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AS FATUMATA TINHAM
quando atravessamos de carro a
zona da Chapa de Bissau. Há gente
e gente na rua, mulheres a caminhar com quilos
de fruta ou frutos secos na cabeça, muitos car-
ros a circular por uma terra laranja-forte.
Era aqui que a cidade de Bissau começava
durante o colonialismo. Começava em termos
DE SE CHAMAR MARIA
de vida, de infra-estruturas, de cidade. Havia
um posto de controlo que exigia a chamada
“guia de marcha”, autorização onde se des-
crevia o motivo da deslocação. Ninguém podia
atravessar descalço a fronteira que dava acesso
a Bissau, cidade que em 1941 substitui Bolama
como capital.
O antropólogo e arquivista Fodé Mané ain-
da conserva as guias de marcha da mãe. “Um
assimilado podia andar onde quisesse, um in-
A Guiné-Bissau arrancou para a independência com pouco mais de dez licen- dígena tinha de ir à administração pedir uma
guia e responder a várias perguntas. Não podia
ciados, mas foi o primeiro país africano a libertar-se de Portugal. No período ultrapassar os dias que foram concedidos para
estar no centro urbano.”
colonial havia um sino que mandava os negros sair do centro da cidade, e Além da guia de marcha, o indígena tinha
uma caderneta, obrigatória a partir de 1920,
até bem tarde dominou o trabalho forçado. Os cabo-verdianos foram usados para todos os homens. Num exemplar da Ca-
derneta do Indígena vêem-se várias folhas, cada
pelos portugueses para mandar. O racismo estava longe de ser brando. “É uma com itens que alguém preencheria: as ca-
altura de deixar de fazer propaganda e de escrever a história como ela foi” racterísticas, o imposto indígena, a contribui-
ção braçal, castigos e condenações…
O estatuto do indigenato, lei que tinha como
JOANA GORJÃO HENRIQUES, EM BISSAU, BAFATÁ E CACHEU objectivo a assimilação, vigorou oficialmente
até 1961, mas vários relatos dizem que na práti-
ca continuou a ser aplicado até à independên-
cia. Ao assimilado era exigido que comesse à
mesa, usasse garfo e faca, tivesse um salário
e que, enfim, adoptasse o estilo de vida por-
tuguês.
Não é difícil imaginar agora um posto de
controlo algures na estrada da Chapa. Seria
idêntico às cordas que hoje os miúdos esticam
na estrada principal que sai de Bissau em direc-
ção a Leste e servem para travar a passagem de
viaturas, cobrar os impostos aos camiões que
levam mercadoria ou pedir uma contribuição
pelo arranjo dos buracos da estrada.
Muita gente conta que havia quem caminhas-
se quilómetros e quilómetros descalço até ali
chegar.
“Durante a época colonial, havia uma divisão
clara, uma linha”, conta, por seu lado, Djamila
Gomes, arquitecta. “Há até piadas sobre isso.
Por exemplo, a quem vem de Bafatá para vi-
ver em Bissau diz-se: ‘Pulaste a corda.’ Porque
antes havia uma corda. Lembro-me de que a
minha mãe tinha uma autorização para vir a
Bissau.”
Sentada na rua da zona antiga de Bissau, hoje
degradada e com estradas e prédios a precisar
de urgente recuperação, Djamila Gomes expli-
ca o desenho da cidade, explica como se dava a
dinâmica racial em Bissau. “Os empregados não
residiam [na cidade]. Vinham e iam embora.” A
separação “entre os guineenses e portugueses
era real”, completa.
Bissau funcionava como uma ilha. Os edifí-
cios eram construídos quase todos com a mes-
ma arquitectura, que ainda hoje se mantém: em
baixo casas comerciais, em cima residências.
“Ainda hoje não temos nenhum outro impacto
arquitectónico que se compare — temos o estilo
colonial só aqui na cidade de Bissau”, explica
a também administradora de outra das mais
importantes cidades guineenses, Bafatá.
Está de visita a Bissau por causa dos acon-
tecimentos que levaram o Presidente da Re-
pública, José Mário Vaz, a demitir o Governo
para indígenas e havia um conjunto de serviços “Por exemplo, o meu nome Fodé Mané, na
para assimilados.” época colonial não podia ter o nome comple-
A exigência fazia parte de um código colonial, tamente africano, tinha de ter um Fernando
e a fronteira existia para separar os indígenas ou um João, depois não podia ter um nome
dos assimilados, dos portugueses e, em muitos tão curto.”
casos, dos cabo-verdianos também. Com pouco mais de 1,6 milhões de habi-
Leopoldo Amado, historiador, director tantes, a Guiné-Bissau foi a primeira colónia
do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa portuguesa a obter a independência em 1973,
(INEP), lembra a época em que um apito dava fruto da luta de libertação liderada por homens
ordens de entrada e saída da população negra como Amílcar Cabral, iniciada no princípio
na cidade. Bissau começou a desenvolver-se dos anos 1960. Tem uma história marcada pe-
a partir do porto e no porto havia um mu- la resistência, orgulho de muitos guineenses.
ro para separar as populações africanas dos Tendo feito parte do Império Mali e do Reino
moradores, que eram os comerciantes portu- Gabu, a Guiné-Bissau nunca seria ocupada
gueses. “Em 1940, este muro ainda existia, foi totalmente pelos portugueses. Historiadores
derrubado quando o nacionalismo começou como Leopoldo Amado defendem que a colo-
a despertar”, no final dos anos 1950, explica. nização efectiva durou apenas de 1936 (a data
“Nesse território com o muro em Bissau, na oficial do final das campanhas de pacificação)
pequena cidadela, alguém usava um apito às até ao despertar do nacionalismo, por volta
seis da tarde e os africanos sabiam que era ho- dos anos 1960.
ra de saíram daquele espaço, a urbe colonial. A Guiné foi administrada por Cabo Verde
Voltava-se a apitar às seis da manhã para entra- até 1879 como Guiné de Cabo Verde e até à
rem e darem início aos trabalhos domésticos. descolonização eram os cabo-verdianos que
A presença dos negros era admitida apenas formavam o grosso da administração pública
Há formas de
Actualmente a fazer um doutoramento sobre assinava os decretos? Eu, chipaio, que estava pretos eram pobres, viviam em habitações pre-
os migrantes guineenses em Portugal, Saico ali com o chicote, recebia determinadas orien- cárias e o nível de vida era diferente — e eram
Baldé tem vários papéis espalhados na secretá- tações” — e cumpria-as. diferentes tanto dos portugueses como dos
racismo que
ria do seu escritório no INEP, documentos que O uso do chicote não é metáfora. Teodora cabo-verdianos”.
anda a consultar para as suas pesquisas. Inácia Gomes, um dos rostos da luta de liber- Notava-se também a separação em certos
Cita dados do período colonial na conversa tação, nasceu no Sul, e no sítio onde vivia, locais públicos, entre quem tinha acesso ao
que acontece no INEP, ao final da tarde. Os Empada, lembra-se de ver as pessoas a ser cinema ou ao café Império, por exemplo. “Mar-
mais velhos falam-lhe de muitas histórias de
trabalhos forçados, de humilhações — e a pior
discriminação é ser humilhado perante a famí- são invisíveis. chicoteadas, de as ver a ser agarradas e de
lhes baterem até sangrar por não pagarem o
imposto da palhota.
cou muita gente e muita gente foi para a luta
porque se sentiu discriminado no seu próprio
país. As discriminações eram feitas a todos os
Uma delas
lia, defende. “Os velhos contam que, quando se Entre as reuniões do partido, recebe-nos na negros à excepção daqueles que, pelo seu es-
abriam as estradas, as pessoas eram obrigadas biblioteca do PAIGC ao final do dia. À volta da tatuto, conseguiam elevar-se, mas não tinham
a ir trabalhar — ai de quem não cumprisse. Hoje sala imensas fotografias de Amílcar Cabral e acesso a [determinados locais].”
é sentir-
estava a ler um despacho da conferência dos de outros líderes da luta, a preto e branco.
administradores e uma das recomendações
era negar ao indígena qualquer pretensão de
Imagens com o mato e guerrilheiros em fun-
do, imagens de reuniões e de celebrações pú-
ATIRAR CÃES À MÃE NEGRA
-se inferior
ser chefe. Isto é uma forma violenta… A pessoa blicas. Diz-nos que “o objectivo principal do Quando andava no colégio Ramalhão, em
tem o direito de sonhar. Negar isso com um colonialismo é explorar o povo” e que no seu Sintra, Portugal, Augusta Henriques (n. 1952),
decreto, ser uma política…” tempo “as populações não tinham voz nem fundadora de uma das mais importantes or-
Com grande convicção, e uma voz segura, direito a nada”. “O chipaio pressionava as ganizações não-governamentais guineenses,
defende que “é altura de deixar de fazer pro-
paganda e de [começar] a escrever a história
como ela foi”. Um dos factos que há a sublinhar porque toda populações para acatar as ordens, obrigava a
pagar imposto, a trabalhar nas estradas e nas
construções.”
a Tiniguena, era uma negra no meio de bran-
cas. Mexiam-lhe no cabelo e faziam perguntas
sobre como tinha ficado daquela cor. Não fez
a educação
é que a colonização não chegou a todo o ter- A imagem da repressão colonial é repetida uma única amiga nesse tempo. Quando ia de
ritório do país, o interior “teve contacto com nas narrativas sobre a época. Um dos episódios férias para o Norte, o pai guiando o seu Ca-
população branca tardiamente” e sobretudo mais referidos da história do século XX gui- dillac, havia sempre uma pequena multidão
era feita
com os militares. Isso leva a outra questão: neense foi, de resto, o massacre de Pidjiguiti, de curiosos atrás, tinham de fechar os vidros
“Quem eram os administradores? Raramente em 1959: um grupo de trabalhadores da Casa do carro: “‘Olha o preto, olha o preto, olha o
eram os lisboetas, os minhotos — muitas vezes Gouveia fez greve por melhores salários, tendo preto!’”, gritavam.
nessa base
eram os cabo-verdianos. Aliás, [dados de um a PIDE disparado sobre eles no porto de Bissau Eram os anos 1960, a época de um “Portu-
relatório] 70% dos funcionários coloniais em e feito dezenas de mortos e feridos. gal tacanho”. E ignorante. A mentalidade dos
1971 eram cabo-verdianos: então não lidámos O que aconteceu mostra que a reivindicação portugueses na Guiné-Bissau não era muito
com o colono directamente mas com o subcon- da melhoria das condições de vida foi negada diferente. A história da família de Augusta Hen-
tratado. Isso deixou outra marca, a rivalidade
entre a ala originária de Cabo Verde e a da
Guiné. Os restantes 30% estavam cá em cima: Abdulai Sila “por sermos identitariamente subalternos”,
comenta o sociólogo Miguel de Barros. Ou seja,
em circunstâncias normais, se as pessoas que
riques comprova-o. O avô paterno era portu-
guês, de Mangualde, foi para a Guiné com uma
namorada que acabaria por morrer. Teria filhos
PATERNALISMO
O regime colonial era “profundamente racista”:
disso Dautarin da Costa não tem dúvida, “por-
que partiu de uma premissa óbvia de superiori-
dade dos europeus, dos brancos em relação aos
africanos, ao preto”, continua. “Para haver do-
minação, é preciso uma condição fundamental,
o dominado tem de acreditar que o dominador
é realmente mais forte e o dominado tem de
acreditar que é inferior ao dominador. É muito
mais difícil ganhar independência desse pensa-
mento do que conquistar a independência ou
a liberdade. Mudar o esquema mental é muito
mais forte porque o dominado é o reprodutor
da sua própria condição e o dominador domina
tanto que já nem precisa de estar muito presen-
te no processo de dominação, aquilo já está no
esquema mental do dominado.”
A ideia de que o colonialismo português foi
mais brando é veiculada desde o ensino básico.
Isso é “uma falácia”. “Como qualquer outro
sistema, o colonialismo português sub-huma-
O pai da procuradora Manuela Lopes Men- tinham educação e podiam ajudar a comuni- nizou, subalternizou e brutalizou pessoas em
des, investigadora na organização não-governa- dade”. Foi usado pela administração colonial, nome de uma ideia de superioridade; indepen-
mental Voz di Povo, foi tropa colonial, comba- como tantos, para servir de interface entre a dentemente das estratégias usadas, é mau. E
teu ao lado dos portugueses. “A família aceitou, administração colonial e o seu grupo étnico. é mau de tal maneira que tem influências nos
não houve retaliação; mas os que estiveram “Os balantas estavam, em grande parte, ao dias de hoje no nosso processo de desenvol-
ao lado dos portugueses eram considerados lado do PAIGC. Spínola apostava num outro vimento.”
traidores. Nunca questionei o meu pai por is- grupo étnico importante que eram os fula e Se é verdade que existiu interacção com os
so, nem me indignou porque foram tantos os manjaco para criar um contrapoder.” Isso indígenas, e mestiçagem por causa disso, isso
casos”, comenta. explica a abertura para que os fula tivessem não significa que o regime tenha sido menos
Manuela Lopes tem hoje a imagem do colo- acesso à educação, completa. O avô foi dos racista, defende Nelvina Barreto. Houve, sim,
nialismo como “o todo-poderoso”, que “chega primeiros a levar membros da comunidade a predominância de um tom paternalista, con-
junto de um povo, demonstra superioridade, muçulmana a Meca com apoio da adminis- sidera, “no sentido de que ‘estes coitadinhos
O colonialismo
tenta impor os seus valores e cultura — é a tração colonial portuguesa. não sabem pensar, não têm educação, não têm
imagem de um dominador”. “A Guiné-Bissau nada. Enquanto o colono francês e inglês tinha
era uma província ultramarina portuguesa, SER SUPERIOR, EVANGELIZAR uma percepção diferente: vamos dar condi-
português
até hoje temos leis portuguesas extensíveis” ções, escolas e etc., mas eles que fiquem con-
ao país. Nascido em 1978, António Spencer Embaló finados, sem haver interacção”.
Duvida de que o pai tenha tido uma visão ne- acha difícil alguém da sua geração ser pró-co- Portugal tem uma visão superficial e frag-
gativa do colonialismo, ao contrário dela, que lonialismo, mas na geração do pai isso, sim, mentada da sua história colonial e é necessá-
e brutalizou
cos e culturais; não é igual a mim, é um povo desse tempo em que havia uma certa disciplina. igual porque se fica na superfície. A coloniza-
inferior que tem uma cultura diferente.” “São frutos daquela época: nasceram portu- ção portuguesa não foi igual em todas as suas
O pai de Manuela Lopes não foi, de longe, gueses. Pode dizer-se que eram portugueses colónias. É isto que é necessário que Portugal
pessoas em
um caso raro. Idrissa Djalo, líder do Partido de de segunda, terceira ou de quinta, mas eram esteja disposto a compreender melhor.”
Unidade Nacional, é filho de um homem que portugueses.” O racismo português foi violento, conclui,
combateu contra os portugueses, mas neto de Na família havia quem fosse “muito pró- por seu lado, Augusta Henriques, mas “medir
nome de
outro que fazia parte do sistema colonial — e PAIGC” e quem fosse próximo dos portugue- intensidades de violência é uma calculadora
que viu todos os seus filhos lutarem pela in- ses, mas olha para o colonialismo como “algo que não existe”, afirma. “Sou fruto disso: o
dependência. preconceituoso e etnocêntrico.” Diz: “Tem por meu avô era português e um grande colono.
Esse avô foi dos que encontraram no sistema detrás uma ideia de superioridade racial. Em Levei um tempo a fazer trabalho comigo mes-
superioridade
cia”. “A mim dizia: o meu mundo é o mundo se veste, como é que se come, etc.’” o outro?”
colonial, o mundo dos meus filhos é o das in- Na sala de sua casa no Bairro da Ajuda está
dependências mas não tenho a certeza de que a figura de Amílcar Cabral em desenho. Tem Próxima reportagem em Janeiro:
Dautarin
o mundo deles vai ser melhor. Falámos muito também uma caricatura dele próprio, feita por Cabo Verde
daqueles que estavam do lado dos portugue- um grupo de jovens em Portugal. Cita o líder Esta série foi realizada em parceria com a
ses e sofreram — os fula e manjaco. As pessoas africano, que dizia que “o problema está no
da Costa
eram estigmatizadas como traidores da pátria. colono que nos retira liberdade cultural” e por
Porque a guerra foi também interna, entre uma isso defendia que “a nossa luta era fundamen-
parte da população ao lado do sistema colonial talmente uma luta cultural”, pela identidade.
e outra ao lado do PAIGC.” Spencer não tem dúvidas em classificar o
Com 53 anos, Idrissa Djalo lembra hoje que regime colonial como racista: “Se assim não
o avô foi “figura importante da comunidade fosse, não vejo porque privilegiar determinada Ver documentário em
tribal dos fulas porque era dos poucos que camada para se instruir em detrimento de ou- www.publico.pt/revista2