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o CONCEITO DE HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA

LUIZ HENRIQUE TORRES

RESUMO
A polissemia do conceito de história (processo,
conhecimento, campo do conhecimento?) e de historiografia
(expressão e produto de uma prática intelectual?) ou a
compreensão de crítica historiográfica (desambiciosa descrição
da historiografia ou análise crítica da historiografia?) encontra
diferenciadas posturas conceituais. Neste artigo, parte-se dos
conceitos de história e historiografia desenvolvidos por alguns
autores brasileiros que encaminharam essas definições, e,
posteriormente, será realizada uma conceituação a partir da
premissa de que a história (campo do conhecimento) é uma
prática historiográfica (Neves, 1984: 17-39), e, portanto, uma
reflexão e produção historicamente localizada que está em
contínua redefinição.

1 - O DEBATE CONCEITUAL

Duas definições por Francisco Iglésias, em artigos de 1972 e 1979,


dimensionam o referencial conceitual:

A historiografia é uma obra da História, um escrito de natureza


histórica. Impõe-se a palavra historiografia, uma vez que a
palavra história é muito ambígua, por ser tanto a referência ao
acontecimento, como sua reconstituição em livro (. ..) uma
história da historiografia brasileira deve ser o. estudo dos livros
que já se escreveram sobre a História do Brasil. Trata-se,
portanto, de obras elaboradas, não de documentos (Iglésias,
1972: 22-23).

No estudo fascinante da História da História, ou melhor, da


História da Historiografia - separa-se o processo de desen-
volvimento dos povos do seu estudo, seja descrição ou reflexão:
aquele é J:listória, este é Historiografia (Iglésias, 1979: 267)
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Professor do Dep. de Biblioteconomia e História - FURG.

BIBLOS. Rio Grande. 8: 53 - 59. 1996.


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Marlene Medaglia Almeida, ao analisar a historiografia do Rio Grande
do Sul, utilizou o conceito de historiografia baseado em Michel de Certeau: 1 Francisco Iglésias entende a historiografia. como produção
intelectual (obras elaboradas) e não como documentos. Afirma que a história
historiografia: a prática e o discurso historiográfico, isto é, a é o processo e historiografia é descrição ou reflexão do processo. Marlene
prática intelectual especializada (mediada pelo instrumental Almeida equipara história e historiografia, consideradas uma prática
teórico-metodológico da ciência histórica) que tem como objeto intelectual produtora do conhecimento histórico. José Honório Rodrigues
específico a realidade histórica, em sua integridade estrutural e entende por historiografia a "história da história", enquanto Lapa considera a
superestrutural e seu produto: o conhecimento histórico historiografia como a análise crítica do conhecimento histórico. Ao destacar
(Almeida, 1983: 22). sucintamente o posicionamento desses autores, constatamos a diversidade
de enfoques referente à delimitação dos objetos relativos ao campo da
José Honório Rodrigues entende a historiografia como a "história história e historiografia, assim como os limites epistemológicos que as
aproximam ou diferenciam.
da história" (Rodrigues, 1978: 191), ressaltando que

todo documento historiográfico é histórico, mas nem todo


documento histórico é historiográfico. Desde que se considere a 2 - UMA PROPOSTA CONCEITUAL
historiografia como a história da história podem ser
considerados historiográficos (Rodrigues, 1979: XVI-XVII). Num sentido rigoroso e na perspectiva epistemológica, não há
história e sim conhecimento histórico. A elaboração intelectual dirigida ao
José Roberto do Amaral Lapa, ao realizar uma revisão da acontecer humano no tempo será sempre uma possibilidade de produção do
historiografia brasileira contemporânea, dedicou uma parte da pesquisa à conhecimento, de um saber distinto da impossibilidade de elaboração de
reflexão dos conceitos na prática historiográfica: uma história.
A polissem ia da palavra história será reduzida a duas variantes:
O conhecimento é o registro inteligente que o historiador história enquanto processo do acontecer humano no espaço-tempo,
procura fazer para compreender a realidade. A Historiografia é constituindo-se intelectualmente na utopia de uma possibilidade em nível de
justamente o conhecimento crítico dessa representação e do reconstituição; e história-conhecimento, isto é, os procedimentos intelectuais
processo que a determinou (. ..) Dessa maneira, o objeto do que constroem verdades relativas a partir da análise dos materiais históricos
conhecimento histórico é o que chamamos de História para (fontes). A história, enquanto processo do acontecer humano na dinâmica de
efeito de nossas proposições (. ..) Conhecimento histórico é que uma determinada sociedade, jamais esgota-se nos procedimentos teóricos
resulta do processo limitativo de conhecimento e reconstituição, do historiador. O resultado intelectual será sempre uma história-
análise e interpretação daquele objeto, vindo a Historiografia a conhecimento, articulada no espaço-tempo do historiador e nos
ser a análise crítica do conhecimento histórico e historiográfico, condicionantes que atuam sobre ele.
e do seu processo de produção, reconhecendo, portanto, um O conhecimento científico em história (campo do conhecimento) é
conhecimento científico que se perfila pelos métodos, técnicas uma Produção intelectual mediada por um método racional de crítica e por
e leis da ciência histórica (Lapa, 1981: 18-9). instrumentos teórico-metodológicos de análise dos materiais históricos. Esse
processo racional formula verdades relativas dinamizadas no espaço-tempo
Constata-se uma preocupação dos autores em distinguir. OU do elaborador (situado historicamente com limitações e interações com o
equiparar história (enquanto processo humano/conhecimento intelectual) e meio portanto, inserido na história-processo) e tendendo, na perspectiva que
historiografia. está sendo sugerida, à compreensão da totalidade do processo humano,
tend.o por dinâmica a reprodução/superação das condições materiais do
o1 historiador francês Michel de Certeau emprega a palavra história "no sentido de SUjeito e a busca de um sentido para a existência e para a história-processo.
historiografia. Significa que entendo por história uma prática (uma disciplina), o seu resultadO O Conhecimento histórico pode ignorar a crítica documental e os referenciais
(um discurso) e a sua relação". CERTEAU, Michel de. A operação histórica. In: LE GOFF,
teórico-metodológiCOS; nesse caso aproxima-se do romance histórico,
Jacques (Org.). História: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979, p. 41.
perdendo sua objetividade. A cientificidade do conhecimento histórico passa

BIBLOS. Rio Grande, 6' 53-59, 1996.


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pela objetividade que reside no instrumental teórico (conceitual), bseNado a partir de uma perspectiva de historicidade em processo torna-
metodológico (organização e "leitura" dos materiais históricos) utilizados pelo se objeto de análise ou história-processo no plano do vestígio escrito.
historiador. O caráter científico do saber histórico está ligado a uma s Fazer ciência da historiografia exige uma releitura a partir das
problemática epistemológica, em que a ciência natural ou humana não motivações e da contemporaneidade das novas gerações, porém utilizando
chega à verdade absoluta ou à comprovação final, mas caracteriza-se pelo categorias pertinentes ao objeto. Em outras palavras, os homens refazem
estabelecimento de uma sistematização de dados que a partir de um método continuamente a história partindo da organização material no cotidiano de
racional de crítica pode converter-se num conhecimento em contínua uma determinada sociedade, e reescrevem a historiografia, recriando
dinâmica. conhecimento com base no saber historiográfico e rumando para novos
Não há neutralidade na produção do saber, pois não há como momentos em que o presente será historiografia, a ser recriado pelas
negar a historicidade do indivíduo que constrói verdades. A perspectiva gerações futuras.
positivista analisada por Adam Schaff dificultou por longo período o debate A recriação do conhecimento deve partir de uma crítica
epistemológico; o sujeito que elabora o saber ficou relegado, pelos historiográfica, do arrolamento, sistematização e crítica de certa
positivistas, a uma artificiosa imparcialidade. As correntes historiográficas historiografia, analisando abordagens, os métodos e situando a obra
presentista e do relativismo histórico debateram esse tema do espaço historiográfica na conjuntura de sua produção, procedendo à recriação
subjetivo na prática da objetividade do historiador. Quando Paul Veyne histórica a partir de um referencial teórico (modelo em contínuo repensar
afirma que "por essência, a história é conhecimento mediante documentos. que busca captar a realidade do documento) coerente co~ o objeto.
Desse modo, a narração histórica situa-se para além de todos os O conhecimento é ideológico, pois o discursante está e faz o
documentos, já que nenhum deles pode ser o próprio evento" (Veyne, 1982: processo de certa sociedade, portanto a ideologia expressa concretamente
12), constata-se a antinomia entre evento/narração ou real/discurso, a historicidade de cada indivíduo que recria a história. A ideologia está
confrontando o acontecer e a construção sobre o acontecer, ou seja, um associada a "qualquer" produção ou meio intelectual que analise um
conhecimento em permanente tensão. determinado tema ou processo, estabelecendo para isso um indispensável
Se o conceito de história abriga essa polissemia, o conceito de referencial de pensamento. Decorre desse conceito que toda a historiografia
historiografia quase sempre é associado com o de história-processo, é ideológica! Ideologia, portanto, não seria somente o discurso que
legando ao conhecimento histórico aquele status de verdade que traduz e encoberta a realidade em função do grupo dominante e seus interesses"
sintetiza as motivações de um período analisado, indicando a equiparação Essa perspectiva não significa negar o discurso ideológico da legitimação da
entre real e construção. A redução dos dois conceitos a uma indiferença desigualdade ou do conformismo, mas conceber o indivíduo ligado a um
conceitual leva à associação de historiografia com o objeto de análise. Numa referencial de pensamento, ocupando um determinado lugar social frente à
distinção preliminar, a historiografia tem a ver com construção e com produção que o fará assumir posturas e elaborar discursos que neguem ou
interpretação, pois ela é o conhecimento historicamente localizado num reproduzam certa realidade histórica. A ideologia é uma identidade
contexto intelectual e numa estrutura sócio-econômica, política e mental. A discursiva inalienável que apenas comprova a impossibilidade de nos
historiografia é toda produção do conhecimento histórico (ou de outras áreas colocarmos à3 margem de uma determinada historicidade que personifica
do conhecimento) referente a determinado tema e período. Não é história cada indivídu0 , e isso significa um contínuo conflito.
(processo). nem é somente conhecimento histórico, mas o conhecimento
situado na historicidade de seu acontecer, sendo história-processo na
2 Para Marilena Chauí, "A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de
dimensão de sua contemporaneidade. representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e
A historiografia faz parte de um processo epistemológico e espelha prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar ( ... ) Ela é,
a produção intelectual de um certo momento do passado. Ela é um portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de
~aráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade
fragmento para compreendermos - numa preocupação de totalidade - esse
IVldlda em classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais,
passado. Na historiografia estão os anseios de uma época, as verdades que :e~ Jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes, a partir das divisões na
a dinâmica social das idéias desfigurará com o passar do tempo. Portanto, a s era da ~roduÇão" (Chauí, ~983: 113-4).

historiografia, de produção intelectual, passa a vestígios de um determinada e Xlsle


. na conJosé.-. Honório . Rodrigues considera que "a ideologia é um sistema de_ idéias
d que
d
acontecer para quem a analise; portanto, o conhecimento históricO SClencla SOCial dos indivíduos, uma Weltanschauung _ uma concepçao o mun o

BIBlas R
, 10 Grande, 8: 53 _ 59. 1996.
BIBLOS,Rio Grande, 8: 53-59, 1996
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3 - SíNTESE DOS PRESSUPOSTOS
nâo estamos assistindo descomprometidamente ao processo histórico dos
Não há, enquanto produção intelectual, história-processo, e sim
conhecimento histórico (que parte de documentos ou materiais históricos e "outros" povos e homens, mas é sempre o "nosso" processo. Na história-
não do conhecimento em si). A historiografia corresponde ao conhecimento processo, no espaço-tempo histórico, na historiografia (que expressa parte
histórico produzido num certo período, sobre determinados temas. Esse dessa caminhada) estão fragmentos de nossa identidade enquanto
conhecimento poderá ser científico ou ignorar a crítica documental e os humanidade. A identificação com a matéria, com o movimento, com a
existência, parcialmente preservada na memória historiográfica.
pressupostos para análise. A crítica que se fizer a esse conhecimento
(localizando-o no contexto que lhe deu origem e sentido) é chamada de
crítica historiográfica. Essa crítica é uma "recriação histórica", um processo REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
de revisão e produção do conhecimento (limitado pelas interações com o
meio intelectual de quem o produz) situado num espaço-tempo 1. ALMEIDA, Marlene Medaglia. Introdução ao estudo da Historiografia Sul-Rio-Grandense:
(compreendido como a dinâmica de um processo do acontecer mais amplo, inovações e recorrências do discurso oficial (1920-1935). Porto Alegre: Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, 1983. Dissertação de Mestrado.
que se manifesta em nível de percepção individual na historicidade de quem 2.
CERTEAU, Michel de. A operação histórica. In: LE GOFF, Jacques. História: novos
capta em diferentes níveis o espaço em movimento). A crítica historiográfica problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.
consiste no arrolamento sistemático e utilização de um instrumental racional 3. CHAUi, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1983.
na análise do discurso historiográfico. 4. IGLÉSIAS, Francisco. Comentário ao roteiro sucinto do desenvolvimento da historiografia
Todo conhecimento é indissociável do seu espaço-tempo, brasileira. In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS BRASILEIROS. São
Paulo: Universidade de São Paulo, 1972.
expressando rumos para o acontecer e para a humanidade; portanto, é 5.
____ A história no Brasil. In: FERRI, Mário & MOTOYAMA,
o Shozo (Orgs.). História
ideológico (situado historicamente, recorrendo a instrumentos intelectuais- das Ciências no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1979.
6.
conceituais racionais ou com apelo emocional - para reproduzir ou LAPA, José Roberto Amaral.
1981.
Historiografia Brasileira Contemporânea. Petrópolis: Vozes,
transformar relações sociais no cotidiano de sua existência). Decorre que a 7.
NEVES, Guilherme Pereira. História: a polissem ia de uma palavra. Estudos lbero-
historiografia enquanto memória intelectual é ideológica, pois ideologia não é Americanos, Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
um discurso de inversão e acobertamento do real, mas urna construção do 10(1) 1984.
8.
mundo (reprodução/conservação/transformação de um universo social RODRIGUES, José Honório. Teoria da História do Brasil. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1978.
baseado na desigualdade das relações entre os homens).
9. . História da História do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979.
Modelos teóricos que classificam a priori o acontecer histórico - 10. . Filosofia e História. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
luta e consciência de classe no plano universal, teleologias historicistas e 11. SCHAFF, Adam. História e Verdade. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1983.
teológicas, crenças neoliberais sobre o "fim da História", dialéticas 12. VEYNE, Paul. Como se Escreve a História.Brasília: UnB, 1982.

mecanicistas, progresso da humanidade e etapas civilizatórias - sem levar


em consideração os sujeitos do acontecer com o seu cotidiano,
contradições, sua psicossociabilidade, sua ideologia e lugar social na
produção constituem-se em análises parciais que não superam as
necessidades pragmáticas do presente.
Produção do conhecimento e ideologia vinculam-se na reprodução
de relações sociais de produção e na busca de um sentido para o devir da
História. A radicalidade do conhecimento espelha a nossa historicidade, pois

( ... ) A mais profunda significação do conceito de ideologia não está no sistema de idéias,
definidas mas na existência, na consciência humana, de uma visão sobre a vida, o mundo e o
próprio ser individual. E sem essa consciência de si mesmo e do mundo ninguém vive"
(Rodrigues, 1981: 121).

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