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Afroempreendedorismo e Movimento Black Money:

economia étnica como forma de resistência1


Suelen Karini Almeida de Matos (PPGA- UFPR)2
Introdução:
O presente artigo tem como objetivo trazer algumas reflexões a respeito do
afroempreendedorismo, prática econômica que vem ganhando destaque nos últimos anos
mas que, segundo registros históricos, pode ser percebido como existente desde o período
escravista brasileiro. Esse recorte faz parte de minha pesquisa de mestrado em
antropologia que está em andamento. Na dissertação em si, tenho como campo de trabalho
a Feira Cultural e do Afroempreendedorismo que acontece mensalmente na Praça Zumbi
dos Palmares, localizada no bairro pinheirinho, região periférica de Curitiba. O evento é
promovido e organizado pelo Instituto Afro-Brasil, órgão fundado em 1996 e que hoje é
comandando apenas por mulheres negras. A presença delas na feira é bem forte, tanto que
minha dissertação possui um recorte interseccional para pensar essa atuação feminina e
formação política. Para esse artigo, me detive apenas a trazer questões relacionadas ao
afroempreendedorismo de forma geral, utilizando de alguns acontecimentos presenciados
em campo por mim.

Meu intuito é trazer a que significa o afroempreendedorismo no Brasil atualmente


e qual cenário de pesquisas relacionados ao tema nos últimos anos, principalmente dentro
das ciências sociais. Sabemos que o racismo estrutural brasileiro é um dos projetos mais
bem executados que faz com que a população negra continue ocupando as margens da
sociedade, esse fato faz com que eles continuem tendo mais dificuldades em ingressar ao
mercado de trabalho, alcançando grandes cargos, concluindo os estudos, entre outros
fatores. Diante disso, o número de desempregados é contemplado, em sua grande maioria,
por pessoas negras quem, diante deste cenário, resolvem abrir seu próprios negócios.
Pesquisa do SEBRAE (2019) mostram que quando estamos falando de
afroempreendedorismo é comum que a grande maioria não esteja ali por sonho mas por
necessidade.

Esse “fenômeno” que tem como início ainda no período escravagista brasileiro,
cria um sistema econômico adverso, movimentando o dinheiro negro (black money),

1
44º Encontro Anual da ANPOCS/ SPG 18 – Economias populares, processos de regulação e
desigualdades.
2
Mestranda em Antropologia pela Universidade Federal do Paraná. Bolsista CAPES. suelenmatos@ufpr.br

1
fazendo com que o sujeito negro inicie seu processo de empoderamento, tanto no sentido
individual, como no sentindo do coletivo. O afroempreendedorismo também é capaz de
unir e transformar, o aquilombamento nos espaços urbanos se mostram com força e é
neste momento que apresento um pouco do meu campo de pesquisa, mostrando como
essas relações são percebidas na vida real.

AFROEMPREENDEDORISMO E SUAS RAMIFICAÇÕES

Antes de partirmos para a discussão do que vem a ser o afroempreendedorismo, é


importante entender o que podemos classificar como empreendedorismo. Segundo
Adriane POMBO (SEM ANO, p. 01), o empreendedor seria (...) aquele que inicia algo
novo, que vê o que ninguém vê, enfim, aquele que realiza antes, aquele que sai da área
do sonho, do desejo, e parte para a ação. Ela continua dizendo que o empreendedor é
alguém que possui um visão focada no futuro, na inovação e na tecnologia. Também
apresenta algumas características que são pertencentes aqueles que buscam empreender
como realização pessoal, sonho e desejo de independência. Já Gláucia Maria
Vasconcellos VALE (2014, p. 875), em seu ensaio sobre as origens e práxis do ato de
empreender, traz um apanhado de autores e suas percepções do que classificaria como
empreendedor, resultando na configuração de uma pessoa que é dotada (...)de capacidade
de inovação; de espírito de iniciativa; que assume riscos em um negócio (...).
Outro ponto importante sobre o entendimento sobre o que constitui alguém em
empreendedor é trazido pela Maria Angélica dos SANTOS (2019, p. 27) em seu livro “O
Lado Negro do Empreendedorismo”, onde ela traz como uma das características (...) a
dimensão individual quanto a relacional, impactando e economia em alguma medida e de
forma insubmissa às relações de dominação impostas pelo mercado de trabalho”, ou seja,
ela traz a busca pelo equilíbrio entre as categorias individual e relacional dentro de uma
sociedade capitalista.
Pensando essa categoria mas com recorte racial, o (...) afroempreendedorismo, em
sentido amplo, diz respeito ao movimento empreendedor realizado por negras e negros
(SANTOS (2019, p. 36). Esses movimentos, segundo ela, pode ser focado em um negócio
que pense de forma ampla, como por exemplo abrir um supermercado, uma loja de roupas
ou um restaurante, mas também pode ser um modelo de negócio focado como público
alvo pessoas negras, que envolva apenas pessoas negras em todo processo produtivo,
marketing, funcionários negros, etc. Ambas modalidades autora classifica como “latu
sensu (sentido amplo) (...) e (...) scricto sensu (sentido estrito)” (SANTOS, 2019, p, 36).

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Mais do que “apenas” um corpo negro frente a um negócio, o
afroempreendedorismo articula posicionamentos ideológicos e políticos, segundo
OLIVEIRA (2019, p. 21) o afroempreendedorismo enquanto fenômeno em
desenvolvimento e que carrega uma gama de variáveis sociológicas como racismo,
antirracismo, identidade, trabalho, renda, educação, entre outras (...), onde esses fatores
entram em diálogo com o modelo de negócio proposta. Ser um afroempreendedor se
constitui como algo além de apenas obter lucros e/ou forma de subsistência.
Da mesma forma que apresente no tópico anterior alguns pontos que caracterizem
o que vem a ser um empreendedor, o afroempreendedorismo também segue o mesmo
caminho, onde SANTOS (2019) categoriza alguns “princípios reitores”, como ela mesmo
denomina. Dentre eles, chamo atenção para a “unidade racial”, que seria a carga política
que esse modelo de negócio carrega, “rompendo com práticas coloniais”, e ainda,
(...) fazendo-se necessário que se estabeleçam relações mais próximas
entre negros empreendedores, de modo a permitir através de uma união
de forças aconteça uma maior circulação de renda entre negros e que
estes possam ocupar melhores lugares na pirâmide social. (SANTOS,
2019, p. 40).

Outra categoria que a autora trabalha se refere a relação do modelo de negócio com
a “valorização da ancestralidade”, onde ela traz a reponsabilidade de enaltecer a história
dos antepassados que marca a existência do afroempreendedor, pois, segundo ela, “esse
movimento pela valorização da ancestralidade também repercute na construção da
autoestima negra e na conformação de indenidade (...) (SANTOS, 2019, p. 41). Esse
processo é materlizado quando percebemos o agenciamento da estética negra nos
produtos e serviços ofertado pro empreendedores negros, pois assim, o discurso se torna
visual, criando uma comunicação clara e objetiva.

Nos últimos anos, tem-se visto uma crescente no número de pesquisas


acadêmicas e institucionais sobre afroempreendedorismo em todo território nacional, um
exemplo é o Projeto Brasil Afroempreendedor vinculado ao Instituto Adolpho Bauer que
fez em 2016 um levantamento sobre o perfil do afroempreendedorismo brasileiro
seguindo a metodologia de monitoramento dos pequenos negócios comandados por
pessoas negras e pensar em políticas públicas para o fortalecimento desse tipo de modelo
de negócios. Dentre os resultados obtidos, de 1.277 afroempreendedores que foram
entrevistos, 748 eram mulheres (cerca de 59%), com a faixa etária entre 30 e 40 anos,
classe média, tiveram acesso ao ensino superior mas haviam aberto seu próprio negócio
pode necessidade. Outro dado interessante é que, a partir do número total de

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entrevistados, os produtos e serviços mais ofertados são da as áreas de moda e confecção,
artesanato e comercio varejista (MICK, 2016), sendo que mais de 57% correspondem de
empresas familiares, enquanto mais de 48% com a participação da família nuclear
(cônjuge e/ou filhos). Outro dado apresentado pela pesquisa diz respeito a origem do afro
negócio, onde (...)A maior parte não foi criada por necessidade (apenas 23,4% o foram),
mas por oportunidade (39,5%) ou outras motivações (37%) (MICK, 2016). Diante deste
cenários, podemos dizer que além do racismo, existe um outro fator que implica no ato
de empreender, como estamos falando de um cenário composto em sua maioria por
mulheres, o machismo em intersecção faz com que essas mulheres negras e
empreendedoras sofram duplamente a opressão e sintam com mais força a discriminação.
Esse perfil apresentado pelo Projeto Brasil Afroempreendedor vai de encontro
com dados apresentado em uma etnografia apresentada na década de 80 pela antropóloga
Ângela FIGUEIREDO (2012) em “Classe Média Negra: trajetória e perfis”, onde ela
busca traçar um cenário econômico, de trabalho e classe da população negra em Salvador,
ela traz em um capitulo a questão do empreendedorismo negro (termo que se refere ao
afroempreendedorismo) onde após entrevistar alguns empresários negros e pardos, ela
traz o que seria o perfil do afroempreendedor naquele momento e contexto.
(...) podemos esboçar o perfil do empresário negro como um indivíduo
do sexo masculino, casado, que tem entre 25 e 45 anos de idade, chefe
de família, possui o primeiro grau incompleto e é filho de trabalhadores
manuais ou agrícolas. Eles são proprietários de pequenas e médias
empresas instaladas fora da residência, provavelmente são donos de um
comércio no ramo da alimentação e trabalham com duas a cinco
pessoas, dentre as quais podem estar incluídos os membros da família.
Comparados ao grupo branco, os empresários negros são mais jovens e
menos escolarizados. (FIGUEIREDO, 2012, p.109)

Outro trabalho interessante que aborda essa questão do afroempreendedorismo,


com um contexto mais semelhante ao que iremos abordar nesta dissertação é o da Gleicy
Mailly da SILVA em sua tese de doutorado em antropologia produziu uma etnografia
sobre a Feira Preta em São Paulo, um evento criado por uma mulher que tem ganhado
nos últimos anos grandes proporções. Neste trabalho, SILVA (2017) traz relatos da
criadora da feira Adriana Barbosa e algumas outras afroempreendedoras que participam
do evento, ela também traz a potencialidade política que esse evento possui, como se
constitui em um espaço de mobilidade social feminina, onde autora traça um perfil de
uma empreendedora da cultura, pois assim, se tornou possível trabalhar a (...)
complexidade e seriedade dos projetos que mulheres desenvolvem na construção de
carreiras e vínculos sociais (...) (SILVA, 2017, p. 253).

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Alguns autores trazem o contexto histórico do afroempreendedorismo datado
com início durante o período escravocrata, principalmente com a imagem dos “escravos
de ganho” ou “ganhadores” que eram pessoas negras escravizadas que trabalhavam com
vendas nas ruas com a finalidade de comprar sua alforria, como processo do negro se
constituir como sujeito, saindo do papel dado de objeto. Essa acontecimento partia de
uma relação de ganho estabilidade entre o negro escravizado e seu senhor, onde ao fim
do dia, os lucros com as vendas eram divididos, claro que de forma injusta, fazendo com
que o negro ficasse anos e ano trabalhando para conseguir comprar sua tão sonhada
liberdade. Com as chamadas Brechas Camponesas (...) que se constituíam em pedaços de
terra cedidos aos escravizados para cultivo próprio, podendo o excedente de produção ser
até mesmo comercializado (SANTOS, 2019, p. 44). Essas vendas aconteciam nas ruas,
onde centenas de pessoas negras ocupavam os espaços públicos com seus produtos e
serviços, com isso era possível que eles pudessem organizar seu tempo de trabalho, um
tempo diferente daquele imposto pelo sistema capitalista.
O escravo ganhador organizava o tempo de seu trabalho, o
ritmo e, por vezes, o volume de trabalho. O trabalho do
ganhador era por tarefa, não por unidade de tempo, o que
constituía algo familiar para os africanos, entre os iorubas,
segundo Afolabi Ojo, em certas circunstâncias o próprio tempo
era marcado pelo volume de trabalho. (REIS, 1993, p. 11).

Além dessa auto organização, essa prática de trabalho dos “ganhadores”


criava um ritmo na cidade, onde (...) sua localização dentro da estrutura física da cidade
segue a lógica da articulação, mobilidade e funcionamento da cidade (REIS, 1993, p. 13),
um ritmo construindo coletivamente, um trabalho que não tinha como fundamento
principal o dinheiro, mas sim, o trabalho solidário. Tendo a rua como seu único espaço
de resistência, a ocupação era imediata, “os cantos” que sobravam para eles, que poderiam
ser esquinas, praças e becos, reunidos formando um grande coletivo, essas pessoas
empreteciam cada canto, os espaços sendo cada dia mais tomados por corpos de
trabalhadores e almas guiadas por Exú.
Na visão de mundo africana, a encruzilhada, tem importância mística
ímpar: lugar de oferendas, de negociação com os deuses, lugar de Exu,
o abre-caminhos, espirituoso mensageiro dos deuses. Na prática do
ganho a esquiva facilitava o negócio, por facilitar o acesso de clientes
de várias direções, além da referência fácil. (REIS, 1993, p. 13).

Mesmo parecendo ser as mil maravilhas, o sistema hegemônico articulava


diversas ações com a finalidade atrapalhar os trabalhos da população negra nas ruas,
criando assim, mecanismos rígidos e estruturados de controle, e até mesmo, de punição

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caso houvesse o descumprimento. Leis e repressões policiais foram criadas para que o
desocupação das ruas fosse feita. Regulamentações sobre a venda de alimentos, pesos,
uso de tabuleiros em ruas movimentadas, eram alguns dos empecilhos criados pelo
governo. Até mesmo cartas anônimas sendo escritas reclamando da presença deles nos
espaços públicos, dizendo que “nunca havia visto tanta negraiada junta” (REIS, 1993, p.
20).Obviamente, é importante salientar que quando pensamos nesses “primórdios” do
afroempreendedorismo, temos que ter a consciência de que os contextos sociais e
econômicos são diferentes aos dos dias atuais, mas é importante perceber o quanto essa
pratica reverbera nos diais atuais atuando de forma importante da memória dos
afroempreendedores atualmente.

MOVIMENTO BLACK MONEY

Esse modelo negócio cria uma espécie de circulação da economia que é


chamada de black money, conceito que surge nos Estados Unidos para classificar um
movimento econômico centralizado na produção e consumo de pessoas negras. Ele surge
a partir de um projeto de financiamento que nasce no norte global que tinha como
finalidade auxiliar afroempreendedores concedendo empréstimos para seu capital inicial,
já que existe uma grande dificuldade de pessoas negras conseguirem empréstimos em
bancos comuns por conta do racismo estrutural. Para além disso, o “black money diz
respeito ao potencial consumerista do capital negro, do alto e real valor que o dinheiro
negro possui na economia.” (SANTOS, 2019, p. 71), ou seja, esse movimento econômico
possui um grande potencial de empoderamento e valorização do sujeito negro.

Pelo movimento black money, que defende, por uma de suas vertentes
ou dimensões, uma valorização e respeito do consumidor negro,
mostrou-se imprescindível uma reformulação das dinâmicas
empresariais, consumeristas e negociais. (SANTOS, 2019, p, 72)

É interessante observar que no momento que a pessoa negra monta seu próprio negocio
ela inicia um processo de aprendizado sobre como valorizar seu produto ou serviço, pois
é preciso que ela entenda quanto valor o seu tempo de trabalho, estudo, aperfeiçoamento,
enfim, todos os fatores que constituem um precificação. Diante disso, ela começa a olhar
para si, entendendo o se valor que vai para além do monetário, entrando me plano
simbólico e empoderador.

O empoderamento traz uma tomada de consciência, partindo do prefixo “auto”,


pois quanto ao âmbito individual, (…) é uma auto emancipação, fundada numa
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compreensão individualista de empoderamento, que enfatiza a dimensão psicossocial
(BAQUERO, 2012, p. 177), pois o indivíduo começa a olhar de forma mais crítica para
o sistema pelo qual se está inserido, no que diz respeito a grupo social de mulheres negras,
esse movimento tem crescido cada vez mais. BERTH (2019) traz um precisão cirúrgica
a respeito do tema, quando intersecciona com o conceito de afroempreendedorismo
dizendo como essa modalidade de negócio tem como produto a criação de um sistema
econômico, o movimento black money que atua como uma espécie de (…) fortalecimento
social (BERTH, 2019, p. 74). Esse fortalecimento traz uma sensação de alcance ao status
social operante dentro do sistema capitalista, mas é importante observar que o que os
afroempreendedores criam se mostra ser um sistema adverso ao capitalista, ou seja,
quando a pessoa negra almeja essa ascensão social por meio do afroempreendedorismo,
ela não se dá da mesma forma que da pessoa branca. Assim, o afroempreendedorismo
fala sobre ascensão social e mobilidade traves da ótica do empoderamento, articulando a
mudança de status dentro da sociedade na qual esse grupo está inserido.
Em princípio, qualquer indivíduo tem a possibilidade de
ascender socialmente por sua fortuna, por seus méritos
intelectuais, por seus títulos profissionais, por suas qualidades
morais, ou pela combinação desses elementos, de acordo com
os sistemas de valores de uma sociedade de tipo capitalista.
(AZEVEDO, 1955, p. 195).

Com essa possibilidade de mobilidade social, o invidio negro que é empreendedor


começa a questionar o lugar social que lhe foi dado na sociedade racista, iniciando a
construção de sua identidade como sujeito de fato, afinal, (...) uma pessoa alcança o status
completo de sujeito quando ela, em seu contexto social, é reconhecida em todos os três
diferentes níveis e quando se identifica e se considera reconhecida como tal (KILOMBA,
2019, p. 74). Mas essa mobilidade pode atuar dentro, de forma macro, na sociedade como
um todo, como de forma intra dentro do próprio movimento negro, gerando o movimento
black money com uma essência do que entendemos por quilombo urbano, mas isso eu
falarei com mais propriedade no próximo tópico,

QUILOMBISMO

O conceito denominado de “quilombismo” tem sido muito usado por diversos


movimentos militantes da atualidade. É comum escutar falas como “aquilombe-se” ou
“vamos nos aquilombar”, mas antes de falar sobre o que ele representa, é importante
pontuar sua origem, se constituído assim, em (...) uma importante tecnologia social de

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resistência que promove o “estar junto” para ampliar e potencializar saberes, cultura,
identidade e histórias ancestrais. Aquilombar-se é, para os negros, um jeito de ser no
mundo (BATISTA, 2019, p.399).
O termo surge de um conceito africano de “Kilombo”, onde segundo a
historiadora Beatriz Nascimento, é uma instituição africana que (...) cortava
transversalmente as estruturas de linhagem e estabelecia uma nova centralidade de poder
frente ás outras instituições de Angola. (NASCIMENTO, 2006, p. 119). Ou seja, dentro
da organização social de alguns estados da África que, dentre tantos objetivos, também
possuía como finalidade a resistência perante os colonizadores portugueses. Esse modelo
de estrutura social nasce com personagem histórica Nzinga, uma mulher que governou o
reino de Ndongo durante quase 40 anos. Como símbolo de resistência, deixou os
colonizadores incrédulos com a possibilidade de uma mulher estar à frente de um Estado.
Dentro das políticas locais, a imagem feminina era a que estava no poder, segundo Ana
Carolina Souza, “Nzinga preferia enfrentar as tropas portuguesas a submeter-se e a tornar-
se uma mulher sem poderes” (SOUZA, 2020, p. 17). Mesmo resistindo por muitos anos,
ela teve que ver centenas de africanos sendo sequestrados e levados para a América como
escravos, até que na segunda metade do século XVI, os portugueses com apoio da religião
católica conseguem tomar conta de diversas regiões, incluído Angola, com isso,
mudanças culturais foram realizadas, alterando a estrutura social de centenas de povos.
Cruzando os mares, sob regime de escravidão, a população africana começa a se
organizar novamente. Mesmo com nomes parecidos, o que chamamos de “Quilombo” no
Brasil possui mais diferenças do que semelhanças ao modelo original. Abdias Nascimento
em seu livro “O Quilombismo”, traz como definição
Quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião
fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial.
Repetimos que a sociedade quilombola representa uma etapa no
progresso humano e sócio-político em termos de igualitarismo
econômico. (NASCIMENTO. 2019, p. 260)

Sendo assim, é importante desmistificar a ideia que muitas vezes é imposta


duramente nosso processo de aprendizagem no período escolar de que os quilombos eram
espaços compostos por um pequeno grupo de pessoas desorganizadas e que estavam
fugindo de algo. Obviamente, estamos falando de um contexto que foi de extremo
sofrimento para a população negra e que a construção dos quilombos simbolizam um raio
de esperança em suas vidas, além de se estabelecer (...) como um continuum de desgaste
permanente às forças sociais, culturais, políticas, militares e econômicas da escravidão e

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dos seus valores, e reunia diversas ações que tinham como principal objetivo enfraquecer
o sistema (MOURA, 2001, p. 110).
Os primeiros registros históricos datam o surgimento do primeiro quilombo no
ano de 1559, mas somente duzentos anos depois, após diversas guerras e embates
violentos por parte do portugueses contra essas populações que o termo de fato foi
definido por autoridades brancas europeias como “toda a habitação de negros fugidos que
passem de cinco, em parte desprovida, ainda que não tenham ranchos levantados nem se
achem pilões neles” (NASCIMENTO, 2006, p. 119). Mesmo com essa definição, é
importante ressaltar a grandiosidade que os quilombos foram, ao contrário do que os
portugueses afirmavam, essas organizações espaciais e sociais eram compostas por mais
30 mil pessoas, chegando em alguns casos em mais de 50 mil africanos e afro descentes.
Nos dias atuais, ainda é possível encontrar cidades completamente formadas em um
espaço onde antes se encontravam quilombos.
Dentre tantos, o mais marcante foi o Quilombo dos Palmares, liderado por Zumbi,
figura marcante na história de luta e resistência do povo negro no Brasil. Denominado
pelos pesquisadores do tema como República de Palmares, este quilombo contava com a
participação de mais de 30 mil habitantes, em um espaço físico comparado com cerca de
um terço do território de Portugal, espaço este que era pertencente a toda a população,
fazendo assim da República de Palmares (...) “numa organização avançada que integrava
muitos quilombos” (NASCIMENTO, 2019, p. 147), mas, mais do que integrar grupos de
pessoas negras, esses espaços se constituíam como (...) unidades de protesto e de
experiência social, de resistência e reelaboração do valores sociais e cultura dos africanos
e seus descendentes (...)” (SOUZA, 2008, p. 26). Depois de Palmares, outros tantos
quilombos continuam existindo e resistindo, muitos, hoje, abrigam diversos
remanescentes que lutam para manter suas tradições e estruturas intactas.

Por fim, o quilombo se consagra como uma unidade


independente, que tornava dinâmico o sistema oficial e, “ao
dinamizá-la [a realidade social], contrapunha-se social,
econômica, política, étnica e ideologicamente ao escravismo e
contrapunha a ele os novos valores e a nova economia
composta por homens livres.” (MOURA, 2001, p. 114).

Diante do movimento de resistência do descendentes quilombolas, surge o termo


“Quilombismo”. Para Abdias NASCIMENTO (2019), o conceito nasce a partir de uma

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espécie de prática de libertação da população afrodescendente, onde espaços e redes de
conexão são criados pelas população negra com diversas finalidades. Ainda, segundo ele,

O quilombismo se estruturava em formas associativas que tanto podiam


estar localizadas no seio de florestas de difícil acesso, que facilitava sua
defesa e organização econômico-social própria, como também
assumiram modelos de organização permitidos ou tolerados,
frequentemente com ostensivas finalidades religiosas (católicas),
recreativas, beneficentes, esportivas, culturais ou de auxílio mútuo. Não
importam as aparências e os objetivos declarados: fundamentalmente,
todas elas preencheram uma importante função social para a
comunidade negra, desempenhando um papel relevante na sustentação
da comunidade africana. Genuínos focos de resistência física e cultural.
Objetivamente, essa rede de associações, irmandades, confrarias,
clubes, grêmios, terreiros, centros, tendas, afoxés, escolas de samba,
gafieiras foram e são os quilombos legalizados pela sociedade
dominante; do outro lado da lei, erguem-se os quilombos revelados que
conhecemos. Porém tanto os permitidos quanto os "ilegais" foram uma
unidade, uma única afirmação humana, étnica. (NASCIMENTO, 2019,
p. 252).

Os feirantes que participam dessa feira também estão presentes em outros espaços
locais, isso faz com que exista uma ponte de comunicação entre eles, criando uma rede
de afroempreendedores. Assim, percebe-se que existem pontos que conectam os
afroempreendedores e empreendedores étnicos na cidade, pelo menos aqueles que
expõem em feiras, pois existem alguns profissionais que possuem seu próprios espaços
ou comercializam seus produtos exclusivamente pelas redes sociais. Essa organização
composta por afrodescendentes é defendida dentro do conceito de quilombismo
trabalhado por NASCIMENTO (2019), junto com a conscientização, como instrumentos
fundamentais para a execução deste projeto emancipatório de um coletivo. Sobre esse
fato,
Então, o quilombismo, como utopia aplicada neste contexto no qual estamos
trabalhando, pois não se diz respeito a um quilombo de forma literal, mas como um
posicionamento político de resistência e união entre pessoas negras em Curitiba, é
possível identificar pressupostos que fazem existir essa identificação e simbologia que o
conceito trabalha, como finalidade de se constituir como um processo

(...) dinâmico na estratégia e na tática de sobrevivência e progresso das


comunidades de origem africana. Com efeito, o quilombismo tem se
revelado fator capaz de mobilizar disciplinadamente o povo afro-
brasileiro por causa do profundo apelo psicossocial cujas raízes estão
entranhadas na história, na cultura e na vivência dos afro-brasileiros.
(NASCIMENTO, 2019, p. 252).

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Essa estratégia de sobrevivência é se torna nítida quando se observa a feira se
constituindo. Desde de sua ida para a Praça Zumbi dos Palmares, o evento tem que
conviver com ausência de investimentos por parte do estado, além das dificuldades
impostas através de exigências governamentais para que a feira aconteça. A feira já
passou por diversas dificuldades para garantir sua existência, afinal existem as pessoas
que realmente estão ali por militância, mas também existem aquelas que precisam daquela
verba para garantir sua subsistência. Diante disso, é possível perceber uma mobilização
por parte, tanto do Instituto, quanto dos afroempreendedores, em manter a feira firme e
forte. No fim do ano de 2019, a feira estava passando por dificuldades financeiras, o edital
pelo qual a organização normalmente se inscreve para arrecadação de verbas não abriu e
a feira corria o risco de não acontecer em 2020. Sendo assim, for proposto criar uma
“vakinha” online, que é basicamente um site que busca angariar fundos da população para
execução de projetos, mas o resultado não foi como o esperado, em paralelo a isso, a
pandemia por conta da COVID-19 deixou as coisas um pouco mais complicadas, mas
mesmo assim, ao feirantes tem se organizando para se promoverem via internet, já o
Instituto tem trabalhado como suporte para aqueles afroempreendedores que possuem
mais dificuldades financeiras, através da distribuição de cestas básicas.
A união entre feirantes e organização sempre foi uma das coisas que mais me
chamou atenção desde o primeiro momento em que estive na feira, é visível perceber que
não existe hierarquias dentro daquele espaço, por mais que existam pessoas que estão, de
certa forma, a frente da organização, as tomadas de decisões são em conjunto.
A feira inicia a partir de relações de parentesco consanguíneo, já que as
organizadoras são todas da mesma família, se estendendo posteriormente, com a chegada
de outras pessoas, que no início já eram conhecidos da família. O núcleo com aspecto
familiar vai crescendo, mantendo a ideia de (...) garantir ao povo trabalhador negro o seu
lugar na hierarquia de Poder e Decisão, mantendo a sua integridade etno-cultural, é a
motivação básica do quilombismo (NACIMENTO, 2019, p. 268), isso faz com que, tanto
as pessoas negras possam (...) olhar para o passado de forma a ter orgulho do que
representa a luta quilombola e resignificar esse passado. Neles, que se autodenominam
espaços quilombolas, impera a liberdade e o respeito pelos negros, por sua cultura,
história e memória (BATISTA, 2019, p. 414). Os afroempreendedores vãos se
constituindo assim, em um grande núcleo relacional e forte, formando um
aquilombamento de pessoas que trabalham juntas em prol de sua mobilidade social.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O afroempreendedorismo tem se consolidando, apesar das adversidades e de um
histórico que mostra a necessidade como mecanismo de força, um prática que se constitui
como resistente ao sistema hegemônico ao qual estamos acostumados. A feira do
Afroempreendedor que acontece em Curitiba na Praça Zumbi dos Palmares age de forma
transformadora na vida da população negra. Um empreendedorismo fora dos moldes
tradicionais, afinal, estamos falando de uma população que tem lutado durante décadas
pela seu espaço de valor na sociedade.
O ato da pessoa negra que abrir seu próprio negócio vai para além do ganhar
dinheiro, ele se entende como sujeita política de sua existência, o processo de
empoderamento como agir de forma coletiva, fazendo com que a pirâmide social se
movimente de forma considerável. Mas o que mais me chama a atenção é a rede que se
cria e se fortalece entre os afroempreendedores, ouvi relatos de pessoas que muitas vezes
não tinham o dinheiro para pagar a conta de gás para produzir alimentos que seriam
vendidos na feira, mas que mesmo assim, com a mobilização do coletivo, essa pessoa
conseguiu estar na feira a pagar a conta que estava em dívida.
O quilombo, que para muitos sempre foi sinônimo de fuga, para mim é símbolo
de resistência, o quão importante é, para nós, negros em diáspora, no unirmos, resistimos
e ocuparmos os espaços urbanos, criando coletivos onde somos valorizados, respeitados
e empoderados, donos de nossa própria existência. O afroempreendedorismo é
transformação!

Referências:
AZEVEDO. Thales. Elites de Cor: um estudo de ascensão social. São Paulo.
Companhia Editorial Nacional. 1955.

BAQUERO. Rute Vivian Angelo. Empoderamento: instrumento de emancipação


social? Uma discussão conceitual. Revista Debates, Porto Alegre, V. 6, n 1, p. 173-187,
jan.- abri./ 2012..

BATISTA. Paula Carolina. O Quilombismo em Espaços Urbanos: 130 anos após a


abolição. Revista Extrapresa, São Paulo, v. 12, n. esp., p.397-419, set. – 2019.

BERTH. Joice. Empoderamento. São Paulo. Editora Polén. 2019.


FIGUEIREDO. Ângela. Classe Média Negra: trajetórias e perfis. Salvador. UFBA.
2012.

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