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RESUMO
A polissemia do conceito de história (processo,
conhecimento, campo do conhecimento?) e de historiografia
(expressão e produto de uma prática intelectual?) ou a
compreensão de crítica historiográfica (desambiciosa descrição
da historiografia ou análise crítica da historiografia?) encontra
diferenciadas posturas conceituais. Neste artigo, parte-se dos
conceitos de história e historiografia desenvolvidos por alguns
autores brasileiros que encaminharam essas definições, e,
posteriormente, será realizada uma conceituação a partir da
premissa de que a história (campo do conhecimento) é uma
prática historiográfica (Neves, 1984: 17-39), e, portanto, uma
reflexão e produção historicamente localizada que está em
contínua redefinição.
1 - O DEBATE CONCEITUAL
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pela objetividade que reside no instrumental teórico (conceitual), bseNado a partir de uma perspectiva de historicidade em processo torna-
metodológico (organização e "leitura" dos materiais históricos) utilizados pelo se objeto de análise ou história-processo no plano do vestígio escrito.
historiador. O caráter científico do saber histórico está ligado a uma s Fazer ciência da historiografia exige uma releitura a partir das
problemática epistemológica, em que a ciência natural ou humana não motivações e da contemporaneidade das novas gerações, porém utilizando
chega à verdade absoluta ou à comprovação final, mas caracteriza-se pelo categorias pertinentes ao objeto. Em outras palavras, os homens refazem
estabelecimento de uma sistematização de dados que a partir de um método continuamente a história partindo da organização material no cotidiano de
racional de crítica pode converter-se num conhecimento em contínua uma determinada sociedade, e reescrevem a historiografia, recriando
dinâmica. conhecimento com base no saber historiográfico e rumando para novos
Não há neutralidade na produção do saber, pois não há como momentos em que o presente será historiografia, a ser recriado pelas
negar a historicidade do indivíduo que constrói verdades. A perspectiva gerações futuras.
positivista analisada por Adam Schaff dificultou por longo período o debate A recriação do conhecimento deve partir de uma crítica
epistemológico; o sujeito que elabora o saber ficou relegado, pelos historiográfica, do arrolamento, sistematização e crítica de certa
positivistas, a uma artificiosa imparcialidade. As correntes historiográficas historiografia, analisando abordagens, os métodos e situando a obra
presentista e do relativismo histórico debateram esse tema do espaço historiográfica na conjuntura de sua produção, procedendo à recriação
subjetivo na prática da objetividade do historiador. Quando Paul Veyne histórica a partir de um referencial teórico (modelo em contínuo repensar
afirma que "por essência, a história é conhecimento mediante documentos. que busca captar a realidade do documento) coerente co~ o objeto.
Desse modo, a narração histórica situa-se para além de todos os O conhecimento é ideológico, pois o discursante está e faz o
documentos, já que nenhum deles pode ser o próprio evento" (Veyne, 1982: processo de certa sociedade, portanto a ideologia expressa concretamente
12), constata-se a antinomia entre evento/narração ou real/discurso, a historicidade de cada indivíduo que recria a história. A ideologia está
confrontando o acontecer e a construção sobre o acontecer, ou seja, um associada a "qualquer" produção ou meio intelectual que analise um
conhecimento em permanente tensão. determinado tema ou processo, estabelecendo para isso um indispensável
Se o conceito de história abriga essa polissemia, o conceito de referencial de pensamento. Decorre desse conceito que toda a historiografia
historiografia quase sempre é associado com o de história-processo, é ideológica! Ideologia, portanto, não seria somente o discurso que
legando ao conhecimento histórico aquele status de verdade que traduz e encoberta a realidade em função do grupo dominante e seus interesses"
sintetiza as motivações de um período analisado, indicando a equiparação Essa perspectiva não significa negar o discurso ideológico da legitimação da
entre real e construção. A redução dos dois conceitos a uma indiferença desigualdade ou do conformismo, mas conceber o indivíduo ligado a um
conceitual leva à associação de historiografia com o objeto de análise. Numa referencial de pensamento, ocupando um determinado lugar social frente à
distinção preliminar, a historiografia tem a ver com construção e com produção que o fará assumir posturas e elaborar discursos que neguem ou
interpretação, pois ela é o conhecimento historicamente localizado num reproduzam certa realidade histórica. A ideologia é uma identidade
contexto intelectual e numa estrutura sócio-econômica, política e mental. A discursiva inalienável que apenas comprova a impossibilidade de nos
historiografia é toda produção do conhecimento histórico (ou de outras áreas colocarmos à3 margem de uma determinada historicidade que personifica
do conhecimento) referente a determinado tema e período. Não é história cada indivídu0 , e isso significa um contínuo conflito.
(processo). nem é somente conhecimento histórico, mas o conhecimento
situado na historicidade de seu acontecer, sendo história-processo na
2 Para Marilena Chauí, "A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de
dimensão de sua contemporaneidade. representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e
A historiografia faz parte de um processo epistemológico e espelha prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar ( ... ) Ela é,
a produção intelectual de um certo momento do passado. Ela é um portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de
~aráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade
fragmento para compreendermos - numa preocupação de totalidade - esse
IVldlda em classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais,
passado. Na historiografia estão os anseios de uma época, as verdades que :e~ Jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes, a partir das divisões na
a dinâmica social das idéias desfigurará com o passar do tempo. Portanto, a s era da ~roduÇão" (Chauí, ~983: 113-4).
BIBlas R
, 10 Grande, 8: 53 _ 59. 1996.
BIBLOS,Rio Grande, 8: 53-59, 1996
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3 - SíNTESE DOS PRESSUPOSTOS
nâo estamos assistindo descomprometidamente ao processo histórico dos
Não há, enquanto produção intelectual, história-processo, e sim
conhecimento histórico (que parte de documentos ou materiais históricos e "outros" povos e homens, mas é sempre o "nosso" processo. Na história-
não do conhecimento em si). A historiografia corresponde ao conhecimento processo, no espaço-tempo histórico, na historiografia (que expressa parte
histórico produzido num certo período, sobre determinados temas. Esse dessa caminhada) estão fragmentos de nossa identidade enquanto
conhecimento poderá ser científico ou ignorar a crítica documental e os humanidade. A identificação com a matéria, com o movimento, com a
existência, parcialmente preservada na memória historiográfica.
pressupostos para análise. A crítica que se fizer a esse conhecimento
(localizando-o no contexto que lhe deu origem e sentido) é chamada de
crítica historiográfica. Essa crítica é uma "recriação histórica", um processo REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
de revisão e produção do conhecimento (limitado pelas interações com o
meio intelectual de quem o produz) situado num espaço-tempo 1. ALMEIDA, Marlene Medaglia. Introdução ao estudo da Historiografia Sul-Rio-Grandense:
(compreendido como a dinâmica de um processo do acontecer mais amplo, inovações e recorrências do discurso oficial (1920-1935). Porto Alegre: Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, 1983. Dissertação de Mestrado.
que se manifesta em nível de percepção individual na historicidade de quem 2.
CERTEAU, Michel de. A operação histórica. In: LE GOFF, Jacques. História: novos
capta em diferentes níveis o espaço em movimento). A crítica historiográfica problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.
consiste no arrolamento sistemático e utilização de um instrumental racional 3. CHAUi, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1983.
na análise do discurso historiográfico. 4. IGLÉSIAS, Francisco. Comentário ao roteiro sucinto do desenvolvimento da historiografia
Todo conhecimento é indissociável do seu espaço-tempo, brasileira. In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS BRASILEIROS. São
Paulo: Universidade de São Paulo, 1972.
expressando rumos para o acontecer e para a humanidade; portanto, é 5.
____ A história no Brasil. In: FERRI, Mário & MOTOYAMA,
o Shozo (Orgs.). História
ideológico (situado historicamente, recorrendo a instrumentos intelectuais- das Ciências no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1979.
6.
conceituais racionais ou com apelo emocional - para reproduzir ou LAPA, José Roberto Amaral.
1981.
Historiografia Brasileira Contemporânea. Petrópolis: Vozes,
transformar relações sociais no cotidiano de sua existência). Decorre que a 7.
NEVES, Guilherme Pereira. História: a polissem ia de uma palavra. Estudos lbero-
historiografia enquanto memória intelectual é ideológica, pois ideologia não é Americanos, Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
um discurso de inversão e acobertamento do real, mas urna construção do 10(1) 1984.
8.
mundo (reprodução/conservação/transformação de um universo social RODRIGUES, José Honório. Teoria da História do Brasil. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1978.
baseado na desigualdade das relações entre os homens).
9. . História da História do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979.
Modelos teóricos que classificam a priori o acontecer histórico - 10. . Filosofia e História. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
luta e consciência de classe no plano universal, teleologias historicistas e 11. SCHAFF, Adam. História e Verdade. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1983.
teológicas, crenças neoliberais sobre o "fim da História", dialéticas 12. VEYNE, Paul. Como se Escreve a História.Brasília: UnB, 1982.
( ... ) A mais profunda significação do conceito de ideologia não está no sistema de idéias,
definidas mas na existência, na consciência humana, de uma visão sobre a vida, o mundo e o
próprio ser individual. E sem essa consciência de si mesmo e do mundo ninguém vive"
(Rodrigues, 1981: 121).
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