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EDIÇÃO 45

Outubro 2015
Número 45

A aventura de planejar
Luciana Esmeralda Ostetto, professora da Faculdade de Educação da Universidade
Federal Fluminense (UFF), onde leciona no curso de Pedagogia e no mestrado em
Educação, tem assumido o campo da educação infantil como foco e compromisso,
sobretudo discutindo a prática pedagógica e as relações da arte com a infância e a
formação de professores. “No momento, estou pesquisando sobre a documentação
pedagógica na educação infantil. Há dois anos coordeno um projeto de extensão com os
profissionais da Unidade Municipal de Educação Infantil Rosalda Paim, em Niterói (RJ)”,
conta.
Na UFF, também realiza o projeto de extensão Danças Circulares dos Povos, que foi tema
de sua tese de doutorado na Unicamp e tem como pressuposto a necessidade de cultivar
espaços sensíveis. “É o que chamo de ser da poesia — aquela porção brincante, criadora,
tantas vezes encoberta por camadas de rigidez conceitual”, explica. 
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista realizada por e-mail com a educadora.
 

Como a senhora vê a relação entre o planejamento diário na educação infantil e a


proposta pedagógica da instituição?
Essa relação é essencial e decisiva para a qualidade dos fazeres cotidianos. É na definição da
proposta pedagógica, como um documento que sonha e organiza o trabalho coletivo, que
cada instituição de educação infantil afirma a intencionalidade da prática pedagógica, não
apenas explicitando fundamentos, objetivos e metas, mas apontando caminhos, prevendo
possibilidades de caminhar e construir o trabalho educativo com todos — considerando quem
já está na instituição e aqueles que chegarão para compor seu coletivo. Por sua vez, o
planejamento diário, do professor, marca a intencionalidade de um percurso educativo que
está sendo tecido com este ou aquele grupo específico de crianças. Se o projeto político
pedagógico, elaborado e assumido no/para/com o coletivo for um documento claro e
significativo, cujo conteúdo e forma realmente se apresentem como apoio à jornada
educativa, o professor poderá tomá-lo como base efetiva, como referência para compor seu
planejamento diário. Dito isso, estou afirmando que o planejamento diário do professor deve
refletir e traduzir a proposta pedagógica coletiva. 

Como isso se concretiza na prática?


Vamos pensar: o trabalho pedagógico diz respeito a todos os momentos do cotidiano —
englobando também as ações que envolvem as necessidades vitais, o bem-estar das crianças
na sua inteireza (acolhida, higiene, alimentação, sono) —, o que demanda prever e organizar
também tempos, espaços, formas de realizar essas ações. Então, de onde viriam os
fundamentos e diretrizes para o planejamento que sustentam esse fazer? Evidentemente, da
proposta pedagógica, que é a carta de identidade da instituição. 

Essa relação é considerada pela maioria dos educadores infantis?


Infelizmente, a proposta pedagógica (que eu prefiro chamar de projeto político pedagógico —
PPP) tem sido tomada como formulação burocrática, destituída de significado. É muito
comum vermos a elaboração de um PPP apenas como obrigação, para cumprir as exigências
legais.

Significa que não há relação entre teoria e prática no planejamento?


Não raro, a teoria apregoada no PPP guarda uma distância infinita da prática efetivada. No
PPP aparece, por exemplo, um referencial teórico, com citações desse e daquele autor de
prestígio, mas, no cotidiano (talvez por ser interditado o processo de reflexão e
participação), os professores seguem outros caminhos, vivenciando o planejamento como
programação, e não como projeto que revela os conceitos definidos no PPP.

Em que consiste essa ideia de planejamento como programação?


O que chamo de planejamento como programação pode ser visualizado em uma prática ainda
usual na educação infantil: a elaboração de uma lista de atividades para serem realizadas
com as crianças ao longo da semana, entre um e outro momento da rotina (higiene,
alimentação, sono, etc.). Nessa prática, o professor prevê para cada dia uma “atividade
pedagógica”, a qual marcaria a principal ação do trabalho desenvolvido com as crianças,
aquela que seria explicitamente educativa, com um conteúdo especialmente determinado e
dirigido. Considerando a especificidade da educação infantil e seu duplo objetivo (educar e
cuidar), contemplar no planejamento somente as chamadas atividades pedagógicas,
privilegiar determinados “conteúdos e noções” a serem ensinados pontual e sistematicamente
na “hora da atividade” não é suficiente. É incoerente! 

Considerando as novas práticas pedagógicas da educação infantil, que mudanças mais


significativas ocorreram no modo de planejar?
Percebo que vem ganhando força, em consonância com os novos tempos, de
redemocratização da própria sociedade brasileira e da luta pela democratização da gestão
escolar, a tentativa de superar os resquícios do tecnicismo, que impõe à elaboração do PPP
um ato fragmentário e puramente burocrático. Certamente hoje temos muito mais
conhecimentos sobre o campo da educação infantil advindos de pesquisas e de experiências
bem-sucedidas. No plano legal, inclusive, é inegável que conquistamos avanços consideráveis
nas últimas décadas. Contudo, isso não garante práticas renovadas no modo de planejar,
porque planejamento não é apenas um modo de fazer; é uma proposta que contém uma
aposta, na qual, embora haja um ponto de partida, não há um ponto de chegada prefixado.  
O registro e a documentação do cotidiano, que são feitos pelo professor, têm implicações
diretas no planejamento? 
Sim, as implicações são diretas e determinantes. É o que venho escrevendo e discutindo há
tempos com os educadores em formação: sem observação e registro, não pode haver
planejamento coerente, que revele crianças e convide à aventura do conhecimento pelos
territórios do brincar. O registro diário, como espaço privilegiado da reflexão do professor, é
instrumento imprescindível do seu trabalho, articulando-se ao planejamento e à avaliação. No
registro escrito, como um diário, o professor marca seu olhar sobre o grupo e a própria
prática, documenta o vivido e constrói pontes para reflexão sobre os caminhos a seguir,
conduzindo ou reconduzindo os objetivos traçados para a experiência proposta. Apoiado na
documentação que vai tecendo sobre a experiência (utilizando-se de anotações breves,
diários, narrativas, fotografias dos processos e produções das crianças, gravações em áudio,
filmagens, organização das produções do grupo, etc.), o educador exercita a escuta sensível
das crianças e pode assumir coerentemente o planejamento como um projeto, gestado no
processo reflexivo do encontro com elas.

Registrar e documentar são etapas do planejamento, mas não são suficientes. O que é
preciso para um bom planejamento em educação infantil?
Interessante refletir sobre essa pergunta. Com certeza, a qualidade de um planejamento não
está na tipologia, na formulação, mas na ação do educador. Depende, em muito, do seu
compromisso e da sua formação, da qualidade das interações que mantém com o grupo de
crianças, do repertório de informações e experiências que construiu, das relações que
estabelece com o conhecimento, dos valores nos quais acredita. Nesse sentido, não se trata
de buscar a melhor maneira de planejar, como se existisse um modelo absolutamente seguro,
fechado em si mesmo, adequado para todo e qualquer grupo de crianças, para todos os
tempos e espaços. Traçar um bom planejamento envolve assumir a necessidade de — e se
entregar ao processo de — se desvencilhar de certos automatismos pedagógicos (entre os
quais, a “hora da atividade”) que nos impedem de ver a criança em sua inteireza, de
qualificar e acolher suas múltiplas linguagens.

Tal processo é viável na realidade das escolas? 


Claro, mas não podemos desconsiderar as condições objetivas, como as materialidades
(espaços, móveis, objetos, materiais, etc.) disponibilizadas nas instituições com as quais e
por meio das quais os professores poderão contar (ou não) para efetivar propostas sonhadas e
projetadas com as crianças, em resumo, para pensar e fazer um bom planejamento.

Que outro aspecto pode ser considerado?


É necessário haver articulação entre três momentos-movimentos do processo de
planejamento e efetivação de uma proposta pedagógica: o PPP (elaborado coletivamente,
documento-roteiro que guia a instituição como um todo), o projeto (elaborado pelo professor
na especificidade do grupo de crianças com o qual compartilha o cotidiano, documento-
roteiro que guia seu trabalho com aquele grupo em particular) e o planejamento (elaborado,
visto e revisto no processo cotidiano, documento-roteiro que guia o professor diariamente).
Um momento-movimento apoia o outro e dele se alimenta. Cada momento-movimento deve
refletir e traduzir o outro — e tudo isso é planejamento na educação infantil.
E o que dizer da relação entre planejamento e espontaneidade na educação infantil? 
Planejar é uma ação requerida de todo professor. Faz parte das suas atribuições como
profissional. No entanto, o planejamento não é sinônimo de rigidez. Muitas vezes, o professor
encaminha uma proposta e, no percurso, as crianças vão para lados opostos, demonstrando
outros focos de atenção e desejo: elas fazem sugestões, comentários, outras proposições. Se
o professor estiver atento às manifestações das crianças, verá indicações — nas expressões,
nos gestos, nos movimentos, nas falas — de novas possibilidades para continuar a história
inicial, que poderá multiplicar-se em muitas outras. O planejamento pedagógico é a base
para a atuação do professor, horizonte de um caminho que pretende percorrer com o grupo
de crianças, que marca sua intencionalidade e compromisso educativos, mas não pode ser
uma camisa de força, rígida e mecanicamente vestida no cotidiano (justificativa para não
considerar os desejos das crianças)! A possibilidade de redefinir a rota planejada é parte
constitutiva do processo. Isso retrata bem uma imagem de planejamento que tenho:
aventura!

A mudança paradigmática apontada nas DCNEIs  refletiu-se no modo de os professores


planejarem. Como esse movimento foi entendido pela maior parte dos educadores
infantis? 
Antes de tudo, precisamos ter claro que as mudanças não acontecem apenas em razão do
avanço e da pertinência das determinações legais. Mudar, em educação, significa transformar
práticas, e práticas são efetivadas por pessoas. É preciso tempo! Ainda que as DCNEIs
representem um avanço em termos de princípios e concepções assumidos, a apropriação e a
consequente articulação de seu conteúdo no âmbito da prática pedagógica ainda estão por se
realizar (por se conquistar!). Isso pressupõe processos formativos contínuos, apoiando as
travessias dos educadores. Não basta dizer: “Tal é o princípio, veja, é assim que se faz!”. É
necessário haver tempo e espaço para reflexão, apropriação, afirmação ou redefinição de
princípios e práticas já constituídos pelos professores.

Quais são as principais dúvidas e questionamentos no dia a dia das escolas?


A questão “como planejar” permanece como preocupação primeira e tem crescido, sobretudo
quando relacionada ao trabalho pedagógico voltado às crianças de 0 a 3 anos. Planejar seria
apenas uma questão de forma? Não, é claro que não. Envolve complexos fundamentos,
condições teóricas e práticas, como vimos discutindo ao longo da entrevista, que, por sua
vez, conduzem às atitudes, aos processos provocados, acolhidos, encaminhados e
sistematizados pelos educadores — seja na docência, seja na gestão.

Quais são os conceitos essenciais a serem considerados pelos educadores quando


planejam suas ações junto às crianças? 
No meu entender, as DCNEIs/2009, ao definirem como eixos das propostas pedagógicas a
brincadeira e as interações, indicando campos de experiências que devem ser contemplados,
explicitam o essencial para a organização do planejamento no contexto brasileiro. Nesse
documento, também está referenciada a concepção de criança que deve nortear as propostas
e práticas de todas as instituições de educação infantil. Pouco se avança sem colocar em
xeque concepções ainda presentes, segundo as quais a criança é incompleta e incapaz, um
“vir a ser” e, por isso, totalmente dependente do adulto. Afinal, se a criança é portadora de
múltiplas linguagens, é imprescindível aprender sua língua para que se possa com ela dialogar
atenciosa e respeitosamente. Elaborar um bom planejamento no espaço da educação infantil
significa, pois, construir uma boa relação com as crianças, abrir-se à escuta do que dizem por
meio de suas múltiplas linguagens — gestos, falas, silêncios, grafismos, corpo inteiro. Significa
tecer caminhos para ampliar a leitura que fazem do mundo: por um lado, acolhendo suas
perguntas, mergulhando na aventura do conhecimento, maravilhando-se, espantando-se junto
com elas pelos territórios e paisagens explorados; por outro, oferecendo apoio as suas ideias
e projetos para que possam expressar-se de diferentes maneiras sobre o que perguntam,
supõem, experimentam e descobrem na relação com a cultura, a natureza, a sociedade,
enfim.

Como as relações de tempo e espaço integram-se ao planejamento?


Planejar implica pensar também os tempos e os espaços da educação infantil: “onde” e
“quando” se desenvolverá uma proposta, uma ação. A organização do espaço como ambiente
é um importante elemento da proposta pedagógica: o espaço revela intenções e relações,
educa (para a autonomia ou para a submissão, para a liberdade ou para o controle) e,
portanto, precisa ser foco do planejamento. O encaminhamento e a articulação das
proposições ao longo do dia, organizando o tempo e o espaço, dizem respeito à constituição
de uma rotina, elemento fundamental para a prática pedagógica, que também requer
planejamento. 

Qual a importância da participação das crianças no planejamento? 


Tomando a metáfora do planejamento como um roteiro de viagem, é justo e recomendável
que todos os viajantes acompanhem sua organização, participem de sua estruturação; em
uma palavra, que também possam fazer escolhas. Toda criança tem direito a se contrapor, a
argumentar, a sugerir caminhos diversos daqueles propostos pelo professor e pela instituição
no seu conjunto; tem direito a apresentar ideias revelando seus modos próprios de ser e se
expressar, respondendo aos desafios colocados no processo educativo junto ao coletivo.  

Como promover essa participação?


A participação das crianças poderá ser instigada e garantida utilizando-se registros (como o
caderno da turma, o livro da vida, os cadernos de propostas e ideias, o “blocão” em que são
anotadas as proposições diariamente), mas, sobretudo, com a prática da assembleia ou roda
— momento por excelência dos combinados. E combinar é também planejar a continuidade da
viagem! 
 

 Luciana Esmeralda Ostetto, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal


Fluminense (UFF)

Crédito da Imagem:
Foto: José Acácio de Almeida

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