Você está na página 1de 5

1

Encontros com Robert Rodman


José. Outeiral

Quando realizamos uma leitura é interessante constatar como,


muitas vezes, somos levados por uma necessidade interna a dar uma
figurabilidade ao autor. Como acontece nos sonhos, existe um
trabalho psíquico, derivado do inconsciente, que nos leva a ter uma
“imagem”, ou –ao menos- “algumas idéias” sobre o autor. A
necessidade de representação, de inserção na cadeia simbólica, é
uma demanda da relação que estabelecemos, inclusive, com o autor
do texto que estamos lendo. Donald Winnicott nos esclarece este
tema ao desenvolver os conceitos de objeto subjetivamente
concebido e objeto objetivamente percebido .

O autor, que não conhecemos ainda, senão pela sua escrita e através
algumas informações que nos levaram a seu texto, à medida que
vamos lendo vai se constituindo, progressivamente, em alguém de
nosso mundo de “relações de objeto”, seguindo ao pensamento de
Donald Winnicott, criado pelo nosso feixe de projeções, espaço de
ilusão, da mãe ambiente , momento do processo primário, espaço
também do sonho e da imagem. Essa “relação de objeto” é pautada,
também, pelo princípio do prazer.

Esse autor, objeto subjetivamente concebido , é confrontado quando


temos um contato real com ele, a pessoa total (whole person) que
ele é, agora um objeto objetivamente percebido. Alguns autores são
mais hábeis, e eu diria um autor suficientemente bom, e permitem
que no timing, sem intrusões (impingiments), possamos nos colocar
em contato com a pessoa total e real que ele é , na medida do
possível, e estabelecer com ele um “uso do objeto”, espaço do Real e
do Simbólico.

Sabemos, através do relato que Masud Khan fez, na excelente


introdução ao livro Da pediatria à psicanálise, como as pessoas

1
2

tinham as mais diferentes impressões sobre Donald Winnicott e


como ele cuidava para não desiludir, intempestivamente, as
concepções subjetivas que tinham dele. Donald Winnicott era, a meu
ver, um autor suficientemente bom...isto é, um autor que nos coloca
as idéias para que possamos descobri-las como nossas, que ao ler o
livro dele escrevemos nosso próprio livro. Uma escrita “aberta”, que
convida à criatividade e à espontaneidade.

Eu mesmo, que tenho cometido alguns pecados de escrita, me


surpreendo e me divirto quando algum leitor me conhece e
demonstra sentimentos, digamos interessantes a meu respeito:
surpresa, desilusão, não acreditar que eu e o autor sejam a mesma
pessoa, “és tu pensei que era muito diferente...”, etc...

É sobre isso que quero escrever ao leitor, contar minha experiência


ao conhecer pessoalmente F. Robert Rodman, que eu já “conhecia”
através da leitura de seus textos e, particularmente, da edição que ele
fez de cartas escritas por Donald Winnicott, no livro O gesto
espontâneo ( The spontaneous gesture. Select Letters of Donald
Winnicott; Harvard University Press. Cambridge, Massachusetts
and London, England, 1987).

Recebi esse livro em agosto de 1987, logo após ter sido publicada a
primeira edição, já se vão cerca de duas décadas, através de duas ex-
alunas que estavam em Londres, estudando na Tavistock Clinic,
Beth Kuhn e Rosa Lucia Genovese., e que sabiam de meu interesse
pela obra de Donald Winnicott

“Pão quente”, recém saído do forno editorial, o livro se tornou uma


importante referência não só para mim, como para todos aqueles que
buscam compreender o complexo pensamento, embora de aparência
fácil, de Donald Winnicott.

F. Robert Rodman no livro faz, nos “Acknowledgments” e na


“Introducton”, uma descrição de como se criou a oportunidade dele

2
3

ter acesso às cartas de Donald Winnicott e como procedeu, com a


ajuda de Clare Winnicott, para editorar o O Gesto espontâneo.

Mas não estou a escrever uma “resenha” do livro, não foi este o
convite, e sim para falar de minhas experiências no contato direto
com F. Robert Rodman., lembrará o leitor, formulando, talvez, uma
impressão apressada da minha escrita...e do autor.deste capítulo.

Nas ocasiões em que encontrei F. Robert Rodman ele havia vindo a


São Paulo convidado por Ivonise Catafesta. , que gentilmente me
incluiu em um evento da Universidade de São Paulo, numa mesa
redonda com a participação de nós três: Ivonise, Rodman e eu. Uma
mesa em que falamos sobre experiências traumáticas, com F. Robert
Rodman abordando, especificamente, a questão surgida, entre os
norte-americanos, após o 11 de setembro de 2003: na insegurança
emocional que causou a descoberta de que o “ambiente” não era tão
seguro como se pensava.

Quando fomos apresentados ele se mostrou muito gentil e


acolhedor, me perguntando por amigos em comum, como o David
Zimerman, e me passando um cartão de visitas, que tenho agora, em
minha frente, escrevendo seu e-mail , no verso, para que
mantivéssemos contato. Disse que sabia de meu interesse sobre
Donald Winnicott .Eu, como sempre, não tinha nenhum cartão. O
endereço era em Beverly Hills, Califórnia. Um bom sinal: a
Califórnia me agrada. O leitor se perguntará por que eu imaginava
que seria diferente? Por que ele não seria afável.? Bem, o “meu” F.
Robert Rodman, objeto subjetivamente concebido, tinha muito a ver
com um preconceito, seguindo a opinião de S. Freud, sobre a
psicanálise e os Estados Unidos... Ocorre, também, que fui
adolescente nos anos de 1968, e tenho uma lembrança muito nítida
de um outro 11 de setembro, o de 1973, no Chile, quando os norte-
americanos patrocinaram um violento e sangrento golpe de
militares. Não há como não associar sobre a violência do terrorismo

3
4

de Estado e do terrorismo de um grupo de fanáticos


fundamentalistas. Mas o que tem F. Robert Rodman a ver com isso?

O leitor que o autor tem “em mente” é , em geral, questionador,


como a escrita de S. Freud nos revela, ele que –com freqüência-
escrevia ao leitor “imaginado”, argumentando.e respondendo, às
vezes, numa animada interlocução..

F. Robert Rodman na ocasião, fez uma exposição clara, de uma


maneira objetiva ,e tivemos uma interessante discussão Terminei por
formular uma impressão do objeto objetivamente percebido F.
Rberto Rodman como alguém afável e acolhedor e um clínico de
“mão cheia”. Foi a simplicidade, entretanto, o que mais me
impressionou. Esperava, talvez, uma pessoa “arrogante”...no campo
do subjetivamente concebido.e encontrei alguém distinto desta idéia,
afável e interessado em nosso país e em nossa cultura. Mudei,
rápido, o que nem sempre me acontece, de opinião.

Depois, quando o assisti em supervisão , a opinião de que se tratava


de um excelente clínico se confirmou. A despeito das dificuldades
de idioma e da cultura, ele percebia as diferentes nuances do
material clínico e das comunicações do inconsciente –como chama
Ch. Bollas- fazendo observações muito perspicazes e pertinentes.
Quando temos um supervisor “de fora” (ou mesmo “da casa” , às
vezes) pode acontecer de se mobilizar ansiedades persecutórias nos
participantes que – no plano manisfesto- pode se explicitar por uma
excessiva idealização. O supervisor experiente trata de manejar a
situação de maneira “suave”, dissolvendo as “paranóias e as
idealizações”, com tato e sutileza. Nessa ocasião, F. Robert Rodman
me pareceu muito experiente e conhecedor da clínica, assim como
do funcionamento de grupo. Ele logo se tornava “um de nós”,
desfazendo a idealização; certamente sabendo que este é o início da
“queda” do indivíduo que está sendo idealizado. Não é necessário
uma filiação kleiniana para compreender isso, mas, surpreende,

4
5

como os vapores narcísicos intoxicam e impedem a compreensão, de


muitos, desse fato simples

Enfim, quero dizer que foi muito interessante o meu encontro com
este autor e que quando tive notícia de sua morte “senti” a
importância dele para o movimento psicanalítico e que, apesar de
termos nos encontrado poucas vezes, ele fazia parte, sim, do elenco
de meu teatro interno.

Você também pode gostar