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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE LETRAS
DISCIPLINA DE LEITURA E PRODUÇÃO TEXTUAL
Acadêmica: Roberta Passos dos Santos 00113923

VIAGEM AO MUNDO DAS GUEIXAS

KAFU, Nagai. Guerra de Gueixas. São Paulo: Estação Liberdade, 2016.

O livro Guerra de Gueixas foi publicado entre os anos de 1916 e 1917 no jornal
literário japonês de Bunmei, foi escrito pelo autor, dramaturgo e ensaísta Nipônico
Nagai Kafu. Em todos os seus livros Kafu retratou com ousadia e de forma
revolucionária, para a sua época, a vida dos habitantes de bairros boêmios da
Tóquio do início do século XX, com Guerra de Gueixas não foi diferente e para além
da ousadia, também fica evidente uma vontade de mostrar a figura da Gueixa de
forma mais realista, deixando de mostrar-la como essa artista e acompanhante
perfeita, para ser vista como uma mulher de carne e osso com seus defeitos e
limitações.

“Komayo procurou aflita um lugar onde se esconder, e enveredou pela


esquerda depois da encruzilhada de Kobiki. Só conseguia pensar em
ficar encolhida num canto e chorar nas mangas do quimono até cansar.
Quando algo de ruim acontecia, não havia o que a consolasse, a única
maneira de ela se acalmar era ir para um lugar isolado e chorar até as
lágrimas secarem” (página 209)

Para os leitores atuais e até mesmo para os leitores ocidentais da época em que
foi lançado (no formato de folhetim) o livro não parece ser polêmico, mas sua estréia
se deu em um momento delicado para a população Japonesa, sendo assim, foi
censurado pelo seu conteúdo erótico e só foi publicado integralmente nos anos 60.
A Tóquio do início do século XX era uma cidade em expansão, pois uma grande
quantidade de bairros haviam sido anexados ao seu território, o metrô estava
chegando e os contatos com o mundo ocidental eram cada vez mais presentes.
Mesmo sem saber, a tradição da Gueixa estava se desintegrando de forma gradual,
e é justamente um dos principais tópicos que Nagai Kafu retrata em seu livro: a luta
para deter a decadência das Gueixas.

Guerra de Gueixas é um livro dividido em 22 episódios (Intervalo, Joia Rara,


Flores de Comelina, Fogo para os Mortos, Um Sonho à Luz do Dia, O Quimono do
Ator, Pôr do Sol, Suplícios de Travesseiro, Gueixas em Revista, O Nicho da
Codorna, Kikuobana, Anoitecer Chuvoso, De Volta para a Casa, Asakusa, A Casa
Gishun, A Estréia I, A Estréia II, Duas Noites, Yasuna, O Banho da Manhã, O
Imprevisto e Isso e Aquilo), no Brasil foi traduzido e publicado pela editora Estação
Liberdade (uma das melhores no ramo de publicação de autores Japoneses), logo
de cara o livro se destaca pela sua capa que apresenta xilogravuras no estilo
Ukiyo-e, que já nos transporta para o Japão das eras clássicas. A história se passa
no bairro de Shinbashi, conhecido como o bairro das gueixas, mesmo com diversos
núcleos quem dá o fio condutor e protagoniza a história é Komayo, uma ex-Gueixa
que após a morte do marido se vê obrigada a retornar para a vida na sua antiga
Casa. Durante a obra Komayo tem que lidar com a sua teia de relações afetivas
composta por um antigo cliente, um ator jovem pelo qual a Gueixa nutre uma paixão
quase obsessiva e um desprezível empresário que mantém a protagonista presa à
ele pela sua grande fortuna.

No primeiro episódio temos o encontro de Komayo e Yoshioka, este foi um antigo


cliente da primeira vez em que ela foi Gueixa. Sete anos no passado Yoshioka era
um estudante universitário perdidamente apaixonado pela personagem, mas a
família decide enviá-lo para o exterior e os dois nunca mais se vêem, até o
momento em que se encontram no teatro. No momento em que se encontram todas
as memórias retornam para Yoshioka e ele sente uma necessidade imediata de
voltar a se relacionar com Komayo, os dois se encontram após o teatro e o capítulo
se encerra com as claras intenções que o antigo cliente tem de pagar a dívida da
Gueixa e torná-la uma de suas mulheres.

“Quando finalmente terminou de se desatar, Komayo virou-se para ele.


O pesado quimono deslizou por seus ombros e revelou o vestido de
baixo, de crepe de seda branca, leve, sem forro, com uma estampa de
delicadas flores de Comelina à beira de um riacho” (página 40)

No quinto episódio, intitulado Um Sonho à Luz do Dia, Komayo insiste para que
Yoshioka à leve para uma sede campestre de uma das mais famosas casas de chá
de Tóquio, mesmo que a Gueixa não se sinta interessada na proposta do cliente,
ela sabe que pode tirar mais algum proveito antes de revelar que não tem intenção
de ser uma de suas mulheres. Quando já estão na Shanshun’en Yoshioka tem um
imprevisto e volta para a cidade, deixando Komayo sozinha, confusa e entediada. A
protagonista decide passear pelo campo, mas quando sai do quarto esbarra no ator
Isshi Segawa, um famoso ator japonês que interpretava personagens femininos
(omnagata), os dois já se conheciam e param para conversar. Assim que a conversa
se inicia Komayo já se sente interessada pelo ator e não disfarça sua intenção de
mantê-lo por perto, os dois passam o dia juntos e ali a obsessão de Komayo se
desenvolve.

“- Você aqui?- disse Komayo, feliz por ser ele. Por um instante, ficou
parada, sem conseguir entrar no cômodo. Dois dias antes, em plena luz
do dia, num corredor deserto da Shanshun’en, ela vivera um sonho de
felicidade. Não sabia dizer quem tomara a iniciativa, ou o que
acontecera exatamente, mas, como ele era um ator famoso, Komayo
pensava que seria só aquela vez, uma aventura de um dia” (página 75)
Em Suplícios de Travesseiro, Komayo tem que interromper um de seus
encontros apaixonados com Segawa porque é chamada para atender o novo cliente
na Taigtsu. Chegando lá se depara com o “Monstro Marinho”, um empresário de
aparência horrenda que só sente prazer relacionando-se com as mulheres que o
desprezam. Assim que ele vê a protagonista, fica muito interessado e promete
patrociná-la e ser seu benfeitor, a proposta é irrecusável para Komayo, que vê
nesse cliente uma oportunidade de viver uma vida tranquila com Isshi Segawa. Ela
mantém a relação com o Monstro Marinho, mesmo sentindo uma enorme repulsa,
pois tem em mente que sempre terá o seu ator para ampará-la após o comprimento
dos deveres com o desprezível novo cliente.

“O Monstro Marinho tinha os olhos nebulosos de bebida, e observava


em silêncio, sem se mover, ora a gueixa taciturna, sentada de costas
para a lanterna, ora o leito que parecia chamá-lo. Era como se
estivesse diante de uma mesa cheia de iguarias da montanha e dos
oceanos, estudando com cuidado e sem pressa com qual guloseima iria
estrear os hashis.” (página 95)

Após ter a sua teia de relacionamentos montada, Komayo vai vivendo o seus dias
resolvendo seus conflitos internos e externos ao mesmo tempo que os outros
personagens do livro, direta ou indiretamente relacionados a ela, também
atravessam seus conflitos diante da sociedade Japonesa clássica e ao mesmo
tempo em processo de modernização.

Guerra das Gueixas é um livro que vale a pena ser lido não só pelo conteúdo do
romance em si, mas por mostrar outro lado das quase míticas Gueixas. Mulheres
reais que lutavam para alcançar um nível artístico e de aparência próximo da
perfeição. É muito interessante acompanhar a desconstrução desse mito através de
Komayo, um ser humano que vive e tem suas questões como qualquer outro. O livro
do início ao fim nos lembra de que independente da cultura e da época, as relações
cotidianas estão sempre presentes e podem render belíssimas histórias.
“Komayo telefonou para a massagista, botou o carvão no fogareiro e se
sentou em silêncio diante do altar. De repente, sentiu uma emoção
forte, não sabia se de alegria ou tristeza, e por algum tempo
permaneceu imóvel, com o rosto escondido nas mangas do quimono”

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