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A (DE)JFORMAÇÃO DO PSICANALISTA
As condições do ato psicanalítico
Dominique Fingermann
EDITORA
Maria Cristina Rios Magalhães
CONSELHO EDITORIAL
Prof. Dr. Henrique Figueiredo Carneiro (UNIFOR)
Prof. Dr. Paulo Roberto Ceccarelli (PUC-MG)
Prof, Dr. Gisálio Cerqueira Filho (UFF)
Prof, Dr. Luis Cláudio Figueiredo (USP, PUC-SP)
Profa. Dra. Elisabeth Roudinesco (École Pratique des Hautes Études, FR)
Profa. Dra. Ana Maria Rudge (PUC-RJ)
A (DE)JFORMAÇÃO DO PSICANALISTA
As condições do ato psicanalítico
O by Editora Escuta para a edição em língua portuguesa
1º edição em português: setembro de 2016
CAPA
Ana Maria Rios Magalhães
Quadro de Sergio Fingermann, sem título (série “Noites particulares”),
pintura sobre papel, 0,70x1,00m, 2015.
PRODUÇÃO EDITORIAL
Araide Sanches
Criança, eu ficava fascinada com o anagrama de meu nome:
“Quinedimo”.
Tirei de letra e fui sendo psicanalista.
Alguns, no entanto, me deram as palavras.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Daí inventei certos nomes.
F497d Fingermann, Dominique
A (deJformação do psicanalista : as condições do ato psicanalítico /
Dominique Fingermann. — São Paulo : Escuta, 2016.
212p; 14x2 cm.
ISBN 978-85-7137-392-1
CDU 159.964.2-51
CDD 150.195
Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo — CRB 10/1507 pour
Maurice Touchon
Augustin Ménard
Sergio Fingermann
INTRODUÇÃO
A prova de psicanalista: a sua deformação
HI. O PASSE
A leveza do passe
O momento do passe
O cartel do passe
A presença do passador: atualidade da escola
O que faz diferença?
Uma carta nem sempre chega a seu destino
Como passa um Dizer”: contingência e responsabilidade
1
EríLOGO 207
Psicanalistas, “mais um esforço!”:
responsabilidade do discurso do psicanalista na atualidade 207
d'une expérience,
Qu'il puisse sortir des libertés de la clóture
de | "aprês -coup dans la signifiance.
c'est ce qui tient à la nature
1967
LACAN, Jacques. Proposition du 9 octobre
que
A questão de saber por que as pessoas fazem análise, Lacan sexo outro, que pode eventualmente servir de parceiro, mas naquilo
seu corpo. O gozo do corpo do (ou
respondeu: “Porque elas têm medo”. Queria isso então diet que os vivencia, ele é e permanece só com
sujeito de seu perten ciment o
“analisados”, dentre os quais por definição estão os analistas, não da) parceiro(a) não assegura em nada o
as disso afirma ndo que
têm mais medo? Sabemos também que a temeridade, aarrogância a a um sexo. Freud havia enunciado as premiss
de uma
suficiência protegem do medo melhor do que qualquer escudo isso a pulsão sexual, enquanto tal, não existia, mas era a resultante
que não evitem em nada as catástrofes... Ademais, não ter medo de nada construção que tomava como suporte as pulsões parciais.
não é nada além de uma loucura, pois mesmo na Disney há malvados — A sexualidade é, portanto, o fato de uma construção, que repousa
é sem
e sabemos que na vida real nem sempre são eles que perdem... sobre um sonho de uma união possível até a unidade. Ela não
Se, contudo, os outros fossem como sonhamos, como a vida um resto, que disso assina o impasse .
to
seria boa! Mas isso jamais acontece, muito pelo contrário. É justa- Formar um psicanalista é levá-lo, por meio do evidenciamen
mente por aí que tudo começa, se lermos Freud no Romance familiar impasse sexual, a medir a
da consequência sintomática, para ele, do
do neurótico: “Existe sem dúvida um grande número de ocasiões em universalidade da segunda e a singularidade da primeir a.
que a criança é negligenciada, ou pelo menos sente que é negligen- A segunda é, à primeira vista, desagradável, mas, por fim,
o de se
ciada, ou que não está recebendo todo o amor dos pais, e principal- caridosa: a castração sendo para todos, torna-se tão ridícul
, a
mente em que lamenta ter de compartilhar esse amor pe seus irmãos queixar dela quanto de se esforçar em dissimulá-la. A segunda
e irmãs. Sua sensação de que sua afeição não está sendo estudo que para cada um faz suplênc ia à
singularidade absoluta daquilo
encontra abrigo na ideia...”.! sendo. Esta última não é, portanto ,
castração, é irredutível e permanece
Ê Destino do falante, de se saber sempre exilado de um sonho: de forma
compartilhável com ninguém, nem consigo mesmo. Para dizer
a conta não está aí”, diz Lacan. Nosso infeliz deve, então, se querer único. Isso pode
pôr de gí imagética, cada um é único em sua forma de
para encontrá-la. Freud diz, ainda no mesmo texto: “Se a outros, é é preciso,
a ser difícil de suportar, tanto para si quanto para os
com cuidado esses devaneios, descobriremos que constituem uma habituar a isso.
então, tempo, mas não há outra escolha a não se de se
É aí que a dificuldade começa, quando'se trata de suportar o real
realização de desejos e uma retificação da vida real. Têm dois
objetivos principais: um erótico e um ambicioso — embora um objeto tes...
que molda o ser do qual somos apenas sujeitos e bem impoten
erótico esteja comumente oculto sob o último”.? Lacan distinguiu três paixões do ser: o amor, O ódio e a ignorân cia.
É legítimo que tenhamos medo de não conseguir chegar, o que que ível em uma propor ção que
São elas que animam nosso irredut
quer que venha a ser esse lugar corretor. Não porque seja difícil mas imprevi síveis quanto incon-
permanece submetida aos encontros tão
porque é impossível. Com efeito, a psicanálise nos ensina que podemos ca
troláveis. É preciso esperar que conhecer a dimensão quase mecâni
sonhar o quanto quisermos, mas não podemos corrigir a existência tal paixão que é
disso atenue seu alcance de verdade última. Assim, uma
como ela é: fala-seres, somos divididos entre dois sexos, e entre eles não o psica-
acompanhada por um pouco de distanciamento não prejudica
há nenhuma relação [rapport]. Claro que existem relações [relations] e
nalisado, mesmo que ele saiba melhor que ninguém o que 0 anima
sexuais, e, de certa forma, não há nada além disso. Mas nenhuma dessas a em filosofia nos dispens ará aqui
aquilo que quer. Nossa incomp etênci
relações, mesmo a mais satisfatória que se possa viver, assegurará a se impõe
relação [rapport] de um sexo com o outro. Cada um sabe que há um de glosar sobre a prudência como virtude platônica, mas ela
deixar todo o seu lugar ao irre-
para o psicanalista. Em particular para
dutível daquele que se faz paciente disso.
, a
A virtude do retraimento, no fim das contas, se aprende
seus
1. FREUD, Sigmund (1909). Romances familiares. In: Edição standard brasi- experiência nova de cada caso não proíbe a experiência de
cabe
hábitos... Por outro lado, o que acontece com essa paixão quando
eira
lei das )obra Sp sicológicas
h gi completas.
pl Rio de Ja teiro: a Ima g o, s/l d (vi ersao
e a
2. Ibid. ao psicanalista comparecer com sua fala, para justificar sua prática
|
14 MARC STRAUSS
vez repetida
elucidação permitirá aos psicanalistas de se distanciarem aí um pouco, maneira de interpretar a vida e a psicanálise, “primeira
para chegar a se entenderem sobre o essencial, que é tão pouca coisa. i te novo, ponto de i
partid d a a semprp e novamente
sempre como um instan
Muito pouca, para muitos dentre eles ainda... Tanto que não estaremos recomeçado.
aí, tentaremos nos igualar a este horizonte, e nos mantermos à altura
da exigência que se ilustra em cada página deste livro.
Assim, os lacanianos pretendem assegurar cada um a sucessão
Cult a TOO
de Lacan e, se possível, não sozinhos, mas com outros, que se * Texto apresentado no dia 16/4/2014 no Espaço
â ao i
anivers ári
ário do i
psican a ta
lista francês Jacques , Lacan. Er
entendem sobre o que ela deve ser: uma posição com relação ao real, moração Go ;
pações de Dominique Finger
icipaçõ Fir man, Ricardo bel
ntou com as partici
de reserva respeitosa. É preciso mensurar o que ela comporta de Miriam Debieux, Maria Lívia Tourinho Moretto
e Christian
Mine Virgínia EE,
recusa de toda submissão a qualquer palavra de ordem que seja. Dunker.
1
16 17
DOMINIQUE FINGERMANN FARA COMEÇO DE CONVERSA
* O primeiro Lacan ocorreu em 1969. Tinha 16 anos e estava no a-psicologia necessária ao psicólogo”, e nos pediu o
último ano do ensino médio, em que estudava filosofia por nove horas no segundo semestre, que havíam os passado em greve radical
semanais. Nas aulas sobre “linguagem”, a professora apresentou um o Simbóli co Ê o Imaginá rio
entusiasta, uma dissertação sobre “O Real,
Valéry : provoc ação,
texto recortado dos Escritos de Lacan. O Escrito causa: “Como é isso? nos recentes acontecimentos da Faculdade Paul
o
Não compreender e se deixar tocar, pelo choque, pelo impacto, pela convocação — Lacan político! Lacan falava lá em Paris sobre
egavam
reverberação das palavras!”. Discurso Universitário, mas, a 800 km dali, outros se encarr
É uma questão de estilo, o risco do estilete, é uma questão de 3 falar!
tenha
toque. As palavras roçam, tocam o corpo, são incisivas. Decisivas. ç O nois a orientação de minha formação permanente
Seguiu-se uma pequena cena edipiana, que talvez tenha de Psicaná lise e não pelo perotns o
optado desde cedo pela Escola
contribuído para meu envolvimento imediato. Meu pai queria me ou O ensino da psicaná lise
universitário, essa anedota sempre valoriz
risco
ajudar a entender os textos de filosofia, mas quando leu o texto de na universidade pelo seu poder subversivo e não pelo seu
Lacan, disse que não dava para compreender e que, inclusive, “o cara
não era muito sério”. ; CU elo Lacan inesquecível ocorreu também em dE
minha
“Deixe comigo!”, respondi. “Eu me viro!” primeiro encontro com a psicose. De 1 974 até 1983, iniciei
em am
Deixou Lacan comigo e começou uma bela virada! vida profissional trabalhando com pacientes ditos psicóticos
* O primeiro Lacan foi também impactante quando fui à procura vangua rda, e em seguida , em um ne a :
centro psicoterapêutico de
do analista, dois anos depois. Demorei dois anos para encontrar. Já s e adolesc entes ditos o :
especializado no atendimento de criança
co, o e :
relatei essa história: o primeiro encontro com o psicanalista “a gente A metáfora paterna, a forclusão do nome do pai, o Simbóli
nunca esquece”. Começou com um corte: “De agora em diante, é à o Imaginário, Schreber, a função do delírio: como suportar a o
opera
psicanálise que prevalece, não é a vida!”. De 1974 a 1982, três vezes e apreender o humano quando se tem 21 anos sem esses
por semana, me desloquei; um mês e uma semana de férias por ano, a clínica?
aconteceu,
não se trocava horários, nunca, e eu percorria 100 km para ir a cada “ MR também no Brasil que o meu primeiro Lacan
ana
sessão, que durava entre 10 e 20 minutos. De 1991 a 1994, voltei lá, quando a opção pelo exílio me fez chegar à Biblioteca Freudi
para “concluir” o trabalho interrompido nove anos antes pelo acting , convid ava e provocava as pessoas
Brasileira: lugar que causava
out brasileiro (isto é, minha opção pelo exílio). Eni com o texto,
a se debruçarem sobre “a coisa freudiana”.
OS,
O que aconteceu neste encontro inesquecível com um analista? a disciplina do comentário, o princípio do Eai, os PASSEIN
soltar alíngua”,
O que pegou? Tocou? Impregnou? Podou? Reduziu? Ampliou? a interlocução, a contradição. Era necessário
Esticou? Dissolveu? Deformou? engajar-se na transmissão: práxis da teoria.
Após tantos anos de deslocamentos, de vaivém, para lá para cá,
o que foi mesmo que causou assim esse descolar decisivo?
Um calar, um silêncio, uma constância, uma presença, uma
ausência radical de simpatia, nenhum pathos no acolhimento da
na neo a a
novela familiar; sem dúvida, é isso o que nomeio hoje, com Lacan, Cartel: pequeno grupo de trabalho proposto por Lacan
4 pessoas que se esco em em E
escola em 1964. Ele é constituído por
desejo de analista. Não há outro jeito para se desprender do Outro — de uma questão e escolhem um Mais-Um, suposto garantir esse proje
parceiro/cúmplice da neurose — a não ser pela experiência da solidão, À
ho.
(duas traduções possíveis para lalangue); O
da decisão e do laço que a psicanálise proporciona excepcionalmente. me le
aponta para a dimensão real incluída na língua; depósito no corp Cie pi
* O primeiro Lacan foi também meu professor de psicanálise, linguagem, que articula um signi
antes que ela se organize em
que declamou, na primeira aula do segundo ano universitário, “Da outro.
18
DOMINIQUE FINGERMANN PARA COMEÇO DE CONVERSA
19
* O primeiro Lacan a gente nunca esquece. Foi no Brasil que — providenciar eventualmente a ocorência do ato que separa
me “autorizei” a acolher pessoas que queriam falar da dor de existir, alguém de sua adesão ao Outro e lhe devolve os rastros de sua
e que me dispus a esta solidão: fazer o analista, sensação de um risco ex-sistência singular.
absoluto. Autorizar-se a sustentar a posição do analista consiste, antes
de tudo, em uma decisão de separação. (..)
* Então aconteceu o passo necessário: fazer o passe,) em 1995,
foi o salto e o engajamento que constitui, até hoje, o leme dessa e Para finalizar, não há último ponto, a não ser essas reticências,
“aberração”, como disse Lacan, o que me permite suportar as análises que apontam para um porvir que depende de nossa capacidade, ou
que conduzo. i
melhor, de nossa disposiçã ição para fazer valer na práráxis analítica, umum
* Em 1998, encontrei Lacan, de novo, via a palavra “dissolução”. Discurso, ou seja, um laço que permite suprir a “relação que não há” ;
A dissolução pode não se limitar a seus efeitos deletérios de nome mais preciso para a castração que a linguagem impõe ao sujeito,
rompimento de laços, e permitir outros enlaces e enodamentos e enfrentar, com ética e tática, as estratégias dos discursos da ciência e
facilitando novas trilhas. Abriu-se outro caminho: o movimento dos do capital que tendem e pretendem obsoletar o sujeito dividido e seu
Fóruns e a construção do Campo Lacaniano empolgou esse fazer desejo consequente.
escola, que leva a sério as sequências do ato psicanalítico. Fazer
escola era o caminho para sustentar esse hiato sempre recomeçado.
* Causou. Lacan causa. As consequências são vivas.
Seus enunciados fisgam, ainda hoje (e precisamos nos precaver
de usá-los como reza, remendo e mandamento); sua enunciação (o que
ele quis dizer?) ainda orienta, como questão, a prática da psicanálise
que sustentamos; e, sobretudo, o dizer de Lacan (Y a d'" Un!) que se
desprende de seus ditos, condiciona a minha opção lacaniana.
Esta opção reatualiza a cada dia a orientação da prática clínica
que sustento, no risco da sua re-invenção cotidiana:
— seguir as vias de acesso à “coisa freudiana” evidenciando, no
hiato das suas emergências imprevisíveis, a lógica das suas trilhas;
= topar com a contingência das ressonâncias do inconsciente,
mais além de suas elucubrações familiares:
A prova do psicanalista:
a sua deformação
QUANDO PODEMOS DIZER QUE UMA ANÁLISE É (FOI) DIDÁTICA? QUAL ESTUDO DA TEORIA COERENTE COM ESSA INVENÇÃO?
Uma análise se atesta como didática (isto é, deformadora da “Mas tal direção só se manterá por meio de um ensino Eta
neurose) quando alguém der prova de “formação suficiente”. deiro, isto é, que não pare de se submeter ao que se chama ea E
Esta prova é poética, se encontrar a voz própria para transmitir adverte Lacan no capítulo “A formação dos futuros analistas”, no texto
como soube eticamente tirar as consequências da lógica da cura: de 1955 “A coisa freudiana”.
O impasse da procura de saber no Outro e, em conclusão, a “firme A questão, para nós, é como produzir, proporcionar, um o
convicção da existência do inconsciente”!º e a sua orientação que seja coerente com a deformação estida pela ga ção o
consequente pela ex-sistência do Inconsciente real. analista. Como propor um “ensino verdadeiro”, isto é, “que não pare
Isso ocorre, e nesses casos apostamos que a análise foi didática, 3S er à novação” 92! ro
isto é, que o futuro analista pode suportar a transferência com e E à eo do “como”, pela via dos dm
flexibilidade, mas sem vacilo e sem angústia (sem tampouco pôr em que uma Escola de psicanálise assegura (o cartel em particular), pela
Jogo seu próprio engodo fantasmático), reinventando a psicanálise, via da sua ética inerente (a práxis da teoria), e sobretudo graças às
responsáveis por sua invenção cotidiana. brechas pelas quais o estilo pode irromper e romper a burocratização
A psicanálise é didática quando ela é “psicanálise pura”, indica da transmissão e da aplicação da doutrina, e ao princípio interno de
Lacan, para nomear o que ele chamará também de “psicanálise “crítica assídua” atento para quebrar a inclinação do achatamento do
em intensão”, conceito lógico que nos orienta para sustentar que ; i jargão.
toda extensão da psicanálise, tanto sua aplicação clínica como sua ie é a práxis de sua teoria, anuncia Lacan no
teorização e seu ensino não se funda senão dessa psicanálise pura. “Ato de Fundação” de sua Escola:!º a ética do analista, sua disposição
Uma Escola de Psicanálise tenciona acolher, na organização de para o ato, que, enquanto tal, dispensa qualquer modelo pisa pr
seus laços e instâncias, o artíficio institucional, “dispositivo furado”, depende de sua disponibil idade para algo que excede o simples estudo
que pode recolher os testemunhos desse momento clínico fora do da teoria. Esta não é um modelo que se aplica, mas uma práxis que a
comum, no qual se produz a “distinção de analista”, momento de produz à medida das ocorrências, e, por isso, é coerente com o que se
passagem que Lacan indexou como “o passe”. Alguns dos textos espera de um psicanalista à altura do ato e do real. cad E
apresentados no Capítulo 2 contribuem para o registro da experiência Do próprio exercício da transmissão da prática clínica epen te
e do funcionamento desse dispositivo atualizado nesse início do século a formação permanente do analista. A práxis da teoria é o exercício
XXI na EPFCL — Escola Psicanálise Fóruns Campo Lacaniano.'? do analista, o qual põe à prova seu saber, não seus conhecimentos.
Essa provação será retomada ao longo da sua formação contínua nos
cartéis, nos congressos, na comunidade de seus pares/ímpares (os
“esparsos disparatados”!º diz Lacan), nos textos que ele apresentará
10. FREUD,
e que o apresentarão, fazendo valer sua voz e sua presença na
Sigmund (1937). Análise terminável e interminável. In: Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud. Rio empreitada da práxis da teoria.
de Janeiro: Imago, s/d (versão eletrônica), v. XXIII.
11. Referência ao texto “Um dispositivo furado”, um de meus
primeiros artigos
escritos sobre a experiência do passe, que pode ser encontrad
o em Stylus 1 —
Revista de Psicanálise (Belo Horizonte: AFCL, 2000, p. 109-115).
13. LACAN, Jacques (1955). A coisa freudiana. In: Escritos, p. 437.
12. EPFCL— Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
criada em 14. Ibid.
2001, a partir dos Fóruns do Campo Lacaniano, cujo movimento foi iniciado á In: : Outros escritos. Ni:
15. LACAN, Jacques (1964). Ato de fundação.
em 1998, após a ruptura de seus membros com inglesa do Seminário 117. In:
a Associação Mundial de 16. LACAN, Jacques (1976). Prefácio à edição
Psicanálise (AMP).
Outros escritos, p. 569.
26 27
DOMINIQUE FINGERMANN PARA COMEÇO DE CONVERSA
A PRÁTICA DA SUPERVISÃO vs que ainda hoje prosseguem com a psicanálise, sua experiência e sua
teoria, na sequência da obra freudiana. ia
Após ter rompido com a IPA, em consequência de E
Uma prática da supervisão coerente com o Discurso do psicanalista
e a formação que o condiciona precisa manter o seu paradoxo inerente: desqualificação como analista didata, Lacan, em 1964, propõe
se alguém vai ao encontro de um psicanalista “mais experiente” para um dispositivo outro, a Escola de Psicanálise que, posta
poder sustentar a solidão do ato analítico, seria um contrassenso o lugar proporciona as condições de efetivação de uma “formação suficiente
da supervisão se transformar em um refúgio contra a solidão e o risco, e com seus órgãos de garantia. A Escola não é o lugar do ato, mas 0
que ela abranda “o horror do ato analítico” derivando como aula, acon- lupar que explora e acolhe oportunamente suas condições prévias e
selhamento, fofoca, deriva associativa; pois a supervisão de um analista recolhe eventualmente suas sequências, seus efeitos. o
funciona enquanto tal se for provocação, risco e provação. A escola de Lacan não é um lugar de aplicação de dispositivos
Há algo de inefável da experiência e a supervisão constitui o burocráticos de cooptação ou de mera associação de seus membros, é
lugar privilegiado para que o analista em formação permanente tanja e uma praça pública, fórum, ágora, que cada um perpassa caminhando,
tangencie esse impossível da transmissão, tornando a experiência audível andando e riscando seu caminho próprio. E um lugar de encontro,
para um terceiro que saiba ouvir “o que fica esquecido atrás dos ditos”.'7 de exposição, de risco e de prova, centrado e/ou petite (manto
Responsabilidade por tentar dizer o que não cabe nos ditos, descentrado pelo “real em jogo na formação do psicanalista”. Embora
engajamento, risco, quem se atreve em uma supervisão põe à prova “refúgio contra o mal-estar da civilização”? a Escola de Psicanálise
sua capacidade de sustentar a sua “própria” posição de analista que, constitui uma zona de desconforto e, por isso, se justificam tanto a sua
somente por essa via, garante. vulnerabilidade, quanto o seu princípio fundamental de dissolução que,
Engajar-se em um trabalho de supervisão coerente com o muitas vezes, tomba nos seus próprios equívocos, precipitando rupturas
discurso analítico, consiste, antes de qualquer coisa, em manter viva a e outros rompimentos danosos do laço e do pacto associativo.
sensação de um risco absoluto. O supervisor precisa estar à altura dessa Uma Escola de Psicanálise — “A Escola, a Provação” |! École,
responsabilidade se quiser colaborar para a manutenção da aposta do ato [Epreuve] como lança Lacan na primeira versão da Proposição
do psicanalista, que inquieta justamente o supervisionando. para um Psicanalista de Escola?! — não é nada mais, nada menos
do que a folha em branco na qual cada um que aí se inscreve tem a
oportunidade de fazer ressoar a sua prova de passador da psicanálise,
À ESCOLHA DA ESCOLA contanto que essa prova possa ser lida por alguns outros — Garantia
da Psicanálise: a letra da psicanálise pode chegar a seu destino.
A Escola de Lacan não oferece uma cartilha burocrática que
Além do imenso arcabouço teórico e das suas orientações
regularia os três polos do tripé da “formação” do psicanalista (análise
técnicas precisas, Freud havia proposto um tripé para garantir a
pessoal, supervisão, estudo da teoria); ela propõe, antes, uma articulação
manutenção da psicanálise e a renovação de seus operadores de
dos três em um espaço topológico em constante deformação, a fim
acordo com sua ética. Ele deixou como herança esse modelo para a
de promover o desassossego como critério princeps da formação do
formação do analista, que ainda hoje é praticado, não somente nos
institutos pertencentes à IPA,'* mas também é reivindicado por todos
19. LACAN, Jacques (1967). Proposição de 9 de outubro sobre o psicanalista da
Escola, p. 249. ns o"
17. LACAN, Jacques (1972-73). O aturdito. In: Outros escritos, p. 448. 20. LACAN, Jacques (1964). Ato de fundação, p. Ê o
18. IPA: International Psychoanalytical Association, criada por Freud, em
1910, e 21. LACAN, Jacques (1967). Primeira versão da Proposição de 9 de outubro
da qual Lacan foi expulso, em 1964. sobre o psicanalista da Escola, p. 249.
28
DOMINIQUE FINGERMANN
I
da articulação borromeana, segundo a qual se
um dos três se solta,
os três do tripé da formação do analista não se
sustenta mais. Caso
contrário, o Discurso do Analista deriva, e logo
vira para qualquer
um dos outros três, perigando na histerização, na
universalização do universitário.
maestria ou, pior, na
A FORMAÇÃO DO ANALISTA:
Concluiremos com um capítulo que apresenta textos
diversos momentos dos últimos anos e que tenci
escritos em
onam fundamentar a A PSICANÁLISE PURA
escolha da Escola como nó exclusivo, permitindo o
enlace do analista
que se autoriza de si mesmo com a garantia da
psicanálise, que a
civilização e seu mal-estar incurável exige de
nossa proficiência.
A Escola de Psicanálise é o sinthoma que permi
te o enodamento
da tripla procedência da formação contínua do
analista, ela garante
a sua formação, ou, antes, a sua deformação perma
nente para que
os sintomas dos analistas não lhe façam perde
r o rumo da sua
responsabilidade nos tempos que correm.
Este livro organiza uma série de textos e intervenções
apresentados ao longo dos últimos quinze anos,
que pretendem
transmitir um engajamento contínuo na questão
da transmissão da
psicanálise e da formação do psicanalista. Manti
vemos um certo risco
de repetição, já que esta possibilita a insistência
de um movimento em
espiral que nunca repisa exatamente no mesmo
lugar, e tangencia, a
cada vez, novamente, um pouco mais, o cerne da
questão.
Estes textos, na sua progressão contínua e
insistente, testemu-
nham o rigor e o estilo próprio que a orientação pelo
ensino de Lacan
e a opção decidida pela Escola de psicanálise me permi
tirem sustentar
em minha relação, sempre reinventada, com a
experiência ímpar da
psicanálise.
A FORMAÇÃO DO ANALISTA:
A PSICANÁLISE PURA*
A PSICANÁLISE PURA
*
Texto originalmente publicado em Revista Livro Zero, n. 2: O sintoma, sua
política, sua clínica, com o título “A formação do analista: A psicanálise pura”
(São Paulo: EPFCL-SP, 2011, p. 9-30).
32
DOMINIQUE FINGERMANN À FORMAÇÃO DO PSICANALISTA: A PSICANÁLISE PURA 33
depende a “extensão” da qualificação de psicanalista. Veremos que O que faz o analista, aquilo que produz a sua gi ce
a referência “du psychanalyste” (“algo de psicanalista”) denota, algo operar psicanaliticamente, é a sua relação singular com o Real, o
,
impredicável, que Lacan nomeia “ato”, “desejo do psicanalista”, “desejo aquilo que está fora de cogitação e de indigna ção, e com o qu ú
inédito”, é uma referência vazia de substância, mas que tem efeitos. clínica o confronta. O que forma um psicanalista é psicanálise pura”, é
Uma referência vazia de substância que tem efeitos não remete à isso não se aprende nos programas de formação, não cabe nas elias
nenhuma mistagogia, nem pedagogia, nem farmacologia, mas assinala apreende-se na experiência: “O que salva do ensino, é o ato... vas
a operação analítica como uma operação lógica com sequências éticas.
ainda, como diz Estamira no filme-documentário de mesmo nome,” na
O recurso à lógica (a relação intensão/extensão), não é puro escola não se aprende, não! se copia. Se aprende é nas ocorrências”.
efeito retórico, pois da mesma forma que Frege” extrai do conjunto
Apreende-se na ocorrência da travessia de sua análise com sustentar as
vazio o número zero — que, por se destacar como conjunto com aii coa
diversas ocorrências das análises dos futuros analisantes.
único elemento, passa a ser nomeado como Um é permite a sucessão de “formação seja
No entanto, ainda que uma proposta
dos números —, o produto da operação psicanalítica permite a sua na esteira de Freud e Lacan, não tentar
paradoxal, não podemos,
sequência e a sua extensão na série dos analistas por vir.
responder a seu desafio.
Lembrar essas premissas desde a introdução de nosso estudo é
uma maneira de anunciar, de saída, que evidentemente não se pode
responder à questão da formação do analista com preceitos, cartilhas
EXIGÊNCIAS E CONTRAEXPERIÊNCIA: |
e programas, estabelecidos como sabemos com as melhores das
100 ANOS DE SOLIDÃO EM UMA COMUNIDADE IMPAR
intenções. Consequentemente, as propostas de formação de analistas
coerentes com o ensino de Lacan não se dedicam a promover um
“ensino” da psicanálise nem a responder às demandas de formação Freud não começou sua empreitada de extensão da psicanálise
de psicanalista: não se trata de formar ou formatar analistas, mas de com muitas exigências. Bastava que os alunos/discípulos estivessem
propor um campo de experiência e de interlocução no qual estará convencidos da sua descoberta, e algumas conversas com ele
eram
à prova o desejo de analista, ou seja, a deformação que as análises suficientes como “formação” psicanalítica. Max Eitington fez uma das
pessoais teriam eventualmente produzido. primeiras “análises didáticas”, e Freud escreve a Ferenczi: “Eitington
No entanto, não devemos nos furtar em tentar responder a está em Viena, duas vezes por semana, depois do almoço, ele vem
questão de “como se forma um analista”, que apaixona e desassossega
andar comigo. Durante esse passeio, ele se analisa”.
1 129? 10
há tanto tempo! Com efeito, esquivar-se da questão e sua resposta A experiência com Breuer tinha-o, no entanto, pn não
seria tomar ao pé da letra a injunção de Lacan “não há formação a o
é apenas uma questão de técnica, pois nem todos
analítica! O que há são formações do inconsciente!”,º desconhecendo da clínica analítica, ou seja, suportar a trans pa As
especificidade
que aquilo que o psicanalista francês queria mesmo era martelar, mais as interpre tações selvagen s, oa a à
inaptidões no seu manejo,
uma vez, o fato de que é na escola do inconsciente que o analista se com os primeiro s discípul os forma os
dos analistas e as decepções
transforma, não na escola dos professores.
não demoraram para alertá-lo e inaugurar a sequência infinita, até hoje,
de tentativas para resolver o paradoxo das formações dos analistas.
analítica, das
condições do ato. Em “Questão da análise leiga”, ele persiste com as suas
PU
1980, ano em que Lacan também escreve “Dºescolagem exigências e alerta: “É obrigatório para o analista — fazendo-se
”:2!
des/colar será o propósito da contraexperiência da Escola analisar profundamente — tornar-se capaz de acolher sem parti pris
da Causa
Freudiana. “Trata-se de que a Causa Freudiana escape o material analítico”? | o
ao efeito de
grupo que denuncio... instauro um turbilhão que lhe será Muito cedo, portanto, precisa-se e formaliza-se que é necessária
propício... é
isso, senão será a cola garantida”.2 uma modificação libidinal radical para providenciar uma mudança
1998: O “Campo Lacaniano” posiciona-se na sequên na relação do analisante com o inconsciente e a pulsão, que o
cia/ qualifica eventualmente para o ato do psicanalista, e para que suas
consequência da dissolução e da contraexperiência
de 1981, a Escola
da Causa. interpretações sejam independentes de suas características pescar
O
Hoje, cá estamos nós, dando sequência a essa emprei toquem no ponto certo, alerta Freud em “Questão da análise leiga 5
tada,
tirando as consequências da obra de Freud e do ensino Embora permaneça sempre uma “equação pessoal”, a análise do
de Lacan e
de nossa experiência da psicanálise, da sua transmissão analista deveria evitar o uso de interpretações selvagens e os abusos e
e da Escola:
“Para que a psicanálise torne-se aquilo que nunca deixou atrapalhações no manejo da transferência, e produzir uma renúncia ao
de ser, um
ato ainda por vir”. uso do poder, às satisfações narcísicas e às tendências sádicas.
Para que a psicanálise torne-se um ato por vir ainda, Mas onde será que o coitado vai adquirir essa aptidão ideal da qual
o que
podemos dizer hoje, a partir das lições de Freud e Lacan ele necessitará em seu ofício?” — indaga Freud em 1937; “A resposta
e a partir do
que a “psicanálise nos ensinou” dessas três vertentes da será: na análise pessoal, pela qual começa a sua preparação para sua
DELLA
formação de
analista: análise pessoal, estudo da teoria, supervisão? futura atividade.
Como interpretar esses três eixos da formação do analist Exigência intransponível, cujo objetivo ele precisa aqui
a,
nas nossas elaborações teóricas e nossos dispositivos
, para que firmemente, embora curiosamente aparente temperá-la:
eles participem das “condições do ato”, isto é, que análise
pessoal, Por razões práticas, esta só pode ser breve e incompleta, pois seu
estudo da teoria e supervisão sejam coerentes com
a deformação objetivo essencial é dar ao mestre a possibilidade de julgar se O
indispensável à sustentação do ato e da ética da psicanálise,
operando candidato pode ser admitido para prosseguir na sua formação. A sua
a partir do “real em jogo na própria formação do psicanalista
”.* tarefa está realizada quando ela traz para o aprendiz a firme convicção
MERO à : . 7
da existência do inconsciente”.?
Resta saber se essa firme convicção da existência do A psicanálise ensina, abre o caminho da passagem ao ato do
incons-
ciente, vale por seus efeitos didáticos de informação
ou de psicanalista, ela não é somente informadora sobre o inconsciente e
transformação. suas manifestações, mas produz uma transformação.
Os seguidores de Freud tomaram disposições que indicam
duas Lacan, no seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na
vertentes dos argumentos a favor da análise didática:
técnica da psicanálise, em (1954-1955), formulará a questão da
* Uns justificam a análise do analista como formação, pelo transformação em relação às funções do Eu:
seu aspecto demonstrativo, e, nesse sentido format
ivo, didático,
para compreender “o estilo do inconsciente e à respos Se se formam analistas é para que haja sujeitos tais que neles o Ei
ta que lhe esteja ausente. É o ideal da análise que permanece virtual. Não há
convém”.* Eitington (cuja análise durou alguns passeios
com Freud jamais um sujeito sem eu, um sujeito plenamente realizado, mas é
e cuja “compulsão” para regulamentar durou 30 anos)
chega mesmo precisamente o que é necessário visar obter sempre do sujeito em
a precisar que, para saber começar uma análise, é preciso
ter noção de análise. 4 análise deve visar à passagem de uma verdadeira fala,
seu fim, mas não tira as consequências dessa constatação. que liga o sujeito a um outro sujeito, do outro lado do muro da
*A outra vertente insiste no aspecto do “tratamento” da linguagem?
análise
didática, pois permite uma função diagnóstica, ou seja,
de seleção, Na sequência dos próximos 20 anos, até o final de seu ensino,
mas também proporcionaria e garantiria a futura dispos
ição para a
posição de analista, insistindo sobre o aspecto “transformad Lacan destaca diversos aspectos ou balizas que assinalam uma
or” da modificação da posição do sujeito em relação àestrutura: o desejo do
análise pessoal.
Nesse sentido, Ferenczi insistirá sobre a questão de um final analista, a travessia da fantasia, a destituição subjetiva, a produção
de análise que tão somente permitiria a disposição/posição de um desejo inédito, o analista como “santo”, a circunscrição
de um de seu horror de saber, a identificação ao sintoma, o entusiasmo,
analista capaz de re-produzir/produzir a operação. Análise terapêu
tica a satisfação. Essas mudanças na relação com o saber e o gozo,
e didática começam a se confundir.
Balint e Bernfeld, nos anos 1950, vão ser os primeir qualificam e distinguem o analista não a partir de sua relação
os a refletir
verdadeiramente (depois de Freud e Ferenczi) a respeito da com o eu Imaginário e o sujeito Simbólico, mas com o Real ea
análise posição de objeto (o a-sujeito) que daí decai. O “real em jogo na
didática, criticando os modos e os moldes da IPA que, em
vez de formar
analistas “à altura”, impediria a formação (deformação-transformaçã formação do analista” exige uma profunda modificação da relação
o) com os semblantes (imaginários e simbólicos) que o oculta, com
do analista,já que a dependência do reconhecimento, da aprovação e do
julgamento invalidaria as virtudes transformadoras da análise consequências definitivas em relação ao saber e o gozo que devem
pessoal, poder ser demonstradas e manifestadas.
reduzindo-a a uma formatação contrária à disposição singular
requerida Sabemos que Lacan nunca cessou de se interrogar a respeito dos
para um analista. Bernfeld chega mesmo a contestá-la, na medida
em efeitos didáticos da análise para além de seus efeitos terapéuticos. A
que ela seria um instrumento de normalização, asseptização,
fazendo invenção do passe, em 1967, foi a invenção de um dispositivo para
perder o poder virulento da análise (a peste).
Lacan, como sabemos, chamou a psicanálise didática recolher esses efeitos.
de
psicanálise pura, e escreve “A psicanálise, (vírgula) didática”.
Ágora chegou nossa vez de responder às questões, da foram chamados analistas da APF, Daniel Widlócher, então presidente
especificidade da análise do analista para garantir a sua qualifi çã da IPA, e outro do Quarto Grupo,” os quais deram contribuições
Voltemos às questões: , Ee importantes para elaboração de respostas ao debate iniciado.
Em que uma análise é didática? Em que ela qualifica alguém Constatamos que a questão está em aberto para todos: O que
para suportar a transferência em geral, os tratamentos em particular, a devemos exigir do final de uma análise para formar analistas à altura
experiência, sua lógica, sua finalidade e finitude? Em que uma atrálisa do ato do psicanalista, à altura da “resposta que convém ao estilo do
pessoal pode contribuir para a “formação” de alguém? O que tem inconsciente?”
que ser produzido do começo ao fim para que haja transformação Na esteira de Freud, talvez possamos atualizar a sua resposta:
deformação, “giro” no tratamento do gozo, ou seja “oiro nó podemos exigir que a análise do analista produza no fim “a firme
Discurso”, que capacita, qualifica para suportar a persistência do convicção da existência do inconsciente” e do recalque originário:
ofício do psicanalista e a emergência contingencial de seu ato? “Essa análise terá realizado seu intuito se fornecer àquele que aprende,
Quais são as condições do ato analítico produzidas pelo próprio uma convicção firme da existência do inconsciente”. Precisamos
pra Como se verifica o “giro do discurso” que possibilita com Lacan: podemos exigir que a análise dos analistas os conduza
a topar com a ex-sistência do inconsciente, ou seja, essa instância
As questões estão em aberto para todos. (sistere:) que permanece fora (ex), e que nenhuma elucubração, ficção
Apropriamo-nos dessas questões, pois elas orientam constan- da neurose logra esgotar ou circunscrever. O que se espera, o que Se
temente nossa prática da psicanálise, nossa posição na transmissão almeja no final das contas e dos contos, é que a análise do analista lhe
da psicanálise e nossos dispositivos, elas são temas das elaborações permita concluir que o inconsciente é real, um saber não sabido (insu)
dos Cartéis do Passe, dos Encontros da Escola de Psicanálise ão cujas ressonâncias indeléveis afetam o corpo e a linguagem para que
Fóruns do Campo Lacaniano, elas são instituintes e constituintes de se possa dar prova disso e fazer bom uso na sua prática análítica e na
uma comunidade de Escola. Uma comunidade de Escola não é uma sua vida.
instituição que institui os critérios de pertencimento e hierarquia deste Pois é só então que o analisante não encontrará mais O
nem tampouco uma mera associação de pares; ela se constitui no psicanalista que sustentava o seu suposto saber. “Uma análise termina
ponto de intersecção dos ímpares produzido a partir dessas questô quando analista e paciente deixam de se encontrar para à sessão
do debate que elas fomentam. PRRRaE analítica” Não obstante, com Freud ainda, desejamos que “ele não
O leque dessas questões foi aberto e colocado em discussão cesse de aprofundar” a sua análise, e com Lacan nós diríamos “que
em 2004 na ocasião de uma mesa redonda em Buenos Aires com o ele não cessa nunca de repassar o passe”, isto é, que ele não cessa, é
título A análise dos analistas: o que devemos exigir de seu fim?” sempre, de fazer a prova do ato ao qual sua análise o capacitou.
Participaram desse debate três analistas da EPFCL e dois analistas
da IPA argentinos.” Na ocasião da publicação do debate na França,”
; 5.5 a
AS CONDIÇÕES DO ATO
a convicção de um inconsciente “sem sujeito”, fora de alcance E
i
suposição, dos semblantes, que ex-siste “do outro lado do mur o da
A firme convicção da existência do inconsciente
arHá analista quando se tem “a firme convicçã icçãoo da da existênc ia do
exi anca
A condição do ato analítico é simplesmente que haja
analista inconsciente”, ou seja, quando se orienta a partir da ex-sistência
para sustentar a análise, ou seja, é necessário, mas não Inconsciente real. o
suficiente,
que haja apenas analisante. Este trabalha e funciona A interrogação da EPFCL*” sobre a sua experiên cia do Ea
a partir do
“sujeito suposto saber”, isto é, ele se orienta pela suposi desde a criação dessa Escola e do i
disposit ivo
iti que acolheu isia de
ção de um a
saber inconsciente subjetivável. Esta hipótese é a suposi cem testemunhos de passe nos atuais quinze anos de sua experi
ção inicial do A
neurótico, que alimenta a sua novela particular, ela é indisp
ensável retoma diversa e precisamente essa questão: para cada pass
para sua entrada em análise e fonte das narrativas, remem ouvido via testemunhos dos passadores (mas também eh o
orações, RR
construções, ficções do longo “tempo para compreende
r” de uma passador!! designado), põe-se à prova “a firme convicção
análise. A condição do ato do psicanalista depende de
sua disposição -sistência do inconsciente” como condição do ato do psicana (tas
para suspender, e até mesmo dispensar o que se demonstra e se mostra (ou não) no dispositivo = o n
o pensar que está sempre em
um encadeamento de uma suposição de articulação entre a posição do inconsciente como real e a disposiç
saber. . o
O ato do analista é a-normal, ele se apresenta (a-presenta) em ara o ato do psicanalista.
descontinuidade em relação à neurose, º Desdobramos a seguir algumas das formula ções Ee
e não em continuidade, por
das “deformações” exigidas para contemplar as condições do
sé ”
S, —» 8,
=
8
as consequências lógicas da estrutura do sujeito determinado pela do agente em direção ao outro tem um produto e procede da verdade
que a causa.
agente rt ouiro
42. Quatro discursos: os quatro discursos são as quatro formas
de laço social que
Lacan escreve em decorrência da estrutura do significan
te. terá a verdade — * produção
estrutura do significante como representando o sujeito para outro
significante
incluindo o resto da operação que transborda o sujeito como algo
cante, Lacan designa esse resto com uma letra — objeto a. Um
não signifi Lacan explicita e escreve a báscula que explica a passagem
ES E
define a partir dos quatro termos da estrutura (18,8, Sa) e da posição :
para o Discurso do Analista a partir do giro que impulsiona o próprio
lugares definidos como verdade, agente, outro, produto. ?
donos Discurso do Inconsciente — dito Discurso do Mestre.
DOMINIQUE FINGERMANN A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA: A PSICANÁLISE
Á PURA 51
Vale ponderar o quanto a própria estru
tura do significante Discurso da histérica
promove uma busca de sentido, orienta uma movi
mentação, ocasiona
um laço. De fato, se um significante semp 8 s
re diferente e diferencial —> 1
apenas representa substitutiva e parcialm a ss
ente a coisa representada, 2
ele, porta nto, necessita da articulação, da trans
ferência, para outro
significante com fins de produzir a signi
ficação almejada. A partir de
uma incógnita nunca extinguida e sempre
reconduzida (inconsciente), O Saber produzido em S, não toca na relação do sujeito com O
dirige-se o encadeamento metafórico
e metonímico das represen- gozo (a), a sua verdade, a sua verdade enquanto tal, a :
tações. O inconsciente primordialmente fora
de sentido faz laço, faz que fundamentalmente escapa ao sentido ecatodo o Par pro = o.
discurso — o Discurso do Inconscien
te é o Discurso do Mestre, o seu
agente é o significante que determina à sujei Há quem interrompa sua análise nesse ponto: ni , ama
ção e orienta a subjetivi- xixi na cama, agora eu sei por que eu estou fazendo! diz a piada.
dade em direção ao Outro. Esse discurso,
ou laço, opera com a trans- firme convicção da ex-sistência do inconsciente”, condição da trans-
ferência de um saber a respeito do sujeito
$ subposto, do SjatéosS,, formação didática de um analista, não se confunde com à propina
ou seja, a partir do significante primeiro que
representa o sujeito, para e conformação em relação à produção S, do saber USiNRICOs icção,
um outro suposto completá-lo. O objeto,
aquilo que nessa operação elucubração, gozo do sentido e sentido-gozado (jouis-sens”) sobre o
não se subjetiva, permanece aqui na posiç
ão de produto, de dejeto. 1OZ Í nçável. go!
Discurso do Mestre
no a do analisante, dito Discurso da Histérica, não é o
Discurso Analítico — o DA é o Discurso do Analista. Uma análise
8I Sa é didática se (trans)formar um analisante em analista, ao lhe propor-
Biot ha cionar um giro na estrutura, DHS DA, que promove uma up yeIÃo
na sua relação com o saber e o gozo: a /S, que, por sua vez, possi-
bilita o ato do psicanalista (causa e efeito da análise didática). No
Essa impotência do Mestre em resolver esse DA, o objeto a não é mais a coisa que falta, mas a falta que causa, A
resto que permanec e
não subjetivável, fomenta a histérica saber não mais o produto das elucubrações, mas o enigma que funda
e seu laço (discurso) típico. Com
efeito, o resto inapreensível da opera a operação toda.
ção subjetivação (alienação) do
Discurso do Mestre, chamado objeto a, passa a suste
ntar, enquanto
verdade, o semblant'* — “próton pseudo”, menti O saber “no lugar” da verdade: consequências clínicas
ra original — do
Discurso Histérico. O sujeito 8 põe o Significante
Mestre S, para
trabalhar, a fim de produzir um saber Do Há uma certa posição do inconsciente, um lugar certo para o
saber inconsciente, que sustenta o ato que podemos escrever as
essa letra a e sua flecha, que indica a causa, vertente ativa do agente
43. Semblant: do francês “faire sembl
ant, fazer de conta. Indica o valor
funda-
do Discurso: (a —).
mentalmente equivocado do significante
como aquilo que encobre e oculta
o Real. O simbólico e o imaginário são
ditos “semblant' em relação ao Real.
A operação de cada discurso dispara quando um semblante
se coloca como
agente que pretende dominar o outro, o
gozo.
44. FREUD, Sigmund (1895). Projeto
para uma psicologia científica. In: Ediçã
standard brasileira das obras psicológic o 45. Jouis-sens (gozo de sentido): O nó borromeano permite extrair três icaiad
as completas. Rio de Janeiro: Imago, lidades de gozo — o gozo do sentido (jouis-sens) equivoca com jouissance,
s/d, v. | (versão eletrônica).
uma modalidade de gozo logrado entre imaginário e simbólico.
52 À E PURA 53
DOMINIQUE FINGERMANN A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA: A PSICANÁLIS
No Discurso do Analista, no laço e na operação que o analista (“Vinsu que sait”) que sabe da castração imposta pela linguagem.
proporciona, no “lugar da verdade” se posiciona o saber (S,); ou “Une bévue”, “equívoco”, ressoa
. em francês
A
com 4a
“une baie vue”,
seja, onde se supunha a verdade como referência localiza-se o saber com E
“ma hiância vista”, articulando o inconsciente, Unbewusst,
. .
ú
inconsciente (S,) fora de alcance (S,//S) para os significantes S, que manifestações e com a castração, à falta original de onde ps pa
o sujeito 8, causado pelo ato do psicanalista a — $, produz. saber inconsciente, o saber que não se sabe, posicionado im im :
verdade, “posição do inconsciente”, inscreve O Não todo”**,
a ' “NS de onde
2
Discurso do Analista
emerge a contingência do ato.
Umas das consequências em colocar o saber no lugar da verdade
a 48 implica “um saber da impotência”, como diz Lacan nas conferências
s ss,
“O saber do psicanalista”, e não como no Discurso Universitário (DU),
no qual o saber “está podendo!”.
é A [7
a
Pode-se verificar (ou não) a passagem da suposição do saber
' O saber do DU, “que pode”, é um saber “canalha ”. A psicanál ise
inconsciente localizável nas elucubrações, localizando, referenciando
formaria po
.
46. LACAN, Jacques (1976-77). Le séminaire. Livre 24. Vinsu que sait de Pune-
bévue s'aile a mourre, inédito.
47. Fala-ser. em francês, pariêtre, amálgama do verbo parter (“falar”) com a e da piel apa
o subs- 48. O Não Todo: a partir da releitura da lógica de
tantivo être (“ser”). A partir de 1974, Lacan passa a incluir a dimensão
É da sexuaç ão condensamÉ e e e :
do sicional de Frege, que as fórmulas
real não somente como o impossível de atingir pelo simbólico, mas como
a â Todo, o ingular
singu I de cada um não decorrent
ço! e do
i
Lacan designa como Não
dimensão da estrutura que ex-siste fora de alcance, que o afeto, o sintoma, o ade E
particular da castração. O Não Todo designa em Lacan
testemunha. O pariêtre inclui essa dimensão real que o sujeito não implicava. particular que o Universal da castração determina.
aquilo que não decorre do
54
DOMINIQUE FINGERMANN A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA: A PSICANÁLISE PURA 55
analista? Como propor “um ensino verdadeiro, isto é, que não pare de A experiência: ocorrência da contingência do singular
se submeter ao que se chama novação”?º!
A questão do “como” será respondida pela via dos dispositivos, Não há ensinamento possível sem a experiência prévia, mas o
da sua ética inerente e das brechas pelas quais o estilo pode irrompe que da experiência tão singular, tão “própria”, tão “de si mesmo”,
r
e romper a sua burocratização. pode e deve ser transmitido pelo ensino, e como? Como resolver esse
paradoxo, já que o singular, que passa aos ditos do ensino, perde sua
Condição da receptividade à teoria psicanalítica praça, sua singularidade por recorrer ao minimamente universal, que
são as palavras que servem à comunicação, e periga esterilizar ou
Insistimos, mais uma vez, sobre a própria experiência sendo a ensimesmar o “de si mesmo”? ua
premissa didática obrigatória. A capacidade de transmissão da teoria Retomemos a questão de Lacan, de 1956, “O que a psicanálise
psicanalítica a partir de um ensino depende do acesso prévio do sujeito nos ensina, como ensiná-lo”,;” questão que ele persegue na página
à experiência. “Quando ministramos aos nossos alunos”, escreve seguinte “algo que a psicanálise nos ensina ser-lhe próprio, ou o mais
Freud em 1926, “instrução teórica em psicanálise, podemos ver próprio, o verdadeiramente próprio?” o
quão
pouca impressão lhes estamos causando, para começar. Eles absorve O que é próprio do fala-ser [parlêtre| (não o particular do sujeito
m
as teorias da análise tão friamente quanto outras abstrações com castrado), o que não se sujeita, vai ocorrer na experiência, ocasião da
as
quais são alimentados... Como então poderia esperar convencê-lo, sua emergência, de sua acontecência: a poética e a lógica possibilitam
a Pessoa Imparcial, da correção das nossas teorias, quando só posso apreender o que escapa ao sentido comum do humano, a repetição e
pôr diante do senhor um relato abreviado e, portanto, ininteligível das o poema.
mesmas, sem confirmá-las pelas próprias experiências do senhor?”
5
Lacan, na “Alocução sobre o ensino”, em 1970, será categórico a Os dispositivos: disposições éticas para a práxis da teoria
respeito: “Je ne peux être enseigné qu'à la mesure de mon savoir*:5 é
apenas na medida de meu saber (S,) que posso ser ensinado. Ele opõe A ética da psicanálise é a práxis de sua teoria, diz Lacan.
aqui o saber ao ensino “o sono da razão” que, em vez de permitir Com efeito, o próprio da psicanálise é o seu ato, o que se produz
o
acesso a esse saber, faz barreira, obstáculo. a partir do real: fazer da teoria não um modelo que se aplica, mas uma
O saber em questão aqui é o saber que não se articula, não faz práxis que a produz à medida das ocorrências, isto é, coerente com o
cadeia com outro significante para representar o sujeito, é o saber que se espera de um psicanalista à altura do ato e do real.
aquém da linguagem, corpo do saber, o saber da alíngua, sítio do Inventar, inovar, “acolher cada caso como se não se soubesse
inconsciente real porque fora de acesso do simbólico e do imaginário. nada” dizia Freud, não repetir, não fazer uma psicanálise aplicada,
O saber que se coloca no lugar da verdade no Discurso do Analista aplicando preceitos em vez de usar os conceitos que balizam os
é o saber que, em uma análise, se evidencia, se manifes fenômenos, explicar-se e assim desenvolver a psicanálise. “O próprio
ta como
radicalmente singular lá onde havia o encadeamento da verdade desenvolvimento daquilo que eu tinha que explicar colocou-me
mentirosa encobridora. problemas e abriu novas questões”,* reconhece Lacan.
na contramão da
Explicar-se orienta o analista para a direção da cura enquanto, Pela graça da transferência e do ato que responde
uma análise, se faz valer à
simultaneamente, contribui para a elaboração contínua dos conceitos, «ua demanda, o estilo se autoriza dentro de
da verdade, é desvalido.
“sem o que não há chance de que a análise continue a dar dividendos medida mesmo que o Outro, como garantidor
nálise só e
ao mercado”* adverte o psicanalista francês, em 1973. Quem lança mão de transmitir algo da psica
que intriga, E ga
A práxis da teoria consiste em colocar o analista na posição alcançar a sua tarefa se souber usar O estilo
inesperado: ad
analisante. O psicanalista em formação é o psicanalista psicanalisante; desperta, abre os ouvidos para o inaudito e o
brechas no pr ma a
psicanalista, portanto, deformado pela sua análise didática, psica- do psicanalista. A incisão do estilo abre
ção. “A verda de pode
nalisante, portanto, que passa seu tempo repassando o passe. compreensível, no necessário da repeti
do estilo.
Quais são os dispositivos propícios a um ensino verdadeiro que convencer, o saber passa em ato” no talho
abre os sulcos que
não cesse de submeter-se à novação? O cartel, e as ocasiões insistentes O talho do estilo não se transmite, mas
tenha alo de EA
propiciadas pela comunidade de trabalho (jornadas, congressos, deixam passar o que não tem sentido; talvez não
everyíhing, that's apo e
publicações) são os dispositivos nos quais cada um pode responder mas tem valor de uso. “There is a crack in
é por aí que passa à luz,
ao desafio ético da psicanálise — o real em jogo na formação do licht gets in”,º há um rasgo em cada coisa,
psicanalista — e pôr à prova a sua resposta estilosa. H d Cohen.
ção do analista)
Uma Escola de Psicanálise é o lugar da formação dos psica- aa comunidade de Escola (base da forma
um, uma comunidade
nalistas-psicanalisantes, é um lugar de “trabalho graças ao qual ainda é fundada sobre o que se tem de mais incom
rsos disparatados
existe o psicanalista à altura daquilo que supõe que se lhe faça sinal”,*º inconfessável do estilo de cada um, dos “espa
suas respostas a
como precisa de saída Lacan quando do ato de Fundação da Escola em que, descolados da verdade, arriscam-se a expor
à prova com es E pd
1964, desde já condicionando a garantia da autorização do analista a e poéticas: explicar-se, pôr-se à prova, pôr 0 ato
— na melhor das hipót eses — passai
um trabalho que “faz Escola”. que nos faz eventualmente
da psicanálise.
E
; A via do estilo
os
E Necessidades epistêmicas e éticas dos estud
“Qualquer retorno a Freud que dê ensejo a um ensino digno
e pessoal, didática
desse nome só se produzirá pela via mediante a qual a verdade mais A transformação de um analista pela sua anális
teoria. Laca n espaniaverso
oculta manifesta-se nas revoluções da cultura. Essa via é a única por definição, não o dispensa do estudo da
s o E e
formação que podemos pretender transmitir aqueles que nos seguem. sempre com relação à negligência de algun
não saber do analista,
Ela se chama um estilo”. pretando suas primeiras injunções em prol do
O estilo é o rastro, o sulco, do “próprio mais próprio”, do sin- : justi ivas para a ignorância.
gular, “de si mesmo”, é aquilo que não se autoriza de um outro e, por o red dito LAG deram insistentes orientações a
para estar à altura
isso mesmo, rasga, atravessa, fura o sentido comum. “O que se torna respeito do que o psicanalista tinha que saber,
a pulsão depois da travessia do fantasma?”, perguntava Lacan: um
estilo, podemos responder.
In: Outros escritos, p. 31 E
62. LACAN, Jacques (1970). Alocução sobre o ensino.
“Anthem”, de Leonard Cohen In: http://ww.youtube. com
63. Cf. a música
no o
59. LACAN, Jacques (1973). Nota italiana. In: Outros escritos, p. 314. « watch?v= e39UmEngY8 11. In:
(1976). Prefácio à edição inglesa do Seminário
60. LACAN, Jacques (1971). Ato de fundação. In: Outros escritos, p. 241. 64. LACAN, Jacques
61. LACAN, Jacques (1957). A psicanálise e seu ensino. In: Escritos, p. 460. Outros escritos, p. 569.
60
DOMINIQUE FINGERMANN A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA: A PSICANÁLISE PURA
3. LACAN, Jacques (1958). A direç 4 TREUD, Sigmund (1937). Análise terminável e interminável. e Edição
ão do tratamento e os princípios
poder. In: Escritos, p. 592. de seu standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago,
E
sid (versão eletrônica), v. XXIIL
74
DomiNiQUE FINGERMANN É ANALISE DOS ANALISTAS
75
sua teoria da qualificação do ver dadeiramente uma especie de aberração que valesse a pena Ser
analista quanto sua reformu lação da insti ; k
recolher ; de testemu
ã nho”.
26
tuição analítica e da formação oferecida a tudo quanto pudéssemos
dos analistas que a Escola de Lacan garan
te há mais de 40 anos.
Aberração
A análise do analista produz o desejo de
analista
O que se espera da análise do analista? Esper
a-se que ela pro-
duza os acima mencionados desejo, ato,
função, discurso, dos quais moda. j
depende a prática consequente da psicanális
e e seu futuro. k à E Pp 4
3 êminai
1971-1972). Le séminaire Le savoirj du psychana: lyste.
5. O dispositivo do passe foi proposto por
Lacan em 1967. O passante produz , Basa a E de 1/6/1972). “Comme Je lai souvent ima
0 testemunho de sua passa gem de analisante à analista perant
e dois passa- expérience de la passe est simplement ce que js ab oc
dores, sorteados numa lista de pessoas e
indicadas pelos seus analistas para syoués pour s'y exposer à des seules fins d'informa o
essa função, por estarem no “momento do passe”. Os passadores expõem 7 Eco c'est que c'est tout à fait anormal que quelqu'un e da
o testemunho dessa passa gem do
passante perante uma comissão de o chanalyse veuille être psychanalyste. H y faut vraiment pq Re
garantia: o “cartel do passe” + Que nomei
a (ou não) o passante “Analista de ader qui valait la peine d'être offerte à tout ce quon pouvai
Escola” (A.E,).
témoignage [...]".
À ANALISE DOS ANALISTAS "
76 DOMINIQUE FINGERMANH
essa finalidade: não
; Paradoxo: A posição que esse desejo ocupa na equação do ana- à analista? A análise de qualquer um produz
seu saber
lisante confina o analista em um paradoxo. Antes de tudo, porque a precisar mais de um Outro que complete o seu sintoma com
do sintoma esteja
demanda transferencial é paradoxal, como evidencia o esstapio que suposto. No fim, não é mais preciso que a verdade
estar mais
Lacan propõe para uma tal demanda: “Te peço de me recusar o que te contida no saber do Outro. Finalizar uma análise é não
o, segundo a qual o enigma da
ofereço, porque não é isso!” entivado por, nem cativo da suposiçã
saber do Outro. Lacan sublinha
Subsequentemente, porque é paradoxal sustentar, por um lado existência de Um estaria contido no
já que, tendo passado
a demanda e a operação que a oferta do analista causa, e, por cui que este é um dos paradoxos do ato do analista
do Outro, ele,
bancar a posição de “neutralidade benevolente” que o exonera de toda por conta própria por essa provação da inconsistência
seus analisant es.
resposta complacente e subordinada às armadilhas fantasmáticas do no entanto, tem que sustentar essa posição para com
um desastre,
analisante. No fim, a ausência de resposta do Outro não é mais
Extravagância: O “passe” é o momento clínico em que se pro- tras uma causa.
duz essa ultrapassagem do desejo do sujeito formatado pela fantasia
e a passagem extravagante para o desejo de analista. O desejo na Duração da análise
neurose é formatado pela fantasia, o desejo de analista é um desejo
quando
inédito, seu lance não é editado pela fantasia; esvaziado de ana As análises são longas, mesmo na época de Freud,
os pacien tes queixavam-se
e de gozo; é uma falta que causa. ainda eram muito curtas (alguns meses)
ido após muitas
Contraponto: O conceito de desejo em Lacan se diferencia de sua duração. O final feliz de uma análise é produz
Esse tempo é
de demanda e de gozo: no mínimo, o que se espera da análise do peripécias da transferência, longos rodeios e desvios.
os de suas
analista é que ela o qualifique a não usar da transferência do paciente necessário para que o analisante possa percorrer os meandr
armadilhas de
em benefício de sua demanda de amor, nem de seu gozo singular. determinações inconscientes assim como contornar às
um tempo para
mas possa manobrá-la a partir de um desejo inédito. Nem mestre suas relações objetais na cena transferencial. É preciso
mesmo a partir
nem perverso, ele não vai usar a transferência em benefício vós rodear as significações que o sujeito constrói de si
Tampouco vai reagir à sua inclusão na transferência do paciente cói as suas ficções e identif icações, até
de sua novela familiar e exaurir
dade como algo fora de série
a angústia e seus avatares. Nem angústia, nem demanda, nem gozo na vingir o ponto de origem de sua identi
e após um longo desvio
contratransferência: um contraponto, o desejo de analista, uma função que não se identifica com o outro. “É soment
o origin al” * Ao
lógica que move e desconcerta a entropia da neurose. que pode advir para o sujeito o saber de sua rejeiçã
ar o proces so
longo da história da psicanálise, as tentativas de encurt
icaram tanto a
Finalidade hão foram bem-sucedidas e, de qualquer forma, prejud
lúpica quanto a ética da psicanálise.
os seus
A análise do analista, tanto quanto a análise de qualquer um, é Saber de sua “rejeição original” é deduzir, de todos
de origem como ser único,
orientada pelo seu fim: tanto seu término quanto sua finalidade. O seu enredamentos, que o que lhe dá marca
fim justifica os meios.
= Já mencionamos esse simples toque freudiano quando, em seu
té. ” »” x “e «
Era testamento” “Análise terminável e interminável”, Freud nos
e interminável. In: Edição
isse que a análise termina quando o paciente não encontra mais FREUD, Sigmund (1937). Análise terminável
standard brasileir a das obras psicológ icas complet as.
9. L'identification, inédito
LACAN. Jacques (1961-62). Le séminaire. Llivre
2). “(...) Ce n'est quaprês un long détour que peut advenir
(Aula de 14/3/196
7. Ibid. (Aula de 9/2/1972). pour le sujet le savoir de son rejet originel (...)".
78 DOMINIQUE FINGERMANN
Estilo
. (Analistas Membros passante enquanto tal, ao transmitir para O cartel ele constitui
É ...
nesse momento clínico que ele designa o passador (designação hoje a uma dimensão ética de escolha (de acordo com a insistência de Colette
cargo dos AME da Escola)? Soler sobre este ponto).
Antes de tudo, convém diferenciar o momento do passe, que se Vemos que isso introduz a questão delicada da relação entre fim
testemunha e verifica eventualmente no procedimento, e os momentos de análise e desejo de analista. Quem ainda está na via analisante pode
de passe que são momentos cruciais da análise, que a direção da suportar o desejo de analista?
análise tangencia até que o produto das tangentes cinja e saque o Suspendo essa questão delicada com uma frase de Lacan, que
ponto fora da série que é a sua razão. abre uma pista que podemos seguir em outra ocasião:
Os momentos de passe que pontuam uma análise são momentos Pois então, ou uma porta está aberta ou ela está fechada, por isso ou
de angústia, momento de encontro com o real, ou seja, com o desejo estamos na via do psicanalisante ou no ato analítico. Pode fazê-lo
do Outro sem a proteção fantasmática que dirige o automaton e alternar como uma porta que bate, mas a via do psicanalisante
previne da tiquê. não se aplica ao ato analítico que se julga na sua lógica pelas suas
Podemos destacar dessa experiência clínica dos momentos sequências.
de passe que se verificam após algumas voltas na análise, que “o O momento de concluir resulta da demonstração do impossível
momento de passe”, no caso, não é o “instante”, mas um intervalo
inerente à estrutura.
de tempo que tem uma certa duração, durante a qual o analisante O momento do passe, que pode se verificar no dispositivo como
oscilará e será desassossegado por vários “momentos de passe” até passagem, báscula via o desejo do analista, evidencia, destaca algo da
que ele possa dizer “É o momento!”. Essa certa duração permite ordem da contingência, correlata ao impossível, mas no mais além,
explicar que os passadores designados permanecem um “certo” tempo excesso exceção, ex-cessão.
na função. O passador balança e o passante bascula quando declara
“É o momento!”. Essa temporalidade peculiar precisa ser levada em
conta em nossos dispositivos institucionais — quanto tempo alguém
O PROCEDIMENTO DO PASSE
passa no “momento do passe” e pode figurar na lista dos passadores?
Alguém que interrompeu sua análise (interrompeu a oscilação) —
pode continuar na lista dos passadores, supostamente capacitados Desde 1967, ninguém mais discute a existência do “momento
por estarem “no momento do passe” para ouvir os passantes e de fato do passe” na clínica, a controvérsia se faz em torno do procedimento
sustentar o dispositivo? (CO passador é o passe”). que, diz Lacan “duplica o momento do passe com sua colocação em
Essa duração é o tempo da oscilação, do vacilo do movimento causa nos fins de exame?”
pendular de uma balança que perdeu o peso, o lastro, e não equilibrou, Que procedimento é este? É um aparelho, uma experiência,
ainda, a sua gravidade. Ainda não, quase, por um fio, é o começo um palco? Qual é o modo de proceder, qual é o modo de produção,
do fim que pode dar muitas voltas ainda, oscilando entre o conforto exame, testemunho. chiste? Qual é o produto: um julgamento, um
subjetivo da transferência e suas vicissitudes e uma destituição passe de mágica, um dizer, uma nomeação?
subjetiva que não se conforma ainda com o de-ser do analista e a
inconsistência do Outro, ainda não: momentos depressivos indicados
por Lacan (momentos inimitáveis — diz ele — não adianta fingir).
Um começo do fim que pode dar muitas voltas e até mesmo cair em SOLER, Colette. Variantes da destituição subjetiva: suas manifestações,
suas causas (Aula 1). Stylus, Belo Horizonte, n. 5, 2002.
tentação de infinitização ou de reação terapêutica negativa, em que se LACAN, Jacques (1967). Réponse aux avis manifestés sur la Proposition
apreende que se a direção da análise se orierita tangencialmente para (version transcription), inédito (Tradução nossa).
o passe, além da lógica própria do tratamento, tem que ser incluída LACAN, Jacques (1967). Discurso na E.F.P., op. cit, p. 276.
DOMINIQUE FINSERMANN O PASSE 91
O procedimento é o acolhimento institucional do
momento lógica do significante e o “pas de sens”" que ela permite: como passa
clínico, é o dispositivo/aparelho, cujo funcionamento
permite que o nos ditos o que não está nos ditos?
momento do passe — fugidio, desvanescente, por excelê
ncia — seja Christian Dunker!! desdobrou a estrutura do chiste do passe
recolhido.
incluída na sua letra: passe — passant — pas sans — pas de sens —
pas de sens...
Testemunho Le dire du passant passe pas sans le dit [O dizer do passante
passa não sem o dito. |
O dispositivo (passante — A.M.E. — passador — Le dire du pas de sens du passant passe au pas de sens [O dizer
cartel do
passe)* é um aparelho destinado à produção de um produt - fora do sentido do passante passa no passo de sentido.
o: apreender
um momento, isto é, recolher o testemunho de uma ocorrê O passe, diz Lacan, é “pas sans le savoir”2 não sem o saber, o
ncia.
O momento, mudança, báscula, ocorrência, precisa ato passando o saber: “passant le savoir”, ultrapassando o saber.
ser testemu-
nhado — isto é, passado aos ditos — para que, na sequên
cia dos ditos,
se verifique (“se julgue”) seu dizer. O dizer é da ordem
do real impos- Passe de mágica: L'étourdit'
sível dos ditos que sustenta a sua repetição, a sua sequên
cia, é a causa
e o limite da série (que, na matemática de uma maneira
exemplar, se O dizer — o que está fora dos ditos, aquilo que o dito não conta,
cifra e permite mil feitos).
a volta não contada dos ditos — não passa sem os ditos (testemunho)
O testemunho é passado ao crivo pelo cartel para
reter da ditosos que o cartel precisa ouvir dos passadores. O dito ditoso — o
experiência analítica aquilo que conta para sua reprod
ução: o seu chiste — diz mais do que a boca, mostra o “mais além”, algo que não
dizer. O que conta é a identificação, localização da volta
não contada está nos ditos, que aí está esquecido (“gu 'on dise”).
nos ditos, causa do ato, o furo do saber que especifica a verdad
e como O “momento” precisa ser passado aos ditos para que se
não toda. No testemunho do passe, não se diz “Toda” à
verdade; pelo manifeste o seu dizer, a sua volta não contada, no cálculo do
contrário, é um testemunho do não todo que deve “passa
r” para ser “étourdi”, do esquecido, a volta é não contada, mas contável, ela não
nomeado, ou seja, como diz Beatriz Oliveira, “o que se
transmite no é inenarrável. No passe, esse giro esquecido no cálculo neurótico pode
passe é um intransmissível.
ser contado e contar como causa inesquecível do ato.
Chiste
cronológica do que ouviram, para não deixar escapar nada, outros Em algum momento, se produz uma red ução da encenação
trazem as ordenações e construções dos passantes, outros organizam topológica em conclusão lógica — se reduzem os fenômenos, se isola
a sucessão das entrevistas, e cada um segue uma ideia, um método, a estrutura até que se identifique melhor (eventualmente) a ocorrência
com muito cuidado. Às vezes se embaraçam com os conceitos, às do excesso, exceção, mais além da estrutura do significante e do
vezes porque o próprio passante se embaraçou com eles. Às vezes, sujeito suposto.
um pouco tímidos e constrangidos no começo, e depois, por causa O texto se transforma em toro, o cartel, torcendo e cortando,
das intervenções do cartel e da cena que se abre aí, os passadores se vai fazer aparecer os diversos giros dos ditos: 1 1 1, que, uns após os
revelam mais atuantes. outros, permitem deduzir o dizer que os condiciona. Os passadores
O cartel, primeiramente quieto, reservado e atento, não demora se inquietam um pouco com o assédio do cartel: conte de novo,
muito para se meter e se intrometer com seu estilo e seu estilete dife- como foi? Quando? Quem? Com quantos anos? Sem esquecer que
renciado. Uma surpreendente investigação topológica se configura as perguntas e respostas surgem, cortam o texto em qualquer língua:
então: esticar as superfícies dos relatos, explorar as vizinhanças, francês, português, italiano, inglês, espanhol.
visitar as extensões, evidenciar os furos, os verdadeiros e os falsos E necessário esclarecer que o intuito dessa insistência não é
(lembrando que em topologia um furo verdadeiro é um furo que reconstruir, nem completar a verdade histórica do drama do sujeito,
permite a travessia). Cada membro do cartel participa do jogo trans- mas verificar uma certa coerência lógica, usar as incongruência para
formando o texto em superfície topológica, eles seguem os contornos, fazer aparecer os giros ocultados e, sobretudo, decompor os textos na
pegam atalhos, cortam desvios, põem o testemunho de cabeça para sua trama e, pouco a pouco, nas sequências, nas séries infinitas 1-1-1-
baixo, produzem uma outra perspectiva. O intuito não é descon- |-1- das quais os lances, as jogadas do cartel fazem, pouco a pouco,
certar os passadores, que, em geral, se espantam e depois se deixam produzir o princípio de recorrência, a cifra que impõe a sua lógica de
surpreender e colaboram com gosto à exploração/transformação de deciframento às cadeias significantes que amarravam o passante à
seus textos em superfícies topológicas. suposição de um sujeito representado para um Outro. a
Em todos os casos os passantes e os passadores foram extrema- Isso é o primeiro movimento dessa investigação topológica.
mente aplicados e dedicados em explicar a neurose e sua construção O texto, assim desdobrado e recortado, permite verificar o
pela análise e, nesse sentido, a participação em um Cartel do passe trabalho da análise do analisante eventualmente até seu termo,
proporciona o privilégio de “aulas” de psicanálise extraordinárias! evidenciar 0 toro que as voltas exaustivas da demanda configuram
Este cuidado é necessário, mas não suficiente, ser fiel aos fatos e seu complemento neurótico, e construir como um cross-cap a
e dizer a verdade, toda a verdade, não alcança o real em jogo. Com estrutura da fantasia. O trabalho do cartel a partir dos testemunhos
eleito, não deixar escapar nada, tentar passar despercebido, neutro, evidencia como a fantasia providencia para um sujeito uma ocultação
transparente, produz uma coisa muito redondinha, mas o trabalho do do furo verdadeiro da estrutura, até que o ato analítico, o corte do
cartel, a sua produção, cuida de desestabilizá-la para que a demons- desejo do analista, saque a sua constante, obturando a estrutura de
tração não encubra nem obture a monstração. repetição — e saque e destaque a sua causa — o objeto a-normal: a
O procedimento transforma um texto em uma cena em que razão da série. l
cada um é ator da investigação topológica, se engaja aí sem tirar o No segundo movimento, o testemunho precisa dar notícias
corpo fora. O modo de produção do cartel, o tratamento desses textos da separação, dar prova do passo fora do espaço desenhado pela
cruzados, precipita, na cena do cartel, a sua deformação, transformao suposição de um sujeito ao saber do Outro. O passo fora, o momento
texto linear em cross cap, evidencia um toro neurótico enlaçado com o em que o prisioneiro sai de sua lógica neurótica e faz o passo fora do
toro do Outro, corta no toro uma banda de Mcebius, passe de mágica: vetor do sujeito suposto saber, mais além da instituição subjetiva: a
aparece a volta não contada... destituição subjetiva.
DOMINIQUE FINGERMANN O PASSE 99
Que “traduzo” livremente, por ora: o não sabido (L'insu) que surgir um tipo de sentido que esclarece os outros sentidos, a por de
sabe da mulher não toda (/'une-bévue) permiteo acesso à contingência
colocá-los em questão, quero dizer, a ponto de suspendê-los”.
do amor (s'aile à mourre) à condição de topar com o “in-sucesso” É assim que, por enquanto, consigo responder à questão bibli ca
(insuccês/insu que sait)? retomada por Freud nos “Estudos sobre Histeria”: “Wie kann ein
Então, mais uma vez: “vous ne dites rien!"”, “vocês não dizem solches Kamel durch das Nadelóhr?”;* quando, justamente, interroga
nada!” a possibilidade de transmissão da experiência da análise:
Seria, então, justificado que se fale da “hipertrofia do dispositivo
e da escassez dos resultados”?
“Se fosse possível, depois de um caso ter sido completamente
Vou concluir, no entanto, com uma coisa muito pequena, muito elucidado, mostrar o material patogênico a outra pessoa naquilo que
fútil se comparada ao estorvo magnífico do labirinto de uma neurose, agora sabemos ser organização complexa e multidimensional de tal
Algo minúsculo que passou nesse crivo (0 passe) que deixa passar
o caso, com razão nos seria perguntado como foi que um camelo como
incrível, permite uma nomeação: fixão outra do real. esse passou pelo buraco da agulha”.
Em uma análise imensa, (décadas) cheia de cireunvoluções
tão complexas de descrever quanto um cross-cap, destaco um ponto
em torno das vicissitudes do objeto olhar, com certas consequências
para o feminino, confinando o sujeito muito aquém “da mulher sem
vergonha”, Recorto um significante. “bolsa”, na qual carregou vida
afora diversas formas das pedras, lastro da insustentável leveza
do ser, “cálculo” neurótico do gozo. Após a análise, ocorre essa
pequena cena, traço minúsculo no labirinto dessa análise, mas, junto
com alguns outros, conseguiu chegar até nós, cinco de um cartel
trancafiados em um hotel no Rio de Janeiro.
A passante conta esse pequeno detalhe: ela entra desprevenida
(sem vergonha), em um elevador onde se encontra, por acaso, com sua
ex-analista, que lhe diz: “que bolsa bonita!”.
O cartel gargalhou, o passador também. Depois daquela trama
montada, que nos tinha deixado à beira de um drama, horas a fio, a
neurose de X não fazia mais sentido.
Concluo com uma frase de Lacan do seminário Les non dupes
errent: “pois essa prática, não somente tem um sentido, mas faz
33. LACAN, Jacques (1973-1974). Le séminaire. Livre 21. Les non dupes errent,
inédito (Aula de 14/5/1974). “(...) car ceite pratique, non seulement a un sens
32. Linsu que sait de 'une-bévue s'aile à mourre é O título do Seminário 24, mais fait surgir un type de sens qui éclaire les autres sens au point de les
de Jacques Lacan. Essa frase pode ser “traduzida” de muitas maneiras, o
a remettre en cause, je veux dire les suspendre”.
partir das diversas ressonâncias que se desdobram, deixando forçosam
ente . FREUD, Sigmund (1895). Estudos sobre a histeria. In: Edição standard brasi-
escapar O sentido e apontando para algo que não se traduz — o incons- leira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, s/d (versão
ciente —, mas se apreende no equivoco.
eletrônica), v. Il.
DISPOSIÇÃO DO ANALISTA
O CARTEL DO PASSE*
Sustentar essa posição é5 uma aberração,ão dizdi Lacan. 1
Como alguém pode se prestar a pôr novamente em jogo algo
que lhe custou tanto perder, ceder, largar. destituir, esvaziar? Pois é
justamente apenas na medida em que alguém se “acha” fora da medida
a K cu E a
Texto originalmente publicado em em Wiunsch 11 — Boletim Internacional LACAN, Jacques (1967). Proposição de 9 de outubro sobre o analista da
da Escola. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 260.
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Brasil, Nov/2011.
LACAN, Jacques (1967). Proposição de 9 de outubro sobre o analista da
Esse cartel do Passe funcionou de 2010 a 2012 e foi composto por Anita
Escola (Primeira Versão). In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
Izcovich, Dominique Fingermann, Marc Strauss, Pascale Leray
e Rosa Escapa. 2003, p. 582.
DOMINIQUE FINGERMANN 111
O PASSE
No decorrer de dois anos de exame dessa questão, e para fazer Essa escolha não constitui uma promoção, nem reconhecimento
ressoar a experiência do cartel do passe, conto evidentemente me de análise finita, nem atribuição de selo de análise bem-sucedida.
beneficiar das particularidades do trabalho em cartel: a experiência É preferível que o passador escolhido não seja informado
dos encontros com os passadores de nossa Escola (sua voz, sua fa- dessa designação, orienta Lacan, mas fazê-lo pode decorrer de o
la, seu discurso), a experiência do trabalho com os 4+1 (reflexão, i
A cortesia”, i
em resposta da qual ele pode declinar a honra outorgrgada.
argumentação, formulações, reviravoltas, desassossego, suspiros,
fulgurâncias, achados etc.). Enfim, espero poder avançar nas elabo-
Eles estão no passe
rações contando com os poderes da experiência e da fala (seu efeito
sofístico) que favorecem uma abordagem tangencial do real em jogo Enquanto o passante declara ter transposto o passe, isto é, não
na experiência. mais estar na via analisante que supõe a transferência e o enlace
Levarei em conta os trabalhos publicados pelos CIG atuais e analisante com o Sujeito Suposto Saber, o passador, por sua vez,
passados. está no passe, porém aquém do passo fora de jogo da via analisante,
Utilizarei também alguns interlocutores como Walter Benjamin, aquém da de-cisão. Ele tem a experiência de analisante “ainda ligado
Barthes, Blanchot, Lévinas e alguns outros que me auxiliam em ao desenlace de sua experiência pessoal”.
geral a expandir meu campo de visão, mas mais particularmente aqui O passe inscreve-se, portanto, em uma duração que precede o
no que diz respeito a noções como: a experiência, a neutralidade, o instante do ato. Indicação que nos abre para o campo e o canteiro de
testemunho, a narrativa, a tradução, a presença, a voz. obras de nossas elaborações pós-experiência. Isso levanta a questão
O texto que segue é, portanto, apenas um primeiro passo em de nossa medida institucional dessa duração: o tempo limite em que
sequência à primeira experiência de trabalho desse cartel. uma pessoa pode permanecer indicada como passador e ser sorteada
pelos passantes.
Isso implica a discriminação daquilo que, neste momento-du-
As referências de Lacan
ração do passe, permite predizer aí a potência do ato, ou ao menos á
Mas retomemos as coisas do princípio: quais são as indicações capacidade para o futuro passador de apreender a “diferença absoluta
de Lacan a esse respeito, já que lhe devemos a nomeação do momento de onde se proporcionam seus efeitos. O que será? Quais são os
clínico do passe assim como a invenção do dispositivo cujo passador “index” desse momento? Será um tratamento novo da repetição, como
é o elemento-chave? Exceto o lance inicial da “Proposição de 1967”, princípio de repetição? Serão modalidades diferentes da resposta à
as referências de Lacan são sucintas, embora precisas, e nosso angústia? Será abalo ou rachadura da solução fantasmática? Será um
certo rasgamento na tela da verdade?
comentário se baseia nessas formulacões.
Trata-se sem dúvida da avaliação pelo analista da relação com
um certo furo (trou) nesse ponto de percurso analisante, que se
Os passadores são escolhidos verifica então mais como zrou-matismo* do que como traumatismo.
Eles são escolhidos, nomeados, eleitos, designados por seus
analistas, indica diversamente Lacan. Estes têm a responsabilidade
desse discernimento a encargo deles: eles respondem por essa 4. Troumatismo: neologismo inventado por Lacan em 1974 que equivoca trau-
indicação declarando, perante a Escola, que esses analisantes estão no matismo e trou (“furo” em francês). O furo da castração, da “não relação
momento do passe. Está acordado, portanto, que o momento do passe sexual”, da falta do Outro, é traumático. Mas ao mesmo tempo, 0 trau ma que
incide sempre contingencialmente é estrutural o que deveria aliviar algo da
possa ser discernido, na experiência, pelo analista. sua carga dramática.
112
DOMINIQUE FINGERMANN O PASSE 3
“
Efeito que, em certa medida, justifica o afeto da dita posiçã
o depres- se surpreender com eles, e daí se deixar causar e saber dizer alguma
siva do passe, da qual “não pode se dar ares”: o trauma
não passa de palavra que impacte o colegiado “de advertidos”!
um furo; não há um Outro que sustente, nem mesmo o
outro da inde- Se há, portanto, uma descontinuidade, entre a posição depressiva
cência do trauma, o abuso ou o abandono do outro traumá
tico podem notada por Lacan em 1967 e o entusiasmo da “Nota italiana”, de 1974,
ser verdadeiros, porém não dão conta do furo inaugu
ral e real que trata-se da distância entre os dois extremos do passe e uma relação
nenhum sentido poderá cerzir (indécence — inde-sens).
topológica entre o oco da posição depressiva (“o horror próprio
O passador — “passoire” (coador) —, é utensílio
furado cingido”) e o eco, o ricochetear do lance de entusiasmo.
(Iroué), propício para recolher os achados (trowvailles).
O passador
é esse “corredor, essa falha, por onde quis fazer passar
meu passe”,
diz Lacan: é isso a “outra diz-mensão” do passador,
outro sítio do Nossa EXPERIÊNCIA
dizer: “Para recolher (esse testemunho) de um outro,
é preciso outra
diz-mensão: a que comporta saber que o analista, da queixa,
não faz
senão utilizar a sua verdade”.º O passador é, portanto, As observações e recomendações de Lacan são sucintas, mas
advertido por
sua experiência de que a verdade que dá sentido à queixa constantes no transcorrer dos quase 12 anos de sua participação na
é utilizada
apenas para fazer limite ao saber do inconsciente (real). experiência do passe. Em contrapartida, desde o princípio de nossa
O passador
não é tapado, nem tapeado pela verdade, ele topa. liscola — 15 anos — de múltiplos textos, em todas as línguas da
Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano (IFCL), trataram
Eles são próprios para quê? da questão do passador: sua competência, sua performance e sua
experiência são examinadas e avaliadas pelos cartéis do passe e pelos
O que é que os qualifica para o acolhimento do testemunho próprios passadores. Dizer “a questão” do passador não é colocar em
ea questão a competência ou o desempenho desse ou daquele passador,
transmissão da experiência?
Eles são distintos, é a sua honra, e ei-los empenhados mas sublinhar o aspecto único, paradoxale capenga de sua posição.
em um Poderíamos dizer “o paradoxo do passador”, como Lacan dizia
Ofício e em uma dignidade de que se trata de não desonrar.
Constatamos “o paradoxo do ato analítico””: como sustentar a experiência da
que Lacan não hesita em qualificar os passadores a partir
de carac- transferência uma vez tendo saído da via analítica, perguntava-se
terísticas propriamente éticas, isto é, sua “consideração”
para com o Lacan a respeito do analista? Como dar voz ao ato, reverberar seus
real.
Eles são capazes de acolher, diz Lacan, e de recolher os efei eleitos quando ainda se está sob o jugo da transferência e trilhando
tos do 1 via analítica, podemos talvez dizer a propósito do passador?
ato, e de testemunhar, em seguida, as notícias da experiê
ncia do passe | embremo-nos dessa advertência de Lacan: “Porque, afinal, é preciso
do passante, isto é, a passagem da via psicanalisante ao
ato analítico. que uma porta esteja aberta ou fechada, e é assim que se está ou na via
Podem-se demonstrar as condições dessa passagem, as
vias de psicanalisante ou no ato psicanalítico. Podemos fazê-los alternar-se
invalidação do impasse da transferência: é o que Lacan
chama de “a tal como uma porta bate, mas a via psicanalisante não se aplica ao
análise lógica do passe”. Mas esse momento crucial de
passagem ao ato psicanalítico, cuja lógica se julga na sua lógica pelas suas conse-
ato do passante só pode se provar em seus efeitos: possa
o passador quências”* E então perguntamos: como o passador pode testemunhar
5. LACAN, Jacques (1973). Sobre a experiência do passe. LACAN, Jacques (1968-69). O seminário. Livro 16. De um Outro ao outro.
Ornicar?, Paris. n. 13, Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 333. o
p. 117.
6. LACAN, Jacques (1974). Nota sobre a designação dos LACAN, Jacques (1967). Réponse aux avis manifestés sur la Proposition
passadores, inédito. (version transcription), inédito.
114 DOMINIQUE FINGERMANN O PASSE
115
da lógica do ato e de suas consequências se ele ainda está no passe, esse tópico, mas preferimos trilhar a “insondável” virtude do passador
“ainda ligado ao desenlace de sua experiência pessoal”. por outras vias.
O paradoxo do passador decorre sem dúvida da duração do
momento do passe, em que se alternam como uma porta que bate o
impasse e o passe, a angústia e o sinthoma por vir, momento paradoxal A SENSIBILIDADE DO PASSADOR
do ato em potência: esse tempo desconfortável é o tempo do passador.
Em nossas elaborações desses 15 anos, quer elas provenham dos A metáfora da “placa sensível”, emprestada da linguagem
passadores ou dos cartéis, uma expressão entre outras, distingue-se
técnica da fotografia, foi utilizada por Miller em 1990 em um texto
para elucidar a capacidade do passador em testemunhar os efeitos do
chamado “A Escola e seu psicanalista”.”” Ela nos pareceu, até então,
ato cuja firmeza, no seu caso, escapa-lhe ainda: o passador funcionaria conveniente para dar conta do paradoxo do passador e de sua qualifi-
como “placa sensível”. Essa expressão parece se impor com uma certa cação indispensável para a experiência.
evidência e com o assentimento de todos aqueles que participaram da Desdobremos essa referência analógica” interessante por mais
experiência, o que nos inclinou inicialmente a escolhê-la como tema de um motivo, pois ela supõe um dispositivo em dois tempos, o tempo
do trabalho de nosso cartel. do negativo e o tempo da revelação, assim como é aparelho de passe
Notemos, contudo, que, até onde sabemos,º essa ex pressão não supõe um primeiro tempo, em que o passador está impressionado, e
foi utilizada por Lacan para falar do passador. um segundo, em que ele impressiona o cartel. me
Lacan utilizaria duas vezes essa expressão em seus seminários: Refiro-me aqui ao artigo “Fotografia” da Enciclopédia Uni
em 1954, no seminário O eu na teoria de Freud e na técnica psica- Universalis.!*
nalítica, para precisar o que não é o aparelho psíquico, no decorrer de
(...) A placa sensível é o elemento químico receptor, sensível à luz e
um comentário de O “Projeto...”!º e em 1967 em O ato psicanalítico, que o aparelho fotográfico (analógico) vai colocar um instante em
para precisar o que não é a interpretação."
contato com a luz emanante do objeto fotografado.
Inclusive, não é desinteressante reler essa passagem do As partes claras do sujeito fotografado, que emitem uma quanti dade
Seminário 15, em que Lacan procede, mais uma vez, a uma releitura importante de radiação em direção à camada sensível, produzem mais
do Mênon. É, para ele, uma boa ocasião de interrogar o lugar do saber, escurecimento ou formação de corante do que suas partes escuras, que
esse saber sem sujeito em relação ao qual Platão evoca a reminis- absorvem uma fração importante da radiação incidente, reenviando
cência da alma, e que Lacan, à procura desse saber insabido, encon- bem pouco em direção à camada sensível. A imagem primária gravada
trará do lado do em-corpo (en-corps/encore), conforme desenvolvido encontra-se, portanto, invertida; é qualificada, então, de negativa. Para
no giro do Seminário 20: Mais, restituir o aspecto inicial, é necessário repetir a operação para obter a
ainda (Encore). Eventualmente, ed
emergem “do nada” acontecimentos de corpo, lapsos e repetição, imagem positiva.
Se por um lado, basta uma quantidade de energia mínima para
saber emanente, imanente, mais do que eminente. preciso uma quantidade de
impressionar a superfície sensível, é
É a respeito do escravo inocente/i gnorante do Mênon que Lacan
evoca a “placa sensível”; poderíamos certamente desenvolver mais
da psicanálise: seus interlocutores/objetores fictícios não podiam hystorização do passante e dar conta de seu testemunho. Aquilo que
ouvir o que ele dizia, pois eles próprios não tinham “a experiência” da se concebe (Begriff) bem se enuncia claramente.
psicanálise. Já alertava que essa transmissão não dependia da razão, A hystorização da análise do passante no procedimento do passe,
mas do réson,'* da repercussão de suas ressonâncias. O passador, se ou seja, a demonstração de suas passagens em torno do troumatismo,
ele estiver “no passe”, precisa ter uma experiência da análise que não atestam a travessia do plano da verdade, isto é, a saída do plano do
seja simplesmente a do analisante e de sua neurose de transferência. traumatismo, ela implica que o passante tenha topado com o ab-sens.
O passante testemunha — ele fala, sua fala desmonta, demonstra Para que o passador tenha o “entendimento”, “ouvidoria” disso
e mostra: o passador deve disso ter o “entendimento”, e ser bom de [entendement] é preciso que ele tenha sido sensibilizado por sua cura
ouvido [entendement].'º ao impossível acesso ao real, e que daí possa flagrar os seus achados
Ele deve, primeiramente, ser um bom entendedor [entendeur] próprios inventados para se virar com isso, sensibilidade que seu
da demonstração do passante. A decupagem de sua cura em seus tratamento da angústia, da repetição, e do sintoma atestam: é a prova
momentos cruciais, suas soluções de descontinuidade, as diferentes ética do passador.
passagens da angústia produzidas pelo topar com o real, a evidência O que prova um passador é sua “consideração” pelo real, sua
do tapar fantasmático, e os cortes do analista que irrom pem de vez na relação com o saber (do inconsciente real) e paradoxalmente, a po-
solução de continuidade que é a transferência, devem suficientemente tência do ato (o ato em potência) que daí se deduz. O que prova um
impressionar sua placa sensível. É preciso um passador lógico.” Não passador é a constatação, em sua cura, de uma porta que bate em
seria conveniente, de fato, que ele rebaixasse a hystorização”! do alternância, rasgando a cada vez um pouco mais a verdade na qual ele
passante a uma historieta de sua vida. conforma sua fantasia. É a repetição que rasga a verdade, se o ato do
Walter Benjamin?” distingue dois níveis de experiência: Erlebnis, psicanalista souber esvaziá-la de seu drama e produzi-la como furo
a experiência vivida, o choque do real saturado de acontecimentos da trama.
e sensações, e Erfahrung, a experiência da travessia do vivido. O Topar com o ab-sens é encontrar o equívoco fundamental de
passador lógico deve, portanto, ter uma certa experiência de sua todo significante no cerne dos mal-entendidos de sua neurose, não é
própria travessia da verdade, e não simplesmente estar sob efeito da sem consequências poéticas: pois como na poesia, o sentido sacado
experiência da transferência vivenciada para poder estar sensível (sens issu”) do sem saída (sans issue) surgiu do fora de sentido
à
insabido; o passe é sacado (e “sacada”) do impasse. Para além de sua
demonstração, o passante “mostrará” (apophanai) por sua fala, pelo
18. Réson: termo usado por Francis Ponge que produz uma consonância
entre tcor e a modulação de sua voz, os efeitos do ato que lhe soltou alíngua
raison (“razão”) e réson, e evoca a ressonância que o significante carrega,
independentemente de seu sentido, ou seja, de sua razão. presa com as palavras, constrangidas pelo sentido. A experiência da
19. LACAN, Jacques (1958). A direção do tratamento e os princípios
de seu
análise do passador ainda “no momento do passe” deveria dar-lhe
poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 622 '[...] Ce que entendimento-ouvido [entendement] suficiente para que ele esteja
jécoute est d'entendement”. Expressão destacada e comentada por Colette
sensível ao passe do passante. Assim como a escuta da música afina
Soler em seu seminário 2007-08 — O inconsciente: o que é isso? (São
Paulo: AnnaBlume, 2012), capítulo IIL.
cada vez mais a orelha e permite ter acesso repentinamente àquilo a
20. Referência ao “analisante lógico" notado por Colette Soler. «ue éramos surdos no instante anterior.
21, Hystorização/Hystória: neologismo que condensa hystérie (histeria)
e histoire
(história), apontando para o fato de que aquilo que faz história, o romance
de cada um, é a suposição no significante outro do enigma da identidade:
princípio da histeria. “3. Sens-issu: Lacan usa o trocadilho entre sens-issu e sans-issue no Discurso
22. BENJAMIN, Walter. Expérience et pauvreté. In: CEuvres lle CEuvres na EFP (06/12/1067); no entanto, a tradução em português da Zahar não
Il. Paris:
Folio Gallimard, 1933, p. 364 e p.114 (respectivamente). marca o equ Ívoco.
120 DOMINIQUE FINSERMANN 121
O PaSsE
A narratividade
24. Referência ao filme Melancholia (2011) do diretor dinamarquês Lars von 25. LACAN, Jacques (1970). Alocução sobre o ensino. In: Outros escritos, op.
Trier.
cit., p. 305.
122
DOMINIQUE FINGERMANN O PASSE 123
Assim, o contador deixa ali seu traço, “como a mão do oleiro sobre o de uma capacidade daquilo a que Lacan chama de “um novo amor”,
vaso de argila”. isto é, de uma abordagem do outro no nível de sua mais radical estra-
nheza, uma conexão oblíqua com o litoral de seu saber inconsciente.
O ato fotográfico A “sensibilidade” do passador deve-se talvez a uma certa “amizade”,
no sentido de um bom “ouvido” (entente) pelo inaudito, no sentido em
Reencontramos a metáfora fotográfica, mas dessa vez evitando que Blanchot, falando de Bataille, diz:
relegar o passador à passividade que poderia evocar a metáfora
A amizade, essa relação sem dependência, passa pelo reconhecimento
da “placa sensível”. Há no testemunho algo da ordem do ato da estranheza comum (...). Devemos acolhê-los na relação com
fotográfico,” isto é, um flagrante do instante em que o referente (os o desconhecido, em que eles nos acolhem também em nosso
momentos cruciais do filme ou o ato do passante) faz sinal, produz distanciamento (...) distância infinita, separação fundamental a partir
efeitos e justifica que se dê testemunho disso. da qual o que separa torna-se relação.”
O que em uma fotografia testemunha do ato do fotógrafo é
quando aquele que a olha pode ali discernir algo como um punctum, A voz do passador
diz Barthes, distinguindo-o do studium. O punctum, cujo referente é
um ponto fora de linha, fora de campo do studium, é fora de código, Há uma diferença absoluta, uma “identidade de separação”!
“é um suplemento: é o que se acrescenta à foto, e que, entretanto, está que deve passar: não sem a voz de um em que, a partir do “inevitável
Já ali”* um pequeno detalhe pontudo que não se mostra forçosamente equívoco da palavra viva”,”? pode re-soar a alteridade singular do
intencionalmente, que denota uma incoerência para com o resto da outro — o passante — a fim de que “a repercussão mesmo do ser”,
imagem. No testemunho do passador, no sentido do ato fotográfico, esse desejo inédito, impressione suficientemente o cartel.
apreensão de um instante fora de campo, é muitas vezes um detalhe
que averigua o passe: “Um detalhe fisga toda a minha leitura: é uma
mutação viva de meu interesse, uma fulguração. Pela marca de algo,
a foto não é mais qualquer”
O amor do narrador
26. BENJAMIN, Walter. Sur quelques thêmes baudelairiens. In: CEuvres Ill. Paris,
Folio Gallimard, 1940, p. 335.
27. DUBOIS, Philippe. L'acte photographique. Paris: Nathan, 1990.
28. BARTHES, Roland. La chambre claire. In: CEuvres Complêtes— Vol. V. Paris: 40. BLANCHOT, Maurice, L'amitié. Paris: Gallimard, 1971, p. 328.
Seuil, 1980, p. 833. 51. BARTHES, Roland. La chambre claire, op. cit. p. 833.
29. Ibid., p. 828. 32. BLANCHOT, Maurice. L'amitié, op. cit., p. 328.
O passe 125
diz-mensão daquilo que ele foi, como resposta do real. É ali que ele encontra? O que é que ressoa, o que é que re-soa (ré-sonne)? “Ao
se encontra — ali onde ele não se procurava —, já que ele estava em melhor que se pode esperar da psicanálise em seu fim”, uma outra
busca de sua verdade perdida. É ali que ele se encontra, puro fala-ser, música pode tocar a letra; uma outra ressonância ultrapassa o crivo do
nessa resposta do Dizer, essa é sua responsabilidade inicial diante da mal-entendido e conseguimos nomeá-lo: Analista de Escola.
alteridade (A) que, subitamente, marcou-se no em-corpo (en-corps) Podemos testemunhar isso, como o faz Lacan, passador de
para todo sempre. E ali que ele se encontra, único em resposta à Duras, quando afirma “que a prática da letra converge com o uso do
alteridade radical do Outro, que o deixa totalmente só. Onde havia inconsciente é tudo de que darei testemunho”;” podemos testemunhar
repetição, ele encontra sua unicidade (uniqueness). quando o uso que o sujeito faz do inconsciente converge com a letra
“To make difference” é quando podemos dizer “Isto é alguém”; e o que ele, com efeito, faz dela (e não com o sentido) que podemos
quando um “gozo opaco” não deixa mais dúvidas nem esperança de declarar: passe!
verdade. Evidenciado assim, a constatação e localização de um gozo Algumas vezes, nos testemunhos, transmite-se alguma coisa que
opaco que não deriva em “jouis-sens”, em gozo do sentido, tira do carrega os efeitos da letra, se destaca ali o percurso de suas peripécias,
anonimato o que pode ser nomeado como Há Um (Ja d'"'Un). se escancara como o jogo da decifração embaralhava sua cifra e a
De fato, podemos constatar que a experiência do passe está havia feito passar do signo (de gozo) ao sentido gozado (jouis-sens).
acontecendo em nossa nossa comunidade psicanalítica: os analistas “O real no passe... e o que se pode atestar de seus efeitos”* foi
não somente pensam no passe mas dão um passo adiante, arriscan- a questão de nosso cartel, e as elaborações de seus diversos membros
do-se na experiência. O cartel do qual participei, em 2010-2012, prestam contas dessa indagação.”
ouviu nove passes, portanto, dezoito testemunhos de passadores. O No entanto, com relação ao passe, será que poderia haver uma
Colegiado Internacional da Garantia (o conjunto de todos os cartéis outra questão? Esperamos que os passantes nos ensinem, cada um a
do passe), no mesmo período ouviu 25, ou seja, 50 testemunhos de seu modo, sua maneira de responder à questão que cada análise coloca,
passadores. como: “a passagem pelo real, e seus efeitos, efetivamente modificou,
Em alguns deles, pudemos decidir e concluir “há analista”, ou mudou, transformou sua relação ética com seu próprio gozo”.
seja, “Isso, é alguém” (“Ça c'est quelgu 'un!”). Alguma coisa levou Poderia haver outra questão, se o passe como procedimento
algo, um signo de uma diferença absoluta até os cinco do Cartel, verifica o passe clínico, isto é, o deslastrar da verdade mentirosa em
isto é, “aquilo que entendo que uma carta/letra carrega para chegar a seu encontro com o real (re)produzido na clínica, ou seja, na trans-
seu destino”.* Nos testemunhos verdadeiros. a verdade está no lugar ferência. Poderia haver outra questão se ele testemunha a redução
do reú, pode haver, no entanto, por essa via, a transmissão de uma da verdade ao semblante que, por definição, não recobre o Real. Há
“suspeita” de real, um rastro de real. alguma outra questão além de tentar fazer saber como a operação do
Outras vezes, a maioria delas, não pudemos concluir. Por quê?
O que é que faz a diferença? O que é que se encontra, ou que não
LACAN, Jacques (1971). Lituraterra. In: Outros escritos, op. cit., p. 15.
o
* lógica do impasse do Sujeito Suposto Saber, que prova que sua A PROVA DA TRANSMISSÃO
verdade veio para a corte, sentar-se mais no banco dos réus do
deparamos como Cartel é a da
no banco das testemunhas." 0 Uma dificuldade com a qual nos ível,
* poética do gozo da alíngua que ex-siste e ressoa como portadora da amos fazer da melhor forma poss
transmissão que a cada vez tent você s
letra para além do sentido extraído (sens issu*).!* (“não ouvimos nada no que
e que parece sempre insuficiente cartéis no
. ética: ética de uma escolha entre a verdade que abandonamos à sua publicações insistentes dos
dizem!”), e isso apesar das rços dos
as dos esfo
própria ficção e o saber com o qual se identifica a fixão. Ética de Wunsch, Boletim da Escola, que prestam cont
la, à
uma escolha que se experimenta em saber fazer: “saber fazer uma cia e prestar contas dela na Esco
cartéis para elaborar a experiên faça laço e orie n-
conduta”! para si acordada à “responsabilidade sexual”! | cia, e não a cola,
fim de que a renovação da experiên
ados”.
tação para os “esparsos disparat
passe equivalente para O cartel,
; Então, apesar do entusiasmo e a decisão dos passantes, apesar Na verdade, há uma prova do se pode
do ânimo e a coragem dos passadores, apesar da empolgação, da fazer passar algo de que não
os passadores, os passantes: É assim,
seriedade e o empenho dos cartéis, por que, no fim das sofia é se testemunha a verdade.
testemunhar da mesma forma que disso,
tão difícil fazer argumento à função do passe, e por que é tão dificil a no procedimento, sabemos
contudo, que o passante entr alguns
elaborar a experiência a ponto de transmiti-la? Por que há tão poucos vezes mais de vinte anos — a
reduzindo anos de análise — às açõe s, dese nlac es, que
A.E. nomeados, e isso desde o começo da experiência e em todas as ulas, precipit
momentos cruciais, algumas básc que perm ita dist in-
em um testemunho
zonas da Escola que praticam o passe? ele vai organizar e concentrar onde r ao sans
do sentido, permite resp
guir como o sens issu, à saída sem
deve seguir essas vias labirínticas
issue, ao sem saída. O passador as nota s
por suas múltiplas € minucios
perder a sua saída. Mais do que rá O
fazendo ouvir! que ele convence
escritas. é por sua presença € Se dos
srité àà | a barre). Wunsch 11,
5 Marc. É Corte com a verdade!e! ( (La vérité a, deverá produzir o eco dos acha
cartel. Este último, em contrapartid
é : pm
11. STRAUSS,
ção e
passando pelo escrito: outra redu
E .“Discurso
Ver In:
n a EFP” “In: Outros escritos.
j Rioi de Janeiro:
i Jorge Zahar, dos passantes nomeados A.E.,
12. Cf. Patricia Mufioz. Razão que ecoa, e Patricia Dahan (2011) Unidade da
63 una singularidade d'alíngua, op. cit., p. 52-56 e 33-37 respectivamente
i nas páginas 108-123
: pos , Luis. A dox ae i
a comunidade de Escola. Wunsch 11, op. cit., p.
: atualidade da Escola,
15. Cf. A presença do passador
deste livro.
14. NGUYÉN, Albert. Satisfação da castração. Wunsch 11, op. cit., p. 58-62.
130
DOMINIQUE FINGERMANN O PASSE 131
sua diferença absoluta revelada pelas peripécias da letra ao longo de passe, mas em outro não, funcionar em um cartel e em outro, não. É
seu testemunho da verdade mentirosa. de maneiras diversas que eles “honrarão sua tarefa”, como diz Lacan.
“Pes rien” (Cê não é nada) poderia ser o que, das coisas vistas e A tarefa do passador é, antes de tudo, um enorme trabalho de
ouvidas, marcou o lugar passante Y e as peripécias de suas ficções, foi escuta, de entendimento, ou melhor, de ouvidoria, de construção, de
o equívoco original, ponto de partida das suas suposições, cujo sentido presença e de voz. Parece que o procedimento é bem mais difícil para
viu-se confirmado por todas as repercussões do significante que se eles do que para os outros, e eles não estão menos à prova do real do
encadearam na sequência. Proprietário (propriétaire) e Dono da Terra que os passantes.
(Jerrien)* e toda a cantilena de mal-entendido facilitaram o acesso ao A angústia de seu momento capenga os faz, algumas vezes,
“se calar” (se faire) e se “se esconder” (se terrer): serão necessários perder a competência própria que devem “honrar” e que lhe cabe
voltas e furos e bordas antes que o nada de origem deslastre e não ou ainda recuperar suas velhas soluções ready-made para remediar
faça mais destino como alguém que não vale nada (vau-rien) e outras a angústia e, assim, malograr o caráter único do testemunho, por
safadezas. A letra chega ao seu destino quando ela não quer dizer deslumbramento ou desconfiança excessivos, extraviando-se em suas
mais nada, desvalorização do gozo-sentido, mas “carrega” ainda/no construções desalinhavadas demais, ou demais engessadas, a ponto de
corpo (encore/en-corps), “um não sei o quê e um quase nada” do qual não deixar passar nada.
podemos fazer uso para muitas outras coisas (fazer poema, laço e. por
que não?, amor).
O cartel do passante
O passante pode ser nomeado A.E. quando a letra chega ao
destino e faz efeito no cartel, tocado por uma certa graça daquilo
A culpa, então, é do cartel? — como declina Ana Martinez? e
que, uma vez o sentido depreendido, se pode suspeitar daquilo “que
como Colette Soler evoca a hipótese.”
invisivelmente retém os corpos”.
O que faz a diferença entre um passante e outro passante pode
ser o cartel. O cartel pode, por vezes, fazer obstrução a um testemunho
O passador do passante de analista da escola, quando os “esparsos disparatados” pôem-se a
fazer grupo, esquecendo sua ignorância fundamental. Nosso cartel,
O que faz a diferença entre um passante e um outro passante é, a cada vez, se colocou a questão: não estamos nos enganando? Uma
também, seus passadores. Há “maus” passadores? Por definição, eles vez chegamos mesmo a convocar novamente os passadores a fim
estão em maus lençóis (“ils sont dans une manvaise passe” diriamos de pôr à prova nossa decisão primeira. Uma das melhores vias de
em francês),” isto é, para eles, a passagem ao real não está decidida, acesso ao real é a surpresa e o inesperado: o cartel deve saber fazer o
ainda que estejam numa situação oscilante, de vacilo, “como uma acolhimento necessário e suficiente para que o passador não se feche
porta que bate”? em suas defesas familiares: desconcertá-lo, cortar sua narrativa, trazer
Estão em um momento em que o amor do saber ainda os à tona seus esquecimentos e preconceitos, tendo muita consideração
sustenta, e as reações deles diante do horror de saber que excede à por seu trabalho e sua dificuldade.
verdade são diversas. Um mesmo passador pode funcionar em um
* : 3 “ . a a E
22. MARTÍNEZ, Ana. Depois do final de análise e do passe, uma experiência.
Homofonia entre T'es rien e terrien, que têm-a mesma pronúncia em francês. Wunsch 11. IF-EPFCL, 2011, p. 37-42.
19. LACAN, Jacques (1972-73). O seminário. Livro 20. Mais, ainda. Rio de 23. SOLER, Colette. As condições do ato, como reconhecê-las? |WWunsch 8.
Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 125. IF-EFCL, 2010, p. 21-24.
20. SOLER, Coleite). Os passadores. Wunsch 12. IF-EPFCL, 2012. 24. APARICIO, Sol. A ignorância dos cartéis. Wunsch B. IF-EPFCL, 2010, p.
21. LACAN, Jacques (1967). Discurso na E.F.P. In: Outros escritos, op. cit. p. 280. 21-24.
134
DOMINIQUE FINGERMANN
da análise pessoal como fundado nesse amor à verdade que se O que se passa no passe quando não há nomeação? O que não
contrapõe ao que orienta uma análise, ou seja, suportar o real. passa?
Alguns testemunhos de passe demonstram precisamente a Produzir um analista à altura de seu ato representa muito
passagem do desejo de ser analista ao desejo de analista. Uma análise trabalho (beaucoup, “belo custo” (beau coit)º pode-se, afinal, dizer
se prova como didática somente em consequência de seu percurso; com Lacan), muitas voltas e desvios, vaivéns: tece o texto, passa por
entendemos, portanto, por que a concepção lacaniana da formação cima, por baixo, corta, amarra, afasta, dobra, reduz, por baixo, por
analítica diverge tão categoricamente do dispositivo de formação cima, pula um ponto, retoma o fio. corta, amarra, um ponto no avesso,
de analista proposto nas instituições ligadas à IPA, que decide dois no envesso: enodar de outra forma.
antecipadamente e segundo critérios preestabelecidos, da pretensão Enodar de outra forma? A análise poderia fazer isso: subverter o
didática da análise. drama da neurose evidenciando e proporcionando uma outra versão da
A passagem à posição de analista não é normal, é uma trama que trança originalmente as três dimensões da estrutura.
extravagância, e uma aberração assim não passa despercebida! No começo do fala-ser, o enodamento repentino do corpo, do
Constatamos, entretanto. que na experiência do passe que símbolo e do real acontece, ocorre de uma maneira imprevisível: o
proporciona o dispositivo institucional, na maior parte do tempo essa nó se faz e firma a emergência de um sujeito no real. O trauma é um
marca não é notada nos testemunhos, essa carta (lettre”) não chega ao dos nomes dessa acontecência, embora logo esquecido em benefício
seu destino." Ela permanece em espera, em suspenso, “en souffrance”é do encadeamento significante que produz o sentido das coisas. O
A questão de como a carta tem efeito, alcança, impacta, é aparelho significante, isto é, seus elementos discretos, marcadores da
salientada por Lacan a partir de “Lituraterra”: “Pois ainda seria experiência, possuem esta propriedade inesgotável de se articular um
preciso, para isso, que se desenvolvesse aquilo que entendo que a ao outro na tensão, na busca daquilo que da experiência falhou em se
carta tenha efeito (porte) para chegar sempre ao seu destino”5 O que inscrever na marca primeira: é uma “suspeita do real” que tensiona o
constitui o “alcance” da carta? Como isso se produz? Como se produz encadeamento significante. É só assim que alguém se salva; é só assim
um efeito do signo que não seja efeito de sentido? que alguém sobrevive, por uma suposição de um outro significante,
Desde sempre, desde os primórdios da experiência do passe, isto é, a suposição de um outro que corresponda, responda. Essa
constata-se a diferença entre o número de demandas de passe e a suspeita de uma marca real, índex de um saber de si ligado à marca se
pequena proporção de passantes nomeados A.E. Passam os anos, vão transforma na suposição de uma verdade que o Outro garante; é nesse
e vêm as Escolas, que se seguem e não se assemelham, vacilam as momento que o laço com o Outro (significante) inaugura a Aystória e
palavras de ordem, oscilam as doutrinas: a psicanálise permanece, o romance, e “todo tipo de construções”. ]
a experiência do passe persiste e o número de Analistas da Escola “Claro, o suspeitável é muito respeitável, como o resto, não é? E
nomeados não varia. o que nos é preciso suspeitar como sendo Real, e isso leva bem longe,
isso leva a todos os tipos de construções”,! indica Lacan no seminário
Les non-dupes errent.
Lettre, letra/carta: em francês a palavra lettre, pode significar tanto “carta”
quanto “letra”, o que gera polissemia. Além disso, há uma consonância entre
o vocábulo lettre e a expressão [être (o ser). Homofonia entre o advérbio francês beaucoup [muito] e a expressão beau
LACAN, Jacques (1955). O seminário sobre A carta roubada. In: Escritos. Rio coút [belo custo).
de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 45. LACAN, Jacques (1973-74). Le séminaire. Livre 271. Les non-dupes errent,
Em francês “rester en soufirance”, expressão que pode ser traduzida para inédito (Aula de 12/1/1974). No original: “(...) Bien súr, le soupçonnable, c'est
“em espera”, “em suspenso”, mas “em sofrimento”. três respectable, comme le reste, n'est-ce pas, c'est ce qu'il nous faut soup-
LACAN, Jacques. (1971). Lituraterre. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: conner comme étant Réel, et ça mêne três loin, ça mêne à toutes sortes de
Jorge Zahar, 2003, p. 13. constructions”.
DominIQUE FINGERMANN O PassE 139
As construções, elucubrações, teorias sexuais infantis e outras
pode-se até reprovar os cartéis por isso, mas há uma orientação ética
maquinações não preservam totalmente do inesperado, pois o sintoma,
do passe, ou seja, daquilo que se entende como desejo do analista:
a angústia, o sexo, entre suspeita e certeza, escancaram o real. Má ou
esperamos poder observar os efeitos de lance, e propulsão do impacto
boa hora, infelicidade ou felicidade (Mal heur, bon heur*), aventuras
do real para um passante, as consequências de sua separação para com
ou desventuras, depende; é inesperado, é o im pensado, insensato, não
o palmo da fantasia que mede e ordena sua realidade, e realmente não
é aquilo que se esperava. se pode dar ares disso!
Desde a suspeição de uma ex-sistência na qual alguém se
Sustentamos que um analista de Escola deve poder mostrar
acha repentinamente em um acontecimento de gozo impensado e
os efeitos do impasse do sujeito suposto saber que a análise lhe
impensável, engaja-se a primeira suposição em que alguém se busca
demonstrou, isto é, o fato de que suas ficções, por mais verdadeiras
(e não se encontra) nos trilhamentos, nos trilhos do significante que
que sejam, nunca podem dar conta do real único que o causa.
representa o sujeito para um outro.
Um A.E. deve poder fazer ouvir o poema que ele é, repitamos,
Onde se encontra o saber perdido, ou melhor, o saber que não
à porfia, na esteira de Lacan. Um poema não é para ser lido, mas
se encadeou ao Outro, mas que “invisivelmente retém os corpos”? O
ouvido, como dizia Joyce em Himnegans Wake: “Ah, não é de forma
saber de separação que garante o estilo, o poema, o amor, o analista?
alguma escrito. Não é, tampouco, feito para ser lido. E feito para ser
Ele se enodou, inicialmente, à neurose, aos significantes mestres
olhado e ouvido”.!? Esse poema é traçado no lance do real, efeito da
do Outro e à sua falta fantasmada: pode ele se “enodar de outra
letra (fettre), na medida em que ela designa o que, do significante, não
forma”?
carrega o sentido do Outro, mas faz soar esse saber de si que retém o
Sustentamos que um analista — para estar à altura do ato, para
corpo e que faz com que se autorize de si mesmo.
suportar o ato do analisante que passa à psicanalista — deve poder
Na experiência do passe, muitas cartas (lettres) permanecem em
sustentar a posição do inconsciente na medida em que este é real,
suspenso, em instância, o cartel não as recebe. E um problema.
na medida em que ele está não todo encadeado ao Nome do Pai,
É um problema?
na medida em que, ao se fazer de tolo, é possível largar o lastro
do Estamos inclinados a pensar que, se há um problema, trata-se de
fantasma e das identificações e percorrer alguns nós!" sobre o lance
um mal-entendido que procede dos três polos em jogo, ou de um dos
(erre) da separação, sobre seu impulso. “Talvez vocês saibam o que
três, ou da dinâmica do dispositivo.” Mas isso não nos desencoraja:
isso quer dizer, um lance (erre)? É algo como um impulso. O impulso
cem vezes voltemos, e novamente, ao nosso trabalho (“cent fois sur
de algo quando para o que o está propulsionando e continua ainda à
le métier remettons notre ouvrage”")...e, certamente, os passantes, os
correr”, explica Lacan. passadores, os cartéis trabalham com afinco, admiravelmente.
Não se pode dizer que escutamos os passadores e seus testemu-
Não é, portanto, o fim, mas as sequências que interessam na
nhos dos passes dos passantes sem nenhuma orientação preliminar;
experiência do passe: a tomada em consideração do real e o “enodar de
outra forma” aos quais conduzem uma análise podem ser verificados.
8. Homofonia entre as expressões mal heur (má hora) e bon heur (boa
hora) é
as palavras malheur (infelicidade) e bonheur (felicidade).
9, LACAN, Jacques (1972-73). O seminário. Livro 20. Mais ainda.
Rio de 12. Joyce citado por BIDENT, Cristophe. Joyce enfin libre sur scéne. Magazine
Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p, 125. Littéraire, n. 515, p. 21, jan. 2012.
10. O nó (noeud) é uma unidade de velocidade utilizada em navegaçã
o maritima 13. Cf. O que faz diferença?, nas páginas 124-134 deste livro.
e aérea. 14, Célebre verso extraído da Art poétique de Nicolas Boileau (1633-1711),
11. LACAN, Jacques (1973-74). Le séminaire. Livre 21. Les non-dupe
s errent, poeta clássico francês que postulava que o verso deveria ser “polido”, visto,
inédito (Aula de 13/11/1973).
revisto, trabalhado e retrabalhado antes de vir a público.
140
DominiQUE FINGERMANN O PASSE 141
Supomos que se uma análise produz um analista à altura do ato, (erre/air) de insolência em que re-soou o eco de um Dizer, em que a
isso deveria ter efeitos notáveis. Isso deveria ser notado no testemunho marca de “suspensão do singular pode se fazer ouvir”, como formula
dos passadores. Marc Strauss.!*
Quando escutamos os testemunhos, sempre ficamos impres- Anita Izcovich desdobra os diferentes efeitos de corte que
sionados, tocados, pelo efeito da psicanálise: é extra-ordinário! Como levam um analisante à passagem à analista; acrescentemos aí que um
a experiência trata uma história, como ela enuncia, desdobra seus testemunho conduz a uma nomeação quando se verifica, para além
impasses na transferência, denuncia suas equivocações, e, por fim. do corte, um “enodar de outra forma” pelo “efeito de afeto, um efeito
extrai essa cifra que faz destino por um lado e, por outro, a história de ser afetado pelo real do testemunho do passante”,!” que passa do
que faz romance. Rosa Escapa precisa justamente isso, assim: “O passante aos passadores e depois aos cinco membros do cartel, ou
passe é uma experiência que brinda uma ocasião sem igual para se seja, que faz laço.
dar conta de como a significação fálica vestiu a letra, de como o gozo Concluirei, provisoriamente, a elaboração que esse trabalho
fálico animou o gozo do corpo, da escrita que se sedimentou e do que de cartel me permitiu trilhar no decorrer desses dois anos da minha
na análise se escreveu de novo”, !º implicação neste dispositivo, com essa observação de Pascale Leray,
Graças aos passadores, à sua coragem, à sua seriedade e também colega de cartel, pois o interesse, a esperança, o rigor
entusiasmo, e também apesar deles, apesar de seu excesso de zelo, para a análise que representa o passe, é de que ela deve sempre ser
de notas, suas faltas de precisão ou excesso de angústia, tivemos — recomeçada: “Essa renovação é o que participa desse passe sempre a
verdadeiramente — acesso a experiências fantásticas que a análise recomeçar, para cada analista”
fabrica e que fabricam analistas.
Verdadeira-mente, verdadeiro demasiado, muitas vezes. para
que passe o ar (air) do real e que o lance (erre) do ato possa nos fazer
apreender as sequências — outras — do Dizer. Sequências outras,
de forma que — o poema que ele é — as torne manifestas, evidentes
em sua conduta ou sua tomada em conta no laço com o outro, da não
relação sexual.
Portanto, não é o que faz “verdade” que o cartel pode ouvir, mas
o que faz Dizer: o que faz Dizer não é verossímil; Lacan fala de “a
impudência do Dizer”, em outras palavras, sua aberração, ab-erração.
O dizer cai sob o sentido;” o que nos permitiu decidir uma
nomeação não foi a profusão inacreditável, mas verdadeira, da
construção analítica da verdade mentirosa, mas um lance e um ar
15. Na data deste escrito, o cartel do qual participava tinha ouvido (9 passes, 18
testemunhos de passadores uma nomeação). ! 18. STRAUSS, Marc. Se fazer ouvir, ou a marca de suspensão do singular.
16. ESCAPA, Rosa. Faltar de outro modo ao real. Wunsch 12, p. 63, 2012. Wunsch 12, p. 51-55, 2012.
17. No original, “tombe sous le sens', expressão que quer indica que algo é 19. IZCOVICH, Anita. Efeitos de corte. Wunsch 12, p. 65-67, 2012.
evidente. 20. LERAY, Pascale. O passe e o Real. Wunsch 12, p. 63-65, 2012.
O passE me
2. LACAN, Jacques (1972). O aturdito. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: 4. Ibid., p. 495.
Jorge Zahar, 2003, p. 474.
5. Ibid., p. 448-496.
3. Ibid,, p. 452.
6. Ibid,
DOMINIQUE FINSERMANN O PASSE 147
Não podemos deixar de lembrar as suas formulações muitas colocando como Dizer que faz laço, para que se sustentem as 3
vezes iluminadoras, embora remetam a um arcabouço conceitual diz-mensões do fala-ser decorrentes da fala, o Dizer-sinthoma que
diferente e, digamos, um tanto divergente. Ficamos surpresos com a possibilita uma desvalorização do gozo opaco, e uma validação do
coincidência de alguns enunciados que não explicam nem reduzem uso do Um-dizer como laço consigo mesmo, com o outro, com o
a precisão clínica do conceito em Lacan, mas que talvez ajudem um mundo.
pouco a entender a sua complexidade e especificidade paradoxal.
A responsabilidade fundamental do dizer para Lévinas, o seu Colette Soler marca nitidamente como uma análise pode permitir
impudor, diz ele, é a responsabilidade por responder à provocação que se passe do gozo opaco do sintoma-letra ao sinthoma-dizer
de alteridade que constitui o Outro, é exposição ao outro. Responder O Dizer da origem insondável do sujeito, assim como o dizer
é Dizer a partir de nenhuma essência prévia. Essa resposta é marca do final de análise da identificação ao sintoma, pode ser demonstrado
da origem ética e não ontológica. Ponto de ruptura, mas também de logicamente, é da ordem de uma posição ética, uma opção, e pode se
“enodamento”,” pois a separação “é a conversão em responsabilidade” mostrar quando faz eco na voz, na letra e na “conduta”.
da “positividade do infinito”.
“A alteridade do próximo daí invoca, evoca, à singularidade
insubstituível que está em mim”;58 princípio de “relação entre termos Como passa um dizer? Responsabilidade ou contingência?
desparelhados, sem tempo comum”?
A responsabilidade à qual uma análise dá acesso é o que Lacan
“O Dizer descobre o um que fala”,'º um “desnudamento até o um
chama de “responsabilidade da não relação sexual”; os passantes, os
inqualificável, até o puro alguém, único...” etc.
passadores e os cartéis devem poder ter essa medida, sensibilidade,
Sem retomar todo o percurso de Lacan a respeito da ex-sistência
ressonância ao impacto contingencial daquilo que não faz laço, porque
do Dizer , lembremos alguns pontos cruciais:
procede da evidência do “Há Um” (Ja d"!" Un) e da demonstração da
“Não relação sexual”. .
* o “dizer que não” à verdade e à demanda se deduz do que se excetua
Retomo a questão inicial avançada, que deixo sem resposta,
de todos os ditos;
embora ela interesse demais nosso dispositivo/disposição coletiva para
* o Um-dizer como positivação à não relação sexual denota logica-
o passe: se o Dizer é funamentalmente único, separado, hétero, como
mente o “Ya de PUn”";?
dar conta de seu vetor, da sua tensão, de endereçamento, enlaçamento,
*e, por fim, o Dizer-sinthoma que permite o enodamento borromeano
enodamento em direção ao Outro?
com 4; o sinthoma (o que temos de mais real) inesperadamente se
Lacan, no “Discours de Tokyo”, em 1971, contribui para essa
indagação à minha quesão sem resposta:
LÉVINAS, Emmanuel (1978). Autrement qu'être ou au-delá de Vessence. O que chamava há souco de impossível de dizer é, no fim das contas,
Paris: Le Livre de Poche-Biblio Essais, 1996, p. 27, aquilo que sempre tuscamos dizer. Trata-se de não se enganar, há uma
Ibid., p. 239. armadilha aí. E cre; que essa rocha se endereça a alguém.*
“ Ibid.,p. 14.
: Ibid., p. 83.
« Ibid.,p. 85.
- Ya dYUn [Há Um]: pode ser considerado como o dizer de Lacan, algo que 13. SOLER, Colette (2015). .acan, Lecteur de Joyce. Paris: PUF, 2015.
ele mesmo extraiu de seu ensino como fundando o seu último remaneja-
14, LACAN, Jacques (1971, Discours de Tokyo, inédito. No original: “(...) Ce
mento de seus conceitos, mais além do “rochedo da castração”. Suplência que jappelais tout à lheyre l'impossible à dire, c'est en fin de compte ce que
do “Não há relação sexual", “Há Um” indica o Um da identidade de nous cherchons toujoursã dire, Il s'agit de ne pas se tromper, il ya un piêge,
separação, o Um do dizer, o Um do sintoma. lã. C'est de croire que ceroc s'adresse à quelqu'un”.
DOMINIQUE FINSERMANN O PASSE 149
O dizer que vetoriza e fomenta as demandas não se endereça a Cada um faz de seu jeito, cada cartel tem sua dinâmica e seu
alguém, ele visa, antes de tudo, à alteridade radical, cujo desafio faz estilo. Agora, então, é a vez do cartel fazer funcionar sua estrutura
emergir, levantar, a voz de Um “alguém”. peculiar e devolver para a comunidade análitica o produto de seu
trabalho: uma nomeação, ou não, e, ao longo de dois anos, suas ela-
borações baseadas na experiência.
CONTINGÊNCIA E RESPONSABILIDADE Contingência e responsabilidade. A cena do dispositivo se parece
com uma mesa de bilhar, com a tensão, a esperança, o risco que o
impacto e a reverberação do impacto entre um e outro encontre o furo
O que se passa no passe não acontece dentro de uma lógica
certo para que a letra chegue a seu destino.
lincar e infinita do encadeamento do inconsciente-linguagem que
O furo certo, isto é “verdadeiro”, de acordo com a topologia, é
articula um significante ao outro S,-S,. pretendendo exaurir sua marca
aquele que pode ser atravessado, e é ele que resulta na satisfação final:
real intangível nas suas construções e ficções. A experiência que o
satisfação de um dizer que, no final de todas as voltas, atesta o ato e
dispositivo do passe proporciona, propõe um espaço topológico que
pode resultar na nomeação de um analista.
acolhe a neurose e suas transformações e reviramentos possíveis,
A cena, o espaço, estão dispostos para configurar um dispositivo
desdobrando uma cena complexa, multifocal e polifônica, de onde se
furado, que proporciona um jogo de chicana, cujo sucesso vai
deve extrair um Dizer único: nomeação.
depender da sequência lógica do que se deposita e pode ser recolhido
Tudo começa por um triz: uma decisão, de repente o passo se
aí, mas, sobretudo, da contingência e da responsabilidade de cada
torna evidente e irrepreensível; continua com uma demanda, a qual
um. Uma disposição ética peculiar é precisa: a responsabilidade
segue uma entrevista na qual a evidência do momento precisa ser
compartilhada do saber-fazer com a contingência. Lógica e ética
argumentada e escutada, o salto se dá a partir do sorteio dos passa-
estão, portanto, especialmente convocadas para que o poético singular,
dores. Já se passou um tempo, até mesmo contratempos, espera e
o saber fazer com alíngua, encontre nos furos do dispositivo o oco
adiamentos: o dispositivo está furado. Marcar hora com os passa-
necessário para que reverbere, ressoe, o eco do dizer.
dores, sempre surpresos e impactados, implica outras complicações,
Todavia, a experiência do passe em nossa Escola mostra que
alguns deslocamentos (é possível que se tenha que atravessar o
uma letra/carta nem sempre chega a seu destino. Não podemos,
Brasil ou a América do Sul), certos giros e bastante flexibilidade. Os
no entanto, simplesmente deduzir, do problema evidenciado pela
encontros com os passadores que vão recolher o mais precioso de
escassez de nomeações, que o passe ou a Escola sejam um fracasso.
um longo percurso de análise, de vida, são sempre imprevisíveis: a de A. Didier Weil quando, em 1977,
Lembremos a exclamação
experiência constitui uma provação da “responsabilidade”, ou seja,
no Seminário 24, disse: “pessoalmente, suporto mal a ideia de um
da habilidade para responder ao real e à contingência. Uma vez as
fracasso do passe, já que o passe me parece garantir o que se pode
entrevistas com os passadores terminadas, depois de três, quatro, preservar de essencial e de vivo para o futuro da análise”.
cinco, cada qual sabe da sua medida certa, é a vez de os passadores Podemos questionar, mais uma vez, o que faz a diferença entre
ficarem na berlinda. um passante nomeado A.E. e outro passante; a resposta é delicada,
Depois da surpresa e do entusiasmo dos encontros com o depende de três coisas e de seu enodamento topológico, que configura
passante, começa um embaraço certo e a sensação aguda da responsa-
bilidade desmedida que os acomete. Passa um tempo, pode haver
contratempos e deslizes até eles serem convocados pelo Cartel do
passe que vai ouvir o seu testemunho. O dispositivo é furado. Tempo,
deslocamentos, hora marcada com o cartel: haverá encontro? 15. LACAN, Jacques (1976-77). Le séminaire. Livre 24. L'insu que sait de Fune-
bévue s'aile a mourre, inédito.
150
DOMINIQUE FINGERMANN O PassE
151
dobras, furos, vizinhanças, reviramentos, produzindo essa cena furada
ressonância do efeito, afeto, impacto da letra, para que repercuta,
que proporciona a contingência e convoca a responsabilidade:
reverbere o Dizer intangível, não sem a pulsão “eco do Dizer no
corpo”.
I. A análise do passante e sua responsabilidade com relação à
O que importa em relação à letra é seu efeito, seu afeto, seu
transmissão da “impudência do Dizer” UM de sua análise, sua
impacto, suas sequências, e talvez seja por isso que Lacan, no
aberração;
Seminário 24, disse que, no passe, é no escuro que se pode chegar
- Os passadores e sua disposição para ouvir o inaudito, o qual
a ser distinguido o nó borromeano: é uma questão de impacto, tato,
depende de sua capacidade de desprender-se da angústia e de sua
apreensão que permite “se reconhecer entre s 'avoir (saber/ter)”.
resposta predileta, o fantasma;
A letra não pode ser transmitida tal qual, precisa fazer-se poema,
- O cartel, que não pode esquecer sua ignorância fundamental, para
“artificer”" para poder passar pelo furo do Outro.
acolher o passador e seu embaraço (excessos, faltas, esquecimentos
Lacan, no Seminário 24, refere-se ao “apelo que o fez responder
etc.) devido ao desconforto de sua posição.
com o passe”. Será que podemos dizer que há “um desejo de passe”?
Ou, melhor dizendo, que o que há é um dizer que, ao se decantar é
Ao entrar no dispositivo, cada um e todos (passantes, passadores,
se demonstrar em uma análise como impossível de ser dito, precipita
cartéis) são igualmente responsáveis pelo furo e as voltas em torno
a urgência da mostração dos efeitos poéticos que testemunham da
dele, dispostos (posição e disponibilidade) para dizer e ouvir que
procedência do inconsciente alíngua? O que há é uma precipitação
“o que se diz fica esquecido atrás do que se diz no que se ouve”,
lógica e uma urgência poética que ultrapassa as medidas do sujeito.
decididos e com disposição para “se reconhecer entre saber”,!º como
No entanto, a disposição para o dispositivo procede de uma
disse curiosamente Lacan no Seminário 24, disposição para que a
decisão, enquanto tal, ética. É uma decisão que possibilita topar com
carta chegue a seu destino. algo que está fora, algo que ultrapassa a análise e a transferência, e
O conteúdo da carta não tem importância, o que vale, é seu
não pode ser incluído. É algo como uma exceção em relação à análise
valor de letra. A letra que marca singularmente uma existência vale
e ao Outro, que impele ao desejo de dizer no testemunho: há um
como Um quando é localizada, nomeada, identificada enquanto
desejo que procede do impossível de dizer.
conjunto vazio [0], o conjunto que comporta Um elemento, o próprio
Decisão, demonstração, monstração ocupam o espaço topológico
conjunto vazio, ou seja, algo que não faz sentido, não quer dizer nada,
no qual a pulsão pode eventualmente se fazer eco do Dizer, ultra-
embora indexe a ex-sistência de Um. A lógica de Frege se mostrou
passando as medidas do previsto e do previsível pelo modelo
incontornável para orientar nossa prática da psicanálise.
fantasmático. Travessia.
O conteúdo da carta não importa, o que conta é seu valor
de letra, de “signo de gozo”, signo de separação. O que importa,
sobretudo, é seu alcance, seu efeito, seu impacto, que faz valer seu
valor de letra. O Dizer faz valer o valor de letra quando transporta q.
letra até seu destino .
O dispositivo do passe é um espaço topológico, com furos,
bordas, contornos, vizinhanças e funciona como uma caixa de
16. LACAN, Jacques (1976-77). Le séminaire. Livre 24. U'insu que sait de
"une If. LACAN, Jacques (1975-76). O seminário. Livro 23. O sinthoma. Rio de
bévue s'aile a mourre, inédito (Aula de 15/2/1 977).
Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
IV
A PSICANÁLISE E SEU ENSINO
O CARTEL FAZ ESCOLA
1. LACAN, Jacques (1964). Ato de fundação. In: Outros escritos. Rio 3. LACAN, Jacques (1973-74). Le séminaire. Livre 21. Les non dupes errent,
de inédito.
Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 235.
2. LACAN, Jacques (1974). Nota italiana. In: Outros escritos, op. cit., p. 314. 4. LACAN, Jacques (1974-75). Le séminaire, livre 22: R.S.|, inédito (Aula de
15/04/1975)
DOMINIQUE FINSERMANN
também a prática do conceito que possibilita, até hoje, rastrear, prática da letra segundo os dois eixos que seguirão até o final de seu
organizar, balizar o campo da experiência, se for constantemente ensino, a formalização e a via da ressonância poética: o matemático e
reavaliado à medida da experiência da clínica. Impossível esque- o maternal, o matema e o poema.
cermos a formidável aula de epistemologia freudiana, à altura do rigor A persistência e a coragem, tanto de Freud quanto de Lacan, não
e do estilo da psicanálise, que abre o seu ensaio metapsicológico sobre lhes impediram de apreender a dificuldade, para não dizer a aporia,
o conceito de pulsão: que o ensino da psicanálise encontra forçosamente. Para Freud, a
Tais ideias, que depois se tornarão os conceitos básicos da ciência, transmissão da experiência combinava dois “impossíveis”: educar e
são ainda mais indispensáveis à medida que o material se torna psicanalisar. Por outro lado, em 1926, em “A questão da análise leiga”
mais elaborado. Elas são da natureza das convenções, embora tudo ele desdobra, com bastante humor e lucidez, o paradoxo da transmissão:
dependa de não serem arbitrariamente escolhidas, mas determinadas como alcançar com palavras alguém que não passou pela experiência?
por terem relações significativas com o material empírico, relações
Sei que não posso convencê-lo. Isto está além de qualquer possibi-
que parecemos sentir antes de podermos reconhecê-las e determiná-las
lidade e, por esse motivo, além de minha finalidade. Quando minis-
claramente. Só depois de uma investigação mais completa do campo
tramos aos nossos alunos instrução teórica em psicanálise, podemos
de observação, somos capazes de formular seus conceitos científicos
ver quão pouca impressão lhes estamos causando, para começar. Eles
básicos com exatidão progressivamente maior, modificando-os de
absorvem as teorias da análise tão friamente quanto outras abstrações
forma a se tornarem úteis e coerentes numa vasta área Qu)?
com as quais são alimentados. Poucos deles talvez desejam ficar
Em continuidade com o “conceito” freudiano e as construções - convencidos, mas não há qualquer vestígio de que estejam. Mas
que ele possibilita, propomos “a prática da letra”! que Lacan persegue também exigimos que todo aquele que quiser praticar a análise em
ao longo de seu ensino, de acordo com as diversas interpretações/ outras pessoas se submeta ele próprio a uma análise. E somente
leituras da letra que incidem sobre e inflexionam sua abordagem “do no curso dessa “autoanálise” (como é confusamente denomi-
texto psicanalítico” e o que se pode transmitir a partir daí. nada), quando eles realmente têm a experiência de que sua própria
pessoa é afetada — ou antes, sua própria mente — pelos processos
De fato, “A instância da letra no inconsciente e a razão desde
afirmados pela análise, que adquirem as convicções pelas quais são
Freud” explicita, a partir dos recursos da linguística, uma continui-
ulteriormente orientados como analistas. Como então poderia esperar
dade com relação aos conceitos freudianos, quando desdobra, como convencê-lo, a Pessoa Imparcial, da correção das nossas teorias,
metáfora e metonímia, a instância da letra freudiana que 4 interpre- quando só posso pôr diante do senhor um relato abreviado e, portanto,
tação dos sonhos explicava como condensação e deslocamento das ininteligível das mesmas, sem confirmá-las pelas próprias experiên-
representações inconscientes. É, no entanto, uma descontinuidade cias do senhor?”
em relação à sua releitura de Freud que o ensino lacaniano propõe
Lacan menciona igualmente esse impasse, embora seu ensino,
progressivamente ao introduzir, para sua leitura do inconsciente, uma
em um primeiro tempo, tentará forçar esse obstáculo — apostando nos
efeitos de formação como “indução mesma que meu ensino visa”* até
que conclui e constata o fracasso do que chamou de sua “missão”, e ENSINAR: UMA POSIÇÃO ÉTICA
finalmente extrair da letra outras vias de transmissão do saber in-
consciente —, concluindo, nos anos 1970, com um antagonismo entre
Inúmeras vezes, Lacan menciona o início da sua “missão” com
o ensino e o saber,
relação ao ensino da psicanálise que ele mesmo inaugura desde 1951.
Podemos ler nessa provocação do seminário sobre O ato
A situação da psicanálise na França no anos 1950 (no pós-guerra e
psicanalítico uma posição sensivelmente diferente da observação
depois da morte de Freud), a falta de orientação, de rigor, as derivas e
de Freud em “A questão da análise leiga”: com efeito, Lacan, depois
as leituras equivocadas da obra freudiana engajaram essa guerra contra
de ter escrito na lousa a frase “/"homme est un animal, à moins qu'il
o obscurantismo que ele travou incessantemente durante 30 anos.
ne se n'homme”? adverte, de uma certa forma, o público sobre esse
O que podemos extrair de seu percurso que sirva para nossa
antagonismo, dizendo que provavelmente eles não vão compreender orientação da prática da psicanálise? Antes de tudo, o fato de que o
nada; no entanto, o jogo que evidencia o equivoco da linguagem vai
ensino da psicanálise procede de uma “posição”, posicionamento e
produzir suas ressonâncias, pelo deslize das palavras, pelo devaneio:
responsabilidade — ética, portanto.
“le côté rêverie” que fisga mais além da compreensão e do pensar.
Recorto três pistas que até hoje participam da implicação e do
Essa pequena fórmula não tem a pretensão de ser um pensamento. Pode engajamento no ensino da psicanálise :
ser que, apesar de tudo, sirva de ponto de engate, de pivô para um certo - a responsabilidade em relação à psicanálise;
número de vocês que não compreenderão nada, por exemplo, do que - a responsabilidade em relação ao psicanalista,
direi hoje, não é impensável. Não compreenderão nada, o que, mesmo * e, consequentemente, uma necessidade do analista de se pôr à prova
assim, não lhes impedirá de sonhar com outra coisa (...). O lado de
na provação insistente da transmissão do intransmissível em que
devaneio daquilo que sempre se produz em todo tipo de enunciado com
consiste o desafio ético próprio à psicanálise na sua relação com o
pretensão “pensatória”, ou que se acredita como tal, deve ser sempre
levado em conta, e, por que não, dar-lhe seu pequeno ponto de engate?"
Real.
Em seus Escritos e seminários dos anos 1950, a empreitada de Vejamos como ele expõe esse objetivo explícito de seu ensino:
leitura dos textos freudianos e o retorno a Freud estão constantemente (...) Foi preciso que a insuficiência do ensino psicanalítico eclodisse
entremeados com longos desdobramentos criticando os mal-enten- na luz para que nos empenhássemos na tarefa de exercê-lo (...). O
didos e contrassensos que circulam na literatura psicanalítica e nos que quer dizer isso, senão que nunca estivemos interessados senão na
congressos de então. Sessenta anos depois, podemos indagar se essas formação de sujeitos capazes de entrar numa certa experiência que
polêmicas interessam ainda para nossa formação analítica e se fazem aprendemos a centralizar onde ela existe? Onde ela existe — como
parte do corpus do ensino de Lacan, da mesma forma que a construção constituída pela verdadeira estrutura do sujeito, que, como tal, não
é inteira, mas dividida, deixando cair um resíduo irredutível, cuja
dos tão valiosos operadores conceituais da clínica. Todavia, essa
análise lógica está em andamento.
“crítica assídua” interessa mesmo e tem um efeito didático inegável,
na medida em que oferece o exemplo de um analista extremamente Sabemos que este vetor do seu ensino não passou desaperce-
atento e curioso das elaborações de seus contemporâneos, extraindo bido, foi interpretado como abuso (passar recados “selvagens” para
dos desvios expostos, indicações precisas para a manutenção do seus analisantes durante seus seminários!) e foi incluído no extenso
procedimento freudiano e do seu tratamento tão preciso das conse- processo que resultou na sua exclusão da posição de didata e, portanto,
quências do inconsciente e das suas “formações”. assinou a sua “excomunhão”.
Além disso, muitas dessas críticas e observações estão, infeliz- Sabemos igualmente que o impacto e a ressonância das palavras
mente, bem atuais, e gostaríamos de ter a mesma ousadia que Lacan entre fala-seres é singular, incalculável e contingente, é feito de trans-
para colocar nossas diferenças à altura de um debate conceitual. ferência e — muito além de seus efeitos simbólicos e imaginários —
de sua repercussão do real em jogo e do mistério do corpo falante que
A responsabilidade em relação ao psicanalista ela encaminha. Sabemos, por experiência, como a leitura do textos de
Freud e Lacan impactou e orientou nossa relação com a psicanálise.
Logo mais, no entanto, Lacan apreendeu que a questão dos
desvios e mal-entendidos não era somente uma questão de explicações Necessidade do analista se pôr à prova na provação insistente da
claras e precisas, mas, que o que estava em jogo era a formação transmissão do intransmissível, em que consiste o desafio ético
analítica do analista enquanto agente da operação. Nada surpreen- próprio à psicanálise na sua relação com o Real
dente, já que ele retoma novamente a insistência e a exigência freu-
dianas a respeito da análise pessoal. Muito cedo, Lacan precisa que a prática do ensino, “a práxis da
O seu ensino, então, comportou uma meta explícita de ter efeitos teoria”, tem um valor ético inegável: “a ética da psicanálise que é a
de formação, podendo induzir a uma mudança de posição em quem práxis de sua teoria”.
estava ouvindo com incidências para a prática da psicanálise, arti- Os trinta anos de seu ensino assíduo só confirmarão e precisarão
culando, desde então, a estrutura do sujeito com a lógica da cura, e essa orientação.
abrindo o capítulo da psicanálise pura e mais além da articulação da Se no início a “missão” parecia se endereçar aos outros psica-
intensão (o mais próprio da psicanálise) com a sua extensão, que o nalistas. o tempo, a experiência e a sensação de um fracasso em
dispositivo do passe almejava “resolver”, relação à missão fazem com que ele insista nos últimos anos em
precisar que o ensino tem efeito de formação para ele próprio. É por essencialmente em extrair desse testemunho imenso, de uma prática
isso que Lacan aponta insistentemente a posição de ensinante como exigente na sua elucidação e explicitação constante, os conceitos que
uma posição analisante: daí se distinguiram como fundamentais.
A estrutura da análise pode ser “formalizada de maneira inteira-
(...) O que realmente me cabe acentuar é que, ao se oferecer ao
ensino. o discurso psicanalítico leva o psicanalista à posição do
mente acessível à comunidade científica, por pouco que se recorra a
Freud, que propriamente a constituiu”.
psicanalisante, isto é, não produzir nada que se possa dominar,
malgrado a aparência, a não ser a título de sintoma.!* Com efeito. será na precisão e no rigor dos conceitos tão
cuidadosamente lapidados por Freud que se reencontrará a direção da
No Seminário 22: RSI, ele não hesita em aproximar sua posição cura e os princípios de seu poder para se contrapor à desorientação
de ensinante à supervisão: geral dos anos 1950: “Não há limite para o desgaste da técnica por
(...) Que eu testemunho de uma experiência que especifiquei como sua desconceituação”
sendo analítica e minha, é suposto como verídico. Lembramos que ao se separar da Associação Internacional de
Ver até onde essa experiência me conduz pelo seu enunciado, tem Psicanálise (IPA), ele prossegue no seu ensino no mesmo ano com um
valor de supervisão/controle (sei as palavras que utilizo).” seminário intitulado Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise,
fazendo um recorte pessoal do arcabouço conceitual freudiano (o
O analista, para funcionar enquanto tal, precisa ser pelo menos
inconsciente, a repetição, a pulsão e a transferência), que marca não
dois: um atento e firme na condução dos tratamentos, e o outro para
somente a ruptura com a IPA, como também, de certa forma, anuncia
teorizar essa condução e esse tratamento.
um caminho diferente daquele do suposto mero “retorno a Freud”.
A proposta do dispositivo do cartel leva em conta essa função
O seminário de 1964 conclui provisoriamente os anos de
didática da sua “práxis da teoria” para o próprio analista. A “Alocução
garimpagem e formalização que fizeram, até o final, Lacan declarar
sobre o ensino” precisa, mais uma vez, essa evidência do impacto do
“sou freudiano”, pois ele se dedicou a fazer dos termos com os quais
ensino sobre o ensinante que se dispõe a ser analisante da psicanálise:
Freud definiu a experiência conceitos e não preceitos.
“Só posso ser ensinado à medida de meu saber, e ensinante, já faz um
Com os pós-freudianos em primeiro lugar, e depois com o
tempão que todos sabem que isso é para eu me instruir”.!*
próprio Freud, a formalização lacaniana se esforçou para elucidar “a
flagrante incerteza da leitura dos grandes conceitos freudianos”, como
diz ele em 1957.
O QUE SE ENSINA?: CONCEITO, FORMALIZAÇÃO, MATEMA, SABER
Desde os primeiros escritos e seminários, e de acordo com seus
estudos de matemática e o rigor que ele almeja, Lacan nomeia esse
Conceito esforço e orientação como “formalização”. Recorrendo aos avanços da
linguística para este primeiro lance, ele não hesita em reconhecer em
O ponto de partida do ensino de Lacan foram os textos freu- Freud um mestre nessa tentativa, considerando que a Traumdeutung
dianos. Sua empreitada de leitura e de retorno a Freud consistiu antecipava-se em muito às “formalizações da linguística”.
22]
16. LACAN, Jacques (1970). Alocução sobre o ensino. In: Outros escritos, op.
cit., p. 310. 19. LACAN, Jacques (1957). A psicanálise e seu ensino. In: Escritos, op. cit.,
17. LACAN, Jacques (1974-75). Le séminaire. Live 22. RSI Paris, inédito p. 439.
(annexe |). 20. Ibid., p. 618.
21. LACAN, Jacques (1957). A instância da letra no inconsciente e a razão
18. LACAN, Jacques (1970). Alocução sobre o ensino. In: Outros escritos, op.
cit, p. 304. desde Freud. In: Outros escritos, op. cit, p. 516.
168 DOMINIQUE FINGERMANN À PSICANÁLISE E SEU ENSINO 169
. LACAN, Jacques (1970). Alocução sobre o ensino. In: Outros escritos, op.
cit., p. 308.
“ Ibid.
“ Ibid.
« Ibid., p. 309.
. LACAN, Jacques (1955). A coisa freudiana. In: Escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1998, p. 437.
EXIGÊNCIAS DE SUPERVISÃO:!
NECESSIDADE E CONTRADIÇÃO
analista, que articula “a sensação de um risco absoluto” do ato e a ur- silêncio de respeito e uma pontuação quase lacônica na forma de um
gência de pôr o seu ato à prova no laço com “alguns outros”. “É isso aí!”.
Quando respondemos à questão da formação com a Escola de Sinto-me convocada hoje a prosseguir nessa reflexão, além do
psicanálise, explicitamos com Lacan: “passe e cartel”, como se esses já expressado, e tratar desse hiato entre a necessidade da supervisão e
dois dispositivos, que articulam a intensão com a extensão, fossem sua contradição intrínseca com a solidão e o impensado/impensável do
suficientes para pôr à prova a nossa relação singular e solitária com ato psicanalítico. As duas expressões utilizadas por Lacan no seu “Ato
a psicanálise. de fundação da E.F.P.”, em 1964, apontam para esse hiato: “o analista
A aposta no “passe” compromete de uma maneira muito dife- se autoriza de si mesmo”? e “a supervisão se impõe”,* contradição que
rente de que simplesmente dizer “análise pessoal”, pois supõe que repercute quando conectamos o Ato e a Escola, a práxis e a teoria.
haja uma demonstração/“mostração” possível da operação da análise
das suas consequências e sequências.
Da mesma forma, quando bancamos o cartel, não estamos FREUD
simplesmente dizendo que estamos estudando a teoria da psicanálise,
mas colocamos como princípio que devemos também fazer a teoria, e
A primeira vez que Freud usou o termo foi em 1919, no seu
que a “práxis da teoria” é mesmo nossa opção ética.
artigo: “Sobre o ensino da psicanálise nas universidades”:
Apostar e engajar-se em uma escola de psicanálise não é
procurar uma autorização como analista, mas se arriscar como anali- (...) o psicanalista pode prescindir completamente da universidade
sante da sua “própria experiência”. E isso: Fazer Escola. sem qualquer prejuízo para si mesmo. Porque o que ele necessita,
Mas, então, e a supervisão? Os lacanianos estariam desvalori- em matéria de teoria, pode ser obtido na literatura especializada
e. avançando ainda mais, nos encontros científicos das sociedades
zando o alcance formador da prática da supervisão?
psicanalíticas, bem como no contato pessoal com os membros mais
O capítulo “A formação do analista: A psicanálise pura”
experimentados dessas sociedades. No que diz respeito à experiência
concluiu-se com a questão da supervisão e a indagação que nos
prática, além do que adquire com a sua própria análise pessoal, pode
orienta: o que seria uma supervisão coerente com o Discurso consegui-la ao levar a cabo os tratamentos, uma vez que consiga
Analítico? Essa questão sempre desencadeia um certo desconforto, supervisão e orientação de psicanalistas reconhecidos.”
já que a supervisão, de acordo com a orientação do ensino de Lacan,
“se impõe”? como uma exigência ética para nós, e não é imposta por Ele retomará mais ou menos esses mesmos termos no seu texto
uma exigência curricular em conformidade a um modelo e, portanto, princeps sobre a especificidade da formação do analista, em 1927, “A
nos responsabiliza ainda mais para responder por seus paradoxos, questão da análise leiga”.“6
que podem facilmente se transformar em equívocos, e até mesmo
em impostura. O tipo das demandas de supervisão que recebemos
geralmente parece solicitar uma resposta que configurava algo
LACAN, Jacques (1967). Proposição de 9 de outubro sobre o psicanalista da
completamente contra o que constitui o ato psicanalítico, e a resposta
Escola. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 248.
que parece mais coerente com o Discurso Analítico seria um sério LACAN, Jacques (1964). Ato de fundação. In: Outros escritos, op. cit. p. 241.
FREUD Sigmund (1918-1919). Sobre o ensino da psicanálise nas universi-
dades. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas compleias. Rio
de Janeiro: Imago, s/d (versão eletrônica), v. XVII.
FREUD, Sigmund (1926). A questão da análise leiga. In: Edição standard
2, LACAN, Jacques (1969). Resumo do seminário O ato psicanalítico. In: brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, s/d
Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 379. (versão eletrônica), v. XX.
DominIQUE FINGERMANN À SUPERVISÃO 179
Sabemos, no entanto, que a supervisão se impôs como pro- No entanto, a questão de forma vai substituir essa questão de
cedimento (como disposição) antes mesmo de se transformar em fundo. O debate ético vai logo se empobrecer em prol de discussões
dispositivo, pois era uma prática comum que os analistas iniciantes inesgotáveis sobre a técnica, e constatam-se as consequências dessa
praticassem longas conversas ou mesmo correspondência epistolar redução no regulamento e na institucionalização da supervisão nos
com o próprio Freud, antes mesmo de ele ter inventado o nome standards da IPA (incluindo a grande polêmica de 1925 sobre a prática
“supervisão” (Cf. a relação de trabalho do pai do pequeno Hans com da psicanálise pelos não médicos) e as suas variantes: quatro anos,
Freud). dois supervisores diferentes, quatro casos, “escolha” do supervisor na
Max Eitington utiliza o termo em 1920 no seu relatório do lista dos didatas, comunicação das performances da supervisão para
Instituto de Berlim fundado logo em seguida, e que iniciou a as comissões encarregadas de avaliar os candidatos... etc.
formalização institucional da formação analítica a partir do tripé
análise pessoal, estudo da teoria e supervisão.
Os debates sobre a articulação entre análise pessoal e supervisão LACAN
(quando acaba uma e começa a outra) começarão logo como
questionamento ético do princípio de supervisão. Vilma Kovaes,
aluna de Ferenczi em Budapeste, sustenta no seu artigo “Análise Lacan, que tinha participado desses debates desde sua entrada na
didática, análise sob supervisão” que o objetivo de uma supervisão psicanálise (e participou da redação do regulamento sobre formação
é o controle da contratransferência, ou seja, a posição do analista, e do analista em 1949), rapidamente se diferenciou pela sua prática,
a partir daí, argumenta que o próprio analista pode funcionar como cuja formalização podemos acompanhar desde “Função e campo da
supervisor, prolongando na supervisão os efeitos da análise, focando fala e da linguagem...”.
o que restaria de neurose e que atrapalharia a posição do analista. Sabemos também que a excomunhão de Lacan, em 1964,
Helene Deutsch, que se beneficiou de uma “supervisão de configurou-se imediatamente com a sua exclusão da lista dos didatas,
grupo” com os casos que ela expunha nas reuniões das quartas- ou seja, da sua prática de supervisor.
-feiras com Freud e companhia, sustentou no seu texto “Análise sob Ao longo de seus seminários e Escritos, Lacan deu diversas
supervisão” que o valor da supervisão era a condução de uma análise indicações a respeito da sua prática da supervisão, que variaram
sob o olhar orientador do supervisor. À posição e a responsabilidade um pouco de acordo com a sua formalização progressiva — porém
do supervisor em relação ao caso supervisionado é bem diferente, e o decidida — do Ato Psicanalítico e do Discurso subsequente. Os
testemunhos de seus analisantes e alunos também oferecem indicações
debate é bem crucial.
“Para Vilma Kovacs, parece que a supervisão deve incidir sobre precisas e preciosas.
o analista em formação, sobre sua posição de analista, enquanto que Poderíamos fazer um thesaurius dessas poucas referências de
Lacan, incluindo os diversos testemunhos de seus alunos e uma
para Helene Deutsch, incide sobretudo sobre a análise conduzida”,
precisa Danielle Silvestre.” biblioteca dos principais textos escritos sobre o assunto na história
da psicanálise.
No entanto, a responsabilidade é nossa, mais uma vez, para
deduzir do ensino de Lacan, que orienta a nossa prática da psicanálise,
KOVACS, Vilma. Analyse didactique, analyse sous contrôle. Ornicar?, Paris,
os princípios que emparelham a nossa prática da supervisão com o
n. 42, p. 94-102, 1987-1988
DEUTSCH, Helene. Analyse sous contrôle. Ornicar?, Paris, n. 42, p. 86-93, Discurso Analítico.
1987-1988.
SILVESTRE, Danielle. Le contrôle institutionnel. Ornicar?, Paris, n. 42. p. 103-
-108, 1987-1988.
180 Dominique FINSERMANH A SUPERVISÃO 181
“O ANALISTA SE AUTORIZA DE SI MESMO” fantasmática para opor o objeto a, objeto da falta de resposta como
semblante/agente do ato que faz laço, que faz discurso.
“O analista se autoriza de si mesmo” — declaração de Lacan Não é estratégia calculável antecipadamente nem retificada
a posteriori, não há avaliação, validação a posteriori; Lacan fala a
quando enuncia os Princípios da sua Escola, e que anuncia a sua
conceitualização do “ato” — poderia ser contraditório com a prática respeito do ato da “aporia de seu relato”:!! uma supervisão pode fazer
da supervisão? apreender o incalculável do ato?
Se o psicanalista se qualifica apenas a partir de seu ato, a super- O aprês-coup da supervisão não remedia a solidão ou o
visão não seria uma maneira equivocada de buscar no Outro uma impensável do ato, mas pode avaliar a pertinência (ou impertinência)
autorização? do ato nas suas sequências para o analisante do supervisionando:
Se eu sou analista, então não faço supervisão, e se faço super- os efeitos na economia do gozo e na construção de seu caso que o
visão, então não sou analista! distanciam da sua neurose.
Seria o caso, sim, para os débeis e os canalhas, como disse A supervisão convoca o analista a “dar as razões da sua clínica”,
Lacan, avisando que essas duas consequências podem ocorrer como dar prova da sua posição e de suas conseguências que só podem
distorções no “fim” de uma análise. qualificar um ato propriamente sem qualidade.
Isso seria confundir a solidão radical do ato analítico com
solipsismo.
SUPERVISÃO E GARANTIA
O ATO E A APORIA DE SEU RELATO Há uma exigência de controle, inerente à especificidade do ato
"=
analítico: somente a posteriori podemos falar da ocorrência do ato e
A solidão do ato analítico, o fato de que o analista não tem avaliar a sua pertinência e sua eficiência; pór essência, o ato é de “um
ELLZITrrRTASASTIKIERE
garantia, não tem Outro do Outro, se autoriza de si mesmo, torna a sozinho”, e seria perigoso para quem está engajado aí com o parceiro-
supervisão necessária, ela se “impõe”. -analista que este creia ser o Único.
—
O que chamamos de a solidão do ato analítico, que Lacan Colocar o ato à prova é sair da solidão, do inefável, do im-
pateticamente nomeia “o horror do ato psicanalítico”?'º É quando o pensável, do inqualificável. Em geral a supervisão é o primeiro lugar
analista: onde se pratica a “práxis da teoria”, exercício contínuo do analista,
* se posiciona “contra” a transferência; que põe à prova seu saber e não seus conhecimentos. Essa provação
* quando rompe o laço histérico com o sujeito suposto saber; será retomada ao longo da sua formação permanente: nos cartéis, nos
* quando faz silêncio no lugar da suposição de saber, e encarna o “eu congressos, na comunidade de seus pares/impares, “esparsos dispa-
não penso”, impensado, impensável; ratados”, nos textos que ele apresentará e que o apresentarão, fazendo
quando se faz de a-sujeito, onde o analisante se sujeita e procura valer sua voz e sua presença na empreitada da práxis da teoria.
subjetivação; Lacan diversas vezes mencionou o quanto o seu próprio semi-
==
quando atua e atualiza uma posição que subverte a estratégia da nário tinha esse valor de “controle”/supervisão: “ver até onde essa
transferência (do analisante) e esvazia o objeto da correspondência
Gi
E
10. LACAN, Jacques (1967). Discurso na E.F.P. op. cit., p. 280. 11. Ibid., p. 268.
==
182 DOMINIQUE FINGERMANN A SUPERVISÃO 183
experiência me conduz pelo enunciado, tem valor de controle”,!º supervisão é uma exigência que provém da não predicabilidade do ato
anuncia ele em RSI, retomando assim o que já tinha avançado no de analista; o que qualifica o analista é a práxis da teoria de sua práxis.
Seminário sobre a Angústia: “esse seminário ele mesmo poderia Não há “regra fundamental” da supervisão que constituiria a sua
se conceber na linha, na prolongação, daquilo que ocorre em um unidade, o que provocou na história todas as polêmicas e tentativas
controle/uma supervisão”." possíveis de estandardização. As demandas, portanto, são as mais
Na supervisão, o para sempre “jovem” analista, transforma variáveis: falar da clínica em geral, de um caso, de uma série, uma
o inefável da experiência em algo que atinge um outro (como um supervisão intermitente, de urgência, semanal, quinzenal, mensal, falar
passador) — lugar de alteridade e, por isso, de parceria — o que de entrada em análise, de interrupções, de término, de momento de
inaugura o possível de uma “comunidade analítica”. passe: questões que põem precisamente em causa o ato do analista;
Quando explica o caso do seu analisante, expõe a direção do falar dos embaraços da transferência, da dificuldade do diagnóstico
tratamento, a sua “resposta de analista” à estratégia transferencial, necessário ao posicionamento do analista. Pouco importa a forma, se
interroga a estrutura, a entrada na análise (que é entrada do analista), a questão de fundo não fica escamoteada: por exemplo, uma super-
a construção do fantasma, a renúncia às identificações, os achados do visão sequencial é aparentemente mais adequada para que se deposite
estilo: é a sua capacidade de sustentar a sua “própria” posição de o testemunho do ato do que uma supervisão ocasional, que pode
analista que o supervisionando põe à prova. e, somente por essa via,
parecer uma boia de salvação para apagar um fogo de angústia ou de
garante.
sensação de impostura; uma supervisão demais ritualizada, contudo,
A experiência não é inefável.
pode também servir de amparo entorpecedor.
Nesse risco e aposta se constitui a Garantia da psicanálise.
Algumas demandas parecem ser formuladas ao avesso do
Não há nada de espantoso, portanto, quando na Escola de
discurso psicanalítico em denegação do ato: demanda de ser poupado
Psicanálise a supervisão se configura como um lugar privilegiado
da solidão e protegido do impensável do ato; demanda de ser
onde o analista faz suas provas, e que, tanto para a entrada como
protegido de uma contratransferência que funcionaria ao avesso do
Membro na Escola quanto para as nomeações de Analista Membro
desejo de analista; demanda de cuidar do caso, como se o supervisor
de Escola (A.M.E.), a supervisão seja um lugar de discernimento, de
pudesse formular o diagnóstico, antecipar a direção da cura ete.
qualificação, de colocação à prova do desejo de analista,
Porém, o que interessa ao supervisor, na sua função, além do caso
e seus caos, é o caso do desejo de analista do supervisionando —
localizar na demanda de supervisão, qualquer que ela seja, o desejo
AS DEMANDAS DE SUPERVISÃO
de analista e o que faz obstáculo a ele.
Responder a esse tipo de demandas seria da ordem da impostura:
A demanda de supervisão, em princípio, não decorre de uma o supervisor também está à prova no dispositivo da supervisão, e sua
demanda institucional nem da demanda neurótica de um sujeito que complacência na resposta às demandas de tamponamento da angústia
pede o reconhecimento do Outro para ser autorizado. A demanda de tem consequências no futuro da prática do analista, na comunidade
analítica e na sua ética, que é a práxis da sua teoria.
A relação da supervisão com a análise e a eventualidade do
analista funcionar como supervisor foram historicamente determi-
12. LACAN, Jacques (1974-75). Le séminaire. Livre 22. RSI, Paris, inédito nantes: a questão continua na pauta. O supervisor pode ser o analista
(annexe |).
13. LACAN, Jacques (1952-683). O seminário. Livro 10. A angústia. Rio de
— por que não? —, mas isso depende do caso e do momento da trans-
Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 26. ferência e de sua cura. O supervisor pode ser escolhido e/ou usado
185
184 DOMINIQUE FINGERMANN A SUPERVISÃO
como acting out do supervisionando para se contrapor ao analista: vias dos discursos universitários, histéricos, do mestre — o que seria
quando um se cala o outro explica! uma distorção de seu propósito.
As demandas são diversas: tudo vai depender da resposta de Isso não quer dizer que a supervisão funcione apenas a partir
supervisor! do Discurso do Psicanalista (o supervisor não é o analista); podemos
esperar, no entanto, que seu posicionamento permita o giro do
Discurso quando este vacila e se equivoca — ao confinar o laço na
RESPOSTAS DE SUPERVISOR: O SUPERVISOR EM CAUSA sugestão, na sedução, na provocação histérica a uma produção de
saber, no poder do saber ou na certeza do gozo sobre o caso mesmo
O supervisionando está na berlinda quando se engaja e se atreve que as demandas pareçam produzir esse tipo de respostas.
numa supervisão, mas o supervisor também está em causa na sua O valor de supervisão é produzido quando o Discurso do analista
resposta às demandas diversas. O que remete à questão de como a pode operar aí, quando ele consegue calar o mestre, o professor e a
supervisão põe o Discurso do Analista em função. histérica e “se fazer causa da junção-disjunção entre a elaboração
“É necessário responder, com certeza; responder como mestre ou de saber e a manutenção necessária à disciplina da ignorância”,'º
professor da construção do caso ou da estratégia da cura, porém, não necessária à consideração pelo saber inconsciente (V'insuccês de [une
é satisfazer, é adormecer (fazer dormir), e talvez fazer o supervisio- bévue) que escapa a toda e qualquer elaboração.
nando esquecer, sobretudo quando ele está no início, o que se espera Se a dica maior de Lacan, nos anos 1950, parecia se dirigir
que ele tenha aprendido de sua análise”, adverte Soler.” aos supervisionandos — sobretudo, não compreendam! —, Lacan
Então, quem está colocado à prova na supervisão é, antes de surpreende mais uma vez, nos anos 1970, quando parece se dirigir
tudo, o supervisor: dele depende que a resposta à angústia, à sedução, mais aos supervisores, declarando nas conferências americanas e no
à convocação ao saber do mestre e do universitário, à provocação Seminário O sinthoma, que o leme da supervisão é deixar fazer —
fálica não acabe com a psicanálise, não desqualifique o ato e termine deixar rolar, diriamos:
com entorpecimento do analista. Eu, muitas vezes, nas minhas supervisões — pelo menos no início
Sidi Askofaré nos deu um exemplo da distorção universitária — encorajo o analista — ou pelo menos aquele que se acredita
da prática de supervisão: “de onde nossos institutos de formação tal — eu o encorajo a seguir o seu movimento.!”
de analista tiram a sua lógica: a lógica do Discurso Universitário.
Tem duas etapas. Tem aquela onde são como rinocerontes. Eles
No caso, o analista supervisor — como agente do discurso — faz aí
fazem mais ou menos qualquer coisa, e os aprovo sempre. Com
“semblante” de saber (S,): agido pela instituição — O instituto —(S)
efeito eles têm sempre razão. A segunda etapa consiste em jogar
em posição de verdade, ele “forma” o candidato analista, (a)studante,
com esse equívoco que poderia libertar o sinthoma”.'*
talvez competente, mas, sobretudo, vestido e reconhecido como
qualificado porque está conforme e, até mesmo, formatado”.É
Uma prática da supervisão coerente com o Discurso do Psi-
canalista, e a formação que o condiciona, não poderia se perder nas
Colette. “Quel contrôle?” Ornicar?, Paris, n. 42, p. 108413,
16. SOLER,
1987-1988.
17. LACAN, Jacques (1975). Conférence Columbia University Auditorium School
of International Affairs (12/1/1975), inédito.
de
14. SOLER Colette. Quel contrôle. Omicar?, Paris, n. 42, p. 108-113, 1987-1988. 18. LACAN, Jacques (1975-76). O seminário. Livro 23. O sinthoma. Rio
15. ASKOFAFÉ, Sidi. Quelle doctrine du contrôle. Mensuel, Paris, n. 44, p. 11-23, Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 18.
2009.
DOMINIQUE FINGERMANN
o
E
19. GOROG, Jean-Jacques. La dritte Person. Mensuel 44, Paris, p. 24-34, 2009
20. SOLER, Colette. “Le contrôle, quel discours?”. Mensuel 46, Paris: EPFOL- ;
France, p. 38, 2009. R
-
DA “IDEIA INCOMPATÍVEL” À
ESCOLHA DA ESCOLA*
“escolha da neurose”? ou seja, o uso particular do fantasma — é uma O passe é uma resposta que faz questão até hoje, ele tem, desde
tentativa para conciliar o inconciliável do significante e do gozo, e ela sempre, e para sempre, quer se queira ou não, um efeito virulento
transforma o trauma em conciliação usando a plasticidade da pulsão de questionamento do ato. O passe não salva o analista do horror de
para dobrá-la e fixá-la a uma modalidade de gozo de contrabando, seu ato, mas remete a ele, queira ou não, em virtude do passe que faz
compatível com um suposto gozo do Outro. Esta solução de compro- furo, “ausência de comunidade” em nossa comunidade, o analista não
misso, estruturalmente capenga, revela-se, na maioria dos casos, um deveria poder se refugiar no esquecimento e no desconhecimento.
mau tratamento; o sujeito expõe, então, eventualmente o seu impasse Como Lacan em 1967, dizemos que sem a escola, a psicanálise
a um psicanalista. pode se reduzir à neurose de transferência e limitar-se à confirmação
O dispositivo analítico e o ato que o sustenta parecem feitos sob dos impasses neuróticos em que a obsessão se encontra mais
medida para acolher o impasse do sujeito, e reduzir o insuportável do petrificada do que nunca, a histeria ainda mais evanescente e a
sem saída da sua escolha neurótica, ao incurável de um trauma que perversão mais canalha.
causa a singularidade de sua marca no mundo (sinthoma — estilo). “A escola falta para o ato”. Embora isto possa parecer paradoxal
A psicanálise é uma aposta de subversão do impasse da estrutura, já que o ato (analítico), justamente, não se sustenta de nenhum Outro
operando “um profundo remanejamento de toda a relação do sujeito (a menos que seja de um Outro barrado), o Ato para poder se sustentar
ao Outro” Por isto, é necessário que o analista em ato, pela sua deve poder se expor sem se aviltar. Se o Ato é uma boa dis-posição
presença, faça objeção à demanda de transferência que inclui o que depende do analista que sustenta o seu indemonstrável, é-lhe
analista no impasse neurótico. Em ato, isto é, como explicita Lacan no necessária uma Escola como dispositivo, para dar conta desta não
seminário O ato psicanalítico: atualizando, presentificando demonstrabilidade, explicar-se e, a partir daí, fazer deste ato, o agente
(...) este intervalo, esta fenda, esta banda de Meebius (...) este resíduo,
de um discurso novo para a civilização.
esta distância, esta coisa à qual se reduz inteiramente, para nós, o É relevante lembrar aqui a insistência de Georges Bataille para
Outro, a saber, o objeto a. Este papel do objeto «, que é de falta e de constituir “uma comunidade que assume e inscreve, de uma certa
distância, e não, de modo algum, de mediação, é nisto que se põe, forma, a impossibilidade de comunidade”º “Acéphale” — lembra
impõe, esta verdade que é a descoberta tangível — pudessem aqueles Blanchot — “foi a experiência comum daquilo que não podia ser
que a teriam tocado não esquecê-la — que não há diálogo, a relação colocado em comum, nem guardado para si próprio, nem reservado
do sujeito com o Outro é de ordem essencialmente dissimétrica, e que para um abandono ulterior”.º Era para Bataille uma exigência poé-
o dialogo é um equivoco." tica e ética no sentido que ela sustentava o ato que ele chamava
Como não esquecer a descoberta desta verdade tangível que “a experiência interior”. Para salvaguardar a possibilidade “da ex-
se impõe em ato no dispositivo que pretende desatar o impasse da periência interior”, é necessária sua posta em jogo, sua colocação à
estrutura? É a esta questão que Lacan responde quando propõe a prova da alteridade; senão, diz Bataille: “o ser que se ensaia aí (...) se
escola do passe. afoga num particular que não tem sentido.senão para ele...””
e
intranquilidade que desestabiliza o desconhecimento, que poupa o
e
analista de seu ato.
>>
—
É essa a graça que lhes auguro, é de falar dela (da coisa) que se trata
agora, e a palavra cabe âqueles que pôem a coisa em prática.
(LACAN, Jacques (1955). A coisa freudiana. In: Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 421).
de formação suficiente: “garantia de formação suficiente é o AME. — manejar esta enrolação via abjeção e objeção. Como isso pode ser
Analista Membro da Escola” falado, transmitido? Como isso pode ser audível e suportável pelo
Um A.M.E. não é um analista instituído, legitimado, autorizado, grupo?
garantido, confirmado pela Instituição Escola. Esse analista não se Fazer valer o discurso analítico em um grupo de analistas remete
apresenta na voz passiva, mas na voz ativa: 0 A.M.E. é “gente que faz” a esta experiência necessária para os analistas (“tão só...”) de fazer
Escola, é ele quem constitui a Escola, que a legítima, pois uma Escola laço a partir de e em torno daquilo que não se articula, mas que se
de Psicanálise que não tivesse “analistas à altura” (do ato analítico) transfere.
expondo, necessáriae suficientemente, as razões de sua clínica para Os A.M.Es, portanto, podem ser escolhidos como sendo
constituir “uma comunidade de experiência”, seria Escola só no nome. aqueles que, no grupo dos analistas, constituem a “comunidade de
experiência”, por se dedicarem a tentar explicar, transmitir o incomum
de uma experiência.
Por isso, dando início à Escola em 2001, após três anos de
CONSTITUIR UMA COMUNIDADE DE EXPERIÊNCIA
funcionamento dos Fóruns, pensamos que uma comunidade analítica
pôde escolher alguns, não tão poucos, dentre os analistas que, nesta
O analista, fundamentalmente, está só (“tão só quanto sempre empreitada de formação de comunidade, “deram as suas provas”. Dez
estive em minha relação à causa analítica”), ele tem “autonomia nas anos depois, em 2011 no Il Encontro da Escola,” a mesa-redonda “A
suas iniciativas”, não tem Outro que o suporte: ele se autoriza de si Escola à prova do passe” avaliou essa aposta primeira e permanente
mesmo. O princípio desta solidão é a premissa do ato, é o que vai lhe do A.M.E. da EPFCL, da sua responsabilidade como causa e efeito da
dar autoridade para suportar o abjeto, o que na análise presentifica-se Escola.
como sendo a extrema solidão de um sujeito, o seu mais próprio
desarvoramento. Suportar a transferência desta abjeção só é possível
a partir dessa premissa: a solidão que o “autorizar-se de si mesmo”
DAR AS SUAS PROVAS
comporta e suporta. Suportar a transferência produz, faz com que o
sujeito em questão se depare com a opacidade solitária que o faz tão
incomum e depreenda-se da crença na sua subjetividade e no Outro. A garantia de formação “suficiente” que a Escola pode even-
tualmente outorgar é secundária; primeiro, trata-se de “dar as suas
A experiência de uma análise, portanto, não é uma coisa comum;
provas”. Ao engajar-se em uma Escola, o analista se compromete, se
daí soar esquisito o uso da palavra “comunidade de experiência”
para falar de um grupo de psicanalistas. Com efeito, esse grupo se convoca, se arrisca a dar provas de que sua prática autônoma preserva
a manutenção da via da psicanálise, sustenta o Discurso Analítico, isto
sustenta por fazer valer e fazer circular o mais incomum, por tornar
é, O tratamento específico do real que ela possibilita.
transmissível o mais i-mundo: o âmago onde o sujeito se abriga, se
Como o psicanalista demonstra, explica, ensina “o que a psi-
enrosca, se enrola e tenta enrolar o analista que, enquanto tal, vai
canálise lhe ensina”, como é que ele garante a sua própria formação?
Existem diversas maneiras de expor o saber que o analista extrai
aprês-coup de seu ato, diversas maneiras para dar as razões da RESPONSABILIDADES DE ESCOLA
sua clínica: nos cartéis, nas apresentações clínicas, no ensino, nos
escritos, nas supervisões, nos congressos etc., o analista expõe, No nível da intensão o AM.E. na Escola tem, especificamente,
diante de alguns outros, a emergência eventual do ato que opera na a responsabilidade de designar os passadores. Isto é uma consequência
análise, o tratamento do real em jogo na experiência. Se o analista do reconhecimento da sua competência, e sua nomeação seria coerente
for “passador da experiência”, o seu testemunho será forçosamente com o fato de que ele esteja qualificado e apto para escolher, dentre
ouvido por “alguns outros” que saberão, eles mesmos, transmitir o seus analisantes, quem está à beira da passagem ao ato, na borda do
valor desse testemunho à Comissão Local de Garantia (CLEAG), ato. A experiência do passe na EPFCL vai depender, essencialmente,
dando-lhe condição de traduzir e passar para frente os argumentos dos seus passadores: portanto, esperamos dos A.M.E. que saibam
para o Colegiado Internacional da Garantia (CIG). que de sua clínica e de suas escolhas dependerá que a intensão da
(...) O psicanalista, mesmo considerado como entravado por um psicanálise sustente a extensão.
desejo desigual à prova do psicanalisante, seria distinguido pelos No nível da extensão: a nomeação do A.M.E. o engaja a res-
juízes instruídos sobre o estilo de sua prática e o horizonte que ele ponder em nome não somente de seu ato, mas também em nome da
sabe reconhecer ali, por ali demonstrar seus limites: é o que eu chamo psicanálise perante a sociedade civil,
de A.M.E:
(...) De qualquer forma, será preciso, justamente, que vocês daí
Esperamos sempre que o CIG, apesar das (ou graças às) suas passem pela atribuição, a alguns, de funções diretivas, para obter
múltiplas permutações, chacoalhe suficientemente o grupo para se uma distribuição prudente de sua responsabilidade coletiva. E um
manter à altura do desafio: não se perder em uma medição de pessoas uso que pode ser discutido na política; ele é inevitável em todo
grupo que faz valer sua especialidade aos olhos do corpo social. A
e conseguir avaliar a “competência e a performance” dos que fazem esse olhar responde o A.M.E.”
formação na Escola sem se colocar como professores nem como
alunos, mas como analisantes de escola. Um Analista Membro de Isto não constitui um adendo cômodo em tempos de regulamen-
Escola é fundamentalmente um analisante de escola, A sua nomeação tações governamentais da prática da psicanálise; a eficácia específica
como A.M.E. reconhece a sua distinção, a sua maneira distinta de da psicanálise não é inefável, o seu alcance, o seu lugar na ciência
produzir a comunidade de experiência, mas, simultaneamente, precisa ser argumentado, sustentado, defendido, se for o caso, para
compromete-o com outras responsabilidades que a avaliação de sua garantir a psicanálise e sua extensão, se acharmos mesmo que o trata-
nomeação vai ter que incluir como critérios. mento do real que ela opera é radicalmente indispensável à sobre-
vivência do humano dentro da civilização.
Esperamos que os A.M.E. da EPFCL sejam numerosos e ardilosos entre os dois termos. Uso aqui o termo “paradoxo” no sentido do
para garantir a persistência da psicanálise: o tratamento do real, o laço, que surpreende, choca o bom senso e contrapõe-se à opinião comum.
ou seja, o discurso tão peculiar que salvaguarda do pior o singular de Paradoxalmente o analista, sozinho, suporta o seu ato, mas este só vai
cada um. garantir a psicanálise se puder dar prova disso.
(...) Quais são seus critérios?, que me perguntem, no que diz Lacan, ao longo de seu ensino, e mais precisamente nos textos
respeito ao júri de acolhimento, para nomear alguém A.M.E. Vou institucionais, fez questão de expor este paradoxo. Desde o “Ato de
dizer-lhes: é o que chamamos de bom-senso, isto é, a coisa mais fundação”, ele anuncia a problemática específica do analista e de sua
difundida no mundo. O bom-senso é isso: “Aquele ali, pode-se formação: “Fundo — tão só quanto sempre estive na minha relação à
confiar nele”, nada além disso. Não há absolutamente nenhum causa analítica — a Escola francesa de psicanálise...”.!º É a premissa
outro critério”.!º inicial que afirma o enlace paradoxal entre a solidão fundamental
do analista e a necessidade de fundar uma Escola em torno e a partir
desse princípio de solidão.
O ATO E A PROVA Sua “Proposição sobre o psicanalista da Escola” até hoje sur-
preende e choca a muitos, contradizendo o senso comum, pois ela é,
Autorizar-se de si mesmo de fato, um paradoxo proposto como princípio e causa da fundação da
x Garantia: O enlace paradoxal da
formação dos analistas Escola, ou seja, da formação do analista.
Todos os outros textos institucionais! marcarão estes dois
As pessoas que pretendem sustentar a posição de analista fora tempos do analista: o solitário e o solidário. Solitário da iniciativa, do
de uma Escola geralmente justificam sua decisão dizendo que há ato, e solidário da psicanálise e dos fundamentos éticos de sua práxis.
contradição — incoerência — no ensino de Lacan entre “autorizar-se Não há contradição entre a intensão do “autorizar-se de si mesmo” e
de si mesmo” e a garantia que pode decorrer de uma Escola de a extensão que efetiva a garantia, há uma articulação topológica do
Psicanálise. No entanto, cada vez mais os defensores da bandeira tipo “banda de Meebius”. Só na aparência o “autorizar-se” é o avesso
“eu me autorizo de mim mesmo...”, aqueles que se “autorrituali- da garantia, pois trata-se de dois tempos na abordagem de uma mesma
zam”, como ironiza Lacan na “Nota italiana”, encontram-se na questão: a questão do psicanalista. O “psicanalista” faz questão, na
Universidade, buscando outro tipo de garantia de formação para medida em que sua intensão não é predicável. O tempo do ato e
suportar sua autorização. o tempo da prova balizam e pontuam essa questão do psicanalista
Quem participou da fundação da EPFCL sustenta que não impredicável. São dois tempos diferentes da borda, do contorno, do
há oposição entre a “garantia” de formação de uma Escola e à cingir “o real em jogo na formação analítica”.
autorização do analista. Aliás, é também isto que Lacan precisa ao “O real em jogo na formação analítica...” é oriundo do fato de
afirmar que é necessário zelar pelo fato de que “só haja analista a que não há uma definição universalizável do conceito de psicanalista
se autorizar de si mesmo”.”? Digamos que há um enlace paradoxal
13. LACAN, Jacques (1964). Ato de fundação. In: Outros escritos, op. cit, p. 235.
- LACAN, Jacques (1975). Journées des cartels de I'École freudienne de 14. Por exemplo, a primeira versão da “Proposição do 9 de outubro de 1967...
Paris. Maison de la chimie. Leftre de "École freudienne, Paris, n. 18, p. 263» inicia-se assim: “Il s'agit de fonder (...) les garanties dont notre École pourra
-270, 1976. autoriser de sa formation un psychanalyste — et dês lors en répondre. (...)
- LACAN, Jacques (1974). Nota italiana. In: Outros escritos, op. cit, p. 312. L'autonomie de Finitiative du psychanalyste y est posée en un principe qui ne
“Ibid, saurait souffrir chez nous de retour.” (In: Autres écrits, op. cit. p. 575).
200 DoMiNIQUE FINGERMANN À ESCOLHA DA ESCOLA 201
(que seja válida para todos aqueles que compõem esta classe), já que designação da diferença absoluta. “Nomear”, diz Lacan no seminário
“um” psicanalista é um produto inédito de uma experiência de análise. À identificação, “é antes de tudo algo que tem a ver com uma leitura
A intensão do conceito de analista não é predicável, pois o analista do traço unário designando a diferença absoluta”.
não é nada mais, nada menos que o produto singular de uma operação A Escola é, portanto, a resposta ao real em jogo na formação
significante, um resto, uma de-formação definitivamente, radicalmente analítica; que ela acolha a partir da articulação moebiana do princípio
não universalizável. da “autonomia e de iniciativa”!* e da garantia indispensável, que essa
Há uma articulação moebiana entre o “autorizar-se de si mesmo” autonomia não pode dispensar.
e a garantia, pois o tempo | implica e conduz ao segundo, que, por A proposição de 1967 explicita esses dois tempos a partir dos
sua vez, volta para o primeiro. O primeiro tempo é o tempo do ato, da dois polos do A.E. e do A.M.E., implícitos desde 1964 na exposição
passagem ao ato, da de-cisão, da produção do desejo do analista, dos princípios da Escola de Lacan. Há dois tempos na formação de
O tempo do ato não pode saber-se, mas pode “se fazer saber”, um analista: o tempo do ato e o tempo da prova, e um não funciona
demonstrar-se a partir dos efeitos que “fazem prova” de “formação sem o outro, mesmo que estes dois títulos pareçam isolar e distinguir o
suficiente”, que provam haver aí um analista (o “autorizando-se de si tempo em que se evidencia o ato (o passe) e o tempo em que se “faz”
mesmo” ressoa aqui como uma redundância). a prova dos efeitos do ato (o A.M.E.).
O tempo 2 continua no tempo 1. pois a prova se configura Se o dispositivo analítico é o tratamento possível do incurável,
como garantia de formação suficiente se, e somente se, caracteriza a a Escola é o tratamento possível do improvável do analista. Portanto,
possibilidade, a eventualidade de emergência do ato. Se não perder a escolher a Escola é escolher esta articulação entre a intensão (não
sua ligação permanente com o ato “de "analyste”, ela condicionará predicável) e a extensão (não predeterminada), entre o ato e a prova,
o seu retorno entre o autorizar-se e a garantia; é uma garantia de desassossego é não
Dito mais claramente, o “autorizar- se” não se sustenta sem a de conforto. Escolher a Escola é escolher “'Epreuve”, diz Lacan, uma
prova e a provação que a pertinência à Escola determina. Esta é, na experiência de provação, um lugar para a prova.
nossa opinião, a condição de garantia da psicanálise. Não há garantia A instituição da EPFCL, em dezembro de 2001, já foi um passo
sem provas a posteriori (aprês-coup) do ato e não há prova sem o para a manutenção das condições do ato analítico, pois contém a
ato prévio; por outro lado, o ato, por ser fugaz e fora da linguagem, afirmação de que a extensão da psicanálise não é garantida pela
necessita de provas (a escrita, o traço que evoca o rastro) e, assim, associação, agrupamento, agregação de psicanalistas. A instituição
garante a formação, a transmissão, a extensão “do psicanalista”. A da Escola desassossegou e transtornou o grupo dos Fóruns, pois
Escola é o que fazemos para abrigar este enlace paradoxal. constituiu um engajamento na experiência de provação que a Escola
promove, suporta, garante como condição de formação. Este lançar
Uma Escola: uma experiência de provação mão da Escola inaugurou o momento em que se trata de “Fazer
Escola” a partir da instituição de seus dispositivos. Fazer Escola,
A garantia de formação que uma escola de psicanálise propõe implica ter condições de fazer funcionar os dispositivos de Escola,
não é aval nem avaliação, é distinção. Cabe à Escola suportar os cartéis do passe e comissão de habilitação, para que, a partir deles,
dispositivos adequados para tornar o psicanalista distinto dentro do
grupo, ou seja, que aquilo que “se autoriza de si mesmo” se distinga
a partir de sua emergência (no passe) ou de seus efeitos, e permita
qualificar um analista e então nomeá-lo Analista de Escola (A.E.) ou 15. LACAN, Jacques (1961-62). Le séminaire. Livre 9. L'identification, inédito
(Aula de 10/2/1962).
Analista Membro de Escola (A.M.E.). Não podemos esquecer que, na 16. LACAN, Jacques (1967). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psica-
perspectiva do ensino de Lacan, a nomeação remete à distinção e À nalista da Escola (Primeira versão). In: Outros escritos, op. cit., p. 570.
202 DOMINIQUE FINGERMANN A ESCOLHA DA ESCOLA 203
se demonstre e assegure que nesta Escola instituída hajam analistas, É relevante também poder mostrar que podemos usar essa
que eles se autorizem desde si mesmos. É óbvio que a col ocação dos definição da garantia de maneira positiva e não negativa, ou seja, a
dispositivos em função não visa à posse de funcionários, mas a pôr garantia em uma Escola permite designar a proposição “há algo de
em função matemática o conjunto vazio, designando a intensão “do analista” como verdadeira e não como falsa; os dispositivos decidem
analista”. Portanto, os dispositivos vão funcionar na medida em que a verdade eventual da proposição e não a sua falsidade. Isto é muito
houver analistas “fazendo o analista” (no duplo sentido que Lacan nítido nos relatórios de cartéis de passe dos quais dispomos, e tem
evoca no Seminário 16) e “fazendo escola”, expondo as razões da que nos orientar na designação dos A.M.E, O fato de um analista não
sua clínica e transformando a Escola instituída em comunidade de ser nomeado A.M,E. não quer dizer que ele é desconsiderado como
experiência, isto é, em comunidade de Escola. analista, mas talvez que as provas que ele dá do efeito de seu ato não
permitem que a Comissão de Garantia Internacional se pronuncie. Isto
Distinção não quer dizer que não haja analista, mas apenas que não há provas
suficientes, indícios legíveis para distinguir, discernir e nomear, isto
Recorrer à etimologia permite abrir a questão de outra forma. é, afirmar a proposição “há algo de analista no ponto fulano de tal”.
“Autorizar-se”, por exemplo, tem evidentemente como raiz a Penso que este foi um dos motivos pelos quais Lacan insistiu sobre
palavra “auctor/autor”, que se refere “aquele que está na origem de o fato de que o título de A.M.E. não podia ser solicitado pelo próprio
alguma coisa” e, entre outros, “pessoa que é causa de (...) um ato”. analista: algo de analista precisa ser nítido e distinguível.
Autor é aquele que funda e estabelece, é instigador e também garante.
Autorizar remete precisamente à garantia: “dar autoridade a alguma O que é “algo de analista?”
coisa (...) certificar (...) provar”. O equívoco é fácil, e não é raro em
nossos meios em que “autorizar-se” reduz-se, muitas vezes, a habilitar Mas como isolar algo que não seja um predicado, mas possa
a si mesmo. vir a ser uma característica reconhecível, distinguível? Proponho
Garante, garantir: há uma dupla origem no francês e no alemão interpretar a frase: “O psicanalista só se autoriza de si mesmo” a partir
antigos, que remete à mesma raiz do alemão: Wahr, verdadeiro. desta outra: “o analista está só, tão só quanto sempre esteve na sua
As primeiras acepções dessa palavra em francês evocam “designar relação com a causa analítica”.
alguma coisa como verdadeira”, ou ainda “afirmar alguma coisa Em que a solidão do ato se manifesta, como algo de especifica-
respondendo por sua autenticidade”, “Dar a segurança da qualidade de mente operador da operação analítica, que possa ter efeitos distintos e
alguma coisa” é um sentido posterior, derivado deste primeiro, assim distinguíveis? “O analista está só” remete evidentemente à operação
como todos os usos da palavra no sentido de proteção e de defesa. da sua própria análise, que o conduziu a este ponto de solidão irre-
Este desvio pela etimologia é relevante porque possibilita insistir mediável de destituição subjetiva. Nesse ponto, o traço unário que
sobre uma perspectiva diferente da questão da garantia, quando se determina seus passos se revela apenas como “o rastro de um não”
trata do psicanalista, tal como ela aparece nos nossos estatutos é (la trace d'un pas)“ em que a inconsistência desvelada do Outro
dispositivos de Escola. Não se trata nem de habilitar-se nem de ser
garantido, assegurado, protegido, mas de garantir que haja “algo de
analista” (de I'analyste) na Escola. Ou seja, trata-se na Escola de
estar em condições de poder designar como verdadeira a proposição
“uma pessoa causa um ato”, ela é a sua origem e, enquanto tal, não se 17. ly a de 'analyste, em francês, tem a precisão indefinida que o “de” partitivo
permite.
sustenta a partir de nenhum Outro, e nisso se distingue e se outorga a
18. LACAN, Jacques (1961-62). Le séminaire. Livre 9. L'identification, inédito
autoridade de psicanalista. (Aula de 6/12/1961).
204 DomiNIQUE FINGERMANN À ESCOLHA DA ESCOLA 205
não permite mais esperar nem supor “no Outro o Um do sujeito”; é da Escola, produz uma comunidade de experiência a partir daquilo
também o momento em que a produção, isto é, a distinção, o destaca- que, o ato próprio a cada um, faz certo efeito: o mais incomum,
mento do mais-de-gozar o identifica como radicalmente impar. ímpar, solitário. Não há nomes comuns para os psicanalistas, há
Os cartéis do passe deveriam poder recolher, peneirar esses somente nomes próprios que não se fundam sobre nada. O solitário,
testemunhos de produção de uma solidão distinta e operativa. O ímpar, incomum causam e funcionam como operadores lógicos
dispositivo do passe, no seu conjunto, é uma condição para distinguir da operação da psicanálise. O desejo do analista é o nome deste
este ponto de extrema solidão, ponto de abjeção que é produzido pela operador que permite, autoriza, suporta o semblant, a função do
lógica de uma análise e que permite a sua reprodução no aprês-coup sujeito suposto saber, sem tremer, nem temer a impostura, pois o
da experiência. Pois é a partir dessa imparidade, dessa produção do desejo do psicanalista é o sujeito suposto ao saber na medida em que
“tão só...” que um sujeito que não “se acha” UM, tampouco o único, ele é conjunto vazio — abjeto, portanto, que objeta ao saber, a não
pode operar como analista, que se autoriza de si mesmo. A solidão ser que se sustente no lugar da verdade (não como A, mas como À).
como condição do ato caracteriza o psicanalista, pois condiciona e Este operador lógico — desejo do analista — tem efeitos reais que a
determina que ele seja impar e que, em decorrência disso, não faça Escola, na condição de terreno da provação, pode recolher nos seus
par. À partir do discurso que suporta, ele faz laço, não faz par com dispositivos furados,” feitos para discernir a futilidade do estilo —
a dupla demanda de transferência — a demanda de complemento de .
fútil na medida em que ele se apanha nos seus efeitos efêmeros e
sentido e a inclusão como parceiro de gozo. voláteis: efeitos de chiste, de de-formação de gozo. efeitos de estilo.
|.
>
O estilo não é de cada UM certo de si mesmo, “autorritualizado” de
)
A provação da prova si mesmo. O estilo é o que certamente marca a passagem de um,
.
Como esta imparidade pode ser demonstrada, e como uma
alguém, é o rastro de um passo, a pegada de um apagamento próprio
.
g
que efetiva a de-formação do gozo, o rastro de um silêncio do Outro.
Escola, na sua resposta ao paradoxo, permite tratar o improvável do
)
O estilo do analista é a sua maneira própria de operar o desejo do
analista? analista, é o que lhe resta de sua análise: sua imparidade e sua solidão,
Os dispositivos de Escola acolhem os efeitos do ato sobre o que ele põe à prova do ato “fazendo o psicanalista”. “
real. Isto não é inefável, é a aposta de uma garantia provável de um Um psicanalista a altura de seu ato é quem se põe à prova da ]
analista improvável. Não é inefável: cada um pode falar, demonstrar,
Escola que ele faz com seus pares, ou seja, com todos que queiram a
explicar, ensinar, argumentar, responder à questão de Lacan: “O que
também arriscar-se e suportar seus ímpares. :
a psicanálise nos ensina, como ensiná-lo2”!º
Lacan, em janeiro de 1980, na hora da dissolução, declarou: “não ,
Uma Escola de psicanálise é justamente essa oportunidade
espero nada das pessoas, mas (e) alguma coisa, do funcionamento”> :
construída de poder explicar-se, expor as razões de sua clínica
Logo após a dissolução de sua Escola, Lacan se mostra já disposto a n
nos colóquios, nos grupos de trabalho, nas apresentações clínicas
e especialmente nos cartéis: frente a alguns outros. “L'Ecole,
“relançar a experiência” e a causa da psicanálise: “O que vou fazer -
PEpreuve”, disse Lacan, a Escola é o lugar da experiência da prova b
do “ímpar”, não é o lugar do reconhecimento dos pares pela cooptação g
e a aprovação. É nesta condição que a Escola, o trabalho de garantia b
20. FINGERMANN, Dominique. Um dispositivo furado. Stylus, Belo Horizonte, O
n.1, p. 1098-116, 2000.
21. LACAN, Jacques (1980). Sêminaire du 15 janvier 1980, inédito (15/1/1980). Ê
No original: “(...) Je n'attends rien des personnes mais (et) quelque chose du
19. LACAN, Jacques (1957). A psicanálise e seu ensino. In: Escritos, op. cit., p. 440. fonctionnement”.
)
0
.
206 DOMINIQUE FINGERMANN
Com mais de vinte anos de distância, Lacan, atento à questão da PSICANALISTAS, MAIS UM ESFORÇO!: “PARA QUE A PSICANÁLISE
extensão da psicanálise no mundo, enuncia quase a mesma sentença
TORNE-SE UM ATO POR VIR AINDA”?
imperiosa e zelosa, ligando a permanência do Discurso Psicanalítico
no mundo à presença efetiva dos analistas responsáveis pela posição
do inconsciente. O problema crucial da psicanálise na atualidade é a manutenção
Em “Função e campo da fala e da linguagem” (1953), Lacan de sua posição atópica, a posição do inconsciente é intempestiva,
extemporânea. A perseverança da subversão topológica de seu laço
condiciona a permanência da práxis analítica conectada ao “horizonte
da subjetividade da época”, à formação do analista, “o fim da análise ao avesso do bom senso e da moral do mundo.
O problema crucial da psicanálise permanece sendo a formação
didática”: “longa ascese subjetiva”.? Lembramos o rigor de seu
do analista capaz de inventar a radicalidade de seu ato ímpar, do
imperativo, que almeja proteger a prática da psicanálise de sua obso-
qual ele precisa dar prova. A prova de analista é o seu estilo, a sua
lescência: “Que antes renuncie a isso, portanto, quem não conseguir
distinção, a sua resposta singular, seu sinthoma dirá Lacan, isto é, sua
alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”.
resposta à “não relação sexual”.
Em 1974, na “Nota italiana”, Lacan persevera, e sua injunção
Freud estabeleceu a “regra de três” dessa provação: análise
assesta precisamente o famoso “autorizar-se de si mesmo”, que causa
tantos mal-entendidos na comunidade analítica a respeito da orien-
didática, estudo da teoria, supervisão. Lacan inscreveu a Escola como
lugar dessa prova e da garantia da manutenção das condições do ato. A
|
tação lacaniana: “Que ele não se autorize a ser analista, porque nunca deformação do analista, subsequente à sua subversão pela sua análise
.
terá tempo de contribuir para o saber sem o que não há chance de que pessoal, precisa ser garantida pela sua provação permanente; sua
.
a análise continue a dar dividendos ao mercado”. Autorizar-se de si maneira de praticar o estudo da teoria e de se arriscar na supervisão
mesmo é um acontecimento ético que só pode acontecer ao cabo de será suficiente se, e somente se, permanecerem necessárias e não
uma demonstração lógica. “Autorizar se de si mesmo” é um ato ímpar, cessarem de se inscrever.
oriundo da prova da solidão e de singularidade de quem não se apoia Ê
mais no saber e na garantia do Outro, mas no saber do inconsciente, 4
que ele precisa fazer valer em cada caso, cada ocasião que a demanda QUAL SERIA A URGÊNCIA DA MANUTENÇÃO DA PRESENÇA DA
analisante atualiza. Será desde esta solidão que o psicanalista deve PSICANÁLISE NO MUNDO?
“contribuir ao saber” da psicanálise e explicitar, frente a alguns outros,
as “razões da sua clínica”, A finalidade da experiência da psicanálise, que a vetoriza até
seu fim, consiste em proporcionar uma via de acesso à singularidade,
ao “Há Um”, que causa cada Um como ímpar, diferentemente do
universal da castração e das suas incidências particulares.
Daí decorre a urgência e a dimensão eminentemente política
da psicanálise, que pode fazer frente ao mal-estar da civilização da
atualidade.
Freud, em seu tempo, não deixou de se preocupar em relação aos
LACAN, Jacques (1953). Função e campo da fala e da linguagem. In: cataclismos da humanidade que assombravam a sua atualidade. Lacan,
Escritos, op. cit, p. 322
Ibid.
LACAN, Jacques (1974). Nota italiana. In: Outros escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2003, p. 314. 5. LACAN, Jacques (1968). Introdução de Scilicet. In: Outros escritos, op. cit,
p. 293.
210
DOMINIQUE FINGERMANN
por sua vez, desde a sua apreensão clínica da
estrutura do humano,
pôde infelizmente antecipar o que estava por
vir dos acontecimentos
da nossa atualidade.
Não por acaso, no texto princeps que
interpela e orienta a
formação do analista, ele alerta a respeito
do mal-estar contem-
porâneo: “Nosso futuro de mercados comuns encon
trará seu equilíbrio
numa ampliação cada vez mais dura dos proce
ssos de segregação”.
A responsabilidade do Discurso do Psicanalis
ta hoje é a sua
consideração fundamental, a contracorrente do Discu
rso comum,
pela angústia e o sintoma, sinal do real e signo
da marca singular da
estrutura no sujeito. Quando esta marca não
é mais relevante para
a ex-sistência de cada Um, então a universali
zação acachapante e a
segregação dos excluídos do mercado e da sua
globalização colocam
em xeque o melhor que pode acontecer quando
alguém consegue pôr
em jogo, no jogo da civilização, a causa da sua
singularidade.
qo
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Este livro organiza textos apresentados nos últimos 15 anose |.
testemunha o engajamento assíduo da autora na transmissão +
da psicanálise e na sustentação da questão polêmica da for-
mação do psicanalista.
A—
A questão é elencada em seis capítulos, que reatualizam a “re-
gra de três” estabelecida por Freud para garantir a extensão
h
da psicanálise no mundo e no tempo: análise didática, estudo
rw
da teoria, supervisão. O ensino de Lacan tira as consequên-
E ie
cias da sua orientação lógica e de sua opção ética quando,
[Tre
além deste tripé necessário, ele precisa como inseparável de
seus conceitos fundamentais — a Escola, o Cartel e o Dispo-
sitivo do passe. Tanto um quanto os outros colocam à prova o
1
irredutível: “autorizar-se de si mesmo”.
+
A deformação do analista, subsequente à sua subversão pela
—+—
análise pessoal, precisa ser garantida pela provação perma-
gem
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868 A
a SR
ISBN 978-85-7137-392-1
788571"373921 ,