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O vocábulo “polícia” emana, etimologicamente, da raiz grega polis, que em sua trivial
conversão para a língua portuguesa, adquire o sentido de cidade autônoma ou Estado. Já a
sua derivação politeia, tendo por base as acepções extraídas das mais abalizadas leituras e
traduções dos clássicos, vem a denotar, dentre tantos significados de expressões próximas,
“qualidade e direitos de cidadão, direito de cidadania, modo de vida do cidadão, vida e
administração de homem de Estado, participação nos negócios públicos, medidas de
governo, forma de governo, regime político em geral, constituição do Estado; autogoverno
dos cidadãos”.1
Somente a partir do Estado de Direito é que o vocábulo polícia deixou, pouco a pouco, de
delinear a administração estatal em seu todo, com sua gama quase infinita de atribuições,
especialmente a molde de uma verdadeira panaceia pública, passando, assim,
gradativamente, a especificar, em linguagem corrente e leiga, contudo impregnada de um
sentido remanescente, o “setor subsidiário da atividade do Estado, visando, sobretudo, à
prevenção e punição dos ilícitos, mediante o emprego de um aparelho rígido e autoritário
de investigação e intervenção” segundo Bobbio et ali(2001:413), citado por Zaccariotto
(2005:21,22).
De acordo com Monet(2001:22) citado por Zaccarioto(2005:21), “A polícia não tem mais
de se encarregar de tudo que é necessário à felicidade dos indivíduos, mas apenas garantir
a sociedade contra riscos que é preciso situar e definir de maneira legal”.
Superado, pois, o Estado absoluto, o termo polícia, como detalha Sérgio Bova, ganhou um
novo significado: no início do século XIX, passou a identificar-se com a atividade tendente
a assegurar a defesa da comunidade dos perigos internos. Tais perigos estavam
representados nas ações e situações contrárias à ordem pública e à segurança pública. A
defesa da ordem pública se exprimia na repressão de todas aquelas manifestações que
pudessem desembocar numa mudança das relações político-econômicas entre as classes
5
Cf. ZACCARIOTTO. José. A polícia judiciária no estado democrático de direito, 2005, pág.20. Nesse
sentido Explica Pierangelo Scheira que o qualificativo polícia, assim dotado de sentido pejorativo, traduzindo
ideia contraposta e degenerativa em relação ao direito, serviu inicialmente para qualificar a Prússia de
Frederico II, cognominado “O Grande”, como um Estado de índole absolutamente paternalista e
extremamente intervencionista, e que ganhou notoriedade especialmente por se constituir numa potência
militar.
sociais, enquanto que a segurança pública compreendia a salvaguarda da integridade física
da população, nos bens e nas pessoas, contra os inimigos naturais e sociais6.
Dessa forma, o vocábulo polícia passou a ser cada vez mais utilizado para identificar as
atividades estatais voltadas a prevenir e reprimir, no seio da sociedade, as ações capazes de
abalar a paz e de violar os interesses de seus membros, consoante específica previsão legal.
Com o passar do tempo esse sentido foi sendo progressivamente popularizado, a ponto de
se conformar, hodiernamente, e em praticamente todo o mundo civilizado, como a melhor
senão a única expressão leiga para o termo, servindo a denominar a “corporação
governamental que deve manter a ordem pública, prevenir e descobrir crimes, fazendo
respeitar as leis e garantindo a integridade física ou moral das pessoas.
Insta ponderar que ainda não possuindo a denominação “polícia” ou mesmo à míngua de
qualquer epíteto específico, as atividades anteriormente versadas, destinadas a assegurar,
6
Cf. ZACCARIOTTO. José. A polícia judiciária no estado democrático de direito, 2005, pág.21
no mínimo, alguma ordem na comunidade, induvidosamente sempre permearam a história
humana, fazendo-se visível em todas as civilizações7.
O faraó Ménès (c. de 3315 a.C.) aprovou um Código contendo inúmeras normas policiais
com vista a garantir a segurança e a boa ordem na cidade. Segundo este Código, todo p
cidadão deveria, nomeadamente, dirigir-se ao magistrado para declarar o nome, a profissão
e o seu meio de subsistência.
7
Cf. ZACCARIOTTO. José. A polícia judiciária no estado democrático de direito, 2005, pág.23.
8
Segundo Maquiavel(1968:144), citado por António de Sousa(2016:61), “A escassa segurança de que gozam
os habitantes que viviam dispersos, a impossibilidade para cada um deles (seja devido à situação, seja devido
ao número reduzido) de resistir isoladamente aos ataques que surgiam do inimigo, a dificuldade de se
reunirem antecipadamente quando este se aproximava, a necessidade de abandonar então a maioria das suas
moradas (as quais passam a ser propriedades dos assaltantes): estes são os motivos que levam os primeiros
habitantes de um país a construir cidades para escapar aos ditos perigos”. Esta ideia viria no século XVII a
ser tomada por Locke (in: Dois Tratados de Governo).
Muitas das normas do referido Código previa sanções com vista a garantir uma
determinada disciplina e ordem sociais. Por exemplo, o nº XI determinava: “será decepada
a mão aos moedeiros falsos, cortado o nariz às mulheres adúlteras e o membro viril aos
violadores de menores”. Foi colocado um agente policial em cada uma das ruas mais
importantes da cidade, com a missão de recensear os habitantes, de lhes “lembrar” a lei e
de vigiar os suspeitos.
Já por volta do ano 1700 a C. o Código de Hamurabi determinava na sua introdução o fim
de “disciplinar os maus e os mal-intencionados e impedir que o forte oprima o fraco”. O
Código determinava a imparcialidade do juiz e impunha severas penas a ladrões9,
receptadores, assassinos ou a desertores da guerra.
Também no império Assírio vigoraram penas cruéis para quem violasse a lei. A pena mais
frequente era a flagelação, mas também eram frequentes outras penas como o corte de
orelhas, lábios, narizes ou mãos. Os malfeitores eram frequentemente esfolados vivos.
Diversas passagens do Antigo Testamento testemunham que os Hebreus, logo após a saída
do Egípto, organizaram a sua polícia, revelando uma forte influência tanto egípcia, como
do Código de Hamurabi. Importantes leis de organização interna, especialmente da família,
vigoraram também na civilização hitita10.
9
Por exemplo, uma norma determinava: “Se alguém penetrar, por arrombamento, numa casa, terá de morrer
e o seu corpo deverá ser enterrado no próprio lugar do arrombamento”. Outra norma determinava: “Se há
fogo numa casa e um dos que vêm apagar incêndio olhar com cobiça para os bens do proprietário da casa e se
apoderar de alguma coisa, será lançado ao fogo”. Segundo Grimberg (1989:174), citado por António de
Sousa(2016:63)
10
Por exemplo: “quem fizesse abortar uma mulher no último mês de gravidez pagava uma pesada multa; se o
aborto fosse até ao quinto mês de gravidez, a multa era mais leve” Segundo Grimberg (1989:248), citado por
Na china, sob a dinastia Chin existia uma força de segurança em todas as grandes cidades.
As cidades estavam divididas em bairros e cada bairro, compreendendo entre cinco a dez
famílias, estavam incumbido de assegurar a manutenção da ordem no seu seio11.
Chang’na estava dividida em 108 bairros, geralmente com ruas direitas. Na China dos
Tang, já havia regras de circulação na via pública12.
Na Grécia, a divisa de Esparta era ordem e a disciplina, enquanto a divisa de Atenas era a
liberdade. Já então o Estado tinha duas missões fundamentais: proteger os cidadãos e
cuidar do seu bem-estar material.
Por sua vez, Aristóteles, para quem os agentes policias eram “guardas”, considerava que a
polícia tinha por missão assegurar a ordem e o governo da cidade, sendo ela “o maior e o
primeiro de todos os bens”13.
Em Roma, o rei Numa (714 a. C. – 671 a. C.) que ficou na História como o símbolo da
organização da cidade, confiou aos questores14, assistidos por edis15 e censores16, a
salvaguarda da ordem, a segurança da circulação, o serviço de incêndio e a inspecção da
limpeza nas ruas e lixeiras.
António de Sousa(2016:63)
11
Muitos séculos mais tarde, este modelo existiu em Inglaterra, com os Tithings. Cf. António de Sousa,
Manual de Direito Policial-Direito da Ordem e Segurança Públicas, 2016, pág. 63
12
Por exemplo, a transposição das portas da cidade era obrigatoriamente feita pela esquerda. O rufar dos
tambores ao meio-dia assinalava a abertura do mercado, o qual se prolongava até ao pôr do sol. Novo rufar
dos tambores determinava o recolher obrigatório, passando a ser proibida a circulação de cavalos, pessoas e
veículos. Todo aquele que circulasse a partir de então era perseguido e preso.
13
De acordo com Aristóteles(1977:100), citado por António de Sousa(2016:64).
14
Do latim quaestor, que significa, procurador. Era o primeiro passo na hierarquia política da Roma antiga. O
cargo, que implicava funções administrativas, era geralmente ocupado por membros da classe senatorial com
menos de 32 anos. O mandato como questor dava acesso direito ao colégio do senado romano.
15
Magistrado que tinha a seu cargo vários serviços urbanos na Roma antiga.
16
Oficial da Roma antiga responsável por realizar e manter os censos, garantir a moralidade pública e
supervisionar certos aspectos das finanças governamentais
Esta instituição policial passou depois às cidades do latim e mais tarde às cidades das
províncias romanas.
Por volta de 450 a. C., os quaestores parricidii17, eram uma espécie de polícia criminal
incumbida de investigar os homicídios e outros crimes mais graves, enquanto os curilis
aediles estavam incumbidos de exercer a vigilância policial nos centros urbanos e o
controlo dos mercados. O imperador Augusto (27 a. C.), após determinar o desarmamento
de todos os cidadãos, reduziu as funções e o número destes funcionários e depois substitui-
os pelo “praeftus Urbis” (prefeito da cidade), o qual dispunha de todos os poderes de
polícia em Roma e num raio de trinta e cinco léguas. Simultaneamente o imperador criou
catorze coadjutores de polícia (curatores urbis), repartidos pelos catorze bairros da cidade.
Estes coadjutores de polícia, usando traje de magistrado, eram assistidos pelos seus
colaboradores (chamados stationarii) e competia-lhes proceder À vigilância atenta da sua
circunscrição, vigilância que consistia sobretudo na inspeção das tabernas e mercados, na
instrução dos crimes e na organização do serviço de socorro em caso de perigo. A ordem
na rua era mais especialmente assegurada, durante o dia, por 424 stationarii, verdadeiras
legiões permanentes, como agentes encarregados da ordem, num quarteirão da cidade.
Durante a noite, o número de vigilantes aumentava para mil, agrupados em sete batalhões,
que patrulhavam em horas diversas as ruas da cidade, assegurando o serviço contra os
incêndios e reprimindo os marginais. Na província, milícias com o nome de
“latrunculatores” foram incumbidas da missão de garantir a ordem e a tranquilidade
pública. Esta organização, que dava prevalência à heterotutela sobre a autotutela, foi
progressivamente alargada às províncias do império, até que foi aniquilada com a queda do
império.
17
Os Questores do parricídio.
Para garantir a ordem e a paz pública, o imperador impôs uma vigilância polícia intensa e
intransigente. E a acção desta polícia era realmente indispensável, pois diversos
documentos históricos descrevem que a Constantinopla desta época era uma cidade repleta
de mendigos, prostitutas e proxenetas, desempregados e todo o tipo de misérias.
Séculos de Transição
No grandioso Cairo do século XIV. Nesse capital do sultanato islâmico mantinha-se, sob
as ordens do seu governador militar, o Wali, uma vigorosa e notoriamente corrupta força
policial, incumbida de combater o crime, controlar o toque de recolher, verificar a hora de
abrir e fechar as lojas e o acatamento dispensado aos regulamentos de saúde, além de
patrulhar as ruas, especialmente as áreas de má reputação, tavernas e antros de haxixe. A
espionagem, levada a efeito por agentes dissimulados, principalmente nos mercados e
visando os estrangeiros, também compreendia função comezinha dessa polícia, que, de
quebra, ainda se prestava à execução das sentenças emitidas pelos juízes religiosos, que
variavam desde as penas de prisão até as capitais, como a decapitação, o garrote e a
crucificação18.
Pelos anos e séculos seguintes, esse modelo inicial sofreu inúmeras reformas, todas
intentadas não apenas com o fito de lapidar esse novel organismo, mas também com o
18
A evolução das cidades, p. 73.
19
Cf. ZACCARIOTTO. José. A polícia judiciária no estado democrático de direito, 2005, pág.28.
inequívoco intuito de conter a contumaz criminalidade que nunca deixou de assolar a
capital francesa20.
Nessa senda progressista, foram adoptados todos os tipos de medidas imaginadas válidas e
viáveis a garantir a otimização da força parisiense, a contar, dentre as mais comuns, com as
reiteradas alterações estruturais, passando por soluções meramente quantitativas, com
realce para a criação de novos corpos policiais como: a Maréchausée em 1549, corpo de
polícia militarizado – inicialmente formado para guarnecer as retaguardas do exército –
que passou a ter a incumbência de patrulhar os campos, e, correndo de cidade em cidade,
manter a ordem e combater os criminosos. E em 1791, essa força foi rebatizada, passando a
chamar-se Gendarmarie, denominação que persiste até os dias atuais21.
Dentre todas essas reformas uma mostrou-se inegavelmente a mais relevante, a ponto de
cunhar o que seria posteriormente conhecido como o modelo francês de polícia.
Em 1667, Luís XIV, o Rei Sol, criou no prebostado o cargo de “tenente da polícia de
Paris”, destacando-o do de tenente civil, até então a maior autoridade da cidade, e dotando-
o com amplos poderes e competências que transcendiam o plano da segurança pública para
abarcar as demais áreas vitais da administração da cidade, percorrendo desde o combate
aos incêndios e inundações até a fiscalização sanitária.
Cerca de três mil homens totalizaram os contingentes a sua disposição, ao passo que a
população dessa capital já passava de meio milhão de habitantes. Entrementes, a mais
marcante peculiaridade dessa renovada força pública inegavelmente veio a se constituir a
sua polícia secreta – composta por espiões recrutados em todos os meios, de estudantes a
criminosos – responsável por manter o rei informado sobre tudo e todos, desde
movimentações políticas até particularidades pessoais e morais de seus súditos.
20
De acordo com Lê Clère (1965: 23, 32, e 38), citado por Zaccariotto (2005:28) “Que já em 1258 não havia
noites sem incêndios, violações, pilhagens, assassínios, até dentro dos muros do Louvre. Que em 1549 os
protestos contra a impotência do governo francês contra a criminalidade eram generalizados, eis que o
período ficou conhecido, emblematicamente, como a sinistra época da pura da angústia, quando roubadores
enfiavam a fruta pela garganta das infelizes vítimas para as impedir de gritar. E também que, em 1660,
Boileau irritava as autoridades versejando: Mal que da noite as sombras sossegadas / Obrigam a trancar
janelas e portadas / Nesse instante os ladrões tomam conta da urbe / O mais funesto bosque, o mais deserto e
escuro / À vista de Paris é refúgio seguro”.
21
Cf. ZACCARIOTTO. José. A polícia judiciária no estado democrático de direito, 2005, pág.29. Nesta
senda, Marcel(1965:23-60) acrescenta “ou para a singela majoração dos efetivos já existentes, até chegar
àquelas de saudável aspecto qualitativo, como a exigência, fixada por intermédio de leis de 1546 e 1583
respectivamente, de prévia seleção à contratação dos candidatos a postos policiais, mediante exames de
conhecimentos e da comprovação de bons antecedentes cívicos e morais, reclamando-se aos pretendentes a
dignidade de comissário prévio licenciamento pela faculdade de jurisprudência e a submissão de exame de
direito e a processo perante o Parlamento”.
Completava esse modelo a castrense Maréchausée, então destinada ao patrulhamento dos
campos e cidades interioranas22.
Prossegue Monet, aduzindo que esse modelo francês logo se irradiou para boa parte da
Europa, influenciando a formação de polícias públicas de caráter permanente em vários
Estados – notadamente naqueles de governo abertamente despóticos –, como na Rússia, em
1718, na Prússia, em 1742, e na Áustria, em 1751.
Polícia Moderna
Uma polícia fiel a tais contornos somente pode ser vista, pela primeira vez, em 1829, na
extensão da benfazeja experiência dos irmãos Fielding. Coube a Sir Robert Peel fundar a
Polícia Metropolitana de Londres, ou simplesmente a Met25, constituída por um regimento
policial civil, mantido com recursos públicos, grande o bastante para conter e dispensar
multidões urbanas26.
Forjava-se, desse modo, um novo molde policial, o inglês, que não demorou a se tornar o
preferido em boa parte do mundo, refreando, especialmente na Europa, num curto espaço
de tempo, uma forte tendência de militarização dos corpos policiais existentes.
Essa inovadora polícia de Peel – tido por alguns como o pai da polícia moderna –
apresentou-se realmente surpreendente sob diversos aspectos, evidentemente porquanto
lastreada em uma filosofia absolutamente incomum para o seu tempo, qual hoje se pode
inferir das alvissareiras diretrizes estabelecidas pelo seu criador:
O constable27 deve ser civil e cortês com as pessoas de qualquer classe ou condição;
Ele deve ser particularmente atento para não interferir desastradamente ou sem
necessidade, de modo a não arruinar sua autoridade;
Ele deve lembrar que não existe nenhuma qualidade tão indispensável ao policial como
uma aptidão perfeita para conservar seu sangue-frio.
Nessa esteira, ganhou corpo o processo de especialização das principais forças policiais,
que a partir de meados do século XIX iniciaram um gradativo abandono, em favor de
outros órgãos da administração estatal, de todas as funções estranhas à tarefa de contenção
da criminalidade. Mais do que isso, e para além da prevenção criminal, distinguiram-se as
novas polícias, que naquela época abundavam na Europa, pelo desenvolvimento de pujante
atividade investigativa, inclusive de índole científica. Fundou Londres, em 1863, no seio
de sua MET, o Criminal Investigation Departament, sendo rapidamente acompanhada por
nações vizinhas.
25
Recebeu a Met, outrossim, a glamorosa denominação Scotland Yard, título relacionado ao edifício que
primeiro lhe serviu como sede, um palácio que anteriormente abrigava os reis escoceses quando em visita a
Londres.
26
Cf. ZACCARIOTTO. José. A polícia judiciária no estado democrático de direito, 2005, pág.31.
27
Polícia
Enquanto isso, na nova França, nascido da vitoriosa revolução de 1789, o recém-fundado
Estado de Direito exigia uma nova polícia. A Lei de 3 do Brumário do ano IV (25 de
outubro de 1795) traçou a fisionomia dessa nova polícia, de plano bipartida: A polícia é
administrativa ou judiciária.
A polícia administrativa tem por objeto a manutenção habitual da ordem pública em cada
lugar e em cada parte da administração geral. Ela tende principalmente a prevenir os
delitos. Já a polícia judiciária investiga os delitos que a polícia administrativa não pode
evitar que fossem cometidos, colige as provas e entrega os autores aos tribunais
incumbidos pela lei de puni-los
Segundo Lê Clère a polícia francesa que daí se seguiu, enveredou por uma trajetória
absolutamente errática, não conseguindo tomar forma ou rumo que lhe pudesse enquistar
um sentido proveitoso de modernidade e muito menos de exemplaridade.
Não resta dúvida alguma, todavia, que os encimados sistemas policiais – certamente por
suas divisadas virtudes e mesmo por aquilo que hoje se nos afigura cristalinamente como o
seu revés – serviram a inspirar ou mesmo a moldar praticamente todas as forças e
departamentos policiais criados no mundo civilizado a partir do século XIX. Na verdade,
em que pesem as marchas e contramarchas consignadas, o aduzido processo de assimilação
deveu-se natural e primordialmente à colonização levada a efeito por França e Inglaterra –
em alguns casos até meados do século passado – sobre um enorme número de povos em
extensa área do planeta. De resto, como inerente às potências mundiais, esses dois países
funcionaram, por um longo tempo, como grandes polos culturais internacionais, atraindo
aos seus obséquios, e consectariamente impregnando com seus standards de dominação,
mormente políticos e jurídicos, praticamente todos os demais Estados nominalmente livres,
porém sempre periféricos e dependentes28.
28
Assim, por exemplo, a Índia, mesmo após o período colonial, optou por manter o sistema inglês,
evidentemente adotado no passado e solidamente estruturado quando da independência do país, enquanto que
ao Japão pode organizar sua primeira força policial, em 1878, em linhas ocidentais, tomando livremente por
modelo a França e a Prússia. David Bayley(2001:45,56).
Entretanto, já desde 1829, contavam os EUA com agentes policiais federais, cabendo a
primazia aos inspetores instituídos para dar eficácia aos preceitos da então recém-editada
Lei Postal. Nessa mesma senda, a legislação voltada ao combate ao crime de falsificação
de moeda, datada de 1842, deu origem à Divisão de Serviço Secreto.
Graças a essa sistemática, e como produto lógico de uma progressão aritmética, milhares
são as organizações policiais atualmente existentes e operantes naquele que é o mais rico e
poderoso Estado do planeta. Na Europa, atualmente, encontramos uma profusão de
polícias, existindo geralmente mais de uma em cada país, vinculadas, ademais, a
diversificados órgãos de tutela (Ministérios da Justiça, da Defesa, do Interior, das Finanças,
governos autônomos e locais e outros.).
Essas forças, preponderantemente civis, ainda hoje ostentam sinais claros de seus modelos
de origem, sempre francês ou inglês, e uma razoável adequação aos regimes políticos
nacionais. Observa Johnston que diante dessa diversidade, surge uma insuperável
dificuldade de se estabelecer, no presente, um padrão verdadeiramente europeu de
policiamento público, máxime quando essa atividade volta a perder terreno, em face de
uma copiosa oferta de proteção privada, esta sim, em pujante processo de
internacionalização. Alude o autor a uma “salada (Euro-mélange) de agências de
policiamento público e privado”, as quais brevemente se somará a Agência Policial
Europeia, a EUROPOL, conforme previsão ínsita no art. K.19 do Tratado de Maastricht29
Com a Revolução Francesa foi instaurada uma “nova ordem”, passando-se a reconhecer à
polícia a missão de salvaguarda da (nova) ordem pública, a par da liberdade, da
propriedade e da segurança individual do cidadão. Esta ideia passou rapidamente para os
diplomas fundamentais da generalidade dos Estados europeus.
29
Cf. ZACCARIOTTO. José. A polícia judiciária no estado democrático de direito, 2005, pág.35 a 38.