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A Convenção OIT nº 169 e a participação das


comunidades indígenas e quilombolas no
licenciamento ambiental
A Convenção OIT nº 169 e a participação das comunidades indígenas e
quilombolas no licenciamento ambiental

Bernardo Monteiro Ferraz

Publicado em 11/2010. Elaborado em 10/2010.

Resumo: O licenciamento ambiental, em decorrência do


princípio constitucional
da publicidade exposto no artigo 225, § 1º, inciso
IV, da Constituição, deve conter
instrumentos aptos a conferir a
participação coletiva, inclusive das populações
indígenas e quilombolas
afetas pelo empreendimento analisado. A Convenção OIT
nº. 169 busca
disciplinar a questão, merecendo, todavia, análise e interpretação
adequada
à realidade legislativa e institucional do Estado brasileiro.

Palavras-chave: Licenciamento ambiental. Participação


pública. Indígenas e
quilombolas. Convenção OIT nº. 169. Audiências
públicas.

INTRODUÇÃO

O licenciamento ambiental, instrumento essencial da política


nacional do meio
ambiente [01], ao exercer sua função de analisar a
viabilidade ambiental de
determinado empreendimento ou atividade, deve
contemplar toda a gama de
impactos por ele causada, sob a perspectiva de uma
visão holística de meio
ambiente.

Assim, não apenas as questões relativas ao meio ambiente


natural são
consideradas, mas, com destacada relevância, a análise dos
impactos sócio-
econômicos insere-se no contexto da avaliação de impactos
ambientais. Nesse
seara, imprescindível se mostra apreciar os prejuízos e
benefícios incidentes sobre
as comunidades indígenas e quilombolas atingidas.

Visando regulamentar a questão, surgiu no plano do direito


internacional a
Convenção OIT nº. 169 sobre Povos Indígenas e Tribais,
assinada em 27 de junho
de 1989, e posteriormente incorporada ao arcabouço
jurídico pátrio pelo Decreto
nº. 5.051/04, cujas prescrições merecem a
devida análise, a fim de – identificando
sua correta interpretação –
conferir-lhe plena aplicabilidade.

DA APLICAÇÃO DA CONVENÇÃO OIT Nº. 169

O ponto fulcral do presente trabalho volta-se à análise dos


dispositivos da
Convenção n° 169/OIT, especialmente em relação à
interpretação que imponha ao
órgão licenciador a obrigação de promover –
no bojo dos processos
administrativos de licenciamento ambiental de sua
competência – procedimentos
especiais de consulta às comunidades indígenas
e populações quilombolas
eventualmente presentes na área de influência do
empreendimento.

Dispõe a citada convenção, no que interessa ao tema em


apreço, em seus artigos 6°
e 7°, in verbis:
"Artigo 6o

1.  Ao aplicar as disposições da presente


Convenção, os governos
deverão:

a)  consultar os povos interessados, mediante


procedimentos
apropriados e, particularmente, através de suas instituições
representativas, cada vez que sejam previstas medidas
legislativas ou
administrativas suscetíveis de afetá-los
diretamente;

b) estabelecer os meios através dos quais os povos


interessados possam
participar livremente, pelo menos na mesma medida que
outros setores
da população e em todos os níveis, na adoção de decisões
em instituições
efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza
responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes;

c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento


das instituições e
iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer
os recursos
necessários para esse fim.

2.  As consultas realizadas na aplicação desta


Convenção deverão ser
efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às
circunstâncias, com o
objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o
consentimento acerca
das medidas propostas.

Artigo 7o

1. Os povos interessados deverão ter o direito de


escolher suas, próprias
prioridades no que diz respeito ao processo de
desenvolvimento, na
medida em que ele afete as suas vidas, crenças,
instituições e bem-estar
espiritual, bem como as terras que ocupam ou
utilizam de alguma
forma, e de controlar, na medida do possível, o seu
próprio
desenvolvimento econômico, social e cultural.  Além disso,
esses povos
deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos
planos e
programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de
afetá-
los diretamente." (g.n.)

A compreensão dos Direitos Humanos como um tema de Direito


Internacional,
constitui um movimento extremamente recente na história
jurídica, surgindo, a
partir do Pós-Guerra, como resposta aos abusos cometidos
especialmente durante
o nazismo. Este é o pano de fundo que a nova perspectiva
dos direitos humanos
busca conferir um paradigma ético para a sociedade
internacional [02].

Nesse sentido, uma das principais preocupações desse


movimento foi converter os
direitos humanos em tema de legítimo interesse da
comunidade internacional, o
que implicou nos processos de universalização e
internacionalização desses
mesmos direitos.

Cada Estado, ao aderir às regras internacionais de direitos


humanos, não apenas
introduz e reafirma em seu ordenamento jurídico interno os
preceitos ético-
jurídicos aceitos no campo internacional, mas também se torna
responsável pelos
atos cometidos em seu território perante a comunidade
internacional.

Esse importante movimento, todavia, ao buscar universalizar


direitos
fundamentais de proteção à dignidade humana, não implica o objetivo
de
uniformizar mundialmente o tratamento conferido ao tema, de forma a força a
aplicação idêntica dos dispositivos em todos os Estados signatários, haja
vista que
cada país possui suas particularidades sociais, históricas e
jurídicas que impõem a
adequação das regras à identidade local.

Assim, a aplicabilidade de qualquer convenção internacional


de direitos humanos
– como sói ocorrer com a Convenção n° 169/OIT – não
pode prescindir do
respeito às regras internamente colocadas, as quais, ao
passo de obrigadas a
respeitar os paradigmas axiológicos referendados pelo
Estado no plano
internacional, mantém sua vigência enquanto compatíveis com o
diploma
internacional.

Tal assertiva, decorrência da impossibilidade fática de


aplicação uniforme do
direito em todos os Estados, é expressamente afirmada
na Convenção n° 169/OIT,
como se observa do preceito abaixo colacionado:

Artigo 34

A natureza e o alcance das medidas que sejam adotadas para


por em
efeito a presente Convenção deverão ser determinadas com
flexibilidade, levando em conta as condições próprias de cada
país."(g.n.)

Transpondo-se o preceito acima para o licenciamento


ambiental, observa-se que a
interpretação dos preceitos que impõem a consulta
aos"povos interessados,
mediante procedimentos
apropriados" e o estabelecimento de "meios através dos
quais
os povos interessados possam participar livremente (...) na adoção de
decisões" (itens 1, "a" e "b", do art. 6° da
convenção) devem guardar
compatibilidade com as regras postas para a
condução do procedimento, no plano
interno.

Nesse contexto, os estudos de avaliação ambiental


realizados como base para a
análise da viabilidade ambiental do empreendimento
levam em consideração a
noção ampla de meio ambiente, abarcando – além
dos aspectos puramente
ecológicos/naturais – a apreciação sócio-econômica
do projeto, "destacando os
sítios e monumentos arqueológicos, históricos
e culturais da comunidade, as
relações de dependência entre a sociedade
local, os recursos ambientais e a
potencial utilização futura desses
recursos" (artigo 6°, inciso I, "c", da Resolução
CONAMA n°
01/86).

Aqui, serão analisados e ponderados os impactos ambientais


que o
empreendimento eventualmente causará aos povos indígenas, populações
quilombolas e tradicionais.

Todavia, a realização desse importante estudo não pode


se dar ao
arrepio da repartição institucional de competências entre os
diversos
entes da Administração Pública, imputando aos entes licenciadores
atribuições funcionalmente afetas a outras entidades de Direito
Público.

Essa é a razão pela qual o procedimento de licenciamento


ambiental – a despeito
de conduzido fundamentalmente pelo órgão competente
do SISNAMA – conta
com a efetiva participação dos chamados órgãos
intervenientes, cabendo a cada
um, em suas respectivas esferas de competência,
contribuir para que seja
alcançada a melhor gestão ambiental do empreendimento
licenciado, conforme
prescreve a Resolução CONAMA n° 01/86:

"Artigo 11 - Respeitado o sigilo industrial, assim


solicitando e
demonstrando pelo interessado o RIMA será acessível ao
público. Suas
cópias permanecerão à disposição dos interessados, nos
centros de
documentação ou bibliotecas da SEMA e do estadual de controle
ambiental correspondente, inclusive o período de análise técnica,

§ 1º - Os órgãos públicos que manifestarem


interesse, ou tiverem
relação direta com o projeto, receberão cópia do
RIMA, para
conhecimento e manifestação.

(...)" (g.n.)

No mesmo sentido, prescreve a Instrução Normativa Ibama n°


184/08,
responsável pela definição do procedimento de licenciamento no
âmbito do órgão
federal:
"Art. 21. Aos órgãos envolvidos no licenciamento
será solicitado
posicionamento sobre o estudo ambiental em 60 dias e no que
segue:

• OEMAs envolvidas - avaliar o projeto, seus impactos e


medidas de
controle e mitigadoras, em consonância com plano, programas e leis
estaduais;

• Unidade de conservação - identificar e informar se


existe restrições
para implantação e operação do empreendimento, de
acordo com o
Decreto de criação, do plano de manejo ou zoneamento;

• FUNAI e Fundação Palmares - identificar e informar


possíveis
impactos sobre comunidades indígenas e quilombolas e, se as
medidas
propostas para mitigar os impactos são eficientes;

• IPHAN - informar se na área pretendida já existe


sítios arqueológicos
identificados e, se as propostas apresentadas para
resgate são
adequadas.

§ 1º Os OEMAs intervenientes deverão se manifestar em 30


dias após a
entrega do estudo, a não manifestação será registrada como
aprovação
das conclusões e sugestões do estudo ambiental.

§ 2º Os órgãos intervenientes deverão se manifestar em


30 dias após a
entrega do estudo, a não manifestação será convertida em
condicionante da licença prévia, neste caso a licença de instalação não
será emitida até a definitiva manifestação dos órgãos federais
intervenientes informando sobre os locais onde o RIMA estará
disponível,
abrindo prazo de quarenta e cinco dias para o requerimento
de realização de
Audiência Pública, quando solicitada."

Destarte, observa-se que a legislação pátria concretiza a


participação das
comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais por meio
dos entes públicos
institucionalmente responsáveis pela tutela dos interesses
desses segmentos
especiais da sociedade, cujas detrimento histórico pela
sociedade autoriza a
realização uma discriminação positiva, com amparo no
princípio da isonomia.

Dito preceito, longe de contrariar o espírito da Convenção


n° 169/OIT, encontra-
se expresso no artigo 6°, item 1, "a", quando
afirma que a consulta aos povos deve
ocorrer por meio de procedimento
apropriados, "e, particularmente, através
de suas instituições
representativas", dispositivo que guarda perfeita
consonância com
o regramento vigente para o licenciamento ambiental.

Assim, cada um dos órgãos intervenientes –


especialmente a FUNAI e
Fundação Palmares – tem a obrigação de legitimar
sua participação no
procedimento de licenciamento por meio do estabelecimento
de
instrumentos que permitam aos povos protegidos expor suas
ponderações,
dúvidas e anseios, a fim de que estes sejam
internalizados no procedimento de
licenciamento através de suas
instituições de apoio.

Ao ente licenciador, portanto, não é imputada a obrigação


de
promover oitivas específicas para cada população indígena,
tradicional ou
quilombola presente da área de influência do
empreendimento, sendo suficiente
que se assegure a participação dos
respectivos entes públicos
representativos, bem como promova as
audiências públicas, cuja participação
é a todos oportunizada.

Pensar de forma contrária significa desnaturar as


atribuições funcionais das
entidades ambientais, ao passo de esvaziar as
competências dos órgãos
intervenientes.

Outrossim, tampouco se pode confundir a necessidade de


participação das
comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais com a
realização de audiências
públicas – sob os ditames da Res. CONAMA nº
09/87 – no interior de suas terras.

Isso porque, como o próprio nome já indica, a audiência


deve ser espaço coletivo,
sendo facultado o ingresso e participação de todos
aqueles que se colocarem como
interessados na questão.

É evidente que uma terra demarcada especialmente para


garantir a manutenção
das características culturais específicas de um povo
– cuja natureza e função
impõem a restrição de acesso – não é o local
apropriado para a realização de
audiências públicas, cuja realização, como
o próprio nome já indica, impõe a
ampla possibilidade de acesso.

Assim, impossibilitada se mostra a realização de


audiências públicas no interior
dos espaços indígenas e quilombolas
protegidos, sendo diversos os instrumentos
de participação popular.

Noutro giro, inviável se mostra qualquer interpretação da


Convenção OIT nº. 169
no sentido de que as expressões "conseguir o
consentimento acerca das medidas
propostas", "direito de escolher
suas, próprias prioridades no que diz respeito ao
processo de
desenvolvimento" ou "controlar, na medida do possível, o seu próprio
desenvolvimento econômico, social e cultural" (artigos 6°, item 2, e 7°,
item 1)
impliquem a obrigatoriedade do assentimento integral das comunidades
para a
realização do empreendimento.

A República Federativa do Brasil tem como princípio


fundamental a organização
política sob a forma de democracia (artigo 1° da
Constituição [03]), cujo conceito,
apesar de plurívoco,
inegavelmente não se compatibiliza com a possibilidade de
qualquer grupo social
deter a prerrogativa de decidir, sponte propria, a
possibilidade de
realização de uma dada atividade.
Entender que às populações indígenas, tradicionais ou
quilombolas é dado obstar
a continuidade do procedimento pela sua simples
vontade, sob o pretexto de que
seu consentimento é requisito essencial,
equivaleria a referendar a "ditadura das
minorias", conferindo
tratamento anti-isonômico em relação a todo o mosaico de
outros interesses
que envolvem qualquer empreendimento.

O regramento da convenção, portanto, deve ser compreendido


no sentido de
concretizar o princípio participativo-popular ínsito à gestão
solidária do meio
ambiente (artigo 225 da Constituição), impondo-se o acesso
à informação, a
garantia de manifestação – in casu, especialmente
por meio dos entes
intervenientes –, bem como o não emprego de "nenhuma
forma de força ou de
coerção que viole os direitos humanos e as liberdades
fundamentais dos povos
interessados" (artigo 3° da Convenção n°
169/OIT).

A análise da viabilidade do empreendimento, portanto, com a


consequente
manifestação quanto à possibilidade, ou não, de sua
realização, será realizada
exclusivamente pelo órgão ambiental tecnicamente
competente para tanto, sendo
as ponderações dos órgãos intervenientes e das
populações representadas
incorporadas ao processo, mas sem a prerrogativa de
obstar, por si só, a
continuidade do procedimento.

CONCLUSÃO

A participação das comunidades indígenas e quilombolas


potencialmente afetadas
pelos empreendimentos e atividades sujeitas à
licenciamento é elemento essencial
para a realização do direito fundamental
à participação, corolário do princípio
democrático.

A interpretação das regras da Convenção OIT n. 169,


todavia, não pode ignorar o
arcabouço jurídico e institucional vigente no
Estado brasileiro, a fim de impor não
apenas a obrigatoriedade de realização
de audiências públicas específicas, mas
ainda – com maior gravidade –
considerar a anuência desses relevantes
segmentos sociais como condição de
validade do licenciamento ambiental.

A internalização das demandas, questionamentos e dúvidas


dos povos protegidos
deverá ocorrer, fundamentalmente, em conformidade com o
texto da própria
convenção, por meio dos órgãos públicos
institucionalmente destinados a tutelar
tais interesses, respeitando-se não
apenas as atribuições regulares dos órgãos
licenciadores, mas ainda o
procedimento inscrito na Resolução CONAMA nº.
01/86.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil.
Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>.
Acesso em: 26 set. 2010.

BRASIL. Lei de Política Nacional do Meio Ambiente.


Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6938.htm
(http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6938.htm) >.
Acesso em: 28 set. 2010.

FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito


Ambiental Brasileiro.
10. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

PIOVESAN, Flávia. Perspectivas para uma justiça global.


Disponível em:
<http://norbertobobbio.wordpress.com/2010/04/18/perspectivas-para-uma-
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Acesso em: 28 out. 2010.

NOTAS
1. BRASIL. Lei de Política Nacional do Meio Ambiente. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6938.htm
(http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6938.htm) >.
Acesso em: 28 set. 2010.
2. PIOVESAN, Flávia. Perspectivas para uma justiça global.
Disponível em:
<http://norbertobobbio.wordpress.com/2010/04/18/perspectivas-para-
uma-justica-global/ (http://norbertobobbio.wordpress.com/2010/04/18/perspectivas-
para-uma-justica-global/) >.
Acesso em: 28 out. 2010.
3. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>.
Acesso em: 26 set. 2010.

Autor
Bernardo Monteiro Ferraz

Procurador Federal junto ao Ibama. Ex-Coordenador Nacional


Substituto de Contencioso Judicial do Ibama.

Informações sobre o texto


Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERRAZ, Bernardo Monteiro. A Convenção OIT nº 169 e a participação das


comunidades indígenas e quilombolas no licenciamento ambiental. Revista Jus
Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2693, 15 nov. 2010.
Disponível
em: https://jus.com.br/artigos/17828. Acesso em: 27 set. 2022.

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