a teoria.
haja uma demonstração/“mostração” possível da operação da análise
das suas consequências e sequências.
Da mesma forma, quando bancamos o cartel, não estamos FREUD
simplesmente dizendo que estamos estudando a teoria da psicanálise,
mas colocamos como princípio que devemos também fazer a teoria, e
A primeira vez que Freud usou o termo foi em 1919, no seu
que a “práxis da teoria” é mesmo nossa opção ética.
artigo: “Sobre o ensino da psicanálise nas universidades”:
Apostar e engajar-se em uma escola de psicanálise não é
procurar uma autorização como analista, mas se arriscar como anali- (...) o psicanalista pode prescindir completamente da universidade
sante da sua “própria experiência”. E isso: Fazer Escola. sem qualquer prejuízo para si mesmo. Porque o que ele necessita,
Mas, então, e a supervisão? Os lacanianos estariam desvalori- em matéria de teoria, pode ser obtido na literatura especializada
e. avançando ainda mais, nos encontros científicos das sociedades
zando o alcance formador da prática da supervisão?
psicanalíticas, bem como no contato pessoal com os membros mais
O capítulo “A formação do analista: A psicanálise pura”
experimentados dessas sociedades. No que diz respeito à experiência
concluiu-se com a questão da supervisão e a indagação que nos
prática, além do que adquire com a sua própria análise pessoal, pode
orienta: o que seria uma supervisão coerente com o Discurso consegui-la ao levar a cabo os tratamentos, uma vez que consiga
Analítico? Essa questão sempre desencadeia um certo desconforto, supervisão e orientação de psicanalistas reconhecidos.”
já que a supervisão, de acordo com a orientação do ensino de Lacan,
“se impõe”? como uma exigência ética para nós, e não é imposta por Ele retomará mais ou menos esses mesmos termos no seu texto
uma exigência curricular em conformidade a um modelo e, portanto, princeps sobre a especificidade da formação do analista, em 1927, “A
nos responsabiliza ainda mais para responder por seus paradoxos, questão da análise leiga”.“6
que podem facilmente se transformar em equívocos, e até mesmo
em impostura. O tipo das demandas de supervisão que recebemos
geralmente parece solicitar uma resposta que configurava algo
LACAN, Jacques (1967). Proposição de 9 de outubro sobre o psicanalista da
completamente contra o que constitui o ato psicanalítico, e a resposta
Escola. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 248.
que parece mais coerente com o Discurso Analítico seria um sério LACAN, Jacques (1964). Ato de fundação. In: Outros escritos, op. cit. p. 241.
FREUD Sigmund (1918-1919). Sobre o ensino da psicanálise nas universi-
dades. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas compleias. Rio
de Janeiro: Imago, s/d (versão eletrônica), v. XVII.
FREUD, Sigmund (1926). A questão da análise leiga. In: Edição standard
2, LACAN, Jacques (1969). Resumo do seminário O ato psicanalítico. In: brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, s/d
Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 379. (versão eletrônica), v. XX.
DominIQUE FINGERMANN À SUPERVISÃO 179

Sabemos, no entanto, que a supervisão se impôs como pro- No entanto, a questão de forma vai substituir essa questão de
cedimento (como disposição) antes mesmo de se transformar em fundo. O debate ético vai logo se empobrecer em prol de discussões
dispositivo, pois era uma prática comum que os analistas iniciantes inesgotáveis sobre a técnica, e constatam-se as consequências dessa
praticassem longas conversas ou mesmo correspondência epistolar redução no regulamento e na institucionalização da supervisão nos
com o próprio Freud, antes mesmo de ele ter inventado o nome standards da IPA (incluindo a grande polêmica de 1925 sobre a prática
“supervisão” (Cf. a relação de trabalho do pai do pequeno Hans com da psicanálise pelos não médicos) e as suas variantes: quatro anos,
Freud). dois supervisores diferentes, quatro casos, “escolha” do supervisor na
Max Eitington utiliza o termo em 1920 no seu relatório do lista dos didatas, comunicação das performances da supervisão para
Instituto de Berlim fundado logo em seguida, e que iniciou a as comissões encarregadas de avaliar os candidatos... etc.
formalização institucional da formação analítica a partir do tripé
análise pessoal, estudo da teoria e supervisão.
Os debates sobre a articulação entre análise pessoal e supervisão LACAN
(quando acaba uma e começa a outra) começarão logo como
questionamento ético do princípio de supervisão. Vilma Kovaes,
aluna de Ferenczi em Budapeste, sustenta no seu artigo “Análise Lacan, que tinha participado desses debates desde sua entrada na
didática, análise sob supervisão” que o objetivo de uma supervisão psicanálise (e participou da redação do regulamento sobre formação
é o controle da contratransferência, ou seja, a posição do analista, e do analista em 1949), rapidamente se diferenciou pela sua prática,
a partir daí, argumenta que o próprio analista pode funcionar como cuja formalização podemos acompanhar desde “Função e campo da
supervisor, prolongando na supervisão os efeitos da análise, focando fala e da linguagem...”.
o que restaria de neurose e que atrapalharia a posição do analista. Sabemos também que a excomunhão de Lacan, em 1964,
Helene Deutsch, que se beneficiou de uma “supervisão de configurou-se imediatamente com a sua exclusão da lista dos didatas,
grupo” com os casos que ela expunha nas reuniões das quartas- ou seja, da sua prática de supervisor.
-feiras com Freud e companhia, sustentou no seu texto “Análise sob Ao longo de seus seminários e Escritos, Lacan deu diversas
supervisão” que o valor da supervisão era a condução de uma análise indicações a respeito da sua prática da supervisão, que variaram
sob o olhar orientador do supervisor. À posição e a responsabilidade um pouco de acordo com a sua formalização progressiva — porém
do supervisor em relação ao caso supervisionado é bem diferente, e o decidida — do Ato Psicanalítico e do Discurso subsequente. Os
testemunhos de seus analisantes e alunos também oferecem indicações
debate é bem crucial.
“Para Vilma Kovacs, parece que a supervisão deve incidir sobre precisas e preciosas.
o analista em formação, sobre sua posição de analista, enquanto que Poderíamos fazer um thesaurius dessas poucas referências de
Lacan, incluindo os diversos testemunhos de seus alunos e uma
para Helene Deutsch, incide sobretudo sobre a análise conduzida”,
precisa Danielle Silvestre.” biblioteca dos principais textos escritos sobre o assunto na história
da psicanálise.
No entanto, a responsabilidade é nossa, mais uma vez, para
deduzir do ensino de Lacan, que orienta a nossa prática da psicanálise,
KOVACS, Vilma. Analyse didactique, analyse sous contrôle. Ornicar?, Paris,
os princípios que emparelham a nossa prática da supervisão com o
n. 42, p. 94-102, 1987-1988
DEUTSCH, Helene. Analyse sous contrôle. Ornicar?, Paris, n. 42, p. 86-93, Discurso Analítico.
1987-1988.
SILVESTRE, Danielle. Le contrôle institutionnel. Ornicar?, Paris, n. 42. p. 103-
-108, 1987-1988.
180 Dominique FINSERMANH A SUPERVISÃO 181

“O ANALISTA SE AUTORIZA DE SI MESMO” fantasmática para opor o objeto a, objeto da falta de resposta como
semblante/agente do ato que faz laço, que faz discurso.
“O analista se autoriza de si mesmo” — declaração de Lacan Não é estratégia calculável antecipadamente nem retificada
a posteriori, não há avaliação, validação a posteriori; Lacan fala a
quando enuncia os Princípios da sua Escola, e que anuncia a sua
conceitualização do “ato” — poderia ser contraditório com a prática respeito do ato da “aporia de seu relato”:!! uma supervisão pode fazer
da supervisão? apreender o incalculável do ato?
Se o psicanalista se qualifica apenas a partir de seu ato, a super- O aprês-coup da supervisão não remedia a solidão ou o
visão não seria uma maneira equivocada de buscar no Outro uma impensável do ato, mas pode avaliar a pertinência (ou impertinência)
autorização? do ato nas suas sequências para o analisante do supervisionando:
Se eu sou analista, então não faço supervisão, e se faço super- os efeitos na economia do gozo e na construção de seu caso que o
visão, então não sou analista! distanciam da sua neurose.
Seria o caso, sim, para os débeis e os canalhas, como disse A supervisão convoca o analista a “dar as razões da sua clínica”,
Lacan, avisando que essas duas consequências podem ocorrer como dar prova da sua posição e de suas conseguências que só podem
distorções no “fim” de uma análise. qualificar um ato propriamente sem qualidade.
Isso seria confundir a solidão radical do ato analítico com
solipsismo.
SUPERVISÃO E GARANTIA

O ATO E A APORIA DE SEU RELATO Há uma exigência de controle, inerente à especificidade do ato

"=
analítico: somente a posteriori podemos falar da ocorrência do ato e
A solidão do ato analítico, o fato de que o analista não tem avaliar a sua pertinência e sua eficiência; pór essência, o ato é de “um

ELLZITrrRTASASTIKIERE
garantia, não tem Outro do Outro, se autoriza de si mesmo, torna a sozinho”, e seria perigoso para quem está engajado aí com o parceiro-
supervisão necessária, ela se “impõe”. -analista que este creia ser o Único.


O que chamamos de a solidão do ato analítico, que Lacan Colocar o ato à prova é sair da solidão, do inefável, do im-
pateticamente nomeia “o horror do ato psicanalítico”?'º É quando o pensável, do inqualificável. Em geral a supervisão é o primeiro lugar
analista: onde se pratica a “práxis da teoria”, exercício contínuo do analista,
* se posiciona “contra” a transferência; que põe à prova seu saber e não seus conhecimentos. Essa provação
* quando rompe o laço histérico com o sujeito suposto saber; será retomada ao longo da sua formação permanente: nos cartéis, nos
* quando faz silêncio no lugar da suposição de saber, e encarna o “eu congressos, na comunidade de seus pares/impares, “esparsos dispa-
não penso”, impensado, impensável; ratados”, nos textos que ele apresentará e que o apresentarão, fazendo
quando se faz de a-sujeito, onde o analisante se sujeita e procura valer sua voz e sua presença na empreitada da práxis da teoria.
subjetivação; Lacan diversas vezes mencionou o quanto o seu próprio semi-

==
quando atua e atualiza uma posição que subverte a estratégia da nário tinha esse valor de “controle”/supervisão: “ver até onde essa
transferência (do analisante) e esvazia o objeto da correspondência

Gi
E
10. LACAN, Jacques (1967). Discurso na E.F.P. op. cit., p. 280. 11. Ibid., p. 268.

==
182 DOMINIQUE FINGERMANN A SUPERVISÃO 183

experiência me conduz pelo enunciado, tem valor de controle”,!º supervisão é uma exigência que provém da não predicabilidade do ato
anuncia ele em RSI, retomando assim o que já tinha avançado no de analista; o que qualifica o analista é a práxis da teoria de sua práxis.
Seminário sobre a Angústia: “esse seminário ele mesmo poderia Não há “regra fundamental” da supervisão que constituiria a sua
se conceber na linha, na prolongação, daquilo que ocorre em um unidade, o que provocou na história todas as polêmicas e tentativas
controle/uma supervisão”." possíveis de estandardização. As demandas, portanto, são as mais
Na supervisão, o para sempre “jovem” analista, transforma variáveis: falar da clínica em geral, de um caso, de uma série, uma
o inefável da experiência em algo que atinge um outro (como um supervisão intermitente, de urgência, semanal, quinzenal, mensal, falar
passador) — lugar de alteridade e, por isso, de parceria — o que de entrada em análise, de interrupções, de término, de momento de
inaugura o possível de uma “comunidade analítica”. passe: questões que põem precisamente em causa o ato do analista;
Quando explica o caso do seu analisante, expõe a direção do falar dos embaraços da transferência, da dificuldade do diagnóstico
tratamento, a sua “resposta de analista” à estratégia transferencial, necessário ao posicionamento do analista. Pouco importa a forma, se
interroga a estrutura, a entrada na análise (que é entrada do analista), a questão de fundo não fica escamoteada: por exemplo, uma super-
a construção do fantasma, a renúncia às identificações, os achados do visão sequencial é aparentemente mais adequada para que se deposite
estilo: é a sua capacidade de sustentar a sua “própria” posição de o testemunho do ato do que uma supervisão ocasional, que pode
analista que o supervisionando põe à prova. e, somente por essa via,
parecer uma boia de salvação para apagar um fogo de angústia ou de
garante.
sensação de impostura; uma supervisão demais ritualizada, contudo,
A experiência não é inefável.
pode também servir de amparo entorpecedor.
Nesse risco e aposta se constitui a Garantia da psicanálise.
Algumas demandas parecem ser formuladas ao avesso do
Não há nada de espantoso, portanto, quando na Escola de
discurso psicanalítico em denegação do ato: demanda de ser poupado
Psicanálise a supervisão se configura como um lugar privilegiado
da solidão e protegido do impensável do ato; demanda de ser
onde o analista faz suas provas, e que, tanto para a entrada como
protegido de uma contratransferência que funcionaria ao avesso do
Membro na Escola quanto para as nomeações de Analista Membro
desejo de analista; demanda de cuidar do caso, como se o supervisor
de Escola (A.M.E.), a supervisão seja um lugar de discernimento, de
pudesse formular o diagnóstico, antecipar a direção da cura ete.
qualificação, de colocação à prova do desejo de analista,
Porém, o que interessa ao supervisor, na sua função, além do caso
e seus caos, é o caso do desejo de analista do supervisionando —
localizar na demanda de supervisão, qualquer que ela seja, o desejo
AS DEMANDAS DE SUPERVISÃO
de analista e o que faz obstáculo a ele.
Responder a esse tipo de demandas seria da ordem da impostura:
A demanda de supervisão, em princípio, não decorre de uma o supervisor também está à prova no dispositivo da supervisão, e sua
demanda institucional nem da demanda neurótica de um sujeito que complacência na resposta às demandas de tamponamento da angústia
pede o reconhecimento do Outro para ser autorizado. A demanda de tem consequências no futuro da prática do analista, na comunidade
analítica e na sua ética, que é a práxis da sua teoria.
A relação da supervisão com a análise e a eventualidade do
analista funcionar como supervisor foram historicamente determi-
12. LACAN, Jacques (1974-75). Le séminaire. Livre 22. RSI, Paris, inédito nantes: a questão continua na pauta. O supervisor pode ser o analista
(annexe |).
13. LACAN, Jacques (1952-683). O seminário. Livro 10. A angústia. Rio de
— por que não? —, mas isso depende do caso e do momento da trans-
Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 26. ferência e de sua cura. O supervisor pode ser escolhido e/ou usado
185
184 DOMINIQUE FINGERMANN A SUPERVISÃO

como acting out do supervisionando para se contrapor ao analista: vias dos discursos universitários, histéricos, do mestre — o que seria
quando um se cala o outro explica! uma distorção de seu propósito.
As demandas são diversas: tudo vai depender da resposta de Isso não quer dizer que a supervisão funcione apenas a partir
supervisor! do Discurso do Psicanalista (o supervisor não é o analista); podemos
esperar, no entanto, que seu posicionamento permita o giro do
Discurso quando este vacila e se equivoca — ao confinar o laço na
RESPOSTAS DE SUPERVISOR: O SUPERVISOR EM CAUSA sugestão, na sedução, na provocação histérica a uma produção de
saber, no poder do saber ou na certeza do gozo sobre o caso mesmo
O supervisionando está na berlinda quando se engaja e se atreve que as demandas pareçam produzir esse tipo de respostas.
numa supervisão, mas o supervisor também está em causa na sua O valor de supervisão é produzido quando o Discurso do analista
resposta às demandas diversas. O que remete à questão de como a pode operar aí, quando ele consegue calar o mestre, o professor e a
supervisão põe o Discurso do Analista em função. histérica e “se fazer causa da junção-disjunção entre a elaboração
“É necessário responder, com certeza; responder como mestre ou de saber e a manutenção necessária à disciplina da ignorância”,'º
professor da construção do caso ou da estratégia da cura, porém, não necessária à consideração pelo saber inconsciente (V'insuccês de [une
é satisfazer, é adormecer (fazer dormir), e talvez fazer o supervisio- bévue) que escapa a toda e qualquer elaboração.
nando esquecer, sobretudo quando ele está no início, o que se espera Se a dica maior de Lacan, nos anos 1950, parecia se dirigir
que ele tenha aprendido de sua análise”, adverte Soler.” aos supervisionandos — sobretudo, não compreendam! —, Lacan
Então, quem está colocado à prova na supervisão é, antes de surpreende mais uma vez, nos anos 1970, quando parece se dirigir
tudo, o supervisor: dele depende que a resposta à angústia, à sedução, mais aos supervisores, declarando nas conferências americanas e no
à convocação ao saber do mestre e do universitário, à provocação Seminário O sinthoma, que o leme da supervisão é deixar fazer —
fálica não acabe com a psicanálise, não desqualifique o ato e termine deixar rolar, diriamos:
com entorpecimento do analista. Eu, muitas vezes, nas minhas supervisões — pelo menos no início
Sidi Askofaré nos deu um exemplo da distorção universitária — encorajo o analista — ou pelo menos aquele que se acredita
da prática de supervisão: “de onde nossos institutos de formação tal — eu o encorajo a seguir o seu movimento.!”
de analista tiram a sua lógica: a lógica do Discurso Universitário.
Tem duas etapas. Tem aquela onde são como rinocerontes. Eles
No caso, o analista supervisor — como agente do discurso — faz aí
fazem mais ou menos qualquer coisa, e os aprovo sempre. Com
“semblante” de saber (S,): agido pela instituição — O instituto —(S)
efeito eles têm sempre razão. A segunda etapa consiste em jogar
em posição de verdade, ele “forma” o candidato analista, (a)studante,
com esse equívoco que poderia libertar o sinthoma”.'*
talvez competente, mas, sobretudo, vestido e reconhecido como
qualificado porque está conforme e, até mesmo, formatado”.É
Uma prática da supervisão coerente com o Discurso do Psi-
canalista, e a formação que o condiciona, não poderia se perder nas
Colette. “Quel contrôle?” Ornicar?, Paris, n. 42, p. 108413,
16. SOLER,
1987-1988.
17. LACAN, Jacques (1975). Conférence Columbia University Auditorium School
of International Affairs (12/1/1975), inédito.
de
14. SOLER Colette. Quel contrôle. Omicar?, Paris, n. 42, p. 108-113, 1987-1988. 18. LACAN, Jacques (1975-76). O seminário. Livro 23. O sinthoma. Rio
15. ASKOFAFÉ, Sidi. Quelle doctrine du contrôle. Mensuel, Paris, n. 44, p. 11-23, Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 18.
2009.
DOMINIQUE FINGERMANN

Jean-Jacques Gorog!” comenta essas duas indicações de Lacan,


resumindo-as como um “je ne te le fais pas faire” (Eu não te faço
fazer isso): “É você quem faz!”, que ele aproxima da interpretação
paradigmática enunciada por Lacan em /'Étourdit — “je ne te le fais
pas dire” (“É você quem diz!”).
A resposta de supervisor que permite a colocação em função do
Discurso de Analista é a resposta mais discreta possível, pois seria o
cúmulo proporcionar na supervisão uma companhia que cancelaria a
dimensão de ato própria à psicanálise.
Colette Soler indica e precisa que “não se procura retificar o
estilo do ato próprio a cada um “não fazer obstáculo ao ato que se
autoriza de si mesmo”, “não o lograr com um suposto saber do manejo
Vl
a 4é,

da cura que seria apenas denegação em ato do inconsciente”.


Um supervisor “suficientemente bom” contribuirá para a ma-
nutenção dessa aposta: a aposta do ato do psicanalista. E
A ESCOLHA DA ESCOLA [
Il
SUPERVISÃO E PASSE
IN
O
O
O dispositivo do passe saiu, de uma certa forma, da problemática
O
da supervisão, tal como Lacan a concebe; no passe, assim como na
supervisão, a aposta e a posta em jogo de um risco absoluto, junto com
O
a dimensão do terceiro, própria ao chiste, condiciona sua experiência. 1
Engajar-se em uma supervisão é (re)fazer o passe; ou seja, frente u
a um outro neutro e benevolente testemunhar de sua passagem ao ato já
do analista. I
Engajar-se em um trabalho de supervisão coerente com 0 O
discurso analítico, consiste, antes de qualquer coisa, em manter viva IO
a sensação de um risco absoluto. E
O
no
Io
E

o
E
19. GOROG, Jean-Jacques. La dritte Person. Mensuel 44, Paris, p. 24-34, 2009
20. SOLER, Colette. “Le contrôle, quel discours?”. Mensuel 46, Paris: EPFOL- ;
France, p. 38, 2009. R

-
DA “IDEIA INCOMPATÍVEL” À
ESCOLHA DA ESCOLA*

Trata-se de uma Escola, mas não de uma Escola qualquer.


Se você não for responsável, cada um diante de si mesmo, ela não tem
nenhuma razão de ser. E sua responsabilidade
essencial é de fazer avançar a análise e não constituir
uma casa de repouso para veteranos.
LACAN, Jacques (1967). Une procédure pour la passe,
inédito (10/9/1967).
IE
Há uma coerência lógica entre a estrutura do ser falante, a clínica |
analítica e a Escola de psicanálise. Esta dedução constitui o princípio )
que funda em razão a “Proposição sobre o Psicanalista da Escola”, o
apresentada por Lacan em 1967.
Lo
Desde o começo da experiência da psicanálise, o impasse do
sujeito entre pulsão e defesa, o inconciliável, o incompatível que
in
excede e escapa ao sentido, funcionou como algo que podia causar
|
a psicanálise. Desde o começo também, sabemos que quando este q
inconciliável não é mais suportado pela experiência, ele pode consti- 4
tuir a razão de seu fracasso. Ke
Já em 1894, Freud demonstra como a neurose é, para O ser O
humano, um dos tratamentos possíveis da “ideia incompatível”.! A é

* Texto originalmente publicado em Passes et impasses dans lexpérience


psychanalytique (Atas dos Encontros Internacionais de julho de 2000). Paris:
EPFCL, 2000.
FREUD, Sigmund (1893-1995). A psicoterapia da histeria. In: Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago,
sid (versão eletrônica), v. Il.
190 DoMINIQUE FINGERMANN A ESCOLHA DA ESCOLA 191

“escolha da neurose”? ou seja, o uso particular do fantasma — é uma O passe é uma resposta que faz questão até hoje, ele tem, desde
tentativa para conciliar o inconciliável do significante e do gozo, e ela sempre, e para sempre, quer se queira ou não, um efeito virulento
transforma o trauma em conciliação usando a plasticidade da pulsão de questionamento do ato. O passe não salva o analista do horror de
para dobrá-la e fixá-la a uma modalidade de gozo de contrabando, seu ato, mas remete a ele, queira ou não, em virtude do passe que faz
compatível com um suposto gozo do Outro. Esta solução de compro- furo, “ausência de comunidade” em nossa comunidade, o analista não
misso, estruturalmente capenga, revela-se, na maioria dos casos, um deveria poder se refugiar no esquecimento e no desconhecimento.
mau tratamento; o sujeito expõe, então, eventualmente o seu impasse Como Lacan em 1967, dizemos que sem a escola, a psicanálise
a um psicanalista. pode se reduzir à neurose de transferência e limitar-se à confirmação
O dispositivo analítico e o ato que o sustenta parecem feitos sob dos impasses neuróticos em que a obsessão se encontra mais
medida para acolher o impasse do sujeito, e reduzir o insuportável do petrificada do que nunca, a histeria ainda mais evanescente e a
sem saída da sua escolha neurótica, ao incurável de um trauma que perversão mais canalha.
causa a singularidade de sua marca no mundo (sinthoma — estilo). “A escola falta para o ato”. Embora isto possa parecer paradoxal
A psicanálise é uma aposta de subversão do impasse da estrutura, já que o ato (analítico), justamente, não se sustenta de nenhum Outro
operando “um profundo remanejamento de toda a relação do sujeito (a menos que seja de um Outro barrado), o Ato para poder se sustentar
ao Outro” Por isto, é necessário que o analista em ato, pela sua deve poder se expor sem se aviltar. Se o Ato é uma boa dis-posição
presença, faça objeção à demanda de transferência que inclui o que depende do analista que sustenta o seu indemonstrável, é-lhe
analista no impasse neurótico. Em ato, isto é, como explicita Lacan no necessária uma Escola como dispositivo, para dar conta desta não
seminário O ato psicanalítico: atualizando, presentificando demonstrabilidade, explicar-se e, a partir daí, fazer deste ato, o agente
(...) este intervalo, esta fenda, esta banda de Meebius (...) este resíduo,
de um discurso novo para a civilização.
esta distância, esta coisa à qual se reduz inteiramente, para nós, o É relevante lembrar aqui a insistência de Georges Bataille para
Outro, a saber, o objeto a. Este papel do objeto «, que é de falta e de constituir “uma comunidade que assume e inscreve, de uma certa
distância, e não, de modo algum, de mediação, é nisto que se põe, forma, a impossibilidade de comunidade”º “Acéphale” — lembra
impõe, esta verdade que é a descoberta tangível — pudessem aqueles Blanchot — “foi a experiência comum daquilo que não podia ser
que a teriam tocado não esquecê-la — que não há diálogo, a relação colocado em comum, nem guardado para si próprio, nem reservado
do sujeito com o Outro é de ordem essencialmente dissimétrica, e que para um abandono ulterior”.º Era para Bataille uma exigência poé-
o dialogo é um equivoco." tica e ética no sentido que ela sustentava o ato que ele chamava
Como não esquecer a descoberta desta verdade tangível que “a experiência interior”. Para salvaguardar a possibilidade “da ex-
se impõe em ato no dispositivo que pretende desatar o impasse da periência interior”, é necessária sua posta em jogo, sua colocação à
estrutura? É a esta questão que Lacan responde quando propõe a prova da alteridade; senão, diz Bataille: “o ser que se ensaia aí (...) se
escola do passe. afoga num particular que não tem sentido.senão para ele...””

2. FREUD, Sigmund (1913). A disposição à neurose obsessiva — uma contri-


buição ao problema de escolha da neurose. In: Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas, op. cit. v. XII. 5. BATAILLE, Georges. L'expérience intérieure. Paris: Gallimard, 1954, p. 55.
3. LACAN, Jacques (1957-68). Le séminaire. Livre 15. L'acte psychanalytique, 6. BLANCHOT, Maurice. La communauté inavouable. Paris: Les Éditions de
inédito (Anexo | da Conferência de 19/6/1968). Minuit, 1983, p. 31.
4. Ibid. 7. BATAILLE, Georges. L'expérience intérieure, op. cit., p.55.
DoMINIQUE FINGERMANN

Esta lembrança é relevante para sublinhar a que ponto esta


exigência de escola não tem nada de um ideal; pelo contrário. ela vai
no sentido oposto do ideal, querendo preservar o “inconfessável” da OS AN ALISTAS MEMBROS DA ESCOLA:
comunidade de experiência. á
Uma escola de psicanálise não se pode esperar como conforto PASSADORES DA EXPERIÊNCIA
ou socorro, mas, pelo contrário, como o lugar do desassossego e da

e
intranquilidade que desestabiliza o desconhecimento, que poupa o

e
analista de seu ato.

>>

É essa a graça que lhes auguro, é de falar dela (da coisa) que se trata
agora, e a palavra cabe âqueles que pôem a coisa em prática.
(LACAN, Jacques (1955). A coisa freudiana. In: Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 421).

FAZER ESCOLA não começa quando uma Escola de Psicanálise


é instituída. “Fazer escola” começa bem antes da sua fundação e
continua muito além de seu início. Em todo caso assim esperamos
que seja. “O ato de fundação”! tanto quanto a “Carta de dissolução”?
são emergências desse “fazer escola” da Escola de Lacan, mas só
se validam no decorrer da experiência, caso se verifiquem como
efeitos dessa causa. Foi assim, entre dissolução e ato, que orientamos
a política dos Fóruns do Campo Lacaniano quando iniciamos; esse
princípio foi um ato que fez data, e que fez escola. A criação da
EPFCL (Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano) foi
apenas um tempo formal para o início dos dispositivos que apostavam
garantir que se faça Escola para além da sua “instituição”.
A EPFCL e seus dispositivos só puderam começar quando
foi estabelecida uma primeira lista de A.M.E., um primeiro lance:
pagamos para ver. Foram nomeados Analistas Membros de Escola:
alguns que tinham dado, nos movimentos dos Fóruns, uma garantia

1. LACAN, Jacques (1964). Ato de fundação. In: Outros escritos. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 2003. '
2. LACAN, Jacques (1980). Carta de dissolução, inédito.
194 DoMiNIQUE FINSERMANN A ESCOLHA DA ESCOLA 195

de formação suficiente: “garantia de formação suficiente é o AME. — manejar esta enrolação via abjeção e objeção. Como isso pode ser
Analista Membro da Escola” falado, transmitido? Como isso pode ser audível e suportável pelo
Um A.M.E. não é um analista instituído, legitimado, autorizado, grupo?
garantido, confirmado pela Instituição Escola. Esse analista não se Fazer valer o discurso analítico em um grupo de analistas remete
apresenta na voz passiva, mas na voz ativa: 0 A.M.E. é “gente que faz” a esta experiência necessária para os analistas (“tão só...”) de fazer
Escola, é ele quem constitui a Escola, que a legítima, pois uma Escola laço a partir de e em torno daquilo que não se articula, mas que se
de Psicanálise que não tivesse “analistas à altura” (do ato analítico) transfere.
expondo, necessáriae suficientemente, as razões de sua clínica para Os A.M.Es, portanto, podem ser escolhidos como sendo
constituir “uma comunidade de experiência”, seria Escola só no nome. aqueles que, no grupo dos analistas, constituem a “comunidade de
experiência”, por se dedicarem a tentar explicar, transmitir o incomum
de uma experiência.
Por isso, dando início à Escola em 2001, após três anos de
CONSTITUIR UMA COMUNIDADE DE EXPERIÊNCIA
funcionamento dos Fóruns, pensamos que uma comunidade analítica
pôde escolher alguns, não tão poucos, dentre os analistas que, nesta
O analista, fundamentalmente, está só (“tão só quanto sempre empreitada de formação de comunidade, “deram as suas provas”. Dez
estive em minha relação à causa analítica”), ele tem “autonomia nas anos depois, em 2011 no Il Encontro da Escola,” a mesa-redonda “A
suas iniciativas”, não tem Outro que o suporte: ele se autoriza de si Escola à prova do passe” avaliou essa aposta primeira e permanente
mesmo. O princípio desta solidão é a premissa do ato, é o que vai lhe do A.M.E. da EPFCL, da sua responsabilidade como causa e efeito da
dar autoridade para suportar o abjeto, o que na análise presentifica-se Escola.
como sendo a extrema solidão de um sujeito, o seu mais próprio
desarvoramento. Suportar a transferência desta abjeção só é possível
a partir dessa premissa: a solidão que o “autorizar-se de si mesmo”
DAR AS SUAS PROVAS
comporta e suporta. Suportar a transferência produz, faz com que o
sujeito em questão se depare com a opacidade solitária que o faz tão
incomum e depreenda-se da crença na sua subjetividade e no Outro. A garantia de formação “suficiente” que a Escola pode even-
tualmente outorgar é secundária; primeiro, trata-se de “dar as suas
A experiência de uma análise, portanto, não é uma coisa comum;
provas”. Ao engajar-se em uma Escola, o analista se compromete, se
daí soar esquisito o uso da palavra “comunidade de experiência”
para falar de um grupo de psicanalistas. Com efeito, esse grupo se convoca, se arrisca a dar provas de que sua prática autônoma preserva
a manutenção da via da psicanálise, sustenta o Discurso Analítico, isto
sustenta por fazer valer e fazer circular o mais incomum, por tornar
é, O tratamento específico do real que ela possibilita.
transmissível o mais i-mundo: o âmago onde o sujeito se abriga, se
Como o psicanalista demonstra, explica, ensina “o que a psi-
enrosca, se enrola e tenta enrolar o analista que, enquanto tal, vai
canálise lhe ensina”, como é que ele garante a sua própria formação?
Existem diversas maneiras de expor o saber que o analista extrai

LACAN, Jacques (1967). Proposição de 9 de outubro sobre o psicanalista da


Escola (Primeira versão). In: Outros escritos, op. cit. p. 571.
4. LACAN, Jacques (1967). Proposição de 9 de outubro sobre o psicanalista da 5. Encontro internacional da EPFCL, realizado em Paris de 9 a 11 de dezembro
Escola. In: Outros escritos, op. cit., p. 267. de 2011 sob o título de “A análise, fins e consequências”.
197
196 DOMINIQUE FINGERMANN A ESCOLHA DA ESCOLA

aprês-coup de seu ato, diversas maneiras para dar as razões da RESPONSABILIDADES DE ESCOLA
sua clínica: nos cartéis, nas apresentações clínicas, no ensino, nos
escritos, nas supervisões, nos congressos etc., o analista expõe, No nível da intensão o AM.E. na Escola tem, especificamente,
diante de alguns outros, a emergência eventual do ato que opera na a responsabilidade de designar os passadores. Isto é uma consequência
análise, o tratamento do real em jogo na experiência. Se o analista do reconhecimento da sua competência, e sua nomeação seria coerente
for “passador da experiência”, o seu testemunho será forçosamente com o fato de que ele esteja qualificado e apto para escolher, dentre
ouvido por “alguns outros” que saberão, eles mesmos, transmitir o seus analisantes, quem está à beira da passagem ao ato, na borda do
valor desse testemunho à Comissão Local de Garantia (CLEAG), ato. A experiência do passe na EPFCL vai depender, essencialmente,
dando-lhe condição de traduzir e passar para frente os argumentos dos seus passadores: portanto, esperamos dos A.M.E. que saibam
para o Colegiado Internacional da Garantia (CIG). que de sua clínica e de suas escolhas dependerá que a intensão da
(...) O psicanalista, mesmo considerado como entravado por um psicanálise sustente a extensão.
desejo desigual à prova do psicanalisante, seria distinguido pelos No nível da extensão: a nomeação do A.M.E. o engaja a res-
juízes instruídos sobre o estilo de sua prática e o horizonte que ele ponder em nome não somente de seu ato, mas também em nome da
sabe reconhecer ali, por ali demonstrar seus limites: é o que eu chamo psicanálise perante a sociedade civil,
de A.M.E:
(...) De qualquer forma, será preciso, justamente, que vocês daí
Esperamos sempre que o CIG, apesar das (ou graças às) suas passem pela atribuição, a alguns, de funções diretivas, para obter
múltiplas permutações, chacoalhe suficientemente o grupo para se uma distribuição prudente de sua responsabilidade coletiva. E um
manter à altura do desafio: não se perder em uma medição de pessoas uso que pode ser discutido na política; ele é inevitável em todo
grupo que faz valer sua especialidade aos olhos do corpo social. A
e conseguir avaliar a “competência e a performance” dos que fazem esse olhar responde o A.M.E.”
formação na Escola sem se colocar como professores nem como
alunos, mas como analisantes de escola. Um Analista Membro de Isto não constitui um adendo cômodo em tempos de regulamen-
Escola é fundamentalmente um analisante de escola, A sua nomeação tações governamentais da prática da psicanálise; a eficácia específica
como A.M.E. reconhece a sua distinção, a sua maneira distinta de da psicanálise não é inefável, o seu alcance, o seu lugar na ciência
produzir a comunidade de experiência, mas, simultaneamente, precisa ser argumentado, sustentado, defendido, se for o caso, para
compromete-o com outras responsabilidades que a avaliação de sua garantir a psicanálise e sua extensão, se acharmos mesmo que o trata-
nomeação vai ter que incluir como critérios. mento do real que ela opera é radicalmente indispensável à sobre-
vivência do humano dentro da civilização.

8 De acordo com a lógica aristotélica, a intensão (ou compreensão) designa


6. A CLEAG (Comissão Local Epistêmica de Acolhimento e Garantia), o conjunto dos predicados que pertencem a um conceito (predicados
composta por cinco membros eleitos localmente na EPFCL-Brasil, é respon- do sujeito). Já a extensão se refere ao conjunto dos objetos aos quais se
sável pela designação de eventuais A.M.E., mas é o Colegiado Internacional aplicam esses caracteres (objetos da classe). Lacan usa essa referência em
da Garantia (CIG) quem decidirá de sua nomeação como Analista Membro particular na “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da
de Escola. Escola” In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
7. LACAN, Jacques (1967). Réponse aux avis manifestés sur la Proposition 9. LACAN, Jacques (1969). “Adresse du jury d'accueil à lassemblée avant son
(Version Transcription), inédito. vote”, inédito (25/1/1969).
DomiMiQuUE FINGERMANN À ESCOLHA DA ESCOLA 199

Esperamos que os A.M.E. da EPFCL sejam numerosos e ardilosos entre os dois termos. Uso aqui o termo “paradoxo” no sentido do
para garantir a persistência da psicanálise: o tratamento do real, o laço, que surpreende, choca o bom senso e contrapõe-se à opinião comum.
ou seja, o discurso tão peculiar que salvaguarda do pior o singular de Paradoxalmente o analista, sozinho, suporta o seu ato, mas este só vai
cada um. garantir a psicanálise se puder dar prova disso.
(...) Quais são seus critérios?, que me perguntem, no que diz Lacan, ao longo de seu ensino, e mais precisamente nos textos
respeito ao júri de acolhimento, para nomear alguém A.M.E. Vou institucionais, fez questão de expor este paradoxo. Desde o “Ato de
dizer-lhes: é o que chamamos de bom-senso, isto é, a coisa mais fundação”, ele anuncia a problemática específica do analista e de sua
difundida no mundo. O bom-senso é isso: “Aquele ali, pode-se formação: “Fundo — tão só quanto sempre estive na minha relação à
confiar nele”, nada além disso. Não há absolutamente nenhum causa analítica — a Escola francesa de psicanálise...”.!º É a premissa
outro critério”.!º inicial que afirma o enlace paradoxal entre a solidão fundamental
do analista e a necessidade de fundar uma Escola em torno e a partir
desse princípio de solidão.
O ATO E A PROVA Sua “Proposição sobre o psicanalista da Escola” até hoje sur-
preende e choca a muitos, contradizendo o senso comum, pois ela é,
Autorizar-se de si mesmo de fato, um paradoxo proposto como princípio e causa da fundação da
x Garantia: O enlace paradoxal da
formação dos analistas Escola, ou seja, da formação do analista.
Todos os outros textos institucionais! marcarão estes dois
As pessoas que pretendem sustentar a posição de analista fora tempos do analista: o solitário e o solidário. Solitário da iniciativa, do
de uma Escola geralmente justificam sua decisão dizendo que há ato, e solidário da psicanálise e dos fundamentos éticos de sua práxis.
contradição — incoerência — no ensino de Lacan entre “autorizar-se Não há contradição entre a intensão do “autorizar-se de si mesmo” e
de si mesmo” e a garantia que pode decorrer de uma Escola de a extensão que efetiva a garantia, há uma articulação topológica do
Psicanálise. No entanto, cada vez mais os defensores da bandeira tipo “banda de Meebius”. Só na aparência o “autorizar-se” é o avesso
“eu me autorizo de mim mesmo...”, aqueles que se “autorrituali- da garantia, pois trata-se de dois tempos na abordagem de uma mesma
zam”, como ironiza Lacan na “Nota italiana”, encontram-se na questão: a questão do psicanalista. O “psicanalista” faz questão, na
Universidade, buscando outro tipo de garantia de formação para medida em que sua intensão não é predicável. O tempo do ato e
suportar sua autorização. o tempo da prova balizam e pontuam essa questão do psicanalista
Quem participou da fundação da EPFCL sustenta que não impredicável. São dois tempos diferentes da borda, do contorno, do
há oposição entre a “garantia” de formação de uma Escola e à cingir “o real em jogo na formação analítica”.
autorização do analista. Aliás, é também isto que Lacan precisa ao “O real em jogo na formação analítica...” é oriundo do fato de
afirmar que é necessário zelar pelo fato de que “só haja analista a que não há uma definição universalizável do conceito de psicanalista
se autorizar de si mesmo”.”? Digamos que há um enlace paradoxal

13. LACAN, Jacques (1964). Ato de fundação. In: Outros escritos, op. cit, p. 235.
- LACAN, Jacques (1975). Journées des cartels de I'École freudienne de 14. Por exemplo, a primeira versão da “Proposição do 9 de outubro de 1967...
Paris. Maison de la chimie. Leftre de "École freudienne, Paris, n. 18, p. 263» inicia-se assim: “Il s'agit de fonder (...) les garanties dont notre École pourra
-270, 1976. autoriser de sa formation un psychanalyste — et dês lors en répondre. (...)
- LACAN, Jacques (1974). Nota italiana. In: Outros escritos, op. cit, p. 312. L'autonomie de Finitiative du psychanalyste y est posée en un principe qui ne
“Ibid, saurait souffrir chez nous de retour.” (In: Autres écrits, op. cit. p. 575).
200 DoMiNIQUE FINGERMANN À ESCOLHA DA ESCOLA 201

(que seja válida para todos aqueles que compõem esta classe), já que designação da diferença absoluta. “Nomear”, diz Lacan no seminário
“um” psicanalista é um produto inédito de uma experiência de análise. À identificação, “é antes de tudo algo que tem a ver com uma leitura
A intensão do conceito de analista não é predicável, pois o analista do traço unário designando a diferença absoluta”.
não é nada mais, nada menos que o produto singular de uma operação A Escola é, portanto, a resposta ao real em jogo na formação
significante, um resto, uma de-formação definitivamente, radicalmente analítica; que ela acolha a partir da articulação moebiana do princípio
não universalizável. da “autonomia e de iniciativa”!* e da garantia indispensável, que essa
Há uma articulação moebiana entre o “autorizar-se de si mesmo” autonomia não pode dispensar.
e a garantia, pois o tempo | implica e conduz ao segundo, que, por A proposição de 1967 explicita esses dois tempos a partir dos
sua vez, volta para o primeiro. O primeiro tempo é o tempo do ato, da dois polos do A.E. e do A.M.E., implícitos desde 1964 na exposição
passagem ao ato, da de-cisão, da produção do desejo do analista, dos princípios da Escola de Lacan. Há dois tempos na formação de
O tempo do ato não pode saber-se, mas pode “se fazer saber”, um analista: o tempo do ato e o tempo da prova, e um não funciona
demonstrar-se a partir dos efeitos que “fazem prova” de “formação sem o outro, mesmo que estes dois títulos pareçam isolar e distinguir o
suficiente”, que provam haver aí um analista (o “autorizando-se de si tempo em que se evidencia o ato (o passe) e o tempo em que se “faz”
mesmo” ressoa aqui como uma redundância). a prova dos efeitos do ato (o A.M.E.).
O tempo 2 continua no tempo 1. pois a prova se configura Se o dispositivo analítico é o tratamento possível do incurável,
como garantia de formação suficiente se, e somente se, caracteriza a a Escola é o tratamento possível do improvável do analista. Portanto,
possibilidade, a eventualidade de emergência do ato. Se não perder a escolher a Escola é escolher esta articulação entre a intensão (não
sua ligação permanente com o ato “de "analyste”, ela condicionará predicável) e a extensão (não predeterminada), entre o ato e a prova,
o seu retorno entre o autorizar-se e a garantia; é uma garantia de desassossego é não
Dito mais claramente, o “autorizar- se” não se sustenta sem a de conforto. Escolher a Escola é escolher “'Epreuve”, diz Lacan, uma
prova e a provação que a pertinência à Escola determina. Esta é, na experiência de provação, um lugar para a prova.
nossa opinião, a condição de garantia da psicanálise. Não há garantia A instituição da EPFCL, em dezembro de 2001, já foi um passo
sem provas a posteriori (aprês-coup) do ato e não há prova sem o para a manutenção das condições do ato analítico, pois contém a
ato prévio; por outro lado, o ato, por ser fugaz e fora da linguagem, afirmação de que a extensão da psicanálise não é garantida pela
necessita de provas (a escrita, o traço que evoca o rastro) e, assim, associação, agrupamento, agregação de psicanalistas. A instituição
garante a formação, a transmissão, a extensão “do psicanalista”. A da Escola desassossegou e transtornou o grupo dos Fóruns, pois
Escola é o que fazemos para abrigar este enlace paradoxal. constituiu um engajamento na experiência de provação que a Escola
promove, suporta, garante como condição de formação. Este lançar
Uma Escola: uma experiência de provação mão da Escola inaugurou o momento em que se trata de “Fazer
Escola” a partir da instituição de seus dispositivos. Fazer Escola,
A garantia de formação que uma escola de psicanálise propõe implica ter condições de fazer funcionar os dispositivos de Escola,
não é aval nem avaliação, é distinção. Cabe à Escola suportar os cartéis do passe e comissão de habilitação, para que, a partir deles,
dispositivos adequados para tornar o psicanalista distinto dentro do
grupo, ou seja, que aquilo que “se autoriza de si mesmo” se distinga
a partir de sua emergência (no passe) ou de seus efeitos, e permita
qualificar um analista e então nomeá-lo Analista de Escola (A.E.) ou 15. LACAN, Jacques (1961-62). Le séminaire. Livre 9. L'identification, inédito
(Aula de 10/2/1962).
Analista Membro de Escola (A.M.E.). Não podemos esquecer que, na 16. LACAN, Jacques (1967). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psica-
perspectiva do ensino de Lacan, a nomeação remete à distinção e À nalista da Escola (Primeira versão). In: Outros escritos, op. cit., p. 570.
202 DOMINIQUE FINGERMANN A ESCOLHA DA ESCOLA 203

se demonstre e assegure que nesta Escola instituída hajam analistas, É relevante também poder mostrar que podemos usar essa
que eles se autorizem desde si mesmos. É óbvio que a col ocação dos definição da garantia de maneira positiva e não negativa, ou seja, a
dispositivos em função não visa à posse de funcionários, mas a pôr garantia em uma Escola permite designar a proposição “há algo de
em função matemática o conjunto vazio, designando a intensão “do analista” como verdadeira e não como falsa; os dispositivos decidem
analista”. Portanto, os dispositivos vão funcionar na medida em que a verdade eventual da proposição e não a sua falsidade. Isto é muito
houver analistas “fazendo o analista” (no duplo sentido que Lacan nítido nos relatórios de cartéis de passe dos quais dispomos, e tem
evoca no Seminário 16) e “fazendo escola”, expondo as razões da que nos orientar na designação dos A.M.E, O fato de um analista não
sua clínica e transformando a Escola instituída em comunidade de ser nomeado A.M,E. não quer dizer que ele é desconsiderado como
experiência, isto é, em comunidade de Escola. analista, mas talvez que as provas que ele dá do efeito de seu ato não
permitem que a Comissão de Garantia Internacional se pronuncie. Isto
Distinção não quer dizer que não haja analista, mas apenas que não há provas
suficientes, indícios legíveis para distinguir, discernir e nomear, isto
Recorrer à etimologia permite abrir a questão de outra forma. é, afirmar a proposição “há algo de analista no ponto fulano de tal”.
“Autorizar-se”, por exemplo, tem evidentemente como raiz a Penso que este foi um dos motivos pelos quais Lacan insistiu sobre
palavra “auctor/autor”, que se refere “aquele que está na origem de o fato de que o título de A.M.E. não podia ser solicitado pelo próprio
alguma coisa” e, entre outros, “pessoa que é causa de (...) um ato”. analista: algo de analista precisa ser nítido e distinguível.
Autor é aquele que funda e estabelece, é instigador e também garante.
Autorizar remete precisamente à garantia: “dar autoridade a alguma O que é “algo de analista?”
coisa (...) certificar (...) provar”. O equívoco é fácil, e não é raro em
nossos meios em que “autorizar-se” reduz-se, muitas vezes, a habilitar Mas como isolar algo que não seja um predicado, mas possa
a si mesmo. vir a ser uma característica reconhecível, distinguível? Proponho
Garante, garantir: há uma dupla origem no francês e no alemão interpretar a frase: “O psicanalista só se autoriza de si mesmo” a partir
antigos, que remete à mesma raiz do alemão: Wahr, verdadeiro. desta outra: “o analista está só, tão só quanto sempre esteve na sua
As primeiras acepções dessa palavra em francês evocam “designar relação com a causa analítica”.
alguma coisa como verdadeira”, ou ainda “afirmar alguma coisa Em que a solidão do ato se manifesta, como algo de especifica-
respondendo por sua autenticidade”, “Dar a segurança da qualidade de mente operador da operação analítica, que possa ter efeitos distintos e
alguma coisa” é um sentido posterior, derivado deste primeiro, assim distinguíveis? “O analista está só” remete evidentemente à operação
como todos os usos da palavra no sentido de proteção e de defesa. da sua própria análise, que o conduziu a este ponto de solidão irre-
Este desvio pela etimologia é relevante porque possibilita insistir mediável de destituição subjetiva. Nesse ponto, o traço unário que
sobre uma perspectiva diferente da questão da garantia, quando se determina seus passos se revela apenas como “o rastro de um não”
trata do psicanalista, tal como ela aparece nos nossos estatutos é (la trace d'un pas)“ em que a inconsistência desvelada do Outro
dispositivos de Escola. Não se trata nem de habilitar-se nem de ser
garantido, assegurado, protegido, mas de garantir que haja “algo de
analista” (de I'analyste) na Escola. Ou seja, trata-se na Escola de
estar em condições de poder designar como verdadeira a proposição
“uma pessoa causa um ato”, ela é a sua origem e, enquanto tal, não se 17. ly a de 'analyste, em francês, tem a precisão indefinida que o “de” partitivo
permite.
sustenta a partir de nenhum Outro, e nisso se distingue e se outorga a
18. LACAN, Jacques (1961-62). Le séminaire. Livre 9. L'identification, inédito
autoridade de psicanalista. (Aula de 6/12/1961).
204 DomiNIQUE FINGERMANN À ESCOLHA DA ESCOLA 205

não permite mais esperar nem supor “no Outro o Um do sujeito”; é da Escola, produz uma comunidade de experiência a partir daquilo
também o momento em que a produção, isto é, a distinção, o destaca- que, o ato próprio a cada um, faz certo efeito: o mais incomum,
mento do mais-de-gozar o identifica como radicalmente impar. ímpar, solitário. Não há nomes comuns para os psicanalistas, há
Os cartéis do passe deveriam poder recolher, peneirar esses somente nomes próprios que não se fundam sobre nada. O solitário,
testemunhos de produção de uma solidão distinta e operativa. O ímpar, incomum causam e funcionam como operadores lógicos
dispositivo do passe, no seu conjunto, é uma condição para distinguir da operação da psicanálise. O desejo do analista é o nome deste
este ponto de extrema solidão, ponto de abjeção que é produzido pela operador que permite, autoriza, suporta o semblant, a função do
lógica de uma análise e que permite a sua reprodução no aprês-coup sujeito suposto saber, sem tremer, nem temer a impostura, pois o
da experiência. Pois é a partir dessa imparidade, dessa produção do desejo do psicanalista é o sujeito suposto ao saber na medida em que
“tão só...” que um sujeito que não “se acha” UM, tampouco o único, ele é conjunto vazio — abjeto, portanto, que objeta ao saber, a não
pode operar como analista, que se autoriza de si mesmo. A solidão ser que se sustente no lugar da verdade (não como A, mas como À).
como condição do ato caracteriza o psicanalista, pois condiciona e Este operador lógico — desejo do analista — tem efeitos reais que a
determina que ele seja impar e que, em decorrência disso, não faça Escola, na condição de terreno da provação, pode recolher nos seus
par. À partir do discurso que suporta, ele faz laço, não faz par com dispositivos furados,” feitos para discernir a futilidade do estilo —
a dupla demanda de transferência — a demanda de complemento de .
fútil na medida em que ele se apanha nos seus efeitos efêmeros e
sentido e a inclusão como parceiro de gozo. voláteis: efeitos de chiste, de de-formação de gozo. efeitos de estilo.
|.
>
O estilo não é de cada UM certo de si mesmo, “autorritualizado” de
)
A provação da prova si mesmo. O estilo é o que certamente marca a passagem de um,
.
Como esta imparidade pode ser demonstrada, e como uma
alguém, é o rastro de um passo, a pegada de um apagamento próprio
.
g
que efetiva a de-formação do gozo, o rastro de um silêncio do Outro.
Escola, na sua resposta ao paradoxo, permite tratar o improvável do
)
O estilo do analista é a sua maneira própria de operar o desejo do
analista? analista, é o que lhe resta de sua análise: sua imparidade e sua solidão,
Os dispositivos de Escola acolhem os efeitos do ato sobre o que ele põe à prova do ato “fazendo o psicanalista”. “
real. Isto não é inefável, é a aposta de uma garantia provável de um Um psicanalista a altura de seu ato é quem se põe à prova da ]
analista improvável. Não é inefável: cada um pode falar, demonstrar,
Escola que ele faz com seus pares, ou seja, com todos que queiram a
explicar, ensinar, argumentar, responder à questão de Lacan: “O que
também arriscar-se e suportar seus ímpares. :
a psicanálise nos ensina, como ensiná-lo2”!º
Lacan, em janeiro de 1980, na hora da dissolução, declarou: “não ,
Uma Escola de psicanálise é justamente essa oportunidade
espero nada das pessoas, mas (e) alguma coisa, do funcionamento”> :
construída de poder explicar-se, expor as razões de sua clínica
Logo após a dissolução de sua Escola, Lacan se mostra já disposto a n
nos colóquios, nos grupos de trabalho, nas apresentações clínicas
e especialmente nos cartéis: frente a alguns outros. “L'Ecole,
“relançar a experiência” e a causa da psicanálise: “O que vou fazer -
PEpreuve”, disse Lacan, a Escola é o lugar da experiência da prova b
do “ímpar”, não é o lugar do reconhecimento dos pares pela cooptação g
e a aprovação. É nesta condição que a Escola, o trabalho de garantia b
20. FINGERMANN, Dominique. Um dispositivo furado. Stylus, Belo Horizonte, O
n.1, p. 1098-116, 2000.
21. LACAN, Jacques (1980). Sêminaire du 15 janvier 1980, inédito (15/1/1980). Ê
No original: “(...) Je n'attends rien des personnes mais (et) quelque chose du
19. LACAN, Jacques (1957). A psicanálise e seu ensino. In: Escritos, op. cit., p. 440. fonctionnement”.

)
0
.
206 DOMINIQUE FINGERMANN

de novo é sempre a mesma coisa, claro, mas de outra forma”.? Ele


ainda tinha uma esperança de que os dispositivos que havia criado,
o cartel e o passe, mantivessem a psicanálise viva no exercício desta EPrÍíLOGO
provação permanente do analista, da mesma forma que o dispositivo
freudiano havia mantido a psicanálise virulenta como uma experiência
subversiva do sujeito na atualidade.
Psicanalistas: “mais um esforço [eo]

Sabemos pela história da psicanálise e a partir de nossos próprios Responsabilidade do discurso


engajamentos institucionais, que nem sempre os dispositivos protegem do psicanalista na atualidade
dos efeitos de degradação que o grupo, o agrupamento das pessoas,
causa para a manutenção e a sustentação da ética da psicanálise, “O
grupo é impossível”, diz Lacan; mas (e) como sustentar uma escola
necessária à prova do analista e de seu ato conveniente, suficiente para
“abrigar o impossível do grupo”?
Há um “trabalho de dissolução”? dos efeitos de cola de um
grupo que precisa ser feito e refeito em permanência. Uma Escola
“PSICANALISTA, MAIS UM ESFORÇO PARA SER CONTEMPORÂNEO!”
de Psicanálise é idealmente constituída de pessoas responsáveis pelo
seu sintoma e, na base desta distinção, encarnada por cada Um, uma
Escola deveria poder zelar por esse trabalho constante de dissolução É comum ouvirmos entre nós: o Discurso do Psicanalista é
dos efeitos de cooptação, segregação, autoproclamação, apropriação, incompatível com o Discurso do Capitalista; o sujeito da modernidade
intrigas que assombram e desfazem os grupos. que possibilitou o “acontecimento Freud” já não seria mais condizente
Nem sempre foi, é e será, possível: isso implica rupturas cujos com o sujeito do mundo contemporâneo. Os tempos que correm, a
efeitos podem também ser deletérios para a própria psicanálise. maquinação da ciência com o mercado, conspiram para não nos deixar
Saibamos cuidar de nossa (de)formação de analista: “O que mais dá psicanalisar tranquilamente como outrora.
prova de minha formação senão o fato de me acompanhar no trabalho, Uma outra versão desta mesma desconfiança é dizer que a
porque se trata de um, da dissolução?”> psicanálise, inventada no século XIX, não combina mais com a
Sejamos zelosos. temporalidade do século XXI, “Psicanalista, mais um esforço para ser
contemporâneo!”: abram seus círculos fechados e viciosos, ventilem
seus velhos conceitos, renovem seus jargões, avaliem a sua eficácia,
democratizem suas instituições, encurtem e barateiem as vias de
formação, facilitem o acesso dos jovens analistas ao “mercado”.
Os problemas cruciais da psicanálise na atualidade consistiriam
em uma questão de adequação ou inadequação do psicanalista ao
22, LACAN, Jacques (1980). Allocution prononcée para Lacan au PLM. Saint
Jacques, inédito (15/3/1980). No original: “(...) Ce que je vais faire de
discurso contemporâneo (ou seja, à modalidade de tratamento do gozo
nouveau, c'est toujours la même chose, bien entendu, mais autrement”. que o século XXI oferece).
23. Ibid.
24, LACAN, Jacques (1980). D'écolage: Actes de Fondation et autres textes,
inédito (Extraído do Annuaire 1982 de PECF).
25. Ibid. No original: “(...) Quoi d'autre fait preuve de ma formation que de m'ac- 1. SADE, Marquês de. (1795). A filosofia na alcova. São Paulo: Illuminuras,
compagner dans le travail, car c'en est un, de la dissolution?”. 1999, p. 454. “(...) Franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos”.
DOMINIQUE FINGERMANN EriLogo 209

Com mais de vinte anos de distância, Lacan, atento à questão da PSICANALISTAS, MAIS UM ESFORÇO!: “PARA QUE A PSICANÁLISE
extensão da psicanálise no mundo, enuncia quase a mesma sentença
TORNE-SE UM ATO POR VIR AINDA”?
imperiosa e zelosa, ligando a permanência do Discurso Psicanalítico
no mundo à presença efetiva dos analistas responsáveis pela posição
do inconsciente. O problema crucial da psicanálise na atualidade é a manutenção
Em “Função e campo da fala e da linguagem” (1953), Lacan de sua posição atópica, a posição do inconsciente é intempestiva,
extemporânea. A perseverança da subversão topológica de seu laço
condiciona a permanência da práxis analítica conectada ao “horizonte
da subjetividade da época”, à formação do analista, “o fim da análise ao avesso do bom senso e da moral do mundo.
O problema crucial da psicanálise permanece sendo a formação
didática”: “longa ascese subjetiva”.? Lembramos o rigor de seu
do analista capaz de inventar a radicalidade de seu ato ímpar, do
imperativo, que almeja proteger a prática da psicanálise de sua obso-
qual ele precisa dar prova. A prova de analista é o seu estilo, a sua
lescência: “Que antes renuncie a isso, portanto, quem não conseguir
distinção, a sua resposta singular, seu sinthoma dirá Lacan, isto é, sua
alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”.
resposta à “não relação sexual”.
Em 1974, na “Nota italiana”, Lacan persevera, e sua injunção
Freud estabeleceu a “regra de três” dessa provação: análise
assesta precisamente o famoso “autorizar-se de si mesmo”, que causa
tantos mal-entendidos na comunidade analítica a respeito da orien-
didática, estudo da teoria, supervisão. Lacan inscreveu a Escola como
lugar dessa prova e da garantia da manutenção das condições do ato. A
|
tação lacaniana: “Que ele não se autorize a ser analista, porque nunca deformação do analista, subsequente à sua subversão pela sua análise
.
terá tempo de contribuir para o saber sem o que não há chance de que pessoal, precisa ser garantida pela sua provação permanente; sua
.
a análise continue a dar dividendos ao mercado”. Autorizar-se de si maneira de praticar o estudo da teoria e de se arriscar na supervisão
mesmo é um acontecimento ético que só pode acontecer ao cabo de será suficiente se, e somente se, permanecerem necessárias e não
uma demonstração lógica. “Autorizar se de si mesmo” é um ato ímpar, cessarem de se inscrever.
oriundo da prova da solidão e de singularidade de quem não se apoia Ê
mais no saber e na garantia do Outro, mas no saber do inconsciente, 4
que ele precisa fazer valer em cada caso, cada ocasião que a demanda QUAL SERIA A URGÊNCIA DA MANUTENÇÃO DA PRESENÇA DA
analisante atualiza. Será desde esta solidão que o psicanalista deve PSICANÁLISE NO MUNDO?
“contribuir ao saber” da psicanálise e explicitar, frente a alguns outros,
as “razões da sua clínica”, A finalidade da experiência da psicanálise, que a vetoriza até
seu fim, consiste em proporcionar uma via de acesso à singularidade,
ao “Há Um”, que causa cada Um como ímpar, diferentemente do
universal da castração e das suas incidências particulares.
Daí decorre a urgência e a dimensão eminentemente política
da psicanálise, que pode fazer frente ao mal-estar da civilização da
atualidade.
Freud, em seu tempo, não deixou de se preocupar em relação aos
LACAN, Jacques (1953). Função e campo da fala e da linguagem. In: cataclismos da humanidade que assombravam a sua atualidade. Lacan,
Escritos, op. cit, p. 322
Ibid.
LACAN, Jacques (1974). Nota italiana. In: Outros escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2003, p. 314. 5. LACAN, Jacques (1968). Introdução de Scilicet. In: Outros escritos, op. cit,
p. 293.
210
DOMINIQUE FINGERMANN
por sua vez, desde a sua apreensão clínica da
estrutura do humano,
pôde infelizmente antecipar o que estava por
vir dos acontecimentos
da nossa atualidade.
Não por acaso, no texto princeps que
interpela e orienta a
formação do analista, ele alerta a respeito
do mal-estar contem-
porâneo: “Nosso futuro de mercados comuns encon
trará seu equilíbrio
numa ampliação cada vez mais dura dos proce
ssos de segregação”.
A responsabilidade do Discurso do Psicanalis
ta hoje é a sua
consideração fundamental, a contracorrente do Discu
rso comum,
pela angústia e o sintoma, sinal do real e signo
da marca singular da
estrutura no sujeito. Quando esta marca não
é mais relevante para
a ex-sistência de cada Um, então a universali
zação acachapante e a
segregação dos excluídos do mercado e da sua
globalização colocam
em xeque o melhor que pode acontecer quando
alguém consegue pôr
em jogo, no jogo da civilização, a causa da sua
singularidade.

Título A (de)formação do psicanalista.


As condições do ato psicanalítico
Projeto Gráfico Editora Escuta
Diagramação Editora Escuta
Revisão Cicero Oliveira
Formato 14x2 em
Tipologia Times New Roman (10,5/12,5)
6. LACAN, Jacques (1967). Proposição de 9 de outubr
o de 1967 sobre o psica- Papel Cartão 250g (capa)
nalista da Escola. In: Outros escritos, op. cit., p. 263. Outras referências Lux cream (miolo)
sobre o tema podem ser encontradas
no texto Petit discours aux psychiatres Número de páginas 212
(inédito, pronunciado em 11/0/1967).
Impressão Gráfica Paym
E +
no

qo
o
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re
tt ip

l
i
Este livro organiza textos apresentados nos últimos 15 anose |.
testemunha o engajamento assíduo da autora na transmissão +
da psicanálise e na sustentação da questão polêmica da for-
mação do psicanalista.

A—
A questão é elencada em seis capítulos, que reatualizam a “re-
gra de três” estabelecida por Freud para garantir a extensão

h
da psicanálise no mundo e no tempo: análise didática, estudo

rw
da teoria, supervisão. O ensino de Lacan tira as consequên-

E ie
cias da sua orientação lógica e de sua opção ética quando,

[Tre
além deste tripé necessário, ele precisa como inseparável de
seus conceitos fundamentais — a Escola, o Cartel e o Dispo-
sitivo do passe. Tanto um quanto os outros colocam à prova o

1
irredutível: “autorizar-se de si mesmo”.

+
A deformação do analista, subsequente à sua subversão pela
—+—
análise pessoal, precisa ser garantida pela provação perma-
gem
=: ur

nente: sua maneira de praticar o estudo da teoria e de se ar-


me

riscar na supervisão será suficiente se, e somente se, perma-


necerem necessárias e não cessarem de se inscrever. Uma
à gentis

| escola de psicanálise é o lugar dessa escrita.


71 E

868 A
a SR
ISBN 978-85-7137-392-1

788571"373921 ,

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