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Confraria de Artes Liberais


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CURSO DE LÓGICA

AULA I

APRESENTAÇÃO DO CURSO.

§ 1. Introdução.

1. Propósito. – O propósito deste curso é apresentar a lógica tradicional, como


desenvolvida por Aristóteles e pela tradição aristotélica, enquanto verdadeira técnica. Esse
propósito implica duas coisas: i) que não se tratará da lógica moderna, ii) que tudo o que for
tratado neste curso deverá ser avaliado por sua utilidade.
Quanto ao primeiro ponto, é preciso saber que a história da lógica divide-se em dois
grandes períodos, o da lógica tradicional e o da lógica moderna, e que entre essas duas
tradições há uma ruptura significativa com respeito ao fim, a natureza e a extensão da lógica.
Quanto ao segundo ponto, é preciso saber que a lógica é concebida tradicionalmente
como uma técnica, isto é, como uma ciência sobre a produção de algo (recta ratio
factibilium). Por essa razão, é sobretudo pela utilidade para a produção de sua obra específica
que os ensinamentos de lógica devem ser avaliados.

§ 1. A Função da Lógica na Educação Liberal.

2. Introdução. – Esclarecida a distinção entre a lógica tradicional e a lógica moderna, e


exposta brevemente a história da lógica tradicional desde os seus primórdios até ao nosso
tempo e país, passo agora a tratar de sua função. Pois, se a lógica é uma arte e, como tal, deve
ser avaliada por sua utilidade, então é necessário definir qual seja a sua função, a partir da
qual se poderá aferir a sua utilidade.
Desde a Antigüidade, porém, a lógica se inseriu em uma ἐγκύκλιος παιδεία (enkyklios
paideia), em um ciclo educacional. Por muitos séculos, com pouca variação, esse ciclo
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consistiu na educação liberal, fundada sobre o ensino das sete artes liberais. É à função da
lógica dentro desse modelo educacional que se voltará a nossa atenção.

3. Definição etimológica de educação. – A palavra “educação” vem do verbo latino


“educo, educare”, que etimologicamente significa conduzir, ou guiar, para fora. Para
compreender melhor essa etimologia, é necessário compreender a visão de mundo tradicional.
O mundo, isto é, o kósmos, a ordem universal, é imaginado como constituído por esferas
concêntricas. As esferas mais interiores são também as menores, as inferiores e as mais
mutáveis; a mais inferior de todas é o mundo sublunar que habitamos, mundo da geração e da
corrupção, do nascimento e da morte. Inversamente, as esferas mais exteriores são também as
maiores, as mais altas e perenes, cujos movimentos são os mais regulares. Educar, pois, é
conduzir para fora e, portanto, para esferas maiores, mais altas e perenes da realidade. Assim,
por exemplo, quando um bebê aprende a falar imitando os seus pais, ele está transcendendo o
seu isolamento corpóreo e tomando parte em uma esfera mais abrangente, a da comunidade
doméstica.

4. Educação: ética e técnica. – Toda educação digna do nome constitui-se a partir de dois
elementos: o técnico, isto é, as habilidades a serem adquiridas, e, o que é mais fundamental, o
ético, que não consiste tanto em regras de conduta, mas antes em um tipo ideal de homem a
ser realizado. Esse elemento ético é o mais fundamental porque é ele que vai determinar quais
técnicas devem ser ensinadas. Em uma sociedade militar, a educação física e o ensino do
manejo de armas predominará sobre o ensino das letras, enquanto que em uma sociedade
burocrática se dará o inverso.

5. Educação liberal. – Os conceitos de educação e de artes liberais surgem a partir da


oposição jurídica entre o status de homem livre e o de servo. Opõem-se, portanto, às artes
servis ou mecânicas. No entanto, a distinção entre artes liberais e mecânicas não é jurídica,
nem mesmo sociológica, mas epistemológica. As artes mecânicas são aqueles que servem à
satisfação de necessidades materiais, orgânicas, como a alimentação, o abrigo, saúde, e cuja
obra é, portanto, algo material e exterior. As artes liberais, por sua vez, servem às
necessidades espirituais, cuja satisfação se busca quando, asseguradas as necessidades
elementares, faz-se possível o otium (em grego: σχολή, scholé, de onde “escola”).
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Dois ideais do homem livre deram origem a duas educações liberais. Uma, representada
por Isócrates, idealiza o homem político, que com a virtude da palavra traz ordem à cidade. A
segunda, representado por Pitágoras, idealiza o homem contemplativo, que se eleva acima não
apenas de suas necessidades orgânicas mas também das questões políticas do seu tempo,
voltando-se à contemplação da ordem supratemporal.

6. As sete artes liberais. – As artes liberais dividiam-se em dois conjuntos de disciplinas,


o Trivium e o Quadrivium. O Trivium compreendia as disciplinas relativas ao discurso – a
gramática, a lógica e a retórica –, e o Quadrivium as matemáticas – aritmética, música,
geometria e astronomia. Pelo Trivium, o aluno ingressava no diálogo de sua civilização e da
humanidade; pelo Quadrivium, abria-se à contemplação da ordem natural e da ordem
matemática que lhe transcende.

7. A função da lógica no Trivium. – O que nos interessa aqui é o Trivium. As três


disciplinas nele compreendidas correspondem a três atividades próprias de quem se dedica à
vida intelectual: a leitura (lectio), a meditação (meditatio) e a fala (eloquentia).
A gramática não se restringia ao ensino das regras gramaticais, mas se estendia também
ao que hoje chamamos literatura. Etimologicamente, parece haver razão nessa concepção:
tanto o grego “γράμμα” (grámma) como o latino “littera” significam “letra”, de modo que,
por suas etimologias, “gramática” e “literatura” significam a arte das letras. O propósito da
gramática não era, pois, que os alunos apenas soubessem ler e escrever conforme as regras
gramaticais, mas que soubessem ler e escrever como os grandes autores – Virgílio, Horácio,
Ovídio. Os escritos dos auctores eram a verdadeira norma, e não as fórmulas dos gramáticos,
e até hoje chamamos os poetas e os autores de ficção de escritores por antonomásia.
Contudo, para que a dedicação à vida intelectual seja frutuosa, não basta que saber ler e
escrever bem; é necessário também saber meditar a partir da leitura e da própria experiência
de modo geral. O que quer que leiamos suscita em nós objeções, desenvolvimentos, dúvidas;
a meditação é o esforço por percorrer essas virtualidades do texto, e a lógica, na concepção
tradicional, é a técnica de meditar corretamente. A meditação se materializa na dissertação;
por isso, a lógica era definida por alguns como a ars disserendi, a arte de dissertar.
Por fim, depois de haver lido, meditado e formado um juízo próprio, é necessário atuá-
lo. A retórica trata do discurso enquanto ação humana, cujo fim é, em síntese, bem discursar
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perante um auditório. Entram, portanto, na consideração da retórica o momento e o lugar em


que o discurso será proferido, a posição social dos ouvintes, o seu temperamento pessoal, a
sua visão de mundo etc. e, em suma, toda a circunstância que faz de um discurso uma ação
humana.
Desse modo a gramática, a lógica e a retórica correspondem à leitura, à meditação e à
comunicação. Essas três disciplinas podem ainda ser simbolizadas pela ingestão do alimento,
por sua digestão e, por fim, pela conversão da energia assim acumulada em trabalho.
De que modo, mais concretamente, se estruturava o ensino da arte de meditar, será o
tema da próxima aula, em que trataremos do Órganon de Aristóteles, cuja exegese era o
ensino da lógica.

§ 2. Bibliografia recomendada.

S. ALBERTO MAGNO, Logica;


AVICENNA. The Metaphysics of the Healing;
BURCKHARDT, Jacob. A Civilização do Renascimento Italiano;
DE CARVALHO, Olavo. Aristóteles em Nova Perspectiva;
DIÓGENES LAÉRCIO. Vida e Doutrinas dos Filósofos Ilsutres;
FRAILE, Guillermo. Historia de la Filosofia, v. III.
FRANCA, Leonel. O Método Pedagógico dos Jesuítas;
GREDT, Joseph Auguste. Elementa Philosophiae Aristotelico-Thomisticae.
GILSON, Étienne. La Filosofía en la Edad Media.
HADOT, Ilsetraut. Arts Liberaux et Philosophie dans la Pensée Antique.
HUGO DE SÃO VÍTOR. De modo dicendi et meditandi;
IBN KHALDUN, Discours sur l’Histoire universelle;
KNEALE, William e KNEALE, Martha. O Desenvolvimento da Lógica;
LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média;
MARROU, Henri-Irinée. História da Educação na Antigüidade;
NASR, Seyyed Hossein e LEAMAN, Oliver. History of Islamic Philosophy;
ORTEGA Y GASSET, José. Meditação da Técnica;
RAMUS, Petrus. Dialecticae libri duo.
REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga (5 vol.);
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SAVIANI, Dermeval. História das Idéias Pedagógicas no Brasil;


TOBIAS, José Antônio. História da Educação Brasileira;
SANTO TOMÁS DE AQUINO, Expositio libri Posteriorum Analyticorum;
Uma História da Universidade na Europa.

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