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“ADIVINHA O QUE EU FIZ AQUI!

” - REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA DO DESENHO


NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Eliane G. SARAVALI, FFC/UNESP


Sabrina S.C. ALVES, FFC/UNESP
Amanda M.P. MANO, FFC/UNESP
Taislene GUIMARÃES, FFC/UNESP
Eixo 04 – Formação de professores da educação infantil
eliane.saravali@marilia.unesp.br

1. Introdução

O desenho, acompanhado do simbolismo, da brincadeira de faz de conta e das


atividades imitativas é uma forma sublime de expressão, típica da criança pequena. É,
muitas vezes, pelo desenho e com o desenho, que a criança consegue expressar suas
preferências, suas necessidades e fantasias.
Aliado a isso, tem-se no desenho um excelente instrumento para favorecimento
do desenvolvimento cognitivo quando, sobretudo, sua utilização não se baseia em
técnicas repetitivas, padrões estereotipados ou atividades com ausência de intervenções
do educador.
Diante disto, julgamos oportuno refletir: O desenho tem ocupado um espaço de
protagonista nas práticas desenvolvidas? Com qual olhar temos nos dirigido aos
desenhos das crianças?
O presente trabalho objetiva apresentar considerações sobre as formas de
intervenção junto a esse tipo de atividade, de maneira a valorizar e respeitar as linhas
infantis, bem como gerar processos de equilibração úteis ao desenvolvimento da criança.

2. Na educação infantil, desenha-se!

Ao longo da nossa experiência como docentes na educação infantil, formadores


de professores e desenvolvendo diferentes projetos em instituições de ensino, temos
observado que o desenho nem sempre é valorizado como uma atividade representativa
do desenvolvimento da criança. Além disso, percebemos que atividades envolvendo o
traçado de letras/números, as cópias e os exercícios, muitas vezes repetitivos e
exaustivos, de coordenação motora são mais apreciados, tanto pelos próprios
educadores como pelos familiares das crianças.

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A desvalorização do desenho da criança por parte do educador, a nosso ver, se
expressa por meio de diferentes ações. Uma delas refere-se à falta de planejamento de
atividades envolvendo o desenho, muitas vezes realizado ao final do período, ou na
transição entre uma atividade e outra da rotina. Dessa forma, o desenho se torna uma
atividade de menor importância em relação às demais e seu caráter livre se identifica
muito mais com a falta de participação do professor do que com os processos criativos da
criança.
Outra maneira de desvalorização e desrespeito às linhas infantis é o uso dos
chamados modelos prontos, que vão desde aqueles que antigamente eram rodados em
mimeógrafos e na atualidade são mais encontrados em xerox e/ou materiais apostilados,
até ações docentes específicas, como desenhar na lousa, determinar cores e/ou
elementos.
O que se faz com o desenho também diz muito sobre o valor que lhe é atribuído –
guarda-se, retoca-se, sugerem-se retoques, são expostos ou não, decoram a sala de
aula ou não, escolhem-se os mais bonitos para expor, etc. Há ainda que se considerar o
que o educador faz enquanto/após os alunos desenham – se observa, acompanha,
intervém, deixa livre, não elogia, ou elogia sempre da mesma forma, se elogia apenas os
desenhos de algumas crianças (sempre os mesmos), se usa de elogios valorativos em
detrimento aos descritivos, faz outra atividade enquanto as crianças desenham, etc.
Outra reflexão importante sobre as formas de valorização do desenho se refere ao
objetivo que se espera para essa atividade – se é permitido/almejado que a criança se
expresse da maneira que ela deseja/consegue ou há uma expectativa/direcionamento
para algo, ou ainda, é preciso aparecer no desenho da criança algum elemento em
específico (sol, lua, grama), há um modelo a ser seguido (cor, forma etc.)? Enfim, seriam
essas apenas algumas das maneiras de considerar o valor que o desenho tem no tempo
e no espaço do trabalho diário na educação infantil.
Se considerarmos o desenho não apenas como o traçado no papel, realizado com
caneta, lápis ou giz, mas também as atividades de expressão/representação realizadas
com as tintas, os pincéis, a massa de modelar, a cola, a tesoura etc, podemos aumentar
o leque de ações ou, simplesmente, identificar a escassez de variedade dos trabalhos
realizados na educação infantil.
Pensando na organização escolar brasileira, a educação infantil é considerada
parte da Educação Básica (LDB/ lei nº 9.394/96), compreendendo crianças de 0 a 5 anos,
que são cheias de curiosidade e imaginação. Ora, a educação infantil é espaço de
desenho! Essa é a linguagem específica dessa faixa etária, é essa atividade que precisa
ser o eixo das ações docentes, assim como o brincar. No entanto, o que temos
observado é um movimento contrário – a ênfase em ações antecipadoras, sobretudo

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aquelas ligadas à alfabetização precoce, bem como a sobrecarga de atividades que nem
sempre são condizentes com situações mais livres e lúdicas e que preenchem o rol de
atividades desenvolvidas na educação infantil, deixando-se muito pouco tempo e espaço,
na rotina diária, para o desenhar.
Sabemos que dentre os profissionais que defendem a educação infantil, (Santos
et al, 2015), esse tipo de prática não é coerente com o desenvolvimento da criança,
ademais, observamos, nos documentos oficiais, como princípio norteador a defesa pelo
respeito ao universo dos pequenos, enfatizando-se a sensibilidade, a criatividade, a
ludicidade e a liberdade de expressão nas diferentes manifestações artísticas e culturais
(BRASIL, 2010, p.16).
O currículo da educação infantil, segundo as diretrizes que lhe são pertinentes,
deve garantir, ainda, às crianças, experiências que possibilitem interagir, brincar,
conhecer, expressar, instigar, questionar, respeitar, escolher, encantar (BRASIL, 2010). As
crianças devem viver na escola, portanto, situações que - como o desenho - permitam
que elas possam se desenvolver, sem deixar de ser criança, utilizando da linguagem que
lhe cabe e com o olhar para o mundo que lhe é próprio.
Ademais, o desenho da criança é uma forma de registro não só para ela, mas
também para o professor, e, apesar de não ser esse o objetivo de se desenhar na
educação infantil, o desenho possibilita ao professor avaliar o trabalho pedagógico e o
desenvolvimento do seu aluno.
Por que então aquilo que parece ser tão claro nos ambientes acadêmicos foge à
realidade de várias práticas, tanto no âmbito público como particular? Qual o olhar que
nós adultos temos sobre a produção da criança? O que nós professores de educação
infantil temos como meta para o nosso aluno? Talvez, a resposta a esses
questionamentos possam nos ajudar a pensar melhor sobre o assunto.

3. O desenho da criança

Jean Piaget (1896-1980), ao explicar o desenvolvimento da função simbólica ou


semiótica, nos mostra o quanto o homem, diferentemente dos outros animais, progride
em sua capacidade de representação.

O desenho é, portanto, uma forma de função semiótica que se inscreve a


meio-caminho entre o jogo simbólico, cujo mesmo prazer funcional e cuja
mesma autotelia apresenta, e a imagem mental, com a qual partilha o
esforço de imitação do real (PIAGET; INHELDER, 2011, p.61).

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Ao estudar o desenho, Piaget recorre a Luquet (1969) para explicar a evolução do
grafismo infantil, mostrando que o desenho da criança é realista na intenção e que,
portanto, os pequenos desenham o que sabem, muito antes daquilo que efetivamente
veem. A coerência entre o trabalho de Luquet e a epistemologia genética piagetiana se
dá pela própria visão de Luquet atribuindo ao grafismo infantil um processo de criação
baseado sobremaneira nos instrumentos e nas possibilidades que a própria criança
possui.
Todavia, o interesse maior de Piaget é analisar o desenho sob a ótica da
construção da noção espacial.

O desenho é uma representação, isto é, supõe a construção de uma


imagem bem distinta da percepção, e nada prova que as relações
espaciais de que esta imagem é feita sejam do mesmo nível das
relações que a percepção correspondente testemunha. Vendo um nariz
acima de uma boca, o sujeito pode muito bem, quando procura evocar
tais elementos, e não mais percebê-los, inverter a ordem por ausência
não só de habilidade gráfica ou de atenção, mas ainda e sobretudo dos
instrumentos de representação espacial necessários para reconstituir
essa ordem segundo a dimensão vertical (PIAGET; INHELDER, 1993,
p.63).

Uma criança bem pequena pode produzir marcas no papel, nas paredes, no
próprio corpo sem, ainda, uma intenção prévia de representar algo. Pode, posteriormente
a isso, realizar marcas reconhecendo, naquilo que faz, as formas ou elementos que
gostaria de representar. Esse momento é denominado por Luquet (1969) de realismo
fortuito, conforme ilustra a figura a seguir.

Figura 1: Desenho de DAN (3 anos) – Realismo Fortuito

Vê-se nas produções as repetições de círculos ou linhas, dispostas de forma


aleatória, muitas vezes retratando um contínuo e repetido movimento. Esses traçados
são também denominados de garatujas.
Muitas vezes, tais desenhos são tratados como de pouca importância, vistos
como “meros rabiscos/riscos”, que caracterizam pouco esforço e habilidade da criança.

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Porém, eles têm um significado para seus autores e são necessários para a evolução do
traçado e para as futuras formas de representação.
Ao obter o controle destas linhas, a criança inicia a construção de um tipo de
representação da figura humana, representada por um círculo e traços filiformes
correspondendo aos braços ou pernas, semelhante a um girino (LUQUET, 1969).
Nesse momento, denominado por Luquet como realismo gorado (figura 2), a
criança desenha formas diferentes de maneiras diferentes, porém ainda sem
necessidade de fechamentos nessas formas. A existência de uma construção espacial,
ainda em desenvolvimento, é evidente tendo em vista que não há separação entre
níveis/alturas (por exemplo, céu e terra) e tem-se a impressão, aos olhos do adulto, que
os elementos estão soltos e/ou voando.

Figura 2: Desenho de AND (4 anos) – Realismo Gorado

A ampliação da variedade de formas, a necessidade maior de fechamentos,


contornos e o uso de cores caracterizam o realismo intelectual (figura 3). A construção
espacial se amplia consideravelmente e a criança tem a necessidade de apresentar e
definir os níveis no seu desenho, por exemplo, elementos como o sol e as nuvens ficam
na parte superior da folha.
O desenvolvimento do espaço também se caracteriza pela ausência de relações
métricas como a proporção entre os tamanhos das figuras, bem como o aparecimento do
rebatimento ou a representação de uma perspectiva impossível na realidade, mas
totalmente original e lúcida para os pequenos desenhistas. Há um elemento bem
característico desse momento – a transparência – em que a criança desenha tudo aquilo
que sabe que existe, ainda que não possa ser visto sob aquele ponto de vista, por
exemplo, uma mulher grávida é desenhada com o bebê aparecendo.
Luquet (1969) enfatiza nesse momento do desenho a riqueza de detalhes de que
se constitui a obra da criança. Segundo ele, a representação deve, na perspectiva da
criança, “conter todos os elementos reais do objecto, mesmo invisíveis, quer do ponto de

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vista donde é focado quer de qualquer outro ponto de vista e, por outro lado, deve dar a
cada um desses pormenores a sua forma característica...” (LUQUET, 1969, p. 159).

Figura 3: Desenho de HEL (5 anos) – Realismo Intelectual

A continuidade do percurso das linhas infantis tem ainda um momento especial


denominado de realismo visual (figura 4). Observam-se duas mudanças qualitativas do
desenho: a perspectiva é uma conquista e se impõe como uma necessidade para o autor,
dessa forma o desenho procura retratar aquilo que pode ser visto de um determinado
ponto de vista. É assim que um rosto de perfil apresentará apenas um olho, e não dois
como anteriormente. As proporções entre os elementos também compõem esse novo
quadro da construção espacial, por exemplo, uma borboleta é bastante menor em
comparação à cabeça de um homem.

Figura 4: Desenho de GUI (5 anos) – Realismo Visual

O percurso observado por Luquet (1969) permite-nos fazer algumas reflexões. Os


novos elementos que a criança agrega aos seus trabalhos são construídos de forma
gradual. São processos de adaptação que geram a necessidade de se desenhar ou não
de uma maneira ou de outra, e durante eles as crianças podem mudar, criando novos ou
retornando aos elementos antigos.

A evolução individual do desenho, como todas as modificações de


actividade, está sujeita a regressões [...] Quando alguns pormenores

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representados anteriormente desaparecem num novo desenho de um
mesmo motivo, sobretudo, porque a atenção da criança está
concentrada noutros pormenores que ela representa pela primeira vez,
os pormenores omitidos são os que mais recentemente apareceram.
(LUQUET, 1969, p.212-213)

Dessa forma, ao olharmos para um desenho não devemos buscar a


caracterização de um ou outro momento, rotulando o trabalho da criança como
pertencendo a essa ou àquela fase. Isso muitas vezes pode não ser possível, pois no
mesmo produto teremos elementos dos diferentes realismos. Ademais, não deveria ser
esse o nosso objetivo, assim como não o é querer antecipar o equilíbrio de um processo,
ou seja, passar de uma fase à outra.
Durante o ano letivo, o educador terá o privilégio de acompanhar as produções do
seu aluno e poderá se valer desse percurso para conhecê-lo, observar quais construções
foi capaz de realizar, quais ainda estão em andamento. Da mesma forma, é preciso
compreender cada obra que a criança faz dentro do seu contexto de desenvolvimento e
dentro do que cada momento do realismo permite. Em realidade, eles precisam ser
vivenciados, explorados, experimentados. Assim é que a impaciência do educador não
pode se transformar numa meta traduzida por um tipo ou outro de desenho.
A nosso ver o respeito pelo desenho da criança está diretamente relacionado ao
conhecimento e valorização dos diferentes momentos e tipos de produção. Esse respeito
também se traduz em formas de intervenção que gerem desequilíbrios úteis ao
desenvolvimento da criança e importantes para a construção da sua representação por
meio do desenho. Disso trataremos no próximo tópico.

4. As intervenções

A respeito do desenho no contexto pedagógico, Luquet afirma:

[...] julgo que, no que diz respeito ao desenho, o que terá melhor a fazer
o educador é apagar-se, deixar a criança desenhar o que quer,
propondo-lhe temas sempre que ela necessita, sobretudo quando lhe
pede, mas sem lhos impor, e sobretudo deixá-la desenhar como quer, a
seu modo (LUQUET, 1969, p.230, grifos nossos).

Talvez, a grande dificuldade para nós educadores seja encontrar o equilíbrio entre
os termos grifados na citação anterior e saber qual tipo de ação é bem-vinda.
Em primeiro lugar é necessário compreender que o desenvolvimento da função
simbólica, e do desenho, não se separa do desenvolvimento motor, cognitivo, afetivo. A
criança precisa, portanto, ter inúmeras e constantes experiências dessa ordem, tais como
subir, descer, pular, escorregar, lambuzar e lambuzar-se, amassar, rasgar, fantasiar, etc.

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Acompanhar a evolução do desenho é uma excelente maneira de se registrar o
desenvolvimento cognitivo da criança. Não há como desvincular essas questões
referentes a aspectos do desenvolvimento que se influenciam mutuamente e não há
motivos para se criar atividades descontextualizadas e sem sentido para se trabalhar
uma coisa ou outra, sobrecarregando o tempo da criança. Isso vale, por exemplo, para os
insossos e cansativos exercícios de coordenação motora, de traçado de letras e/ou
números. Uma proposta de desenho que gere um esforço de adaptação, com técnicas e
temas variados já é por si só um excelente exercício de coordenação motora; muito mais
motivante para criança e que permite a “indivisibilidade das dimensões expressivomotora,
afetiva, cognitiva, linguística, ética, estética e sociocultural da criança” (BRASIL, 2010,
p.19). As brincadeiras e a exploração espacial, bem como o conhecimento dos limites e
alcances do próprio corpo também auxiliam a criança a organizar melhor os espaços no
papel.
É preciso também investir na capacidade de observação da criança. Luquet já nos
chamava a atenção ao explicar que o realismo do desenho põe em evidência essa
capacidade, “[...] pois, para fazer ou, pelo menos, querer fazer os pormenores [...] é bem
preciso que ela os tenha notado.” (LUQUET, 1969, p. 214).
Portanto, as experiências visuais precisam ser diversas, o mundo precisa ser
apresentado e isso inclui muitas ações fora da sala de aula, enquanto espaço físico.
Observar árvores, colher flores, procurar insetos, regar vasos, alimentar animais, andar
pelo bairro, além é claro dos livros, das histórias, dos filmes são inúmeros elementos a
serem observados sob a orientação do professor. Essa observação precisa transcender o
simples reconhecimento das coisas e o olhar sobre elas, mas também envolver a
sensibilidade, a consideração da beleza e das diferenças.
Paralelamente a isso, o professor deve oferecer à criança uma possibilidade
enorme de experiências no/com o mundo, ajudando-a a tomar consciência do que se vê,
no que se pega, em como se age. De outro modo, como poderíamos, por exemplo,
alargar os padrões de referência do aluno ou mesmo incentivar o encantamento, como
sugerem as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil (BRASIL, 2010, p.26).
Quando os educadores não compreendem todo o processo como uma
construção paulatina, fruto de equilíbrios e auto-regulações é comum fazerem uso de
intervenções equivocadas que interferem significativamente na produção da criança.
Assim é que, por exemplo, no realismo fortuito, costumam escrever no desenho do aluno,
na tentativa de “traduzi-lo” para o expectador/adulto; conduta inócua, pois, como o próprio
Luquet já ressaltava, a intenção nessa fase nem sempre permanece após o término do
desenho.
Percebemos, também, que os professores sentem necessidade de organizar o

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trabalho da criança e não compreendem que é, justamente, nessa organização infantil
que está o sentido de todo o trabalho e o reflexo de um momento do desenvolvimento
das relações espaciais. Tal necessidade docente se manifesta muito nas produções
características do realismo gorado. Assim, os educadores costumam pedir que a criança
desenhe ou marque o chão, o céu, o sol, as nuvens etc. O resultado é um desenho
central que ainda reflete algo do que a criança é capaz, mas já inteiramente enquadrado,
emoldurado pelo adulto. Possui céu azul, chão verde (grama), sol amarelo e nuvens
(azuis!).
A criança necessita se expressar livremente, mas isso não significa entender que
ao professor não cabe intervenção, mas sim que a sua ação deve ser em prol de um
desequilíbrio e da criação de um esforço de adaptação no aluno. Assim, quando uma
criança traz um desenho para que o professor o veja, duas condutas podem ser bem
diferentes: 1) pedir à criança que complete o trabalho desenhando um ou mais
elementos; 2) indagar/sugerir para a criança que pense se há outros elementos que
poderiam compor a cena. A diferença entre as duas é bem sutil, mas na primeira temos
uma criança que passivamente retorna à sua carteira e completa o desenho com a
indicação do professor e que, nas próximas produções já tomará o cuidado em se
antecipar e fazer o que lhe será pedido; na segunda, a criança poderá refletir se quer
desenhar algo mais, como e o que fará.
Permitir o processo criativo é fugir ao máximo do modelo pronto, do desenho que
se entrega para ser pintado, do padrão que o professor quer, do estereótipo. Muitas
vezes esse padrão se apresenta de outras formas: “qual a cor do cachorro mesmo?”,
“vou desenhar aqui na lousa para vocês depois fazerem os seus...”, “vocês viram a
casinha que a colega fez? Essa sim está bem feita”.

Convém não esquecer que a rotina da criança não é nunca passiva, que
ela tem de lutar, para conservar os seus tipos ou as suas convenções
gráficas, contra os modelos e sugestões dos adultos, e que lhe custaria
talvez menos esforço ceder que continuar fiel aos seus hábitos.
(LUQUET, 1969, p. 215).

A nosso ver, esse esforço menor nem sempre será realizado deliberadamente
pela criança; os próprios traçados serão abandonados em função de se almejar seguir o
modelo do adulto.
Ouvir do professor, adulto que a criança tanto admira e respeita, uma direção em
relação ao seu desenho faz com que isto se torne regra para a criança e deva ser
seguido, então, ao pé da letra, para não desagradar esse adulto, que para a criança é
alguém muito superior a ela. Esta criança pequena vivencia neste momento de sua vida
predominantemente uma forma de relacionar-se com o adulto, tratada por Piaget (1994)

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por heteronomia, que implica uma forma de coação inevitável do maior sobre o menor.
Dessa maneira, a criança obedece a uma regra ou uma colocação do adulto não por
compreender ou concordar, mas por sentir obrigação em relação à autoridade que este
adulto representa. Para ela, portanto, importa imitar o adulto ou seguir fielmente aquilo
que ela percebe que o agrada, pois o desejo maior é de obedecer e agradar ao professor,
simplesmente por que ele é o professor.
Certamente, ao notar que o professor deseja que um cachorro esteja sobre uma
grama a criança incluirá em seu desenho este elemento, afinal, ela precisa obedecer
aquele que para ela é a autoridade. No entanto, não sabe-se, de fato, em que contexto
esta criança imaginaria que o animal poderia estar inserido se ela fosse questionada
sobre tal.
Como educadores, almejamos, com certeza, que nossas crianças sejam sujeitos
pensantes, que saibam questionar, refletir, criar e recriar, ou seja, que sejam autônomos
moralmente e intelectualmente. Mas, para isto precisamos adequar a nossa prática a
estes fins. Não formamos para a autonomia se o que vivenciamos é o exercício da
heteronomia. Como podemos querer que nossos meninos saibam pensar sobre um
contexto, saibam criar novas cenas, inventem novos elementos para seus desenhos se
lhes damos as respostas prontas, os elementos definidos, as cores determinadas, os
espaços demarcados, etc?
A autonomia, no entanto, é uma construção progressiva e não é conquistada
vivendo-se apenas uma experiência de cooperação, de atividade da criança, de
reciprocidade. Não basta que uma vez (ou de vez em quando) possibilitemos às crianças
pensar, fazer por elas mesmas, trocar com os amigos ou escolher, é preciso optar de fato
por viver a cooperação, colocada por Piaget (1994, p.301) como fator essencial do
progresso intelectual, e uma metodologia ativa. Afinal, também não seria possível
favorecer o desenvolvimento para a autonomia só no momento em que se desenha!
As intervenções também precisam se basear no uso de técnicas e papéis/planos
de tamanhos, cores, formas variadas, em desenhos a partir de histórias, de músicas, de
aulas-passeio, de projetos e vivências da turma. O desenho de situações problemas e a
sequente verbalização é também uma maneira de gerar um desequilíbrio para a criança
que terá que pensar em como desenhar algo, por exemplo: “o que a galinha ruiva deveria
ter feito quando o bolo estava pronto?” Esses são alguns dos tipos de intervenção e
propostas que o educador pode recorrer, para além do desenho livre.
O protagonismo da produção infantil é também uma maneira de incentivar a
criança a desenhar, por que não são os trabalhos de nossos alunos que decoram a
escola e/ou a sala de aula? Por que valorizamos mais um cartaz de rotina com motivos
de personagem de Walt Disney e não aqueles desenhados pelos pequenos?

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Como nos comportamos quando a criança nos traz seu trabalho – adivinha o que
eu fiz para você? Adivinha o que fiz aqui? Interessamo-nos, sinceramente, pelo trabalho?
Queremos saber como foi feito, queremos ouvir a criança? Ou soltamos sempre o mesmo
elogio já indicando onde aquele desenho pode/deve ser guardado/arquivado?
É preciso, portanto, compreender o desenho na perspectiva da criança e não do
adulto. Um olhar sobre as linhas, sobre as cores e opções que a criança fez na sua obra
será bastante negativo se caminhar em busca de um padrão, de um desenho que se quer
obter, de uma cor que deve ser usada etc. Esse respeito pela produção infantil, só ocorre
quando o professor consegue enxergar o desenho com olhos de criança e não com olhos
de adulto.

5. Considerações Finais

Pretendemos nesse trabalho sensibilizar os professores no intuito de avaliarem os


lugares e momentos que as práticas envolvendo o desenho ocupam nas rotinas da
educação infantil. Sabemos que, em muitas escolas e da parte de muitos profissionais
da educação, esforços são feitos para que o desenho da criança seja valorizado e
respeitado, mas entendemos que, ainda, precisamos avançar e que tal valorização não
ocorre na maioria das instituições.
Refletir acerca das intervenções necessárias é considerar também os processos
de desenvolvimento inerentes à criança, assim é preciso saber do que ela precisa, como
poderá interpretar uma ou outra ação docente. Muitas vezes, uma intervenção
inadequada é realizada porque o professor desconhece essa realidade da criança e,
realmente acredita que está intervindo da melhor forma possível.
Cabe ao professor, também, revisitar as suas próprias práticas pedagógicas e a
sua própria formação, buscando compreender quais são os seus valores e o que deseja
de fato alcançar junto às crianças em termos do desenho.
Refletindo sobre o olhar que o adulto tem sobre a produção da criança, também
pensamos que nossos padrões são estereotipados e exigimos que os dos pequeninos
também sejam. Ainda que não deliberadas, nossas exigências para o desenho infantil
minguam qualquer forma de expressão fora daquilo que desejamos ver. Buscar um
padrão “esteticamente aceitável” também pode estar relacionado ao desejo do professor
de corresponder às expectativas colocadas pela família, que espera e vibra muitas vezes
com os desenhos padronizados, mas que não tem responsabilidade em compreender e
intervir no processo de construção do desenho.

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O desenho deve ser o protagonista do trabalho na educação infantil, assim como
o brincar. Ele pertence à criança por excelência! É preciso, portanto, muito mais do que
tolerá-lo, mas saber valorizá-lo.

Referências Bibliográficas

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei número 9394, 20 de


dezembro de 1996.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Diretrizes curriculares


nacionais para a educação infantil, Brasília: MEC, 2010. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=9769-
diretrizescurriculares-2012&category_slug=janeiro-2012-pdf&Itemid=30192. Acesso em
13 de janeiro de 2016.

LUQUET, G.-H. O desenho infantil. Porto: Ed. Minho, 1969.

PIAGET, J.; INHELDER, B. A representação do espaço na criança. Porto Alegre: Artmed,


1993.

PIAGET, J.; INHELDER, B. A psicologia da criança. Trad. Octavio Mendes Cajado. 5 ed.
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PIAGET, J. O juízo moral na criança. Trad. Elzon Lenardon. 4ª ed. São Paulo: Summus,
1994.

SANTOS, M.W. et al. Eu ainda sou criança ... Educação Infantil e Resistência: os lugares
das infâncias na educação e nas lutas políticas. VII Congresso Paulista de Educação
Infantil – COPEDI, III Simpósio Internacional de Educação Infantil Anais Resumos... São
Carlos: UFSC, 2015.

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