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O vaso alquímico e o fogo: uma relação simbólica com a análise

Autor Rubem C. P. Paz


Psicólogo Clinico Junguiano
Watts 051995268858

1. INTRODUÇÃO

“Os aspectos mais dolorosos e


humilhantes de nós mesmos
são os próprios aspectos a
serem trazidos a luz e
trabalhados” (Edinger, 1999, p.
32).

Discorreremos, neste artigo, sobre o vaso alquímico, local onde os alquimistas


realizavam o seu trabalho de transmutação da matéria, sua Opus Magnum a Grande
Obra. O vaso, esse termo alquímico, tem relação simbólica com a análise e pode
representar vários aspectos do processo analítico já que o termo representa o atributo
de conter, e para todo conteúdo tem que haver um continente. Assim, o vaso como
continente é o ambiente adequado, que propicia ao trabalho acontecer. Esse local pode
ser tanto o ambiente terapêutico, o analista, como nosso próprio ser, nosso mundo
interno, que representa, metaforicamente, o recipiente, o vaso onde são depositados
esse material, a fim de ser trabalhado na transmutação alquímica. Os elementos
básicos, a prima matéria, a matéria confusa, caótica está contida nele. Estes elementos
são as dores, as paixões, fantasias, emoções, sentimentos, segredos, os conflitos,
sonhos, fantasias, emoções, em fim tudo aquilo que diz respeito a psique do paciente.
Os alquimistas esperavam que esta matéria ao interagir com outra matéria ali
depositada, permitiriam que seus opostos, ao se encontrarem e ao serem trabalhados,
produzissem uma terceira substância: o ouro nobre. Para eles essa terceira substância
era a pedra da sabedoria. Percebemos que essa mistura é necessária para chegar ao
resultado final e só pode acontecer no vaso.
2. O VASO E O FOGO

O vaso representa o espaço terapêutico que serve de depositário dos conteúdos


vindos do inconsciente, é o recipiente que segura, que limita, que o separa do todo, é o
ponto de partida para o inicio do processo analítico. Diante disso, é necessário primeiro
formar o vaso.

Dentro dessa perspectiva a um ponto importante que Jung (2013) nos traz em
relação ao vaso é que ele pode representar o próprio analista nos entendimentos, que
recebia as diversas substâncias através da projeção e, como um vaso benigno, ele
transformava essas substâncias dentro dele, misturadas com as suas próprias
substâncias.

Hillman (2013), também reforça essa ideia que o vaso é o próprio terapeuta, ele
precisa receber os diversos substratos empurrados pela projeção para dentro dele, como
uma espécie de vaso que contém e propicia que o processo do paciente se desenvolva.
Essa condição do terapeuta como vaso está diretamente associado ao processo de
projeção e ao campo transferencial. Uma série de fenômenos positivos e negativos
podem ocorrer, desde idealizações exageradas, como defesas que instalam a projeção
de conflitos que o analista como vaso terá que saber acolher, processar, discriminar e
devolver para o paciente. Hillman chama atenção para um desses fenômenos que na
alquimia é chamado de claridade intoxicante. Podemos perceber, nesse momento, que
o paciente partiu de uma relação onde ele acredita que o terapeuta tem e passa ser a
verdade. Com isso, projeta no analista uma idéia fantasiada acreditando que o terapeuta
vai resolver todos os seus conflitos. Cabe ao analista estar atento às substâncias que
apareceram no processo de cada individuo, identificando estes elementos, podendo
discriminar qual melhor caminho a seguir, não se deixando influenciar pelos conteúdos
projetados pelo paciente. A contenção dessas substâncias projetivas dentro do próprio
analista é simbolizado pelo vaso.

No Antigo Testamento, nossa vida pode ser comparada a vasos, como podemos
ler em Isaías 64:7:

“Iahweh, tu és nosso pai, nós somos a argila e tu és nosso


oleiro, todos nós somos obras das tuas mãos.”
O vaso deve estar adequado, pois como posso conter o pior e o melhor do
paciente ou de mim se o recipiente não for adequado. Partindo desse pressuposto,
parece-me que ao iniciarmos o processo terapêutico o analista em tese deve estar
preparado para suportar o conteúdo advindo do paciente. Constato que essa nossa
preparação aparece de forma clara no trabalho da formação de analista, onde iniciamos
essa trajetória guiados por mais de quatro anos em seminários reflexivos, bem como
250 horas de análise e 150 de supervisão. Nessa oportunidade ampliamos a nossa
consciência e fortalecemos o nosso recipiente para que seja capaz de suportar os
diversos conteúdos que vierem a ser depositados nele pelos nossos pacientes, pois
como estamos vendo o vaso contém a relação entre ambos terapeuta e paciente. Nesta
relação de analista e analisando nos sentiremos o próprio vaso retendo os conteúdos ali
depositados.

O analista retém o conteúdo de forma acolhedora e compreensiva, contribuindo


pra transformação dos sintomas do paciente, sendo que essa transformação também
ocorrera com o próprio terapeuta.

É como aponta Hillman (2013), você é o laboratório, você é o vaso e a coisa


sendo cozida.

Para que o processo terapêutico se inicie é necessário contenção do material ali


apresentado. Esse é o segundo aspecto simbolizado pelo vaso, a estruturação egóica do
paciente. O paciente deve apresentar estrutura psíquica capaz de conter, separar, este
material. Para realizar essa contenção tem que ter recipiente, que é simbolicamente
representado pelo vaso. Importa então refletirmos sobre essas várias possiblidades do
vaso. O material psíquico quando colocado no vaso ele pode ser examinado,
modificado, transformando as fantasias em realidade, havendo a possibilidade da
ressignificação o renascimento. A participação consciente do paciente nesse processo
deve ser efetiva, a fim de que ele possa fazer consciência e o ego possa se apropriar e
auxiliar na integração dos conteúdos inconscientes. Um ego mais estruturado se torna
menos dominado e possuído pelos afetos.
Conforme Jung (2013), não pode haver elemento consciente que não tenha o
ego como ponto de referência. Dessa maneira, o que não passar pelo ego não atingirá a
consciência. Assim, podemos definir a consciência como a relação dos fatos psíquicos
com o ego.

A análise, bem como a alquimia, contribuem para a conscientização dos


conteúdos psíquicos. Junto a tudo isso, o vaso necessita ser trabalhado em seu material
interno e processado pelo fogo. É necessário, desse modo, temperar ou retirar
elementos do interior do vaso. Em alguns momentos, isso se faz apenas observando o
paciente e, assim trabalhar seu conteúdo, mantendo o olhar no fogo, no conteúdo e
também no vaso. Nessa situação o fogo deve ser controlado pelo analista, o fogo deve
ser dosado. Esse fogo que é controlado pelo analista através dos sentimentos e
qualidade da relação que recebe as projeções intoxicadas do paciente, acolhendo com
sua conduta amorosa, estável e ajudando o paciente a se estruturar também como vaso.
Nesse fogo o analista esta temperando o próprio vaso do paciente, percebendo o quanto
ele aguenta, e encontrando uma maneira mais adequada de ajuda-lo a processar os
conteúdos pra que possa também se tornar vaso, e poder ir acolhendo e discriminando
suas coisas. O terapeuta é o vaso que acolhe os conteúdos do paciente e também o
olheiro que trabalha o vaso que é o paciente, sabendo que material é esse que está
trabalhando, analisando se esse vaso aguenta ou não, se ele é capaz de conter ou não,
trabalhando nesses dois níveis, suportando e digerindo e ao mesmo tempo, criando
condições para o paciente ser o vaso, que possa depois receber de volta esses
conteúdos.

O fogo é essa quantidade de libido alimentando o complexo, que quando


trabalhado é capaz de modificar a psique do paciente. Ele representa o combustível
para secar o lugar encharcado onde se encontram as emoções do analisando.
Metaforicamente, o fogo, quando não dosado, assim como o desejo descontrolado pode
se espalhar e ficar incontrolável, queimando o processo. O analista deve observar qual
tipo de vaso deve ser criado na relação terapêutica, e a intensidade do fogo necessária,
se o vaso for frágil pode ser perigoso colocar diretamente no fogo, pois ele pode
quebrar, isso requer atenção e o processo vai tornar-se mais demorado. Nestes casos é
necessário um cozimento em banho maria. Uma das qualidades do vaso trazida pela
alquimia é que ele deve ser de vidro, onde analista e paciente possam olhar junto o
conteúdo. Esse vaso transparente de vidro, é o que forma o terceiro significado,
representando o setting terapêutico, onde o analista possa observar, analisar, modificar,
e examinar junto com o paciente esse material psíquico depositado nele. O fogo como
uma forma de ir temperando, cuidando, trabalhando, esse conteúdo. Através dessa
escuta o analista pode controlar o fogo, agindo de forma acolhedora e amorosa,
transformando as fantasias em imagens da realidade psíquica possibilitando a
ressignificação, o renascimento, que contribuirá para o fortalecimento da estrutura
egóica do paciente. A participação consciente do paciente nesse processo deve ser
efetiva, a fim de que ele possa fazer consciência e o ego possa se apropriar e auxiliar
na integração dos conteúdos inconscientes.

Elementos como compreensão, interpretação, suporte, capacidade de empatia,


podem também ser considerados simbolicamente como vaso alquímico, pois tudo faz
parte do setting.

Nise da Silveira assinala em seu livro “Jung,Vida e Obra”:

“Os místicos sempre entenderam que o verdadeiro


laboratório alquímico era o próprio homem. O homem natural
era comparável aos metais vis. A meta seria transformá-lo no
novo homem, que corresponderia ao ouro, o metal puro por
excelência.” (1981, p.148)
3. CONCLUSÃO

Como vimos o processo terapêutico, para ser possível, é necessário


primeiramente a formação do vaso. O vaso alquímico tem a finalidade de conter o
material psíquico que será transformado no processo de análise. É incumbência do
terapeuta a habilidade para controlar o fogo. O fogo deve ser controlado, o analista
deve ativar o fogo em alguns momentos e controlar em outros, nem fogo demais e nem
fogo de menos. A alquimia é uma excelente ferramenta para o entendimento do
estabelecimento de uma conexão entre analista e paciente. Chegamos então a outro
aspecto do vaso em relação a terapia, na grande maioria das vezes esse vaso tem que
ser fechado. Isso diz respeito tanto o segredo e pacto de confiança do analista com o
paciente, como também a forma como o próprio paciente deve lidar com seus
conteúdos. É necessário no processo que o paciente consiga suportar nele mesmo os
conteúdos, deixando agir internamente, sem levar para outras pessoas aspectos de seu
processo. Isso é uma forma de manter o recipiente limpo e seguro de outros conteúdos
que possam atrapalhar o processo, essa é uma outra questão além dessa conexão e o
fogo. Uma das questões importantes em relação ao vaso é que o vaso tem que ser
mantido limpo, tem que ser esvaziado, tem que ter transparência, isto é praticar o
silêncio das vozes internas, se manter calado, sem dar opinião sobre tudo, se abster de
julgamentos. Estar receptivo a voz da intuição, é nesse silêncio interno que o Self irá se
manifestar. O grande desafio é nós se tornarmos vasos de nosso próprio Self no realizar
dessa caminhada. Hillman diz:

“Se Deus não tivesse nos dado vasos/Seus outros presentes


seriam inúteis.” (2013, p. 72)

Enfim, o analista deve se adequar as necessidades do analisando, sem perder o


foco. Utilizando as ferramentas necessárias para limitar este fogo, usando dos métodos,
técnicas e teorias, de acordo com as necessidades individuais do paciente. Cada
analista deve construir o seu próprio fogão, a partir de sua alma, e conforme as
necessidades da alma de seu paciente. Edinger escreve em

“O fogo ou intensidade emocional necessária para essa


operação parece residir no próprio complexo, tornando-se
atuante tão logo o paciente tenta tornar o complexo consciente
mediante o compartilhamento com outra pessoa. Todos os
pensamentos, ações e lembranças que trazem vergonha, culpa
ou ansiedade precisam ter plena expressão. O aspecto liberado
torna-se o fogo capaz de secar o complexo e purifica-lo de sua
contaminação inconsciente” (Edinger, 1999, p. 61).

O mais importante nesse processo é a manifestação interior do alquimista,


quando o sentimento, a emoção causada pelo conteúdo da matéria prima, desperta o
fogo interior, o amor, podendo se fazer alma, tornar o processo almado, este
movimento despertará o amor no paciente. O amor é transformador, mesmo nas almas
mais endurecidas. Jung afirma que:

“enquanto não existir um laço de amor entre Rei e Rainha a


alma não está presente neles” e que “o ser humano que não se
liga a outro não tem totalidade, pois esta só é alcançada pela
alma e esta, por sua vez, não pode existir sem o outro lado que
sempre se encontra no “tu” (Jung, 2012 § 454, OC 16/2).

Afinal, nunca esqueça que está tocando uma alma humana, pois o que o
paciente precisa, neste momento, é de acolhimento, compreensão, suporte, empatia,
amor. O amor do analista pela psicoterapia é um fogo que manterá a chama acesa,
alimentando o fogo do paciente, e contribuindo para as transformações necessárias no
processo.

4. REFERĒNCIAS

Bíblia de Jerusalém (2003). 2o Ed., São Paulo: Ed. Paulus.


EDINGER, Edward F. Anatomia da Psique: o simbolismo alquímico na psicoterapia.
São Paulo: Cultrix, 1999.

HILLMAN, J., Psicologia e Alquimia. Petrópolis, RJ, Vozes, 2013.

JUNG, C.G., Estudos alquímicos. Petrópolis, RJ, Vozes, 2013.

JUNG, C. G. Psicologia e Alquimia. Petrópolis: Editora Vozes, 2012. OC 12.

SILVEIRA, N., Jung Vida e Obra. Jung. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981.

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