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31/07/2019 Povo de direita, elite de esquerda: a cismogênese complementar e o abismo cultural entre o…

Flavio Gordon
Apr 6, 2017 · 6 min read

Povo de direita, elite de esquerda: a cismogênese complementar e o abismo


cultural entre o brasileiro médio e a sua classe falante

"Eu percebi claramente, e fazia anos, que a distância crescente, agora abissal, entre a
população e os que falavam em seu nome, políticos e jornalistas, devia necessariamente
levar a algo caótico, violento e imprevisível".

- Michel Houellebecq, Submissão

A Fundação Perseu Abramo, think tank do PT, divulgou há alguns dias o resultado de
uma pesquisa sobre o imaginário político dos moradores das periferias de São Paulo.
Espantados e contrariados, os autores da pesquisa descobriram aquilo que qualquer
inteligência saudável, fora do opressivo e bolorento conjugado mental em que se
meteu a esquerda tupiniquim, já podia prever: os pobres tendem a ser muito mais
liberais e conservadores do que os ricos. No espectro político nacional, estes tendem à
esquerda (tanto faz se comunista, socialista fabiana, festiva ou porra-louquista);
aqueles, à direita.

A periferia que a esquerda rejeita

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Em dezembro de 2016, o Ibope já publicara uma pesquisa semelhante (e com


semelhante reação), na qual apontava o aumento do conservadorismo do povo
brasileiro. O tema foi discutido à época no programa Estúdio I, da Globo News. Diante
do resultado, e num tom que alternava entre perplexidade e condescendência, a
apresentadora e os convidados procuravam mil e uma explicações para o fenômeno,
que lhes parecia anti-natural.

Aquela perplexidade, típica da classe falante nacional como um todo, deriva de um


problema muito simples: os jornalistas e opinadores midiáticos parecem ter passado
incólumes pela teoria da relatividade. Sim, ali no estúdio da Globo News, bem como
em tantas outras províncias progressistas espalhadas pelo país, os insights de Albert
Einstein não repercutiram — ao contrário, por exemplo, do uso masculino de saias, das
crianças "transgênero" e demais obsessões do jornalismo lacrador e pra frentex.

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Particularmente, os nossos formadores de opinião ainda não descobriram uma coisa


chamada movimento relativo. Quando olham para o aumento do conservadorismo do
brasileiro, imaginam estar num ponto fixo de observação, sem perceber que também
eles estão em movimento — no caso, em sentido contrário ao do restante da
população. Pois a verdade é que aquele aumento só pode ser compreendido
relativamente à intensificação do progressismo das nossas "elites" culturais.

Se, para os integrantes do Estúdio I, o povo brasileiro parece estar se afastando rumo à
direita, é porque eles próprios estão se afastando rumo à esquerda. A sensação de
distância é intensificada pela soma dos vetores dos dois “corpos” movendo-se em
direções opostas — o povo, para um lado; a classe falante, para o outro.

. . .

Pois bem. A hipótese que eu gostaria de apresentar neste artigo é a seguinte: aquela
distância cultural tende a aumentar ao longo das próximas décadas, porque ambos os
comportamentos (o conservadorismo do povo e o progressismo da elite) têm se
reforçado mutuamente, numa modalidade de interação que eu proponho chamar de
cismogênese complementar.

O conceito de cismogênese foi proposto pelo antropólogo anglo-americano Gregory


Bateson (1904–1980) em seu livro Naven, de 1936. Inspirado nos princípios da
cibernética, Bateson cunhou o termo para explicar a complexa dinâmica social

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manifesta no ritual que dá nome ao livro, praticado pelos Iatmul, povo habitante das
terras baixas do médio rio Sepik (Papua Nova Guiné).

Naven: uma mulher iatmul dança para o lho


durante o ritual

Evidentemente, este não é o espaço para tratarmos de tão exótica cerimônia, que
comporta elementos de travestismo e a observância de brincadeiras jocosas entre
parentes masculinos de gerações distintas, incluindo simulações parodísticas de
relações sexuais entre "tios maternos" (wau) e "sobrinhos" (laua). O leitor interessado
pode buscar a referência por conta própria. Fiquemos por ora apenas com o noção de
cismogênese, cujo sentido pode ser antecipado já na própria etimologia.

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O gesto “naggiik”: um wau esfrega as nádegas


nas pernas de seu laua

O termo resulta da junção das palavras em grego para "ruptura/divisão" — skhisma


(σχίσμα) — e "origem/surgimento" — genesis (γένεσις). Em tradução literal, portanto,
cismogênese seria algo como "origem da ruptura" ou "surgimento de divisão".

Naven, de Gregory Bateson. Capa da segunda


edição (1958)

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Na definição do autor, trata-se de um "processo de diferenciação nas normas do


comportamento", aplicável tanto a indivíduos quanto a coletividades. O processo é
cumulativo, consistindo na interação entre partes que reagem mutuamente ao
comportamento umas das outras. Assim, se um indivíduo A se comporta de tal maneira
a induzir uma reação em B, essa reação afetará o comportamento posterior de A, que
induzirá nova reação de B, e assim sucessivamente, numa gradação que, em estado
avançado, pode gerar uma profunda ruptura quanto à forma original da interação.

Bateson distingue duas modalidades de cismogênese: a simétrica e a complementar.


A primeira se dá entre partes equivalentes que reproduzem um mesmo tipo de
comportamento, caracterizando-se, portanto, pela presença da rivalidade. O exemplo
mais claro é o da corrida armamentista durante a Guerra Fria. A cada exibição de poder
bélico por parte dos EUA, a URSS respondia da mesma forma, o que incitava uma nova
exibição americana, seguida por uma resposta soviética ainda mais ostensiva, num
escalonamento interativo que, por pouco, como sabemos, não resultou numa
hecatombe nuclear.

A cismogênese complementar, por sua vez, ocorre entre partes assimétricas numa
determinada interação, de modo a que o comportamento X de uma delas induza ao
comportamento Y da outra, que levará a uma intensificação de X, logo a uma
intensificação correspondente de Y, e daí em diante. Esse padrão relacional poderia ser
ilustrado com a imagem de um casal em que um dos cônjuges exibisse um
comportamento assertivo, enquanto que o outro, um comportamento submisso. Nessa
interação, a submissão deste alimentará a assertividade daquele, que resultará em mais
submissão e, consequentemente, em mais assertividade, até o ponto em que, no limite,
a situação fique insustentável, culminando no fim do casamento.

Importa ter em mente que, seja pela via da simetria, seja pela da complementaridade, a
cismogênese tende ao colapso da interação. Assim, um padrão de relacionamento que
começa de maneira sutil, e aparentemente sem consequências, pode com o tempo levar
a uma crise de grande dramaticidade.

É o que se passa hoje na relação (ou, dir-se-ia, ausência de relação) entre o povo
brasileiro e a sua classe falante, que obedece a um padrão de cismogênese
complementar no qual o aumento do progressismo de uma induz ao aumento do
conservadorismo do outro, que leva a mais progressismo por parte daquela, seguido de
mais conservadorismo por parte deste, e por aí vai.

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Não sabemos onde isso tudo vai terminar, mas pode-se supor que não em coisa boa.
Muito tem se falando acerca de uma tal “crise de representatividade” na democracia
brasileira. Os que costumam usar o termo integram precisamente aquela classe falante
de que vamos tratando, e, por isso mesmo, reduzem a sua aplicação à esfera do Estado
e da política partidária. Não compreendem — e parece haver algo de estrutural nessa
incompreensão — que eles próprios são parte do problema, e que, talvez ainda menos
que os políticos, tampouco representam os valores e a visão-de-mundo do brasileiro
médio. Este, como em tantos outros domínios, está por sua própria conta e risco na
esfera da cultura, só lhe restando apelar ao repertório tradicional de símbolos que de
algum modo ainda restaram de eras passadas, nas quais a distância entre os
consumidores e os formadores de opinião (e de valores, e de gostos, e de hábitos) não
se fizera ainda tão abissal.

Pondo tudo na balança, resta que, apesar dos riscos, talvez haja algo de alvissareiro
naquela perspectiva de ruptura. Afinal, o povo brasileiro não terá mesmo muito a
lamentar quanto ao eventual colapso de uma relação com uma elite cultural que, do
alto das cátedras, das redações, dos estúdios e dos palcos, não cansa de manifestar por
ele o mais profundo e inabalável desprezo.

Direita Esquerda Imprensa Elites Cultura

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