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LOVE, HANNAH

STACI HART
Tradução, Revisão e Formatação por
WhitethornTeca
Para aqueles que buscaram
um lugar para chamar de casa.
1
PROCURA-SE

H annah
Desta vez será diferente.
Repeti o pensamento como fiz centenas de vezes naquela tarde,
esperando que as palavras fossem mais do que uma ilusão. Quando olhei uma
última vez para verificar o endereço escrito no papel pesado, meu coração
pulou no peito.
Do outro lado da porta do edifício de arenito vitoriano, havia um homem
que perdera a babá sem aviso prévio. Eu deixei meu último emprego de au
pair com pressa o que me deixou no limbo e, sem um emprego melhor,
perderia meu visto. E eu não estava pronta para desistir e ir para casa. Ainda
não.
Outro choque de nervos correu pelas minhas costas. O vínculo
empregatício da agência fora apressado e impensado. Eu deveria ter recusado
no momento em que soube que ele era solteiro. Se eu aceitasse o trabalho,
teria que morar com ele por um ano. Eu ficaria sozinha com ele,
compartilhando seu espaço, depois de jurar que não me colocaria em uma
posição como a que acabei de me afastar. Mas eu não tinha opções. As coisas
haviam acontecido muito repentinamente para se planejar, e a abertura na
residência Parker apareceu exatamente no momento certo.
Então, lá estava eu, parada na porta de uma bela casa perto do Central
Park, apostando no meu futuro.
Eu convoquei uma respiração longa do fundo dos meus pulmões. Eu seria
mais esperta dessa vez. E, se eu visse o menor cheiro de perigo no ar,
recusaria o trabalho, simples assim.
Ainda assim, meu coração apertou, batendo enquanto tocava a
campainha.
Parou completamente quando a porta se abriu. Por um momento, meus
medos saíram de mim, por mais tola que eu fosse.
A primeira vez que vi Charlie Parker, não vi uma coisa de cada vez; Eu vi
tudo dele. Foi um ataque aos meus sentidos, uma maré avassaladora de
consciência e, por um momento, os detalhes vieram a mim em flashes sobre o
que provavelmente era apenas alguns segundos, mas parecia muito mais
longo.
Seu cabelo era loiro e delicadamente despenteado, seu rosto longo e nariz
elegante. Eu podia sentir o cheiro dele, limpo e fresco, com apenas um toque
de tempero que eu não conseguia identificar.
Eu levantei meu queixo – ele era alto, mais alto que eu, e eu pairava
apenas um metro e oitenta – e encontrei seus olhos, terrosos e marrons e tão
profundos. Tão profundo.
E então ele sorriu.
Ele era bonito quando não estava sorrindo. Ele era impressionante quando
estava.
Eu estava tão perdida naquele sorriso que não registrei a gota voadora até
ela bater no meu suéter. Pequenos respingos de algo frio salpicaram meu
pescoço.
Este foi o momento em que o relógio começou de novo e a doce
serenidade entrou diretamente no caos.
Um menino loiro olhou para mim do lado de seu pai com um brilho
diabólico nos olhos escuros. A colher em sua mão estava coberta de geléia
vermelha e apontada para mim como uma catapulta vazia.
Várias coisas aconteceram ao mesmo tempo. O rosto de Charlie se
transformou em frustração envergonhada quando ele alcançou quem eu
presumi ser seu filho. O garoto – Sam, adivinhei pelos nomes que me deram
pela agência – girou rapidamente como um relâmpago e partiu pelo corredor,
rindo. Outra criança começou a chorar de algum lugar atrás da casa, e uma
tigela caiu no chão, seguida por um palavrão do que parecia uma mulher mais
velha.
Olhei para a bagunça escorregadia em frente ao meu suéter branco e
comecei a rir.
A cabeça de Charlie virou de volta para mim, seu rosto primeiro colorido
de confusão, depois horrorizado quando ele olhou para a pintura de Pollock
no meu suéter.
— Oh meu Deus — ele respirou, seus olhos arregalados, em desculpas,
arrastando pelo meu corpo. — Jesus, eu sinto muito.
Eu ainda estava rindo, quase um pouco histérica. Eu nem sabia dizer o
porquê.
Acenei com a mão para Charlie, e ele pegou meu cotovelo, me guiando
para dentro de casa enquanto recuperava o fôlego. Outro acidente veio da
cozinha e uma garotinha apareceu na entrada, deixando pegadas em pó na
madeira.
O rosto de Charlie arruinado. — Sam! — Ele chamou, esticando a
palavra, uma longa promessa de consequências.
Um tumulto de risadas irrompeu na cozinha.
Nós dois entramos em movimento. Eu o segui quando ele pegou sua filha
chorona e invadiu a cozinha. A garotinha me observou por cima do ombro
dele com grandes olhos castanhos, sua respiração subindo em pequenos
estremecimentos e o dedo mindinho preso na boca.
Charlie parou tão abruptamente que quase o encontrei.
Quando olhei em volta dele e entrei na cozinha, minha boca se abriu. Eu a
cobri com os dedos enquanto risos borbulhavam em minha garganta.
Um saco de farinha estava no meio do chão, o pó branco jogado em
rajadas contra as superfícies circundantes e pairando no ar como fumaça. O
chão ao lado do saco era o único local limpo, em formato de um pequeno
fundo – o da menininha, eu supunha. Uma tigela estava de cabeça para baixo,
com o conteúdo escorrendo por baixo da borda e pendurada em um anel do
teto ao armário e no chão, como se tivesse dado um giro magistral a caminho
de sua morte. E no centro da loucura estava uma mulher mais velha, com
farinha nos cabelos escuros e espanando a frente dela. Agarrado debaixo do
braço, estava um Sam contorcido, a colher ofensiva ainda na mão.
O rosto dela era gentil, mas tenso com exasperação.
— Por favor, diga-me que esta é a nova babá — disse ela sem rodeios.
— Duvido que possamos convencê-la a ficar após isso — disse ele com a
mesma uniformidade.
Ele se virou para mim com um olhar que eu só poderia descrever como
vergonha. Mas eu sorri e peguei Maven.
Surpreso, ele a entregou com gratidão. Mas quando ele se virou para Sam,
foi com um trovão nas costas.
Sam parou de chutar. Seu rosto voltou-se para o pai, os olhos arregalados
e a boquinha aberta quando uma bola de geleia pingou no chão e na farinha
com um tapinha. Charlie libertou a mulher de Sam e passou por mim.
— Me dê licença por um segundo, Hannah, — ele murmurou antes de
desaparecer pelas escadas.
Voltei-me para a mulher mais velha, cujo rosto tinha suavizado.
Ela tirou um cabelo errante do rosto e suspirou, limpando as mãos em um
pano de prato que pendurou no ombro enquanto se aproximava.
O sorriso dela era quente, assim como a mão dela quando eu a peguei.
— Sinto muito não vai ser o suficiente — disse ela. — Eu sou Katie. E
você deve ser Hannah.
— Prazer em conhecê-la. — Mudei Maven no meu quadril e peguei as
toalhas de papel. — O que aconteceu?
Katie suspirou e caminhou até o armário de vassouras, voltando com a
ferramenta de mesmo nome.
— Trinta segundos, apenas o tempo suficiente para Charlie atender a
porta, isso é tudo o que é preciso para esses dois. Acabei de dar as costas – eu
estava fazendo roux para um molho, e você não pode parar de mexer ou
queima, e Maven pegou a farinha que acabara de guardar. Depois, Sammy
fez o trabalho de ladrão da geléia. Você conhece o resto.
— Sim, acho que sim — eu disse com uma pequena risada enquanto
tentava limpar Maven, embora só tenha conseguido espalhar a bagunça. —
Na Holanda, temos um ditado que diz: Een kinderhand is snel gevuld. As
mãos de uma criança são facilmente preenchidas. Nesse caso, com farinha, eu
diria.
Katie riu, um som amigável.
— Eu tenho que concordar. Suponho que devo movê-la da prateleira de
baixo da despensa. — O sorriso dela caiu quando ela viu a frente de minha
roupa. — Oh, Hannah, — ela disse como se tivesse falhado sozinha comigo
— que bagunça, Sammy. Seu suéter!
Acenei para ela, apesar de ter pegado outra toalha de papel, usando-a para
limpar o excesso que deslizou um pouco pelo tecido da malha.
— Está tudo bem. Será lavado.
— Bem, deixe-me pelo menos pegar algo para você colocar nisso. — Ela
entrou em uma pequena sala perto da cozinha, retornando com um pequeno
pedaço de detergente em um pacote.
— Obrigada.
— É o mínimo que posso fazer — disse ela, voltando à vassoura. — Sou
a cozinheira e governanta. Estou aqui desde que a esposa de Charlie foi
embora — disse ela abertamente e sem discrição, me pegando de surpresa. —
Nós tivemos uma babá, — continuou — mas ela nos deixou na semana
passada para uma emergência familiar. Jenny tem mais ou menos a minha
idade e sua irmã viúva está realmente doente. Mas ela deixou Charlie
desamparado, não é justo, se você me perguntar. Fico feliz em ajudar desde
que ela se foi, mas como você pode ver, não sou muito qualificada.
Katie apontou para a cozinha com um olhar genial, se não um pouco
depreciativo, no rosto. Foi o jeito dela, percebi – a abertura – e descobri que
gostava bastante.
Ela suspirou e colocou a vassoura de lado, pegando a tigela do chão.
— Acho que vou começar meu pão de milho novamente.
Eu ri.
— Você gosta de trabalhar aqui?
Katie sorriu com isso.
— Ah, sim. Charlie é um homem bom, embora trabalhe mais do que Noé
construindo a arca. Ele tenta; ele realmente tenta. Todos nós vemos isso.
Ajuda que ele seja gentil e generoso. Meu último chefe foi um trabalho real.
— Te entendo bem. — Voltei minha atenção para Maven, cuidando de
limpá-la enquanto ela olhava para mim com olhos castanhos sem fundo. — E
as crianças?
A pergunta provoca um suspiro.
— Tem sido ruim desde que Jenny saiu. Melhor do que quando a mãe foi
embora, mas ainda não é ótimo. Não é culpa deles, nem dele. Eles só querem
o pai, só isso. E Charlie não tem tempo para dar a eles. Eles são bons filhos, e
Charlie faz o melhor que pode. — Ela fechou o tópico quando passos soaram
atrás de mim.
Eu me virei para encontrar um Sammy recém-vestido, com ombros
inclinados e olhando para os pés dele. Charlie estava atrás dele, sobrancelhas
baixas e com uma pitada de derrota nos olhos quando encontraram os meus.
Ele conduziu Sammy para frente. — Continue, filho.
Sammy deu um passo em minha direção, os olhos ainda baixos, as mãos
na frente dele.
— Sinto muito — disse ele arrependido, meu coração doía.
Coloquei Maven no chão, e ela foi até o pai.
Ajoelhei-me para nivelar com Sammy.
— Está tudo bem. Foi só um pouco de diversão, sim?
Ele fungou.
— Papai está bravo.
— Sim, bem, foi muito travesso, não foi?
Ele assentiu.
— E você fez uma bagunça no meu suéter.
Sammy arriscou um olhar para mim e eu segurei seus olhos escuros.
— Mas será lavado, e você me disse que sente muito. Podemos ser
amigos agora?
Outro aceno de cabeça – este com um pequeno sorriso esperançoso.
— Eu sou Hannah.
Eu ofereci minha mão, e ele a pegou com firmeza, seu sorriso
florescendo.
— Eu sou Sammy. Por quê você fala engraçado?
— Sammy, — Charlie avisou.
Eu olhei para cima e vi que ele estava envergonhado.
— Está tudo bem — eu disse para os dois. — Sou da Holanda. Você sabe
onde fica isso?
Sammy balançou a cabeça.
— Dê uma olhada. — Na farinha no chão, desenhei uma semelhança
aproximada da América do Norte e fiz um ponto em Nova York. — Estamos
aqui, mas sou daqui. — Eu desenhei a Grã-Bretanha e um pouco da Europa,
fazendo outro ponto na Holanda. — Você já esteve na praia, Sammy?
Ele acendeu.
— Eu amo a praia! Fomos a Coney Island uma vez.
— Bem, se você pegasse um barco e percorresse um longo caminho,
atravessando o oceano, estaria perto de onde eu sou.
— Eu poderia nadar lá?
Eu ri. — Não, é muito longe para nadar. A maneira mais rápida é voar em
um avião. Mas a razão de eu falar engraçado é porque sou holandesa. Falo
holandês, mas também sei inglês, francês e espanhol.
Ele se ilumina.
— Como se fala – ele olhou ao redor da sala – cadeira?
— Stoel.
Ele riu. — Diga pratos!
— Borden.
— Diga Katie!
Eu ri.
— Katie.
Charlie deu um passo atrás dele, e eu fiquei de pé, um pouco sem fôlego
ao vê-lo sorrindo, seus olhos tremendo de fracasso, filha na dobra de seu
braço e o ombro de seu filho sob a palma da mão.
Havia algo de muito honesto na cena, algo perigosamente desarmante, e
eu me peguei esperando poder ficar.
— Sinto muito, Hannah.
— Não tem problema, Sr. Parker.
Suas bochechas coraram.
— Por favor, me chame de Charlie. Não sei se precisamos terminar a
entrevista.
Meu coração afundou com uma lentidão dolorosa ao perceber que eu
queria muito ajudá-los.
— Sim, claro, — eu disse e olhei para baixo. — Avisarei a agência para
encontrar outro candidato o mais rápido possível.
Mas quando me mudei para dar um passo em torno dele, ele segurou meu
cotovelo. E quando olhei para cima, me deparei com olhos sorridentes.
— O que eu queria dizer era: quando você pode começar?
Eu pisquei, atordoada.
O sorriso saiu de seu rosto assim do nada.
— Quero dizer, se você quiser. Mas é claro que você não quer. Não
consigo imaginar por que você iria querer, se pensar sobre isso. Eu não
deveria ter perguntado. Isso é demais, até para mim, e eu sou o pai deles —
ele divagou, pontuando o final de seu discurso passando os dedos longos pelo
cabelo loiro.
Eu suspeitava que sua mente continuava falando, mesmo que seus lábios
estivessem imóveis.
— Você gostaria de me contratar?
— Não consigo imaginar uma entrevista mais prática, — respondeu ele
com franqueza.
Olhei para os três rostos esperançosos e depois para Katie, cujo sorriso
era doce e encorajador. E encontrei os olhos de Charlie, procurando pelo
aviso, pelo sussurro de ameaça que eu havia ignorado antes, mas não
encontrei nenhum. Em vez disso, encontrei algo muito mais precário,
disfarçado de algo inocente.
Confiança ingênua e esperançosa.
E, antes de colocar algum sentido sobre mim, sorri e disse: — Que tal
agora?
2
FUTURO PERDIDO

C harlie
A tarde tinha sido, por falta de uma palavra melhor, perfeita.
Maven estava sentada na dobra do meu braço enquanto
subíamos as escadas depois do jantar. Hannah seguiu com Sammy enquanto
ele subia os degraus, dizendo: Boing, boing, boing, sem parar. E fiquei
impressionado com uma sensação de alívio que não sentia no que parecia
uma era.
Hannah se encaixou facilmente, assumindo seu papel graciosamente sem
esforço, como se ela estivesse lá o tempo todo, em vez de ser uma completa
estranha. As crianças ficaram encantadas com ela. Sammy a arrastou
exuberantemente, pedindo-lhe para traduzir as coisas para o holandês, e
Maven se agarrou a ela, quieta e contente como era, mas com mais
persistência do que costumava ter com as novas pessoas.
Era reconfortante – não apenas ter ajuda com as crianças novamente, mas
ter uma ajuda tão capaz.
Deus sabia que eu não era qualificado para fazer isso sozinho.
Anos sem prática suficiente me deixaram impotente quando minha esposa
foi embora, e eu estava tentando recuperar o terreno desde então.
Parei do lado de fora do banheiro e me virei para Hannah, que sorriu. Eu
sorri de volta por instinto.
Sammy entrou no banheiro e começou a puxar a camisa.
Hannah riu, cuidando dele.
— Devo ir buscar suas roupas ou começar o banho?
— Hum, eu não sei. Talvez você deva... — eu gaguejo, incapaz de
responder a uma pergunta tão simples. Era raro fazer isso e, quando fazia, era
tipicamente o caos.
Mas a expressão em seu rosto me fez sentir que estava tudo bem.
— Que tal eu começar o banho e você pode pegar as roupas deles? Não
tenho certeza de onde estão as coisas.
— Boa ideia, — eu disse enquanto colocava Maven no chão, agradecido
pela instrução e pela saída.
Fui para o quarto de Maven, me sentindo um tolo. Vamos, Charlie. Você
é um cara inteligente, então pare de ser tão idiota.
A repreensão me reforçou – até que eu abri sua gaveta. Suas roupas
pequenas estavam cuidadosamente dobradas por dentro, e eu as vasculhei,
colocando-as uma na outra para tentar encontrar uma camisa e um fundo
combinando, mas eu não conseguia descobrir um par.
Era o top rosa com bolinhas laranja e o fundo laranja ou o rosa?
Encontrei uma camisola e quase cantei de alívio.
O de Sammy era mais fácil – tudo era azul ou verde.
Alguns minutos depois, voltei para o banheiro, preparado para mostrar a
Hannah onde estavam as toalhas e os panos. Mas quando cheguei ao limiar,
descobri que ela não precisava que eu mostrasse nada a ela.
Hannah estava inclinada sobre a borda da banheira com as mangas
levantadas, toalhas empilhadas no balcão ao lado da pia e panos na banheira.
Suponho que ela estava cantando docemente em holandês, fazendo um pato
de borracha dançar na água. Sammy dava risadinhas, Mav batia palmas e
meu peito doía.
Parecia tão natural para ela, e eu desejei, mil vezes, que eu pudesse ser
assim. Eu gostaria de poder cuidar deles dessa maneira, gostaria de poder
navegar no dia-a-dia da paternidade sem me sentir inepto e oprimido, em vez
de pensar duas vezes como se fosse o meu trabalho.
Entrei no quarto e fechei a tampa do vaso para sentar, assistindo, sorrindo
novamente, aquela expressão estranha que me escapava por tanto tempo.
— Está tudo bem? — Eu perguntei quando ela parou de cantar.
Ela olhou para mim com um sorriso tranquilizador, lábios fechados
docemente.
— Sim, obrigada. Qual é a rotina normal de dormir?
Coço a parte de trás do meu pescoço.
— Eu, hum... eu realmente não sei. Eles tomam banho por volta das sete e
meia, eu acho, e estão na cama por volta das oito. — Fiz uma pausa. — Eu
sinto muito. Não sou de muita ajuda, sou?
Mas ela continuou sorrindo. Eu me perguntava distraidamente se ela
alguma vez parou.
— Está tudo bem. Não acho que exista realmente um jeito errado, existe?
— Não, suponho que não exista.
Ela derramou xampu de bebê em suas mãos e massageou os cabelos de
Maven até que ficou espesso de espuma.
— Que tal escovar os dentes e ler uma história?
Sammy se iluminou e saltou, jogando a água ao redor.
— Vamos ler Pete, o gato! Esse é o meu faaavorito!
Ela riu.
— Sim, claro.
Satisfeito, ele pegou um barco de brinquedo e dirigiu em círculos,
fazendo barulhos de motor com a boca enquanto Hannah o observava, e eu a
observava.
Eu queria falar, queria conversar, mas percebi que não sabia mais como.
Eu me sequestrara depois que minha esposa foi embora, me jogando no
trabalho. Por causa da separação, eu perdi meus amigos, perdi a vida que
conheci e mergulhei no trabalho para tentar escapar do fato.
— Há quanto tempo você está nos Estados Unidos? — Perguntei, a mais
banal das ferramentas de conversação no meu arsal.
— Apenas alguns meses.
Hannah pegou um copo de plástico na borda sob a janela fosca e
mergulhou-o na água, inclinando o queixo de Maven para enxaguar os
cabelos sem colocar sabão nos olhos. Anotei o truque.
— E você veio aqui para babá?
Ele acenou e deslocou-se para lavar o cabelo de Sammy.
— Eu sempre amei crianças, e minha melhor amiga está aqui como au
pair há dois anos. Ela está me implorando para vir aqui desde que saiu do
avião.
— Por que você deixou seu último emprego? — Eu perguntei, surpresa
quando ela endureceu, sua mão fazendo uma pausa por apenas uma fração de
segundo. — Eu sinto muito. Não pretendo bisbilhotar.
— Não, está tudo bem, — ela tranquilizou, seu desconforto desapareceu
tão rapidamente quanto apareceu. — É uma pergunta perfeitamente razoável
para meu empregador fazer. Não foi um bom ajuste. Minha entrevista foi
feita por meio de bate-papo por vídeo – garantimos nosso emprego antes de
nos mudarmos, - portanto, não era tão fácil determinar como seria todos os
dias, morando com uma família.
Foi uma resposta muito profissional, mas não pude deixar de perceber
que havia mais do que isso.
— E você sente que isso aqui é um bom ajuste para você?
— Eu sinto, — ela respondeu sem hesitar enquanto amassava os cabelos
de Sammy com os dedos longos enterrados na espuma.
— Acredito que você pode perceber sentindo, uma intuição.
— Eu sei o que você quer dizer.
Ela continuou: — Entrevista para cargos de au pair geralmente leva
meses, então foi realmente muita sorte que você precisasse de ajuda tão
rapidamente. Estou surpresa que você tenha procurado uma agência de au
pair ao invés de encontrar uma babá por esse motivo.
— Na verdade, eu solicitava todas as agências de Manhattan – au pair e
babá. Gostei da ideia das crianças aprenderem outra cultura e sentia falta de
alguém morando aqui. A maioria das babás não está disposta a assumir esse
compromisso. Minhas horas são longas e atrasadas, e isso me traz paz de
espírito, sabendo que alguém não está esperando que eu chegue em casa para
que possam sair.
— Então você tinha alguém morando aqui? Antes da sua última babá? —
ela perguntou enquanto lavava os cabelos de Sammy.
— A irmã da minha ex, Elliot. Ela morou no seu antigo quarto por anos,
desde que Sammy nasceu.
Ela não falou, as perguntas pairando no ar, não ditas.
— Ela saiu logo depois de Mary, seguiu em frente com sua vida.
Eu quase tive que forçá-la a ir — acrescentei com uma risada. — Ela não
queria deixar eu e as crianças, mas já tinha feito muito por nós.
Eu contratei Jenny, a última babá, logo após a saída de Elliot.
— Bem, estou agradecida por as coisas terem funcionado e por você ter
me oferecido a vaga. Sua família é encantadora e, depois de ficar com um
amigo nas últimas semanas, fico feliz em me sentir útil novamente.
— Estamos felizes em ter você, — eu disse inutilmente.
A conversa parou, mas Hannah não pareceu se importar. Ela começou a
cantarolar enquanto ensaboava uma toalha, entregando-a a Sammy para se
lavar, o que ele fez com o gosto que apenas uma criança de cinco anos podia
reunir. Então, ela ensaboou um segundo pano, levantando Maven para lavá-
la.
Enquanto eu observava, não podia negar que parecia um bom ajuste.
Mesmo com o caos que estava em jogo quando ela chegou, ela tinha uma
certa retidão sobre ela – da maneira como entrou e encontrou seu lugar, como
o clique de peças intrigantes que colocaram minha casa em ordem após uma
semana de revolta. Ela havia restaurado um senso de ordem em poucas horas,
o que me trouxe alívio e paz que eu não sentia há um bom tempo, mesmo
com a babá anterior.
Depois de alguns minutos de silêncio quieto e amigável, eles foram
lavados e a banheira estava borbulhando enquanto escorria.
Levantei-me e desdobrei as toalhas, passando uma para Hannah e usando
a outra para secar Sammy, gastando um pouco demais e muita energia em
bagunçar seu cabelo para fazê-lo rir.
Nós os vestimos e os conduzimos a escovar os dentes. Pouco tempo
depois, Hannah estava no quarto de Sammy, lendo-o Pete, o Gato, e eu me
sentei na cadeira de balanço com Maven, lendo um livro pop-up sobre
animais da selva, sentindo o peso dela no meu colo, me perguntando por que
não fazia isso com mais frequência.
Eu sabia a resposta, é claro. Eu falhei nessa rotina muitas vezes para
contar, mas Hannah me guiou através dela tão facilmente quanto com as
crianças. Eu me peguei sentindo que talvez pudesse aprender uma coisa ou
outra. Me senti pronto para isso.
Enfiei Maven e seu coelho de pelúcia em sua cama branca de trenó,
puxando suas cobertas cor de rosa enquanto ela olhava para as borboletas e
flores penduradas no teto alto. Eu beijei sua bochecha e disse a ela que a
amava, tirando as palavras das profundezas do meu coração.
Fechei a porta suavemente e caminhei pelo corredor até o quarto de
Sammy, apoiando-me no batente da porta para ouvir enquanto Hannah
terminava o livro. Eles estavam sentados em sua cama de capitão, seu quarto
todo de madeira escura e tons de azul com um pouco de talento pirata – sua
obsessão por alguns anos agora – mas as luzes estavam apagadas e
sonhadoras, e a visão me atingiu na costela.
Eu devia aos meus filhos muito mais do que eles haviam recebido, e
prometi tantas vezes que encontraria uma maneira de compensar isso.
Eu só tinha que descobrir como.
U
século.
ma hora depois, eu mostrei a saída a Hannah e, com sua partida,
meu cérebro começou a zumbir, recontando a tarde que fora tão
inesperada. Dizer que fiquei surpreso seria o subestimado do

Naquela manhã, não sentia nada além de derrota e, enquanto caminhava


pelo meu vestíbulo e em direção à cozinha, percebi que esse sentimento havia
passado quase completamente, deixando-me com um suspiro calmo de
esperança.
Eu abri a porta e a vi lá, parada na minha varanda com a luz do sol
brilhando em seus longos cabelos loiros emoldurando seu rosto – uma
pequena e doce curva de maçãs do rosto salpicadas de sardas, ancoradas por
um queixo estreito. Seus olhos eram azuis, grandes e arregalados, seus lábios
rosados, sorrindo, sempre sorrindo. E a altura dela me pegou desprevenido;
ela era apenas doze ou quinze centímetros mais baixa que eu – a maioria das
mulheres chegava a 30 centímetros abaixo do meu espaço aéreo, - mas ainda
parecia frágil, delicada, com os braços longos e esbeltos e a cintura pequena.
No espaço de algumas batidas do coração, ela derrubou a ferrugem de
mim, minhas engrenagens rangendo e gemendo com vida com a mera visão
dela.
Eu atribuí isso ao meu isolamento, ao reconhecimento de que eu ainda era
um homem, um homem que estava sozinho por um longo tempo.
Eu estava sozinho por muito mais tempo do que eu estava solteiro.
Afastei o pensamento, considerando meus filhos, como tinha sido tão útil
quanto um par de rodinhas quebradas, imaginando o que o futuro nos reserva.
Pensando se eu poderia encontrar o caminho para o que eu queria,
imaginando se eu poderia realmente definir o que eu queria. Porque minha
vida foi virada de cabeça para baixo e abalada, deixando uma bagunça que eu
não sabia como limpar.
Virei a esquina para a cozinha onde Katie estava esperando com um
sorriso.
— Oh, Charlie. Ela é adorável.
— Ela realmente é, né? — Abri a geladeira para tomar uma cerveja.
— Você parece surpreso.
— Isso é porque eu estou. — A porta se fechou com um ruído.
— As crianças parecem amá-la. Difícil não fazê-lo, se você me perguntar
— ela disse, me observando com olhos que eu chamaria de astuto se eles não
tivessem as melhores intenções por trás deles.
Eu dei a ela um olhar conhecedor e tirei a tampa.
— Oh, não me faça essa cara. Só estou dizendo que ela é muito jovem e
bonita – além de ser uma verdadeira Mary Poppins com as crianças.
Tomei um gole, ignorando a parte do bonita. — Eu sei que ela tem 22
anos, mas, Deus, se ela não parecer mais jovem. Ou talvez eu só esteja
ficando velho.
— Nunca diga a uma velha senhora que você é velho. Cheira a mal-
entendido.
Eu ri, mas um suspiro saiu de mim no final.
— Eu não esperava muito dela, — admiti.
— Sim, bem, é assim que costuma acontecer, não é?
— Eu suponho.
— O que exatamente você não esperava?
Eu pensei nisso por um segundo.
— Eu não sei. Foi tão fácil. Quando Jenny começou, demoramos semanas
para encontrar um ritmo, e mesmo assim... bem, parecia o trabalho dela, mas
com Hannah, parecia o chamado dela. Isso faz sentido?
— Sim.
— Eu quase me senti como um voyeur, observando-a com as crianças.
Foi uma lição de tudo o que estou fazendo de errado e um lembrete de quanto
mais eu poderia estar fazendo.
— Charlie, ninguém jamais acusaria você de ser negligente. Não seja
muito duro consigo mesmo – disse Katie, repreendendo suavemente. — Você
está fazendo certo por eles.
— Isso é discutível, mas obrigada mesmo assim. — Tomei outro gole da
minha cerveja.
— O quê mais?
— O que mais o que?
Ela sorriu.
— O que mais você não esperava?
— Eu não sei, — respondi sem compromisso com um encolher de
ombros.
— Que ela fosse tão bonita?
Revirei os olhos.
— Você está uma bagunça, Katie.
— É verdade, mas você acha que ela é bonita, não é?
— Sou um homem hétero com olhos. Claro que acho ela é bonita.
Katie riu e tomei outra bebida antes de inspecionar o rótulo como se fosse
fascinante.
— Você acha ruim que eu a ache bonita?
Ela me observou por um segundo.
— Você acha que é ruim que você ache ela bonita?
— Não, suponho que não. Não farei nada a respeito, e isso é tudo o que
importa, certo?
— Certo. Mas eu não hesitaria em fazer amizade com ela, pelo menos.
Você precisa de alguém além da sua intrometida governanta para conversar.
Eu sorri.
— Eu sou assim tão irritante, sou?
Ela acenou com a mão para mim.
— Silêncio, não foi isso que eu quis dizer, e você sabe disso.
Meu sorriso desapareceu.
— Desde Mary, não tem sido fácil deixar as pessoas entrarem. Você sabe
disso, talvez melhor do que ninguém.
— Eu sei, — ela disse sombria e tristemente. — Mas isso não significa
que você não deveria tentar. — Ela se aproximou e descansou a mão no meu
braço. — Vai ficar tudo bem, Charlie. Eu prometo a você isso.
Era algo que ela me prometeu antes, mas eu não acreditava nisso mais do
que nunca.
— Obrigado, — eu disse de qualquer maneira.
— De nada. — Ela começou a desamarrar o avental. — Precisa de mais
alguma coisa de mim esta noite?
Eu balancei minha cabeça.
— Obrigado por ficar até tarde.
— Oh, não há problema. Qualquer coisa para ajudar a cavalaria a se
instalar e pronta para assumir o controle das crianças. Nada me faz sentir tão
impotente quanto falhar nessa tarefa em particular.
Eu sabia o que ela queria dizer muito bem para admitir em voz alta.
Concordei, mas suspeitei que ela reunisse meus sentimentos da mesma
forma.
Katie saiu para a noite e eu caminhei pela casa vazia, parando no quarto
que seria ocupado por Hannah logo pela manhã. O chão estava escuro, as
paredes também, com uma lareira em frente à cama dela. O quarto parecia
velho, mais velho que o resto da casa vitoriana, e eu me perguntava se
Hannah iria gostar, como ela seria lá. Imaginei-a sentada na cama como um
raio de sol na escuridão da meia-noite.
Com esse pensamento, empurrei o batente da porta e voltei para o meu
escritório. Era tão clássico quanto o resto da casa – com madeira velha e piso
escuro, as estantes embutidas emoldurando uma janela e minha mesa na
frente dela, de frente para a porta.
E então voltei ao trabalho. Porque pelo menos isso era algo em que eu era
bom.
3
VERDADE DAS CIRCUNSTÂNCIAS

H annah
— Conte-me tudo, — disse Lysanne em holandês, enquanto
colocava o travesseiro no colo, o rosto brilhando de antecipação e
as bochechas erguidas enquanto esperava que eu me juntasse a ela.
Eu ri e coloquei minha bolsa na porta do quarto dela.
— Vou sair da sua cola pela manhã. Eu consegui o emprego.
Ela acenou com a mão para mim e eu subi na cama dela e me sentei em
frente a ela.
— Ouch. Detesto que você vá embora, mas prefiro que não seja
deportada. Levei dois anos para convencê-la a vir aqui em primeiro lugar.
Com outra risada, peguei um travesseiro também, espelhando-a enquanto
nos inclinávamos uma para a outra como garotinhas.
— Como são as crianças?
— Eles são perfeitamente adoráveis.
— Eu posso ver pela geleia no seu suéter. Perfeitamente adoráveis.
Olhei para baixo, tendo esquecido.
— Entrei no pandemônio. A cozinheira os observava, mas ela não podia
dar a eles a atenção de que precisavam e fazer o trabalho dela também. Eles
só queriam o tempo de alguém, então eu dei o meu. Foi realmente simples.
Lysanne balançou a cabeça, colocando os cabelos longos e escuros atrás
da orelha.
— Você está melhor do que todos nós. Eu quase matei Sydney hoje.
Eu ri.
— Não, você não fez.
Ela assentiu seriamente.
— Ah, mas eu fiz. Ela brigou comigo o dia inteiro por tudo – me vestir,
almoçar, escovar os dentes, tomar banho, ir para a cama. Eu praticamente tive
que colocá-la em sua camisola, enquanto ela lamentava por não querer dormir
– eles sempre fazem isso quando estão mais cansados - e ela não ficava em
seu quarto, nem por um batimento cardíaco. No momento em que saí, ela
estaria lá, abrindo a porta. Juro que nunca conheci uma criança de seis anos
mais obstinada em todos os meus dias.
— Todos os seus longos e longos dias em 22 anos? — Eu provoquei.
Ela revirou os olhos.
— De qualquer forma, você provavelmente teria apenas sorrido e cantado
uma canção para ela e não teria se incomodado.
— Oh, você sabe que posso me incomodar. Você testa os limites disso
diariamente.
Ela riu e me bateu com o travesseiro antes de colocá-lo de volta no colo.
— Conte-me sobre o anúncio, — disse ela, com um tom sóbrio e um
sorriso achatado. — Ele deve ter sido legal se você aceitou o trabalho.
— Sim, acho que ele é bom. — Suspirei. — No momento, parecia certo.
Meu instinto disse que era seguro, que eu estava segura, que era uma boa
combinação. Mas desde o segundo em que saí, senti que cometi um erro. Eu
estava apressada em concordar sem pensar, mas algo neles me fez querer
dizer sim. Eles precisam da minha ajuda e, com base no que vi quando entrei,
precisam da minha ajuda agora. As crianças são doces e Charlie é... eu não
sei.
Perdido, eu acho. Algo nos olhos dele... são castanhos mais profundos,
sem fundo, tristes.
As sobrancelhas dela se ergueram.
— Charlie, hein? Com os olhos sem fundo? Sim, parece que não há
perigo algum. Ele é bonito, então?
Outro suspiro saiu de mim.
— Sim, ele é bonito. Alto, loiro, rico e pai solteiro. — Meu estômago
afundou como uma pedra. — Essa é realmente uma péssima ideia. Você acha
que... devo recusar? Ainda há tempo.
— Bem, — ela começou pensativa, — você realmente precisa do
emprego, e quem sabe quando outro estará disponível? Este levou semanas.
Ele é mais bonito que Quinton?
Ao som do seu nome, meu coração parou, começando de novo com um
chute.
— Eu nunca pensei que Quinton fosse bonito.
— Noventa por cento das au pairs que conhecemos estariam de costas
para ele em trinta segundos.
Eu olhei para ela. — Quinton é casado. E existem dois tipos de homens
bonitos – os que sabem que são bonitos e o exploram sempre que possível e
os que são bonitos porque não o exploram.
Quinton é o primeiro.
— E Charlie com os olhos castanhos sem fundo é o último?
Eu assenti. — Acho que sim. Além disso, a cozinheira me disse que ele é
muito ocupado com o trabalho e mal para em casa. Quando ele está, ele se
tranca em seu escritório. Ela só tinha as melhores e mais gentis coisas a dizer
sobre ele, que é outra razão pela qual concordei. Quinton tratava todos na
casa como propriedade, até as crianças. Eles deveriam ser vistos e não
ouvidos, como um par de estátuas iguais para colocar no manto para
exibição. Mas Charlie se importa muito; é fácil ver em seu rosto, em seu
corpo, ouvir em sua voz.
— E você conseguiu tudo isso em uma tarde?
Dei de ombros. — É apenas um sentimento, sabe?
— Você sempre foi assim. Eu suspeito que é por isso que você é tão boa
com crianças; você tem um sexto sentido para esse tipo de coisa. Eu confiaria
nisso. Você soube no momento em que entrou na casa de Quinton que ia
acabar mal.
Arrepios subiram pelos meus braços e esfreguei meu antebraço para
aquecê-los. — Eu não senti nada que me deu uma pausa na casa do Charlie. E
eu estava pronta para dizer não; estava nos meus lábios antes dele abrir a
porta. Mas então ele abriu a porta – falei simplesmente, como se explicasse
tudo.
— E se não der certo? — Ela perguntou, o olhar em seu rosto me dizendo
que sabia que não gostaria da minha resposta.
Eu peguei a mão dela. — Então é hora de eu ir para casa. Acho que nós
duas podemos admitir que minha vinda para a América foi um desastre.
Ela enrolou os dedos nos meus. — Eu ainda acho que você precisa dar
mais uma chance. Você está aqui há apenas alguns meses. Eles não dizem
que você deve julgar até que esteja em algum lugar há seis meses? — Ela
perguntou esperançosa.
— Bem, a maioria das pessoas não sai do avião e entra em uma situação
como eu. Eu deveria ter me virado no segundo em que passei pelo limiar da
casa de Quinton.
— Talvez desta vez seja diferente.
— Acredito que sim. E espero poder me apaixonar por esta cidade como
você. Eu só... não é o que eu pensava que seria. As coisas nunca são,
suponho, mas eu não esperava me sentir tão...separada. Isolada. Eu não
pertenço a este lugar, e não sei se algum dia vou me sentir assim. E, se as
coisas não derem certo com esse emprego, vou para casa e não ficarei triste
com isso, além de sentir sua falta.
Ela parecia preocupada, então eu apertei sua mão e sorri.
— Não se preocupe comigo. Preocupe-se com Sydney. Suspeito que ela
esteja na cama, planejando arruinar seu dia amanhã.
Lysanne riu. — Oh, eu tenho certeza disso, a pequena megera.
Felizmente para ela, ela é adorável.
Inclinei-me e pressionei minha bochecha na dela. — Eu digo isso sobre
você todos os dias.
Saí da cama para me preparar para dormir, minha mente se ocupando com
reflexões do dia seguinte, nas próximas semanas, nas esperanças, medos e
incertezas.
E quando as luzes se apagaram e o sono entrou, a verdade da minha
situação também. Era muito mais perigoso do que eu admiti para mim
mesma. Mas essa verdade escorregou na areia do sono e, quando acordei,
estava escondida e esquecida, esperando o vento a descobrir de novo.
4
SE APENAS

H annah
Na manhã seguinte, quando bati na porta dos Parkers, fiquei
notavelmente menos nervosa e, quando ela se abriu, a cena era
visivelmente menos caótica.
Mas o sorriso de Charlie ainda era tão deslumbrante quanto nas poucas
vezes em que o vi no dia anterior.
— Bom dia, — ele disse enquanto pegava uma das minhas malas e depois
a outra.
— Bom dia. Obrigada.
Entrei e ele fechou a porta atrás de mim.
— Sem problemas. Eu realmente aprecio você começar tão cedo. — Ele
rolou as malas em direção à escada para o andar inferior e qual seria o meu
quarto. — Preciso voltar ao trabalho amanhã – hoje na verdade. Está
esperando impacientemente por mim no meu escritório.
Eu segui. — Não é problema. O timing deu certo.
— Isso mesmo.
Não dissemos mais nada enquanto descíamos as escadas, pelo corredor, e
ele virou a esquina do meu quarto com minhas malas.
Eu parei do lado de fora por instinto, alertando os nervos em uma
corrente pelas minhas costas ao ver Charlie no meu quarto. Não consegui me
forçar a entrar e não queria.
Acalme-se. Ele é seguro.
Ele parou as malas ao lado de um guarda-roupa e virou-se para mim, o
rosto macio e aberto, os olhos profundos e honestos, embora apertados nos
cantos com dor, tristeza ou arrependimento – eu não podia ter certeza de qual.
Nada nele inspirava medo, mas eu fiquei do mesmo jeito.
— As crianças estão de alguma forma miraculosamente adormecidas,
mas se elas dormem muito depois das nove, pode ser difícil fazê-las dormir.
Estarei no meu escritório se precisar de algo com o qual Katie não possa
ajudá-la.
— Ela trabalha todos os dias? — Perguntei.
— Os domingos costumam ser seu dia de folga, mas ela ficará por aqui
para ajudá-la a se estabelecer. Ela sabe muito mais do que eu sobre como
administrar a casa — ele disse com uma risada depreciativa enquanto se
dirigia para a porta.
Meu pulso disparou um pouco mais rápido a cada passo dele, e eu me
afastei do caminho, dando-lhe um amplo espaço para passar.
Ele parou, me olhando com curiosidade, sua mão se movendo como se
ele pudesse tentar me tocar, mas ela caiu de volta para o lado dele.
— Estamos felizes por você estar aqui, Hannah, — ele disse suavemente.
— Estou feliz por estar aqui, — eu disse igualmente suave.
Com isso, ele assentiu uma vez e virou-se para o escritório, respirando
fundo com ele em um whoosh.
Ele não vai te machucar. Você pode confiar nele. Você deveria tentar.
E eu queria. Ele não fez nada além de respeitar o meu espaço, nunca
dando a entender que ele era qualquer coisa, menos inócuo.
Mas o rosto de Quinton brilhou em minha mente, endireitando minhas
costas, limpando meus pensamentos.
As diferenças entre Charlie e Quinton me impressionaram, a justaposição
de emoções que eles invocaram. Onde Charlie não me deu nenhuma razão
tangível para se preocupar, Quinton me deixou desconfortável desde o
primeiro momento em que o conheci. Algo sobre a maneira como seus olhos
se demoravam ou a maneira como seus belos lábios se curvavam quando ele
sorria.
Não demorou muito tempo depois que eu me mudei para ele ficar mais
ousado. Ele aparecia na porta da cozinha tarde da noite quando eu estava
fazendo chá ou fazia questão de me encontrar no corredor, como se estivesse
esperando um momento para ficar sozinho comigo em um espaço silencioso e
inevitável.
Eu disse a mim mesma que era inocente o suficiente, ignorando os sinais
de alerta que eu deveria ter ouvido.
Uma vez, ele tocou minha mão quando sua esposa estava de costas para
nós, a sensação de sua pele na minha como graxa quente.
Outra vez, ele segurou a curva do meu traseiro e apertou, sua mão
desaparecendo tão rapidamente que eu me perguntei se tinha imaginado
aquilo.
Uma vez, ele entrou no banheiro enquanto eu estava tomando banho e
gentilmente me lembrou de trancar a porta. Eu tinha fechado; Eu a fechei
com força e verifiquei duas vezes.
Uma vez, ele entrou no meu quarto no escuro da noite e me acordou com
a mão na minha camisola e os lábios contra os meus.
Eu o empurrei, saí da cama, pronta para correr, gritar ou lutar, e quando
eu disse para ele sair, ele o fez.
Eu sabia que não seria o fim. O desejo em seus olhos tinha sido ancorado
por uma promessa inabalável de esperar, não parar. Mas ele saiu do meu
quarto, e eu movi a cadeira em frente à porta com as mãos trêmulas antes de
arrumar minha mala.
Na manhã anterior a minha partida, eu disse a ele e a sua esposa que eu
tinha uma emergência familiar e que partiria imediatamente para Holanda.
Ela me abraçou e me agradeceu e me desejou o melhor, enquanto ele nos
observava abraçar com raiva ardente, o olhar sombrio e amargo de alguém
que havia perdido o brinquedo.
A família anfitriã de Lysanne me recebeu e, por duas semanas, eu os
paguei com meu tempo enquanto trabalhava com a agência para me colocar
em uma nova vaga. Uma vaga melhor.
E eu acreditava que tinha encontrado uma. Dessa vez, não houve olhares
predadores, nem mesmo uma sugestão de nada além de respeito. Tinha sido
muito cedo para tomar a decisão de ficar, especialmente desde que eu estava
errada antes. Mas onde Quinton sempre pareceu perigoso, Charlie apenas
parecia seguro.
Quinton era bonito do jeito que uma pantera era – forte demais, elegante e
com fome de confiança.
Charlie era bonito do jeito que um príncipe era – muito nobre, honesto e
virtuoso para negar.
Para fingir que ele não era seria uma mentira e uma farsa absoluta. Mas
não significou nada que eu vi e senti. Eu já tinha visto muitos homens
bonitos, até namorado homens bonitos. Eu disse a mim mesma que estava
mais consciente porque estaríamos morando juntos. E porque ele não era
casado. E porque vê-lo com seus filhos fez algo comigo que eu não conseguia
descrever, despertou algum desejo instintivo por isso. Não ele, mas isso.
O fato de eu sentir qualquer coisa, mesmo um pensamento passageiro
além do interesse profissional, deveria ter me feito empacotar, e não desfazer
as malas, dobrar minhas roupas e organizá-las no grande guarda-roupa. Mas,
tanto quanto eu aprendi, eu ainda era ingênua, dizendo a mim mesma que
estava no controle.
Lembrei-me de que qualquer um ficaria interessado em um pai solteiro
bonito e bem-sucedido. Algo sobre a solidão e a determinação necessárias
para fazer algo assim inspirava respeito e um ar de fascínio. Era estritamente
circunstância, não o próprio homem. Eu nem o conhecia.
Eu pensei que faria bem em continuar assim.
Então, guardei meus pensamentos com minhas blusas e meias com a
esperança de que elas ficassem caladas.
A sala onde eu estava era velha, escura e aconchegante, o belo manto
antigo quase imponente, mas ainda singular. Isso me lembrou muito da
Holanda dessa maneira, uma familiaridade que me tocou com uma profunda
sensação de desejo. Mas o lar não ia a lugar nenhum. Este quarto era meu
apenas por um tempo.
Obviamente, isso era triste por si só, um lembrete da rapidez com que as
coisas podiam mudar.
Quando terminei de desfazer as malas, passava das nove, então fui até o
quarto das crianças para acordá-los.
Primeiro, Maven, de olhos turvos e lento. Ela pendurou em mim como
um coala, e eu me sentei em sua cadeira de balanço, cantando por alguns
minutos enquanto ela dormia. O peso dela descansando no meu peito era um
conforto quente, seus cachos loiros sedosos na ponta dos meus dedos
enquanto eu balançava, cantarolava e cantava. E então ela se sentou, olhando
para mim com os maiores e mais profundos olhos castanhos, o polegar na
boca enquanto tocava minha bochecha com a outra mão.
Eu beijei sua bochecha e a peguei, indo para o quarto de Sammy.
No momento em que sussurrei: — Bom dia, — ele saiu da cama como
um raio, de olhos brilhantes e fazendo perguntas sobre o dia.
— Vamos começar com o café da manhã, sim? — Perguntei rindo.
Ele concordou com um grito quando saiu correndo do quarto e desceu as
escadas.
Quando cheguei à cozinha, ele já estava sentado à mesa com um bolinho
em um prato, comendo o topo dele.
— Bom dia, — Katie cantou.
— Bom dia.
Sentei Maven em seu assento, e Katie apareceu no meu cotovelo com um
bolinho e um copo de leite para ela. Maven o pegou delicadamente e deu uma
pequena mordida.
— E como você está esta manhã? — Katie perguntou, voltando para a
ilha onde ela havia me espalhado.
— Muito bem, obrigada. Com quanto tempo você chega aqui na maioria
dos dias?
Ela encolheu os ombros. — Cerca de seis, mais ou menos. Mais tarde aos
sábados.
Coloquei um prato com frutas e um croissant. — Me desculpe, você teve
que entrar hoje. — Ela me dispensou. — Oh, tudo bem. Fico feliz em ajudar,
ainda mais feliz por você estar aqui e eu poder voltar ao trabalho único, em
vez de dobrar. Não que eu não ame os anjos, mas prefiro esfregar os rodapés
nos joelhos velhos do que tentar mantê-los longe de problemas. Já tenho
bastante tempo para me manter longe de problemas.
Eu ri e me sentei no bar. — A mãe deles não mora na cidade para ajudar?
— Os lábios de Katie se achataram. — Oh, ela faz. Ela trabalha em
Amsterdã, no Monte Sinai.
Meu rosto se torceu em confusão.
Ela não esperou que eu perguntasse; a pergunta deve ter ficado clara no
meu rosto. A voz dela baixou. — Ela abandonou todos eles – a vida toda fora
do trabalho. Ela não vê as crianças desde que partiu no inverno passado.
Eu descobri que não tinha nada a dizer e nem apetite pelo meu café da
manhã. Eu assisti Maven comendo seu bolinho com gentileza metodológica,
imaginando como no mundo sua mãe poderia tê-los deixado tão facilmente.
Mas eu me peguei. Eu não a conhecia, não podia saber o quão difícil ou
fácil tinha sido. Talvez a culpa a estivesse devorando lentamente. Talvez ela
tivesse tentado voltar. Talvez ela não acreditasse estar em forma.
O pensamento me fez sentir melhor do que a imagem dela como um
monstro. Então, eu me apeguei a isso.
— Eles sentem falta dela? — Eu perguntei, olhando para Sammy, que
estava cantarolando e tão interessado em seu café da manhã, que ele não
parecia estar perdendo nada.
— Difícil de dizer. Eu nunca os ouvi mencioná-la.
— Que estranho, — eu murmurei.
Mas Katie bufou. — Na verdade não. Dizem que ela não estava ganhando
nenhum prêmio por Mãe do Ano. Esposa do ano também.
— Ela se inclinou ainda mais, sua voz quase um sussurro. — Ela traiu
Charlie. Isso durou anos debaixo do nariz dele – e com o melhor amigo dele.
Um formigamento lento percorreu minha espinha. — Oh meu Deus. —
Katie assentiu, seus ombros subindo e descendo com um suspiro. — Ele
perdeu todos os seus amigos. Parecia que todos sabiam sobre o caso e não
contaram a ele. E Mary saiu de casa imediatamente, e desapareceu cedo. Os
pais dele vieram um pouco enquanto ele protegia eu e Jenny e arrumava
todos nós. — Ela balançou a cabeça. — Charlie estava uma bagunça naqueles
dias.
Mas isso é uma história para outra hora. — Os olhos dela se voltaram
para a entrada da cozinha e ela se endireitou. — Chá ou café? — Ela
perguntou, virando a conversa com a pergunta.
— O chá seria adorável, obrigada. — Eu respondi.
Ela assentiu e ligou a chaleira. Eu assisti as crianças tomando seu café da
manhã, imaginando como tudo aconteceu, como ele lidou com tudo, como se
sentiu e o que passou.
Suspirei. Eu poderia imaginar o dia inteiro, mas não havia como eu
entender o quanto ele havia sido ferido. O pensamento errante de que ele
poderia ter sido culpado passou pela minha cabeça, mas eu não conseguia me
convencer de verdade, não depois do que tinha visto, por mais breves que
fossem os vislumbres que obtive. Ele teria que ser um ator espetacular para
andar por aí com o peso nos ombros e a tristeza nos olhos, para fingir amar
seus filhos. Você não podia manifestar amor onde não havia. Não foi mais
fácil do que pará-lo, uma vez que tomou conta.
Sempre acreditei que o mal podia ser visto, às vezes nos lugares menores
e mais silenciosos. Mas esses lugares calmos também eram onde você podia
ver coragem, força, bondade.
Charlie só me mostrou o último, e Katie confirmou minha crença de que
ele teria tentado fazer a coisa certa. E me apeguei a isso com mais força do
que provavelmente deveria.
C harlie
Eu não deveria ter me trancado no meu escritório o dia todo, mas
o fiz.
Era inocente. Eu sempre trabalhava aos sábados, às vezes em casa, mas
eu tinha tirado um dia para acostumar Hannah, o que me deixara com
algumas coisas para fazer. Eu me perdi na tarefa em questão, e antes que eu
soubesse quão tarde havia chegado, Katie apareceu na porta com a cabeça
para se despedir do dia.
Eu tinha almoçado e jantado na minha mesa, e quando Hannah entrou
para me avisar que as crianças estavam dormindo e que ela estava voltando,
lembrei-me de algo muito vital.
Meus desejos por querer mais tempo para passar com meus filhos eram
inúteis.
Tentei dizer a mim mesmo que talvez, se eu conseguisse controlar minha
carga de trabalho, pudesse encontrar uma maneira de voltar para casa mais
cedo, alguns dias por semana. Eu poderia tirar algumas horas nos fins de
semana para jantar, almoçar ou dormir. Mas isso era mentira. Não havia
como ficar por dentro das coisas. O ataque de coisas para fazer nunca
cessava, nunca diminuía e, mesmo que eu encontrasse uma maneira de
recuperar o atraso, nunca chegaria à frente.
Em vez disso, eu só teria mais trabalho para empilhar.
Com a presença de Hannah veio o desejo de me esconder, de ficar
sozinho. Era uma pessoa nova no meu espaço depois de muito, muito tempo
com as coisas iguais. Parecia uma intrusão. Para não dizer que era
desagradável, apenas estranho, perturbador.
Era um lembrete do quão sozinho eu estava – que algo tão simples como
uma nova babá iria me afetar além do óbvio.
Houve momentos em que senti falta da minha vida anterior, perdi os dias
de bebidas, jantares e passeios com os amigos, perdi os dias em que eu tinha
menos trabalho e mais tempo. Quando me levantei depois que Mary foi
embora, eu me joguei no trabalho tão completamente que, depois de alguns
meses, ganhei uma promoção – uma promoção que aumentou minha carga de
trabalho em uma margem grande o suficiente para consumir qualquer tempo
livre que eu teria gostado. E, até recentemente, a distração tinha sido bem-
vinda.
Mas sentia falta da camaradagem de amigos, do conforto de um
relacionamento, mesmo que tudo estivesse errado, mesmo que não fosse real.
Estar sozinho, eu descobri, era mais fácil em muitas maneiras, arriscando-
se a aventurar-se na terra dos vivos. Pelo menos assim, eu não poderia me
machucar novamente.
Esta casa, todos os cômodos, tudo dentro – incluindo os três corações
pulsantes – estava colorida com lembranças perdidas e desejos soprados pelo
vento, para nunca se tornar realidade.
Quando eu conheci Mary, eu estava estudando para o exame de barra, e
ela tinha acabado de começar sua residência. Tínhamos muito pouco tempo
livre, mas quando tínhamos, estávamos juntos, desabafando. E eu gostava
dela o suficiente.
Como isso foi para uma declaração? Ela está bem.
Naquela época, eu não estava pensando além do fim de semana.
E então ela me disse que estava grávida.
Ela deu a notícia com lágrimas e raiva, e eu a abracei e prometi que tudo
ficaria bem. O problema era que eu tinha sido estúpido o suficiente para
pensar que estaria. Eu me convenci de que nossos pontos em comum
poderiam se traduzir em amor.
Não havia como saber na época que ela não era capaz de dar amor, não a
mim, nem a ninguém. E eu não tinha percebido isso até Sammy nascer. Dia
após dia, pouco a pouco, minha esperança desapareceu até que se
transformou em uma versão distorcida e quebrada do original, e eu cobri
meus olhos e fingi que estava tudo bem. Bem. Isso daria certo. Minha linda
vida estava ao virar da esquina.
O que eu queria sempre estava ao virar da esquina, e eu o perseguia,
curva após curva, tentando pegá-lo. Às vezes, eu vislumbrava antes que
desaparecesse, dando-me uma esperança falsa de que eu poderia estar
ganhando.
Mas no final, eu sempre chegava tarde demais.
Tive a sorte de várias maneiras. Meus pais haviam planejado bem o
suficiente para pagar minha faculdade e eram ricos o suficiente para nos
ajudar com o pagamento da casa. Meu trabalho na empresa pagou mais do
que o suficiente para nos apoiar e, com a renda de Mary incluída, tínhamos
nos saído muito bem. Melhor que bem.
Mas o dinheiro não era suficiente para nos fazer felizes, e as crianças não
eram suficientes para nos manter juntos. Nenhuma dessas declarações
surpreenderia ninguém no mundo, exceto eu e ela.
O fim não foi gentil com nenhum de nós. Finais nunca foram.
Passei anos fingindo que as coisas estavam bem. Nós sobrevivemos
apenas trabalhando quantas horas pudéssemos apenas para nos manter
ocupados. É claro que Mary também se mantinha ocupada de outras
maneiras. Como na cama do meu melhor amigo. Por dois anos.
Ela mentiu, mentiu para mim, mentiu para si mesma. Ela traiu todos nós,
e seu único arrependimento foi que eu descobri. Eu sabia disso porque a
conhecia da melhor maneira que qualquer um podia, pois observava
silenciosamente como se olha uma cobra por trás do vidro. Ela estava
interessada em autopreservação, nada mais – nem de mim, nem dele – e nós
dois aprendemos isso tarde demais.
Quando soube o que ela fez, eu deveria estar perdido. Quando ela
desapareceu no ar, eu deveria estar aberto. Deveria sentir a pontada de perda
como uma lâmina rápida quando segurei meu filho chorando e lhe disse que
não sabia onde ela estava. Quando eu parei em meu quarto e olhei para sua
cômoda aberta, suas roupas penduradas nas gavetas, vomitando quietude, eu
deveria ter sentido algo.
Mas não senti.
Era onde eu estive desde então – um deserto cinza onde todos os dias
eram iguais. Não havia cor, nem faísca, nem vida. Apenas trabalho e
paternidade falhada, dormindo, comendo e trabalhando em Sisyphean sem
uma meta ou fim.
Minhas mensagens telefônicas perguntando como ela queria lidar com a
custódia ficaram sem resposta. Meus e-mails com resumo de nossas opções
nunca foram retornados. Meus esforços para tentar fazer as coisas
acontecerem foram recebidos em silêncio.
Eu tentei dar a ela tempo. Talvez ela estivesse tão arrasada quanto eu nos
primeiros meses depois que ela saiu. Eu queria acreditar que ela apareceria. E
foi até eu estar desesperado por uma resolução que fui para o Monte Sinai,
onde ela trabalhava.
Lembrei-me de sair do elevador, vendo-a por trás, a cabeça inclinada
enquanto anotava uma pasta, cabelos em um rabo de cavalo apertado, jaleco
azul e casaco de laboratório tão indescritível quanto qualquer outro médico
que passava. Mas eu sabia que era ela, sabia tão bem quanto conhecia minhas
próprias mãos e tão distante quanto conhecia meus próprios filhos. Ela fazia
parte de mim e era um alien – estrangeira e familiar. Eu a conhecia e não
fazia ideia de quem ela era.
Ela se virou e me viu, com o rosto preso em uma mistura de emoções –
medo, dor, fracasso, consternação. E então seus lábios se achataram, seus
olhos se fecharam e saiu atrás de uma parede de ferro.
Como se eu fosse culpado. Como se eu a tivesse deixado.
Como se eu tivesse feito qualquer coisa, mas honrado minha promessa a
ela, mesmo sabendo no fundo dos lugares calmos do meu coração que ela não
me amava.
Como se eu tivesse dormido com a melhor amiga dela.
Antigo melhor amigo.
Mas nem Jack a tinha mantido. Ele percebeu o que eu sabia o tempo todo
– Mary era muito egoísta para amar alguém além de si mesma.
Uma vez que ela me processou diante dela, ela girou nos calcanhares e se
apressou, me ignorando enquanto eu a perseguia pelo corredor, me
esquivando facilmente entrando em um corredor para a equipe do hospital
que exigia uma entrada importante. E eu fiquei do lado de fora do chão por
um longo tempo, olhando através das pequenas vidraças quadradas de vidro,
imaginando como teria me encontrado naquele lugar, naquele momento.
Eu estava tentando fazê-la trabalhar comigo, negociar e só me encontrei
em silêncio. Aquele dia foi a etapa final. Ela não se importava, e ela nunca
iria. Então, eu pedi o divórcio sem ela, e não lhe dei nenhum quarto com
meus termos.
Mas ela apenas ignorou isso também. Os papéis do divórcio não haviam
sido assinados e a audiência de custódia temporária continuara sem ela, com
o assento frio e vazio. E eu me encontrei sozinho, exceto não sozinho. Eu
tinha meus filhos para cuidar. Tudo tinha caído sobre mim, e eu não tinha
ideia de como lidar com tudo.
Então eu não lidei. Não podia.
Eu gostaria de culpar meu trabalho por minhas falhas. Trabalhar oitenta
horas por semana em um escritório de advocacia não dava muito tempo para
nada além de dormir e comer, e mesmo esses eram, às vezes, luxos. Gostaria
de culpar Mary por não ser minha parceira ou por sua incapacidade de amar
até seus próprios filhos.
Era um pensamento muito cruel, e eu supunha que realmente não estava
falando sério. Eu acreditava que, em algum lugar nela, ela se importava. Só
que esses sentimentos estavam enterrados em tantas camadas de auto-
importância que ela não apenas não os encontrou, como também não
desejava.
E então eu tinha decidido aprender a ser pai, aprender a dar aos meus
filhos o amor que eles não tinham recebido de nenhum de nós.
O que eu não contava era com minha absoluta inaptidão.
Eu estava muito quebrado e com medo de intervir, da maneira que eles
mereciam.
Em todos aqueles anos em que me escondi do meu casamento, eu também
me escondi deles. E eu estava longe há tanto tempo, que não conseguia
encontrar o caminho de volta para eles, o caminho cresceu e foi selvagem e
desaparecido. E eu estava perdido em algum lugar dentro do emaranhado.
Quando finalmente saí do escritório, a casa estava escura e silenciosa com
o sono. A luz da lua era a única luz no meu quarto quando me movi para o
armário e escolhi minhas roupas. A luz noturna era a única luz no banheiro, e
eu também não mudei isso enquanto escovava os dentes, observando meu
reflexo.
Eu parecia mais velho do que deveria e mais jovem do que me sentia.
Os últimos nove meses me afetaram. No fundo, eu sabia que o ritmo da
minha vida não era sustentável, que, se continuasse como estava, colidiria,
queimaria e levaria tudo comigo.
Honestamente, fiquei surpreso por não ter já.
Mas não consegui encontrar uma saída do ciclo. Eu tinha quebrado o osso
que controlava minha velocidade, e minha vida continuava avançando
enquanto eu continuava, fechei os olhos e esperava que o que acelerasse
algum dia diminuiria. Parte do problema era que eu não o questionara quase o
suficiente.
Mas depois de ontem e da introdução de Hannah em nossas vidas, eu me
vi considerando isso com muito mais sinceridade. A energia dela me tirou do
rumo, apenas um passo, apenas o suficiente para me fazer rachar os olhos e
dar uma olhada em onde eu estava, e não gostei do que vi.
E enquanto eu subia entre meus lençóis, tentei fechar meus olhos
novamente, tentei forçá-los a fechar, tentei encontrar a paz.
Mas não adiantou.
5
LUZ DO FOGO

C harlie
Durante uma semana inteira, fiz pouco além do trabalho, em um
esforço para ganhar um pouco de terreno, alimentado pelo desejo de
ganhar uma folga.
Eu não tinha visto muito a Hannah, principalmente no período da manhã,
quando saio. Mas ontem à noite, eu cheguei em casa do trabalho cedo o
suficiente para comer com as crianças antes de ficar no meu escritório para
queimar o óleo da meia-noite.
E isso foi bom.
Eu até ajudei um pouco na hora de dormir, a tarefa simplificada com
Hannah ao meu lado, oferecendo conforto e um sorriso que me deu
confiança.
Claro, Hannah estava sempre sorrindo, e eu sempre me via sorrindo de
volta. Era um sentimento estranho, algo tão natural, mas meu rosto quase
resistiu, como se aqueles músculos tivessem se atrofiado por desuso.
Havia algo sobre aquela curva simples de seus lábios, tão ampla e
honesta. Eu não a conhecia muito bem, mas esse sorriso me fazia sentir como
se já a conhecesse.
Para o trabalho, eu ia todos os dias, muito ocupado para considerar
qualquer coisa – não meus fracassos ou deficiências ou a bela e jovem au pair
que havia se mudado comigo. Pelo menos eu tinha um plano, e esse plano
exigia que eu trabalhasse, ficasse em cima da minha merda e ganhasse algum
tempo.
É claro que, em seguida, uma nova fusão chegou à minha mesa, e o pouco
de terreno que eu ganhara se perdeu assim.
A compra e venda de empresas não era um processo que adormecia, nem
mesmo quando os advogados o faziam. Em vez disso, o trabalho empilhava,
os contratos que precisavam de revisões se acumulavam em uma pilha
interminável de discursos e cláusulas legais, subcláusulas e adendos.
Era um negócio brutal – fusões e aquisições. Nós éramos comerciantes e
revendedores, localizadores de brechas e aparadores de esquina, usuários de
Is e cruzamentos de T s.
E eu odiava isso.
Era sugador de alma e drenante. Eu estava na minha empresa – uma
empresa importante com reputação de trabalhar com eficiência predatória –
há seis anos, e era tarde demais para mudar de marcha, tarde demais para
mudar o curso mais rapidamente do que o Titanic poderia ter quando a pobre
seiva tocou o alarme do iceberg.
Era um dilema que eu considerei muito nos nove meses desde que Mary
partiu. Não me interprete mal; Eu contemplei cada decisão que eu tinha feito
desde a primeira vez que concordei em sair com ela. Mas minha carreira foi a
única que senti que talvez pudesse fazer alguma coisa.
Que coisa era essa, eu não fazia ideia. Tudo o que eu sabia era que, a cada
ano, mês e semana que passava, eu me via cada vez menos encantado com o
dinheiro ou o preço que isso causava para mim.
Suspirei e peguei meu marca-texto naquela tarde de sábado, inclinando a
cabeça sobre o contrato à minha frente com meu objetivo empurrado para a
frente da minha mente e meus arrependimentos recuados.
Uma pequena batida soou na porta.
— Entre, — eu disse distante, os olhos ainda na página, esperando Katie
com comida, a julgar pelo estado do meu estômago vazio.
— Olá. Katie me mandou trazer seu almoço.
Meus olhos se arregalaram com a primeira sílaba dos lábios de Hannah.
Ela caminhou em minha direção com uma bandeja de comida e um sorriso
calmo.
Coloquei meu marca-texto na mesa e movi os papéis para o lado,
levantando-me para cumprimentá-la, instantaneamente consciente de sua
presença.
Astuta, Katie. Muito astuta.
— Obrigado, Hannah. Eu sinto muito.
— Por quê? — Ela perguntou enquanto eu pegava a bandeja.
— Por me servir, eu acho. Não espero que você me sirva. — Eu me
atrapalhei um pouco, me sentindo envergonhado.
— Oh, está tudo bem. Eu não me importo. As crianças acabaram de
dormir.
— Bom. — Eu fiquei lá estupidamente no meio da sala, bandeja nas
mãos, sem saber o que dizer.
Ela assentiu uma vez e se moveu como se fosse sair, o sorriso ainda
brilhando em seus lábios.
— Então, está gostando até agora? — Pergunto um pouco alto demais.
— Gosto muito, obrigada. As crianças são adoráveis. Fizemos colares de
macarrão esta manhã. Sammy fez um para você também, com rodas de
carroça. Ele disse que você era um cowboy.
Coloquei a bandeja na minha mesa antes de me sentar na beira dela. —
Eu só participo de um na TV.
Hannah riu e eu me encontrei relaxando, me sentindo à vontade,
confortável.
— Katie é maravilhosa também. Ela me fez sentir muito em casa.
— Ela faz isso. É uma maravilha como eu sobrevivi sem ela.
Meus pais ficaram aqui por um tempo depois que minha esposa foi
embora, e era difícil deixá-los voltar para casa. A única coisa que facilitou foi
Katie. Ela é quase como uma família. Como uma tia bem-intencionada,
intrometida e amorosa, que faz um assado malvado.
Uma pequena risada passou por seus lábios, mas ela não respondeu.
— Seu quarto está bom? — Eu perguntei, o desejo de manter a conversa
me cutucando.
— Está ótimo. Eu queria saber... a lareira funciona?
— Sim. Temos madeira lá atrás. Vou lhe mostrar onde está e como
cuidar, se você quiser.
— Oh, está tudo bem. Tenho certeza de que posso resolver isso, obrigada.
Tão educada. Quase recatada.
A conversa parou novamente, o silêncio foi tenso, embora nós dois
estivéssemos sorrindo. Ela parecia não querer sair mais do que eu queria.
A realização me surpreendeu, o desejo por sua companhia chocante e
levemente inadequado.
Perigoso, Charlie. Deixe ela ir. Ela é sua babá.
Ah, mas se ela não fosse, uma parte quieta da minha mente sussurrou.
Limpei a garganta e me levantei. – Deixe-me saber se você mudar de
ideia sobre a lareira. E obrigado pelo almoço.
— De nada, — disse ela e saiu da sala, fechando a porta com um
sorrisinho.
Suspirei novamente, este mais pesado que antes. Deus, ela era gentil,
suave, tão diferente do que eu conhecia.
Mary tinha sido tudo menos suave, tudo menos quente. E Hannah era o
oposto absoluto, até a aparência delas; onde Hannah era clara e colorida
como a primavera e o sol, Mary tinha cabelos e olhos escuros e pele de
porcelana, como galhos de inverno contra a neve branca.
Mas não importava quão diferente Hannah era ou quão bem-vinda essa
diferença era. Não importava por muitas razões, razões que começaram e
terminaram com o papel de Hannah em minha casa.
Ela era minha babá e nada mais.
O dia passou, embora eu não tenha visto Hannah novamente.
Katie veio buscar a bandeja vazia com um sorriso liso, mas não disse
nada, e nem eu. Na próxima coisa que percebi, Katie voltou com uma
bandeja de jantar.
Eu mal tinha feito um estrago no trabalho.
O sol já havia se posto quando eu finalmente tive o suficiente, meu
cérebro disparando e misturando palavras em sua exaustão.
Nenhuma quantidade de alongamento poderia aliviar minhas costas duras
e doloridas, mas tentei de qualquer maneira.
Com um suspiro, eu me levantei, me animando quando abri a porta e
cheirei algo assando, algo doce. Eu segui meu nariz e o som da risada,
parando do lado de fora da cozinha.
Hannah estava na ilha e meus filhos sentaram na superfície, em torno de
uma tigela. Limões e mirtilos estavam espalhados ao redor da caixa de ovos,
óleo e um saco de farinha novinho em folha – corajoso da parte dela, eu diria.
O rosto de Maven estava roxo de mirtilos; um descansava entre o polegar
e o indicador, e ela o colocou na boca com graça – para uma criança de três
anos. Sammy estava cantando uma música que repetia a palavra limoeiro em
alturas e decibéis variados, e Maven dançava, uma espécie de movimento
saltitante. E Hannah estava mexendo a massa, sorrindo para dentro da tigela,
ocasionalmente encontrando os olhos de Sammy para balançar a cabeça em
solidariedade ao seu esforço musical.
A sala não estava muito clara, os faróis diminuíram na metade do
caminho, pintando a sala em ouro, marrom e suavidade. Katie não estava em
lugar algum.
O temporizador no forno tocou e Hannah limpou as mãos no avental,
pegando um porta-panela antes de abrir o fogão e retirar uma forma de
muffins. Sammy aplaudiu, e Maven mergulhou o dedo na massa, olhando
para Sammy para ter certeza de que não a tinha visto. Ele não tinha.
Quando Hannah pousou os muffins e se virou, me pegou observando-os
da porta, seu rosto se iluminou com um sorriso que me atingiu em lugares
que dormiam muito tempo. Sorri de volta e entrei na sala, sentindo-me leve e
com o coração cheio ao mesmo tempo, minha exaustão varrida pela cena na
cozinha, deixando-me calmo e em paz e bem.
— O cheiro está incrível aqui — eu disse.
— Estamos fazendo ka-varker-tarts — Sammy cantou.
Hannah riu. — Kwarktaarts.
— Foi o que eu disse! Ka-vark-tarts!
Outra risada. — Sim, claro. E como você chama isso? — Ela ergueu um
mirtilo.
O rosto dele estremeceu em concentração. — Bosbes?
— Muito bem! — Ela aplaudiu e bagunçou os cabelos dele. — Você
estará falando holandês em pouco tempo.
Andei até os muffins, salivando. — Muffins de mirtilo?
Ela inclinou a cabeça de um lado para o outro. — Quase isso. É
um bolo de limão e mirtilo. Bem, estes são muffins. Ainda estamos
trabalhando no bolo.
Eu peguei um, quente ou não. Cheirava muito bem para não pegar.
— Tenha cuidado, — disse ela com uma risada.
— Por favor, dê um passo atrás, senhora. Eu sou um profissional
treinado. — Eu balancei o muffin entre minhas mãos, desembrulhando-o
enquanto andava e minhas glândulas salivares trabalhavam horas extras. Uma
vez que estava livre, quebrei um pedaço fumegante, segurei-o pelo tempo que
tive paciência e coloquei-o na boca.
Onde prontamente derreteu.
Eu pensei ter visto meu cérebro quando meus olhos reviraram na minha
cabeça, e um gemido baixo ecoou na minha garganta.
— Oh meu Deus — eu disse no segundo entre engolir e empurrar outro
pedaço.
Ela se encostou no balcão da ilha, me vendo comer com um olhar
divertido no rosto e os braços em volta da cintura pequena.
— Não é justo, papai! Também quero um – disse Sammy com um
beicinho magnífico.
— Desculpe, filho. Estes são todos meus. — Eu fingi devorar todos eles,
e ele gritou meu nome.
Quando me virei, coloquei o resto do céu na minha boca. Tirei a
embalagem de outro muffin e abri ao meio para soprar. Quando o vapor foi
quase todo dissipado, ofereci metade para Sammy e a outra metade para
Maven, com cara de mirtilo.
Eles entraram avidamente, e eu peguei outro bolinho, praticamente
babando ainda enquanto corria para desembrulhá-lo.
— Deus, Hannah, o que você colocou aqui? Crack?
— O que é crack? — Sammy perguntou com a boca cheia.
— Um tipo especial de açúcar, — eu respondi em torno de uma mordida.
Hannah riu de novo, roçando os lábios com os nós dos dedos.
— O segredo é o queijo.
Eu olhei com cautela para o muffin. — Tem queijo aqui?
Ela assentiu.
— Isso é o que o torna tão úmido.
Dei de ombros e empurrei outra mordida pela escotilha.
— É surreal, Hannah.
— Obrigada, — disse ela, voltando-se para a tigela para despejar a massa
em uma panela de Bundt. — Tudo bem, quem vai me ajudar com os bosbes?
— Eu! — Sammy aplaudiu, levantando a mão enquanto Maven batia
palmas.
Ela ofereceu a eles um prato de berries.
— Tudo bem, como na última vez. Coloque-as no topo com muita
delicadeza, assim. — Ela demonstrou, colocando alguns mirtilos em cima da
massa.
As crianças seguiram o exemplo.
Eu desembrulhei outro bolinho.
— Nossa, Hannah, eu não tenho certeza de como tê-la por perto vai
funcionar para a minha cintura.
Ela sorriu para mim por cima do ombro. — Oh, acho que você ficará
bem.
Hannah não tinha dito nada, mas eu não pude deixar de sentir que havia
algum significado subjacente em suas palavras. Talvez fosse algo em sua voz,
o toque de suavidade, ou talvez fosse o jeito que ela olhou para mim, como se
eu significasse algo, como se eu fosse especial. Isso me fez sentir como algo
mais, me fez querer ser algo mais.
Talvez eu estivesse doidão de seus bolos de crack.
Mais provável, eu era apenas estúpido.
— Todos os holandeses cozinham tão bem assim? — perguntei, ansioso
para interromper a linha de pensamento que me encontrava montando.
— Tenho certeza que alguns sim. Meu avô era dono de uma padaria e
minha avó, mãe e tia a administraram depois que ele morreu. Assar sempre
esteve na família, suponho.
— Você gosta? — Eu perguntei enquanto dei outra mordida, diminuindo
a velocidade.
Quando ela se virou com a panela, suas bochechas estavam altas e
rosadas.
— Oh, eu amo isso. Pegar pedaços de coisas e transformá-las em algo
inteiro, algo mais. O tempo e o cuidado necessários para criar algo que traga
prazer a alguém. A rotina disso – medir, mexer, amassar. Os cheiros e o calor
do forno... tudo isso. Eu amo isso.
— Acha que vai assumir o negócio?
— Não. Minha irmã mais velha e minha prima mais velha assumiram o
lugar de nossas mães. — Ela parecia um pouco triste, e o pensamento de que
ela não podia ter o que queria enviou um raio de raiva irracional através de
mim.
Franzi o cenho.
— Bom, isso não é justo.
Ela abriu o forno e encontrou meus olhos quando ela deslizou a panela.
— Você soa como Sammy, — ela brincou.
— O garoto tem razão.
— Seria bom, mas estou feliz. E vou encontrar um emprego que me faça
feliz. Tenho certeza disso. — Ela ajustou o cronômetro.
— Hannah, podemos comer bolo hoje à noite também? — Sammy
perguntou.
Ela usou a toalha para limpar as mãos dele antes de espanar o nariz. —
Não esta noite. Não estará frio e pronto para comer até que você esteja longe
na terra dos sonhos. — Ela o levantou do balcão e o colocou no chão,
pegando Maven. — Vem, vem. Vamos tomar um banho, sim?
Sammy comemorou e Maven bateu palmas novamente.
Hannah ainda estava sorrindo quando olhou para mim.
— Eu voltarei para limpar, ok?
Eu balancei a cabeça, sentindo que deveria intervir, assumir.
Mas, no final, eu apenas disse: — Obrigado, Hannah — e a observei
desaparecer.
No momento em que estava sozinho na cozinha silenciosa, fiquei
impressionado com a realização. Eu não estava infeliz. Por um minuto, eu
não estava cansado, com raiva ou remorso. Eu quase chamaria isso de feliz.
Os momentos foram tão poucos e distantes entre si, e eles sempre
pareciam ter um preço. Brincar com as crianças me fez sentir vergonha por
não brincar mais com elas. Conversar com Katie me lembrou como eu estava
sozinho. Sempre era alguma coisa.
Por um minuto, por um pouco mais de tempo, senti como o meu antigo
eu, a minha versão antiga que pensava que ele estava feliz, que sentia que
estava gostando da vida, que brincava e ria e que não parecia escória, mesmo
que eu fosse. Eu poderia estar em negação naquela época, mas pelo menos eu
tinha encontrado alguma aparência de alegria na minha vida. A visão dos
meus filhos felizes ajudando Hannah a assar, encimado pelo sorriso fácil e
pela presença pacífica de Hannah, me fez esquecer todo o resto.
É claro, eu ainda deixei Hannah levar as crianças para o andar de cima,
momentaneamente paralisadas pela dúvida em minhas habilidades, o produto
de meses em evitar minhas responsabilidades por medo e culpa, o que só
piorava a culpa e dava mais força ao medo. O ciclo em que me encontrei era
vicioso e eu queria sair. Eu só tinha que descobrir como.
Com um suspiro, olhei em volta da bagunça na cozinha. Eu poderia ser
um covarde, mas ainda era um cavalheiro, caramba.
Então, arregacei as mangas e comecei a trabalhar.

H annah
Fechei suavemente a porta de Sammy, acenando para ele até
que a brecha fosse pequena demais para que pudéssemos nos ver.
Maven tinha ido dormir facilmente depois de um livro na cadeira de
balanço, mas Sammy havia exigido três livros, um copo de água e uma ida ao
banheiro antes de me soltar. Eu esperei um momento a mais do lado de fora
da porta dele, apenas por precaução. E, quando tive certeza de que ele não
voltaria a acordar, desci as escadas.
Tinha sido um bom dia, um dia divertido, mas cansativo. E não havia
terminado, percebi, ao me lembrar da bagunça na cozinha. Mas quando virei
a esquina, a cozinha estava silenciosa e impecável.
— Huh. — Eu sorri, com as mãos nos quadris.
E então fui procurar Charlie para agradecer.
Ele não estava na sala, e um olhar para cima me disse que não estava no
quarto. Então, descendo as escadas, fui para o térreo, indo para o escritório
dele. Mas quando passei pelo meu quarto, encontrei-o no último lugar que eu
esperava, ajoelhado em frente à minha lareira, arrumando toras.
A surpresa de vê-lo no meu quarto, sem ser convidado, me choca,
zumbindo sobre a minha pele, levantando os pelos dos meus braços e na parte
de trás do meu pescoço.
Ele sorriu quando me viu de pé no corredor do lado de fora da porta, mas
quando percebeu que eu estava enraizada no local, me afogando em
lembranças desagradáveis, seu sorriso desapareceu.
— Você está bem? — Ele perguntou cautelosamente.
— O que você está fazendo no meu quarto? — Perguntei, minha voz
tremendo um pouco, apenas o suficiente para me trair.
Ele ouviu meu medo e ficou de pé com os olhos arregalados.
— Deus, me desculpe. Eu não deveria ter vindo aqui sem... você sabe,
sem a sua permissão, sem perguntar. Eu ia trazer um pouco de madeira à sua
porta, mas estava aberta e pensei... bem, pensei que seria bom você entrar
com uma fogueira, já que sabia que você queria, e você já fez muito para
mim. Além disso, a chaminé é um pouco desonesta, e eu só... eu devo ir —
ele divagou, passando as mãos pelos cabelos enquanto se dirigia para a porta.
Mas enquanto eu o olhava, eu sabia que ele estava falando sério. Nada
estava escrito em seu corpo, rosto e olhos além de desculpas e preocupação.
Lembrei-me de que ele não tinha ideia de Quinton, que teria avançado em
mim com determinação obstinada, não mantendo distância, como se eu fosse
um animal pronto para fugir.
Não estava tão longe da verdade.
Mas eu não estava com medo de Charlie. Eu estava com medo por causa
de Quinton, e a diferença entre esses dois sentimentos se instalou em minha
mente e coração.
Entrei na sala, palmas para fora, voz suave.
— Não me desculpe. Foi muita gentileza sua ajudar.
Ele parou, parecendo inseguro.
— Claro. Eu só... eu não pretendia me exceder.
Eu ofereci um sorriso, e ele relaxou, sorrindo de volta.
— Está tudo bem. Obrigada por limpar para mim também.
Ele deu de ombros e olhou para a lareira. A luz estava fraca, mas eu
pensei que ele poderia estar um pouco corado.
— Eu poderia dizer o mesmo. As crianças foram bem para a cama, certo?
— Muito bem.
— Obrigado por enviá-los para dizer boa noite. Jenny nunca fez isso. —
Alguns pensamentos passaram por trás de seus olhos, mas se afastaram.
— Claro.
— Deixe-me mostrar como isso funciona. — Ele me acenou e eu andei
até ele, ajoelhando-me ao seu lado enquanto ele acendia um tronco coberto
em um saco de papel. — Uso esses registros iniciais porque sou preguiçoso.
Eu ri.
— Há uma pilha inteira deles no galpão com a madeira. Vou te deixar
alguns fósforos, mas é bem direto. Coloque este aqui no fundo, empilhe
madeira por cima, acenda o motor de partida e pronto. — Seu sorriso caiu
quando viu meu rosto. — Espere, você sabe como fazer isso?
Eu ri; Eu não pude evitar.
— Eu acendi uma vez ou duas.
— Eu aposto que você fez. — Sua voz tinha um brilho maravilhoso e
aveludado. Quando eu encontrei seus olhos, ele desviou o olhar com um
estalo. — Não que isso seja tão complicado.
De qualquer forma, aqui está como a combustão funciona. Está bem aqui.
Ele me mostrou uma pequena alavanca. — Aberto para a direita, fechado
para a esquerda. Mas ele realmente não se moverá, a menos que você o
balance primeiro para baixo. Caso contrário, é fácil como torta. Ou
kwarktaart.
Eu ri de novo.
— Obrigada, Charlie.
— Por nada. Vou trazer mais madeira para você amanhã. Dessa forma,
você pode acender o fogo sempre que quiser.
Ele se levantou, tirando o pó das mãos e eu também.
Estávamos perto quando estávamos ajoelhados, colocando-nos quase
muito perto, mas nenhum de nós deu um passo atrás, deixando-nos dentro do
que deveria ser confortável. Foi o suficiente para uma invasão que meus
nervos desencadearam sucessivamente pelas costas e braços até a ponta dos
dedos – não com aviso ou perigo, mas com desejo inesperado.
Um momento pairou entre nós, apenas algumas batidas do coração com
os olhos um no outro.
E então ele desviou o olhar.
Dei um passo para trás, envergonhada e confusa.
— Eu vou... ah, — ele gaguejou. — Tudo certo. Bem, durma bem. Vejo
você de manhã.
— Boa noite. — Minhas bochechas ardiam, e eu estava agradecida por o
quarto estar razoavelmente escuro.
Ele assentiu, e eu pensei que ele também estivesse corando enquanto
passava ao meu redor.
Eu o observei ir e soltar um suspiro.
Ele não subiu as escadas, mas voltou para o escritório. Eu ouvi a porta
fechar no corredor. O pensamento de que ele ainda estava tão perto me
deixou ansiosa, me fez pensar, enviou as perguntas em volta da minha cabeça
como beija-flores. Ele não tinha pretendido... o que quer que fosse acontecer.
Ele estava honestamente tentando ser atencioso, e estava. Ele era atencioso,
bonito e charmoso, e não era Quinton.
E eu queria que ele me beijasse. Por um breve momento, descuidado
momento, pensei que ele iria, desejei que fosse.
Essa admissão me deixou cambaleando.
Então eu fechei e tranquei a porta e troquei de roupa, deslizando na cama
com um livro para definir minha mente enquanto o fogo crepitava, na
esperança de mudar meus pensamentos para qualquer coisa além do homem
sentado do outro lado da minha parede.
6
TÃO SIMPLES

C harlie
Na manhã seguinte, eu estava de pé e em meu escritório antes
que alguém mais estivesse acordado, atacando meu trabalho com
entusiasmo recém-descoberto e um plano em mente.
Porque eu queria me sentir como na noite anterior na cozinha novamente,
e só havia uma maneira de recuperar isso.
Hoje, iria fazer algumas pausas e estar presente. Hoje, eu mudaria, o
trabalho que se dane. Hoje marcaria a primeira tentativa real. Porque a
mudança não aconteceria por si só. Eu tive que fazer isso acontecer. E para
que isso acontecesse, eu teria que colocar limites no lugar, começando nos
meus fins de semana.
Eu verifiquei o relógio por volta das onze da manhã e fechei meu laptop,
afastando-me da mesa e subindo as escadas em busca dos meus filhos.
Quando dobrei a esquina da cozinha, encontrei-os sentados à mesa com
seus almoços. E quando me viram, seus sorrisos validaram meus grandes
planos com certeza inabalável.
— Ei, pessoal, — eu disse, sorrindo de volta enquanto caminhava até
eles, bagunçando o cabelo de Sammy quando passei por ele.
— Oi, papai, — disse ele.
A boca de Maven estava cheia, então ela apenas acenou, e Hannah sorriu
para mim da ilha onde ela estava preparando um sanduíche.
Peguei uma uva do prato de Maven e coloquei na boca. Ela me entregou
outra, que eu aceitei.
— Obrigado, abóbora.
— Você terminou de trabalhar? — Sammy perguntou, esperançoso.
— A resposta é não, amigo. Mas pensei em vir almoçar com vocês. Tudo
bem?
— Sim! Quer uma bolacha Nilla?
— Psh, obviamente. E eu pensei que poderíamos jogar um pouco antes de
eu voltar ao trabalho. O que você acha?
Ele assentiu, sorrindo.
— Nós podemos brincar de caminhão! Você é a escavadeira e eu serei o
trator e Maven pode ser o caminhão monstro e Hannah pode ser a ambulância
porque ela ajuda as pessoas.
— Perfeito, — eu disse com uma risada.
Uma explosão de cores chamou minha atenção. Um vaso no parapeito da
janela, atrás da mesa, continha um spray de tulipas vermelhas e alaranjadas.
— São lindas, — eu disse, gesticulando para elas. — De onde elas
vieram?
— Oh, eu as peguei hoje de manhã, — Hannah disse com aquele sorriso
sempre presente.
— Sentindo saudades de casa?
— Sempre um pouco. Mas eu amo ter flores frescas em casa, algo
brilhante, delicado e vivo. Bem, talvez não esteja mais vivo, mas parece vivo,
não é?
— Sim, — eu disse enquanto me movia para o lado dela.
— Posso fazer um sanduíche para você? — Hannah perguntou.
— Não, acho que consigo me virar, obrigado. Como está sendo a manhã?
— Boa. Nós fomos ao parque.
— Eu andei de bicicleta! — Sammy cantou.
— Você andou? Nenhum inchaço ou arranhões?
— Não!
— Estou impressionado. Talvez da próxima vez eu possa ir também. —
falei, esperando que fosse algo que eu pudesse entregar quando enfiei a mão
no saco de pão.
Hannah virou-se para o armário, retornando com um prato para mim.
— Obrigado.
Ela ainda estava sorrindo, de pé ao meu lado, montando seu sanduíche.
Era tão mundano, algo completamente e totalmente chato, mas, como o
esquisito que eu era, me vi observando suas mãos enquanto ela dobrava frios.
Nós trabalhamos um ao lado do outro – não que fosse complicado, mas havia
um tipo de ritmo entre nós, um ritmo natural em que eu usava o que ela não
estava e terminava justamente assim que ela precisava do que eu tinha. Não
sabia ao certo por que havia percebido, mas percebi e apreciei a simples
sincronicidade do momento, uma respiração onde as coisas eram fáceis.
Passei-lhe a mostarda quando ela me entregou o presunto.
— Então, eu estava pensando... — Fiz uma pausa.
— Oh, você estava? — Ela olhou para mim com uma pitada de alegria
nos cantos dos lábios.
— Eu sei. Eu quase torci alguma coisa.
Hannah riu gentilmente.
— Se estiver tudo bem, acho que gostaria de tentar fazer eles dormirem
hoje à noite.
— Claro que está tudo bem; são seus filhos. — Nesta vez, sua risada foi
doce.
— Você… Você… Você acha que poderia talvez...
Ela se virou para mim, com os olhos cheios de encorajamento.
— Você se importaria de me ajudar?
Hannah assentiu, seu sorriso se abrindo.
— É pra isso que eu estou aqui. Apenas me diga o que você gostaria que
eu fizesse.
Eu sorri de volta.
— Eu sinto muito. Eu sei que parece estúpido. Eu só... não fiz muito isso
sozinho, mas gostaria de começar.
Os olhos dela se suavizaram, capturados pela luz inclinada, iluminando-se
com o brilho.
— Não há nada a temer, — disse ela simplesmente.
Eu não falei — Não existe certo ou errado, e eles não se importam com
nada além de você estar lá. É bastante simples; você só precisa tentar.
— É tão fácil assim?
— É realmente. Você verá. — Ela pegou meu braço e deu um aperto que
não era para ser nada além de amigável, mas continha algo mais, algo na
pressão na ponta dos dedos e no fundo dos olhos.
Foi algo que fiz o meu melhor para ignorar. Mas senti o calor daquelas
pontas dos dedos muito tempo depois que elas se foram, mesmo quando nos
sentávamos do outro lado da mesa almoçando, as tulipas no vaso atrás dela
inclinando a cabeça enquanto a luz do sol as iluminava, expondo o que estava
escondido dentro de suas pétalas.
7
O DEMÔNIO NOS DETALHES

C harlie
Ao longo das duas semanas seguintes, Hannah me ensinou mais
sobre paternidade do que eu aprendi em cinco anos, e no centro de
tudo isso estava a simples verdade que ela havia oferecido.
Eu só tinha que tentar.
As crianças não perceberam quando eu me atrapalhei; eles só perceberam
que eu estava lá.
Nos fins de semana, quando eu estava em casa, assumia a tarefa de
colocá-los para dormir com Hannah ao meu lado. Aprendi a lavar o cabelo de
Maven sem colocar sabão em seus olhos. Eu sabia como combinar seus
pijamas e quais eram seus livros favoritos. Eu até memorizei Where the Wild
Things Are e Pete the Cat, já que Sammy insistia em ler qualquer livro três
vezes seguidas – no mínimo. Eu sabia os brinquedos favoritos deles para
dormir e quanto tempo levaria para balançar Maven antes que ela
adormecesse.
Foi uma fortuna de conhecimentos que me fez sentir rico, pleno e
satisfeito.
Minha velha babá não se importava como Hannah. Não me interpretem
mal; Jenny amava as crianças, mas de uma maneira sem sentido. Mas parecia
estar na natureza de Hannah amar livremente e facilmente.
O pensamento enviou um novo flash de culpa através de mim.
Porque minha esposa nem tinha sido capaz de se importar, não como
Hannah.
Nossos filhos haviam sido um inconveniente para ela, muito
espalhafatosos, barulhentos e exigentes para alguém como ela.
Nenhum banho foi dado ou canções cantadas, nenhum livro foi lido ou
beijo de boa noite foi dado. Ela colocou isso na irmã em vez disso.
Quando imaginei minha vida, minha família, meu futuro, imaginei algo
como agora se tornara e com alguém como Hannah. Eu não quis dizer a
própria Hannah, mas a ideia dela – a felicidade idealista e inata que ela
provocava nos meus filhos, em mim, no ar.
Antes de eu ter idade e experiência o suficiente para saber melhor, eu
tinha seguido um caminho que levava a tanta dor e infelicidade. Eu tinha
escolhido imprudentemente, e enquanto essa união me trouxe meus filhos, eu
sentia falta de toda a extensão do que poderia ter sido. Isso ressaltou minhas
falhas, como se o universo quisesse que eu visse tudo o que eu havia perdido
e o reconhecesse.
Eu vi. Eu vi, e era tão tangível, tão real, que era impressionante.
Mas essa dor foi equilibrada pela absoluta correção de ter Hannah ali, de
ver alguém, qualquer pessoa, trazer alegria à vida de meus filhos, alguém
para me dar paz de espírito pelo bem-estar deles com uma certeza instantânea
e satisfatória.
E depois havia Hannah e eu.
A noite em que acendi a lareira do quarto dela foi o primeiro de muitos
longos e prolongados, momentos em que comecei a marcar o tempo ao longo
daquelas duas semanas. Ela sempre parecia me pegar de surpresa – o jeito
que ela cheirava, como baunilha e açúcar; o azul de seus olhos, salpicado
com a meia-noite, como um ovo de Robin*; o sorriso dela, fácil e suave.
Tantas vezes, eu me encontrei perto o suficiente dela que fiquei atordoado,
quieto e calado e, como um tolo, nem sempre me afastava.
Havia sinais de sua presença em todos os lugares. Os trabalhos de arte
que ela fizera com as crianças cobriam as paredes do meu cubículo em uma
profusão de cores sobre o cinza industrial monótono. O vaso na borda da
janela da cozinha sempre exibia flores recém-cortadas que ela trazia para
casa. Naquela manhã, eles eram peônias rosadas, com seus botões ainda
fechados. A casa sempre cheirava a uma padaria agora também; ela começou
a assar quase todos os dias quando as crianças estavam na escola e depois
com as crianças nos fins de semana. Mais doces de dar água na boca saíram
da minha cozinha do que na história da casa de cento e vinte anos, eu estaria
disposto a apostar.
Meu ambiente havia mudado e descobri que também havia mudado um
pouco. Não é o suficiente, mas era um começo.
E era bom.
Naquela manhã, pendurei meu paletó nas costas de uma cadeira de jantar
quando entrei na cozinha onde as crianças estavam comendo, Hannah entre
elas, os três sorrindo para mim.
As manhãs costumavam ser um momento de confusão, mas todos
pareciam calmos, felizes e prontos para o dia, inclusive eu.
— Bom dia, — eu disse, sorrindo para todos eles. Ultimamente, eu estava
fazendo bastante disso também.
Katie me entregou uma xícara de café com uma piscadela e me sentei em
uma banqueta, de frente para a mesa.
— Como todos dormiram?
Hannah assentiu e limpou o iogurte do rosto de Maven.
— Bem, obrigada.
— Papai — disse Sammy, empolgado. — Eu sonhei que era um
caminhão de lixo! Você era um caminhão de bombeiros, Maven era um carro
da Barbie e Hannah era um carro de corrida e estávamos procurando um
tesouro enterrado.
— Nós encontramos? — Eu perguntei, tomando um gole.
— Uh-huh, — ele disse com um aceno de cabeça. — Estava cheio de
duh-floons!
Eu ri.
— Dobrões?
— Foi o que eu disse! E então vieram os maus piratas, e você lutou com
eles com uma espada.
— Eu pensei que era um caminhão de bombeiros. Eu tenho mãos?
— Não, nós nos transformamos em pessoas de novo e você usava um
chapéu engraçado.
— Nós vencemos os piratas?
Ele sorriu.
— Roubamos o navio deles! Foi um bom sonho. Vou desenhar uma foto
para você, papai. Dessa forma, você pode ver.
— Arr, amigo, isso soa como música para meus ouvidos, — gritei na
minha melhor voz de pirata. — Todo mundo pronto para a escola?
Sammy afastou o prato e pulou do assento.
— Sim, olhe! — Ele modelou seu pequeno botão, apontando um pé para
fora e depois o outro para mostrar seus sapatos bem amarrados. — Eu mesmo
os amarrei! Hannah me ensinou! Ela é esperta, papai. Realmente esperta.
— Você também, amigo. — Levantei-me e estendi minha mão, palma
para cima.
Ele deu um tapa o mais forte que pôde, e eu a sacudi, respirando entre os
dentes.
Ele parecia tão orgulhoso de si mesmo que eu mal podia suportar.
Hannah pegou Maven de seu assento e a colocou no chão. Ela também
estava completamente vestida até os sapatinhos rosa com brilhos neles.
— Se importam se eu andar com vocês hoje? — Perguntei.
Sammy aplaudiu, e Hannah congelou por uma fração de segundo, rápido
o suficiente para eu não ter certeza se tinha imaginado isso antes de virar para
abotoar o cardigã de Maven.
— Isso seria bom, — disse ela enigmaticamente enquanto conduzia as
crianças para fora da cozinha.
Tentei ignorar o calor da decepção.
O que você esperava, Charlie, velho garoto? Você queria que ela pulasse
para cima e para baixo e risse? Controle-se, cara.
Bebi o máximo de café que pude e passei a caneca para Katie, que a
pegou com um sorriso de conhecimento.
— Tenha um bom dia, Charlie.
Eu ofereci um sorriso que disse a ela para deixar as coisas como estão. A
última coisa que eu precisava era Katie tornando as coisas mais difíceis do
que eram.
— Você também, enxerida.
— Quem? Eu? — Ela riu inocentemente.
— Ha. Tchau, Katie.
Ela riu enquanto eu me afastava.
Eles estavam no vestíbulo, Hannah ajudando as crianças a vestir seus
casacos e mochilas. Coloquei meu paletó e depois meu casaco de lã, pegando
meu cachecol. Quando olhei, peguei os olhos de Hannah vagando, e ela
corou, virando para o próprio casaco, protegendo o rosto de mim.
Não deveria ter me feito sentir como um maldito rei, mas fez.
Coloquei minha bolsa de couro e peguei Maven, que descansou a cabeça
na dobra do meu pescoço, o polegar na boca. E saímos juntos para a manhã
de outono.
Nós não conversamos por um tempo. Sammy encheu o ar de perguntas e
conversas curiosas por um quarteirão ou mais, e Hannah respondeu a todos
com paciência e interesse genuíno.
Eu me perguntei exatamente como essa pessoa existia. Mesmo no meu
melhor, tenho limites para quantas perguntas eu poderia responder em um
intervalo de cinco minutos.
Sammy se lançou no refrão de - Yellow Submarine, - que estava quieto o
suficiente para que eu pudesse ter uma conversa com Hannah.
— Algo planejado para hoje enquanto as crianças estão na escola?
Ela encolheu os ombros, seu braço oscilante com Sammy enquanto ele
marchava ao lado dela no tempo para as palavras.
— Tenho alguns cartões postais para escrever e achei que poderia
cozinhar um pouco. Katie me contou sobre algumas lojas especializadas nas
proximidades, uma nova loja de queijos que eu gostaria de visitar também.
— Eu me perguntei onde você conseguiu queijo quark. Eu nunca tinha
ouvido falar de quark.
Hannah riu.
— Katie pegou para mim. Nós, holandeses, amamos o nosso queijo.
Espero que tenham importado queijo. Queijo americano é... — O nariz dela
enrugou.
— Plástico?
Um aceno de cabeça.
— É tudo brilhante, como comida de cera. As coisas são diferentes aqui.
— Diferente bom?
Ela encolheu os ombros.
— Apenas diferente. Mais rápido. Mais fácil de várias maneiras.
As coisas são convenientes e acessíveis. Mas isso também faz com que
você sinta que deve conseguir o que quer, sempre que quiser.
— Ao contrário de...
— Bem, por exemplo, na minha cidade, nada é aberto aos domingos, a
não ser restaurantes. Se você não tem pão, você não tem pão. Você se
contenta com o que você tem.
Eu ri disso.
— Sim, os americanos não aceitariam isso.
— Exatamente. É conveniente, mas... eu não sei. É apenas um estado
mental diferente na Holanda, suponho. Mais lento, descontraído. Ninguém
trabalha mais de trinta ou talvez quarenta horas por semana.
Até o pensamento de trabalhar tão pouco era obscuro.
— Cara, eles estão vivendo a vida certa.
— Não há certo ou errado, apenas diferente.
— Sim, bem, o diferente deles parecem mágica de vodu para mim.
A música e a marcha de Sammy aumentaram em volume e violência, até
que ele puxou o braço de Hannah e bateu seus tênis contra a calçada. Ela
juntou-se a cantar, diminuindo a velocidade o suficiente para que ele não
deslocasse o braço dela.
Outro quarteirão nos levou à creche deles, e Hannah me seguiu para
dentro. As crianças deram abraços e beijos antes de correrem para se juntar
aos seus amigos. Bem, Sammy correu, e Maven entrou com um olhar furtivo
por cima do ombro. Acenamos, o que parecia fortalecê-la, e ela se afastou.
Conduzi Hannah para o saguão com a mão nas costas; não era
intencional, apenas um instinto, o desejo de guiá-la e tocá-la, anulando
quaisquer pensamentos que eu pudesse realmente ter sobre o assunto. Mas
Hannah não endureceu ou se afastou. Ela olhou para mim e sorriu.
A garota atrás do balcão da recepção pouco fez para esconder seu
julgamento quando entrei com as crianças, me encarando com um olhar que
dizia que ela podia ver através de mim.
E eu não conseguia encontrar em mim para me importar.
Nós nos despedimos da curiosa balconista e saímos, parando na calçada,
encarando um ao outro.
— Bem, boa sorte com o seu queijo, — eu disse estupidamente.
Ela riu.
— Boa sorte com seus contratos.
Eu bufei.
— Por favor, os contratos são a parte mais fácil. São as negociações de
doze horas em que estou prestes a entrar que me cansam.
Outro momento de silêncio passou enquanto nos observávamos.
Eu queria tocá-la novamente. Eu queria falar com ela, ouvi-la rir, para...
Eu me afastei, meu esforço para ser responsável.
— Não se divirta muito. Vejo você mais tarde.
— Hoje à noite? — Ela perguntou.
E meu coração disparou com o otimismo que ouvi.
— Eu não contaria com isso, mas espero estar errado.
Ela sorriu. Eu sorri.
E eu me afastei, não confiando em mim mesmo para dizer mais.
— Tenha um bom dia, Hannah.
— Você também, Charlie.
Minha mente ainda estava voltada para ela enquanto eu me afastava,
como se quisesse vê-la partir. Era injusto para ela e até para mim considerá-la
de qualquer maneira, exceto a profissional, mas eu não conseguia me conter.
Eu tentei dizer a mim mesmo que era apenas porque ela era a primeira
mulher que me atraía há tanto tempo. Queria acreditar que tinha acabado de
fechar aquela porta por um longo tempo – mesmo quando ainda estava com
Mary – e agora que a possibilidade havia surgido, pulei na sensação muito
cedo.
Eu disse a mim mesmo que era um acaso, que isso não significava nada e,
enquanto me afastava, pensei que talvez tivesse começado a me convencer de
que era verdade. Mas isso era apenas mais uma mentira em uma longa fila
que eu estava dizendo a mim mesmo.

H annah
Eu me afastei de Charlie, o coração batendo forte demais.
Como ele fez isso comigo, eu nunca entenderia.
Em duas semanas, Charlie havia mudado, a mudança tão leve, mas forte e
rápida. Tudo começou com a noite em que assamos kwarktaarts, a primeira
vez que ele se divertiu, relaxando, diminuindo a velocidade, mesmo que
apenas por um momento. Nos fins de semana depois daquela noite, ele
sempre parava para almoçar e jantar e cuidava das crianças nos banhos e na
hora de dormir. Eu o acompanhava a seu pedido, mas ele realmente não
precisava da minha ajuda. Charlie sabia o que fazer. Ele só precisava
acreditar que sabia o que fazer.
Uma pequena parte de mim sussurrou que ele só pediu minha ajuda como
uma maneira de me manter por perto. Mas a verdade era que Charlie estava
com medo e inseguro. E porque vi sua incerteza, só havia uma coisa a fazer;
Eu tive que ajudar. Então, eu intervinha quando ele permitia e ofereceria
encorajamento onde eu podia. Eu acreditava nele, e parecia que ele estava
começando a acreditar em si mesmo.
Eu percebi que ele estava feliz, me dando um pequeno vislumbre de outra
versão dele que parecia ter desaparecido com o tempo. Mas, como ressurgiu,
estava mudando, mesmo do lado de fora. Eu só me perguntei como isso o
estava mudando além do que eu podia ver.
E através de tudo isso, nos tornamos amigos. Os machucados no meu
coração deixados por Quinton haviam diminuindo até quase desaparecerem, a
dor praticamente esquecida.
Charlie me desarmou completamente. E com essa abertura veio um tipo
diferente de perigo.
Às vezes, as coisas aconteciam quando nada estava acontecendo. Algo
escondido em um olhar roubado, uma mudança em nossas respirações, no
roçar das mãos quando passamos uma criança de uma para a outra. Eu sabia
que deveria tentar manter distância, manter o máximo de espaço possível
entre nós, mas, em vez disso, nós circulamos um ao outro em uma dança que
me vi não querendo terminar.
É inofensivo, eu disse a mim mesma.
Nenhum de nós iria agir sobre isso; Eu estava convencida. Eu não faria
nada para pôr em risco minha posição. Foi a primeira vez desde que vim para
a América que me senti bem, segura, feliz e não queria perder isso.
E então eu empurrei pensamentos dele para longe, embora eles nunca
fiquem longe. Mas eu continuaria tentando.
Nada de bom poderia advir de percorrer esse caminho.
Um pouco mais tarde, me vi na pequena loja de queijo – que era tão
gloriosa quanto Katie havia prometido – com uma cesta cheia e um coração
feliz. Não levantei os olhos quando a campainha da porta tocou, até ouvir sua
voz.
— Hannah?
Meu aperto na cesta aumentou, os músculos do meu corpo flexionando no
reflexo, e eu olhei para encontrar Quinton parado ao meu lado.
Ele era tão alto, com os cabelos escuros como piche e os olhos da cor do
gelo – tão pálidos que pareciam mais cinza do que azul.
Sua mandíbula – uma linha dura e dominante – estava definida, seus
lábios se curvaram em um sorriso que enviou uma frieza escorrendo através
de mim a cada batimento cardíaco acelerado.
Não consegui falar.
— É bom ver você, — ele disse genialmente. — Eu não sabia que você
tinha voltado da Holanda.
Abri minha boca, seca como um osso, convocando as palavras através do
meu choque.
— Sim, acabei de chegar, — eu menti. — Me falaram que minha antiga
posição havia sido preenchida.
— E foi. E você encontrou outro emprego, suponho?
Eu assenti.
— Como estão as crianças? — Perguntei, desesperada para encher o ar
com gentilezas suficientes para poder fugir.
— Bem. Ouça, me desculpe pelo que aconteceu e tudo mais.
Nada nele falava da verdade – nem seus olhos se fixaram nos meus, nem
a ponta de sua voz, nem o conjunto de seus ombros.
Mas eu disse: — Obrigada, — da mesma forma. Aceitar seu pedido de
desculpas estava além de mim.
— Estou feliz que você está de volta. Estranho, esbarrar em você – ele
falou em uma risada, enfiando a mão no bolso da calça. — Pensei ter visto
você do outro lado da rua e tive que ver se era realmente você. Imagine isso.
Eu sorri, lábios juntos e apertados.
— Sim, que coincidência. — Dei um passo para trás. — Bem, eu tenho
que-
— Claro. Eu deveria ir também. É bom ver você, Hannah — ele disse,
seus olhos me segurando por um momento antes de acenar com a cabeça uma
vez e se virar para ir embora, me deixando de pé atordoada na loja.
Foi até a porta se fechar e ele estar fora de vista que eu me movi, indo
para o balcão para pagar com as mãos trêmulas e a mente girando.
Algo me disse que não era coincidência que eu o tivesse visto.
Não me senti segura novamente até chegar em casa com a porta fechada e
trancada atrás de mim. O pânico me levou a voltar rápido demais, meus olhos
examinando a calçada na minha frente e do outro lado da rua, procurando-o
com tanta atenção que imaginei que algumas pessoas eram ele quando não
era.
Então, passei o dia lá dentro com Katie, assando e conversando,
ocupando minhas mãos e distraindo minha mente. E a cada hora eu me
convencia de que havia exagerado.
O que ele poderia querer de mim? Certamente ele não tinha expectativas,
nenhuma oferta para fazer que eu pudesse entreter, e ele tinha que entender
isso. Certamente ele não teria me procurado para me machucar. Tinha que ter
sido um acaso, nada mais.
Se eu não tivesse prometido a Lysanne que a encontraria no parque, teria
buscado as crianças e voltado para casa. Mas, em vez disso, arrumei um
lanche e peguei as crianças cedo para encontrá-la.
De mãos dadas, eu e as crianças fomos para o parque onde encontramos
Lysanne esperando na caixa de areia onde sua criança mais nova, Charlotte,
estava sentada brincando com baldes de plástico e pás nas cores primárias.
Sammy saiu correndo para o escorregador onde a mais velha de Lysanne,
Sydney, acenou para ele, e Maven foi para a caixa de areia comigo.
Lysanne e eu nos cumprimentamos com beijos nas bochechas quando
Maven se sentou ao lado de Charlotte e começou a cavar.
— Eu te trouxe uma coisa, — eu disse com um sorriso.
Lysanne se animou quando nos sentamos.
— Oh, eu amo presentes.
Abri a bolsa e peguei um recipiente, abrindo a tampa para revelar uma
pasta de queijo e salsicha.
A boca dela abriu, os olhos arregalados.
— Isso é queijo Leyden? — ela respirou.
Eu balancei a cabeça, radiante.
— Mmhmm!
— Oh, meu Deus, — disse ela enquanto pegava um pedaço de queijo
salpicado. Ela colocou na boca e fechou os olhos em êxtase.
— Hannah, oh meu Deus.
— Eu sei! — Eu praticamente ri das palavras.
— Onde você encontrou isso? — Ela pegou outro pedaço, desta vez
empilhando-o em uma fatia de salsicha.
— Uma loja de queijos. — Mordi meu próprio pedaço.
— É incrível — disse ela com a boca cheia, carregando outra pilha antes
de engolir a primeira.
Eu ri.
— Eu também tenho pão e bolachas.
— Ugh, eu poderia te beijar.
— Talvez engula primeiro.
Lysanne riu e eu desempacotei o resto da comida. As meninas se
aproximaram e nós oferecemos cheddar e bolachas.
Eu assisti Lysanne por um momento antes de respirar.
— Algo aconteceu hoje, — eu comecei, sem saber como trazê-lo à tona.
Ela não perguntou, apenas levantou uma sobrancelha escura.
— Encontrei Quinton.
Sua mandíbula, aberta em antecipação ao queijo, caiu um centímetro a
mais.
— Não.
— Sim.
— O que ele queria?
— Ele disse que me viu e queria dizer olá. Ele falou sobre Holanda e meu
trabalho, embora só um pouco. Tentei sair da conversa o mais rápido
possível.
— Você acha que ele estava dizendo a verdade? Certamente ele não
estava te seguindo, certo?
— Eu... — Eu balancei minha cabeça, não querendo sequer considerar.
— Eu não sei. O que ele poderia estar fazendo em uma loja de queijos na
manhã de terça-feira?
A mão dela caiu no colo.
— O que você vai fazer?
— O que eu posso fazer? Ele não fez nada de errado, não disse nada que
não estava certo.
— Bem, ele te agrediu, então não é como se ele fosse completamente
inocente, — ela disparou.
— Não, eu sei, mas... — Dei um suspiro profundo e longo. — Não há
muito a ser feito. Ele me cumprimentou em um local público e sem intenções,
nenhuma que eu pudesse perceber.
— Eu não gosto disso.
— Eu também não.
— Bem, espero que não se repita, — disse ela.
E nós duas sorrimos, os gestos finos e transparentes.
— Então, como está Charlie? — Ela cantou, batendo os cílios como um
desenho animado.
— Ele está bem, — eu respondi intencionalmente, embora eu tivesse que
rir.
— Você gosta dele.
— Eu mal o conheço. E mesmo que eu pensasse mais nele, não faria nada
a respeito. Não é por isso que estou aqui.
Ela riu.
— Não, você está aqui para quê? Encontrar queijo holandês e cuidar dos
filhos de outra pessoa e absolutamente não é porque você está se escondendo
da sua família?
Minhas bochechas esquentaram.
— Eu não estou me escondendo deles.
— Você está se escondendo da padaria.
— Isso já foi decidido há muito tempo, — eu evitei.
— Só estou dizendo que entendo que é difícil saber que você não pode
administrar a loja como deseja, mas aposto que eles permitiriam que você
trabalhasse lá pelo menos.
Eu balancei minha cabeça.
— Eu sei, mas... Lysanne, não há espaço para mim lá, e está tudo bem.
Ela me deu uma olhada.
— Está sim, — eu disse enquanto cobria sua mão com a minha.
— Por enquanto, onde estou está bem. E foi sua ideia que eu viesse para
cá, então você devia ter cuidado jogando ideias sobre eu partir.
— Sim, foi minha ideia. Senti sua falta. Sou egoísta assim.
Eu ri, balançando a cabeça.
Uma garota deu a volta na esquina, empurrando um carrinho.
Ela tinha um olhar horrível ao ver o parque, aterrissando em Lysanne.
Ela tentou sorrir, mas a expressão estava enrugada e azeda.
— Oh Deus. É Claudette. Acene.
Nós duas acenamos, mandando sorrisos falsos de volta para ela. Ela
continuou andando, indo para o outro extremo do parque.
— Quem é essa? — Perguntei.
Lysanne revirou os olhos.
— Uma prostituta francesa. Ela era au pair – antes de dormir com o pai
das crianças por um ano inteiro. Ele entrava furtivamente no quarto dela
quase todas as noites. Você acredita nisso?
Eu pisquei para ela.
— Isso é horrível.
Ela acenou com a mão com desdém.
— A mãe estava dormindo com o jardineiro, então eles estavam quites.
Eles se divorciaram e agora Claudette é casada com ele e teve seu bebê. Essa
é uma mulher que nunca terá au pair.
Uma risada saiu de mim.
— Eu não posso acreditar nisso.
— Acredite, — disse Lysanne e pegou mais queijo. — Mmm, gouda.
— É realmente tão comum que au pairs durmam com seus empregadores?
— Uh, sim. Pense nisso — ela disse, gesticulando enquanto explicava. —
Você tem essa garota; ela é jovem e exótica, de outro país, e mora em sua
casa. As coisas não são mais o que costumavam ser com sua esposa, o
estresse de filhos e empregos e tudo mais. É uma receita para o desastre. Uma
au pair alemã que eu conhecia disse que seus chefes pediram que ela fizesse
sexo a três. Você pode imaginar?
— Não, eu não posso.
— Ser pai é um negócio difícil e solitário, mesmo quando você é casado.
Todos sentem que estão fazendo isso sozinhos, mesmo quando estão
trabalhando juntos. Jogue uma garota mais nova, uma garota que é livre –
isso também faz parte do fascínio – e é difícil não fantasiar, tenho certeza. Me
alegra que meu chefe seja feio.
— Você é horrível, — eu disse, apesar de rir das palavras.
— Acho que nunca contrataria uma au pair. Uma babá, talvez, já que pelo
menos eles geralmente não moram com você, mas não uma au pair. —
Lysanne finalmente diminuiu a velocidade do queijo, mas pegou um pedaço
de pão e mordiscou a beirada. — Quanto tempo você acha que pode aguentar
Charlie?
Outro rubor floresceu nas minhas bochechas, quente e formigando.
— Sério, Lysanne.
— Estou falando sério! Não há motivo real para você não poder.
— Claro que existe. Ele está passando por um divórcio. Ele trabalha o
tempo todo. Ele é meu chefe. Ele é mais velho...
— Eu acho que eles preferem experimente.
Revirei os olhos.
— E não pense que eu não percebi que você não mencionou que não
gosta dele.
— Não é nada. Significa nada além de eu achar ele atraente. Eu gosto
dele. Eu até admito que o admiro, e ele se tornou meu amigo. Mas acaba aí.
Não há nada mais do que isso e nunca haverá, então por favor, deixe isso pra
lá.
Ela levantou as mãos, as palmas em sinal de rendição.
— Tudo certo. Eu diria: A senhora protesta demais, mas temo que você
leve o queijo embora, e essa é a melhor coisa que me aconteceu a semana
toda.
E, com prazer, saí da conversa, voltando-nos para outros assuntos
enquanto fazia o possível para ignorar o quanto ela estava certa.

*N.T.: Ovo de Robin é um ovo azul em tom ciano ou azul-esverdeado.


8
ANIMAIS DANÇANTES

C harlie
O resto da semana passou a uma velocidade recorde,
impulsionada por minha equipe no final de uma aquisição que exigiu
um número ultrajante de horas. Por duas vezes dormi no escritório – embora
talvez dormir tenha sido um termo generoso para a soneca de quatro horas
em que me esgueirei. Mal tinha visto as crianças, o que odiava, nem muito a
Hannah, o que eu também odiava.
Tempo e espaço não a baniram dos meus pensamentos.
Era sempre nas horas tranquilas que meu cérebro cansado se encontrava
ocioso que ela esgueirava-se em minha mente. Enquanto trabalhava, eu me
perguntava o que ela estaria fazendo, como as crianças estavam. Ao longo
dos dias, nossas conversas foram limitadas a textos; ela me enviou fotos de
artesanato, as crianças assando, vídeos deles dizendo boa noite e fotos de
doces ou travessuras de Halloween – meus planos de me juntar a eles
aniquilados por uma reunião de emergência que durou até depois da meia-
noite.
Hannah nunca esteva nas fotos além de uma mão ou sua voz ocasional,
ou sua voz rindo ou comandando as crianças a falar. E cada pequeno
vislumbre que eu tive dela reacendia aquela maravilha desesperada que eu
não conseguia tremer.
Cheguei em casa tarde da noite, subindo as escadas rangentes o mais
silenciosamente que pude. Eu estava tão consciente de sua presença – seu
casaco pendurado ao lado do meu, seus sapatos embaixo do banco, as flores
na cozinha, que agora eram margaridas – como se cada parte de mim voltasse
seu foco para a mulher que estava escada abaixo. Mas não parei de andar, não
parei de me mover até estar em segurança entre meus lençóis.
Por mais cansado que estivesse, não conseguia adormecer, com o rosto
dela em meus pensamentos, pensando nas coisas que lhe diria pela manhã,
imaginando as conversas que teríamos, os momentos que teríamos.
Eu me encontrei vivendo por aqueles momentos.
Essa foi a pior parte – a expectativa de vê-la, a admissão que eu esperava
ansiosamente, precisava disso.
Com isso, eu me amaldiçoei e afastei os pensamentos dela, embora eles
apenas voltassem para me zombar.
Ela é muito jovem, eu disse a mim mesmo.
Você a paga para trabalhar para você.
Você está só, Charlie, garoto.
Ela é apenas diferente, só isso. Nova.
É uma fantasia, Charlie. Apenas finja, apenas faça de conta.
Deixe isso pra lá.
Ela não iria querer você e sua bagagem de qualquer maneira.
E foi nesse ciclo de auto-flagelação que adormeci.
Quando acordei naquela manhã de domingo, depois de oito horas sólidas
de sono e com uma semana tão brutal atrás de mim, foi com um sorriso no
rosto e uma mola nos meus passos. Eu me senti rejuvenescido, se ainda não
estava fisicamente cansado, e Hannah e as crianças ficariam em casa comigo
o dia todo. Eu tinha que trabalhar – eu precisava, pois os contratos em minha
mesa deveriam ser aprovados logo de manhã, - mas eu veria todos eles.
Minha mente girou com a imaginação de momentos.
Perigoso e estúpido.
Mas a lógica não se aplicava. Pela primeira vez em muito tempo, lembrei-
me de que podia sentir, que podia querer, que eu era um homem, não um
robô. Não apenas um pai, um corno ou um viciado em trabalho. Foi um
lembrete de que eu estava vivo.
Inconscientemente, eu me permiti o luxo de sonhar acordado,
alimentando a pequena chama do desejo por ela. Eu só esperava que pudesse
manter o fogo contido e controlado, bem dentro dos sulcos que eu cavara
para manter dentro. Se o vento aumentasse, se ele pulasse esse limite, eu
estaria com problemas.
Grande problema.
De qualquer forma, me senti como um milhão de dólares quando acordei.
Eu assobiei enquanto arrumava minha cama e me arrumava para o dia e desci
as escadas com um pequeno salto, o som de Hannah e as crianças subindo as
escadas para mim.
E lá estava Hannah com meus filhos na entrada, sorrindo para mim.
Faça isso milhão e um dólar.
— Papai! — Sammy chamou, afastando-se de Hannah para correr para
mim antes que ela pudesse vestir sua jaqueta.
Ele pulou nos meus braços e eu o peguei.
— Bom dia, amigo. Onde vocês estão indo tão cedo?
— Ao zoológico! Você pode vir conosco?
Não podia. Eu tinha uma tonelada métrica de papelada para preencher e
não havia absolutamente nenhuma maneira de tirar um dia de folga. Eu não
podia nem tirar algumas horas de folga.
Então olhei para meus filhos e Hannah, cujos rostos estavam
esperançosos, e dei a única resposta que pude.
— Absolutamente. Me dê dez minutos.
Todos os três se iluminaram como uma fileira de lâmpadas de Edison.
Beijei a têmpora de Sam e o coloquei no chão, trotando de volta pelas
escadas. Entrei no banheiro para escovar os dentes, avaliando minha nuca e
meu cabelo bagunçado. Mas eles pareciam bem, e um dia aguardava. Um dia
de folga. Um dia com meus filhos.
Um dia com Hannah, uma pequena voz na minha cabeça disse.
Cale a boca, eu disse de volta.
Quando desci, eles esperaram pacientemente no banco debaixo dos
ganchos, onde pendiam casacos e bolsas – Maven no colo de Hannah,
Sammy falando de girafas.
— Hannah, como se diz girafa?
— Fácil. Giraffe.
— Gee-raf-fuh! — ele repetiu, pronunciando como ela, mas sem o rolo
macio do R.
— Muito bem.
— Você sabia que a língua de uma girafa tem um metro e meio de
comprimento?
— Sério? — Hannah disse, aparentemente encantada.
— Uh-huh. E eles dormem apenas duas horas por dia.
— É como uma soneca.
Ele assentiu.
— Eu gostaria de poder dormir por esse tempo, e o resto do dia eu
poderia brincar, brincar, brincar. — A cada brincar, ele pulava.
Hannah e eu rimos, e os três se levantaram quando eu vesti meu casaco e
peguei Maven. Hannah pegou a bolsa, Sammy pegou a mão dela e eu
carregava o carrinho quando saímos. Ela e eu trabalhávamos juntos, situando
as crianças, preparando Maven – eu a prendi, e Hannah colocou o copo com
canudinho de Maven na minha mão, pendurou a bolsa nas alças e pegou a
direção. E com a mão de Sammy na minha, caminhamos para a entrada do
metrô. Nós não tínhamos falado uma palavra.
Eu sorri para mim mesmo com a facilidade de tudo isso, sorri para o céu
fresco do outono, ao ver Hannah empurrando o carrinho e Sammy
conversando – agora sobre lontras marinhas. Você sabia que um grupo de
lontras marinhas na água era chamado de balsa? Sim, eu também não. Meu
filho, o garoto maravilha.
O trem estava sem aglomeração tão cedo em um fim de semana e, em
pouco tempo, estávamos subindo a 5th Avenue e entrando no parque. Havia
uma fila de espera – o zoológico estava recém abrindo – mas antes que as
bilheterias abrissem de fato seus escudos de metal, o relógio Delacorte bateu
dez horas e os animais dançaram.
Maven sentou nos meus ombros, batendo palmas, e Sammy pulava para
cima e para baixo, rindo, enquanto o relógio tocava a música, as esculturas de
bronze girando – urso e canguru, pinguim e hipopótamo, cada um tocando
um instrumento. E o rosto de Hannah estava tão cheio de admiração, voltado
para a visão, com um sorriso nos lábios.
Eu me senti sedento por aquele sorriso, a doce simplicidade de sua
alegria.
Quando a música terminou, compramos nossos ingressos e nos movemos
para dentro.
O zoológico era pequeno, mas pitoresco, e eu fiquei quase tão encantado
quanto as crianças. Eles tinham estado antes com Elliot, mas eu não tinha
visitado desde anos antes. Claro, agora que eu era mais velho, as coisas eram
diferentes, e minha perspectiva junto com isso também. Era o caminho do
mundo, eu supunha, a alegria de ver algo através dos olhos de seus filhos,
experimentando a novidade e as possibilidades da vida.
E assim fizemos o nosso caminho, começando pelos leões-marinhos no
centro do parque, passando pelos morcegos, lêmures e cobras. Você sabia
que as cobras não tinham pálpebras? Eu poderia ter adivinhado, mas era
enervante aprender isso com meu filho de cinco anos de idade. Passamos os
macacos e os leopardos da neve, Sammy pedindo os nomes dos animais em
holandês o tempo todo, que eram surpreendentemente semelhantes às suas
versões em inglês. Exceto cobra, que aparentemente era chamada de slang
em holandês e era pronunciada próximo demais a schlong para que eu ficasse
feliz com minha filha de três anos repetindo-a repetidamente, o que ela fez –
e com entusiasmo.
Quando chegamos ao urso pardo, as duas crianças dispararam para o
parapeito, observando a fera balançar ao redor de seu habitat, golpeando uma
grande bola vermelha.
Eu voltei, os olhos para as crianças, meu coração macio, quieto e cheio.
Eu perdi muito disso, muitas tardes no parque e colares de macarrão e pintura
a dedo. Por mais que eu estivesse tentando compensá-los, não parecia
suficiente.
Eles estavam crescendo, e eu estava sentindo falta de tudo.
Parecia que foi apenas um minuto atrás que eu havia sacudido Maven
com uma garrafa na boca, seus dedinhos agarrando um dos meus enquanto
seus grandes olhos escuros me observavam, enquanto eu ouvia os sons
suaves de sucção, o ritmo quebrado apenas por ela.
suspiro. Um desejo profundo se espalhou pelo meu peito, suas raízes
torcendo ao redor do meu estômago.
— Eu sou um pai terrível, — eu disse calmamente, desejando perdão com
a confissão, embora soubesse que não haveria.
Hannah virou o rosto para o meu, mas não disse nada.
Eu mantive meus olhos nas crianças, não querendo admitir em voz alta,
mas obrigado a tudo a mesma coisa. — Minha esposa precisou partir para
perceber que eu queria estar mais presente em suas vidas. Cinco anos de
negligência, cinco anos tropeçando na paternidade e se escondendo atrás do
trabalho. Quão horrível é isso?
Ela só me observou. Eu podia ver seus olhos pelo canto dos meus, e eles
estavam tristes.
— Eu estava sempre muito ocupado. Sempre era mais tarde. Amanhã.
Próximo fim de semana. Nunca agora. Nunca sim. Só que não. — Respirei
fundo e soltei o ar. — O problema é que não posso ter o que quero. Mesmo
considerando que agora parece bobagem, como um sonho. Eu não posso estar
lá, não como eu quero estar. Eu nem deveria ter vindo hoje. — Eu parecia
lamentável e miserável, e era exatamente assim que eu me sentia. — Eles
merecem mais.
Ela pegou meu braço e o apertou, um ato que não pretendia ser nada além
de reconfortante, embora eu me encontrasse desejando que ela deslizasse seus
dedos nos meus, imaginando se isso facilitaria minha mente e coração.
— Você está fazendo o melhor que pode.
Eu balancei minha cabeça.
— Isso é apenas uma desculpa, Hannah. Eu a uso há anos.
— O que eu quero dizer é que você é o suficiente, — disse ela sem
dúvida.
Eu olhei para ela, e seus olhos me seguraram ainda.
— Por mais de um mês agora, eu assisto você com seus filhos.
Eu assisti a você brincar com eles e ouvi-los, segurá-los e cuidar deles. Eu
o vi nos momentos em que você acha que ninguém está assistindo, nos
momentos em que você está feliz e triste ao mesmo tempo, nos momentos em
que fica claro o quanto você os ama.
Qualquer um que o visse com eles concordaria que eles são a parte mais
importante da sua vida. E um pai terrível não se preocuparia se ele fosse um
pai terrível.
— Mas nunca é suficiente. Eu mudei. Eu quero mais. Eles precisam de
mais. E eu realmente não posso dar a eles.
— Charlie, esse é o seu muito, e você está sobrevivendo da melhor
maneira possível.
Era a verdade e não era. Eu deveria ter feito mais tempo e muito antes de
agora. Eu deveria. Mas eu não tinha feito.
Engoli em seco, mas o caroço se alojou de volta na minha garganta.
— Eu gostaria que isso fosse verdade. Eu gostaria que houvesse uma
maneira de... para… — Eu balancei minha cabeça. — É estupido. Não sou de
desejar coisas que não posso ter.
Ela assentiu, os olhos tristes, cheios de aceitação e reconhecimento.
— Eu entendo como você se sente. E me desculpe.
Era tão quieto, tão simples, duas pequenas palavras que diziam uma dúzia
de coisas diferentes, mas nada resolviam além de um breve momento de
companhia, a sensação de serem ouvidas e compreendidas. E isso teria que
ser suficiente.
Agradeci com um sorriso, resistindo à vontade de abraçá-la, puxá-la para
dentro de mim. Em vez disso, voltei-me para os meus filhos e os peguei, um
em cada quadril e a promessa de algodão doce nos meus lábios, e Hannah nos
seguiu com o carrinho vazio, sorrindo novamente.
Sempre sorrindo.
9
APENAS DUAS PESSOAS

H annah
O dia tinha sido absolutamente adorável.
Algodão doce na mão, nós tínhamos saído pelos portões,
parando para assistir ao relógio tocar novamente, o desfile de animais
circulando com uma música diferente da anterior. Charlie notou com a
mesma naturalidade de seu filho que o relógio tinha mais de quarenta
músicas diferentes, tocando em intervalos de meia hora o dia todo.
Em seguida havia sido o carrossel. Sammy havia escolhido um corcel da
meia-noite e eu sentei ao seu lado.
Charlie estava entre Sammy e Maven, uma mão protetora nas costas dela,
o rosto iluminado enquanto ele sorria e ria, lembrando-os de alimentar os
cavalos com cenouras depois que eles diziam oi e Giddyup para acariciar suas
crinas e agitam suas rédeas enquanto subíamos e descíamos, girando e
girando, o mundo zunindo por nós em um borrão.
Voltamos para casa pelo parque, parando no Bethesda Terrace, onde
comemos cachorro-quente e as crianças ficaram maravilhadas com a fonte.
Sammy tinha andado até o limite, e Maven se inclinou, gritando quando ela
mergulhava os dedos na água fria.
Durante todo o tempo, eu considerei Charlie, considerei as mudanças que
eu tinha visto nele. Por um momento, ele arranjou tempo para as crianças e,
nisso, encontrou a felicidade. Mas se afastou deles novamente no segundo em
que seu trabalho exigiu sua atenção total e completa algumas semanas antes.
Ele estava lentamente recuperando seu tempo desde então.
O trabalho que foi a fonte de sua dor, o que o fez se sentir menos do que
era, que frustrou seus sonhos e roubou seu tempo.
E eu odiava a tristeza que havia retornado aos seus olhos, mesmo que
apenas por um momento.
Quando chegamos em casa, passava das cinco. As crianças estavam
cansadas e com frio, então eu as coloquei na sala de estar com a televisão e
uma lareira, fazendo meu caminho para a cozinha quando estavam instaladas.
Charlie já havia retirado recipientes de comida não cozida que Katie
havia deixado com um cartão colado no topo com instruções.
Eu fui para o lado dele para ajudar.
— Ah, ah, ah, — ele avisou, torcendo para manter os contêineres na mão
fora do meu alcance. — Sente-se. — Ele acenou com a cabeça para a ilha
onde um copo de vinho esperava na frente de um banquinho.
— Charlie, deixe-me ajudar, — eu disse em uma risada, tentando
alcançá-lo.
Ele apenas balançou a cabeça e afastou os recipientes com os braços
longos. — Se eu não puder cozinhar esta refeição completamente preparada e
simplificada que Katie me deixou – que inclui instruções que uma criança
pequena poderia seguir, – tenho mais com o que me preocupar do que pensei.
Por favor, sente-se.
Eu balancei minha cabeça com uma risada, mas fiz o que ele pediu e
sentei em minha cadeira, para sua satisfação.
O sorriso em seu rosto o fez parecer mais jovem, quase infantil quando
ele começou a abrir as tampas dos recipientes.
Peguei o vinho e tomei um gole, a crocância dele doce. Eu me senti
relaxar, inclinando-me na ilha, observando Charlie enquanto ele derramava
óleo na panela quente e depois os legumes com um chiado.
— Então, você nunca me disse por que você e sua amiga decidiram vir
para a América para ser au pair.
— Bem, somos amigos desde a escola primária. Ela decidiu não ir para a
universidade; ela queria viajar. Então, ela trabalhou como babá um pouco
para economizar dinheiro antes de assinar com uma agência. E lá foi ela. O
pedido para eu seguir veio em poucas horas.
— Ela te usou, hein? — Ele perguntou, empurrando os legumes ao redor
da panela com uma colher de madeira antes de colocar uma tampa nela.
Eu sorri.
— Não sou terrivelmente difícil de convencer, e ela é muito persuasiva.
Eu ainda estava terminando faculdade, mas depois que acabou... bem, pensei
que viajar seria a coisa certa.
— A ideia de terminar a faculdade tão cedo é quase inimaginável. A
faculdade de direito me envelheceu dez anos. — Ele se virou e se encostou
no balcão, pegando sua taça de vinho. — Qual é o seu diploma?
— Educação. Eu devo ser professora.
Ele sorriu e o calor se espalhou pelo meu peito. Tomei um gole de vinho
para esfriar.
— Não consigo imaginar um trabalho mais perfeito para você.
Eu mantive meus olhos fixos no meu copo, como se pousa-lo exigisse
toda a minha atenção.
— Sim, eu suponho.
O sorriso dele desapareceu.
— Você não quer ensinar?
— Não é isso. É só que... — Eu não queria responder ou admitir o motivo
em voz alta.
— A padaria?
Foi a minha vez de sorrir, mas foi pequeno e dolorido.
— Nunca foi para ser o meu sonho. Eu poderia trabalhar lá, tenho certeza,
e gostaria muito disso. Mas meus pais esperavam que eu fosse para a
universidade, então fui. Eu terminei, como deveria.
Mas quando chegou a hora de procurar um emprego, eu senti... Eu
queria... — Respirei fundo e soltei. — Eu queria fugir. Eu não estava pronta
para decidir. Meus pais comparam isso a férias, eu acho.
Vagando um pouco antes de me instalar.
Ele assentiu, os olhos pesados de compreensão.
— As expectativas não são fáceis. A pressão, a obrigação, é quase o
suficiente para tirar você do desejo.
Tomei outro gole do meu vinho para me ocupar.
— Então, o que você quer fazer?
— Não sei bem. Continuo esperando que acorde um dia e encontre a
resposta. Parte de mim se pergunta se não estou mais feliz no escuro. Estar
aqui é um descanso, e quando eu voltar para casa, sentirei que tenho que
fazer o que me disseram.
— Você sempre faz o que é dito?
Eu encontrei os olhos dele.
— Sim. Mas apenas porque não é irracional. Faço o que me disseram
porque não me importo. Eu sabia que precisava de um diploma, que minha
vida seria mais fácil se eu tivesse um. Eu sabia que gostaria de ensinar
crianças porque as amo e sou boa nisso.
Quando meus irmãos e irmãs eram pequenos, eu cuidava deles porque eu
tinha que fazer, sim, mas também porque eu queria, porque isso me satisfez e
me fez feliz. Ser útil me faz feliz. Você entende?
— Sim, — ele disse simplesmente. E o peso em sua resposta foi
suficiente para explicar como ele se sentia completamente. — Você sempre
gostou de trabalhar com crianças?
— Sim. Cuidar dos meus irmãos pequenos era como um sonho tornado
realidade para o meu eu adolescente. Fraldas e carrinhos de bebê, passeios e
brincadeiras no parque.
— As crianças no seu último emprego foram um pesadelo? Foi por isso
que você foi embora?
Eu acalmei, até meu coração, apenas por um instante.
— Havia muitas razões para não dar certo, — eu menti. Havia apenas um.
Sua sobrancelha se ergueu com um canto dos lábios.
— Deixe-me adivinhar; eles eram intolerantes a glúten?
— Algo assim. — Eu ri, ansiosa para mudar de assunto. Porque a última
coisa que eu queria discutir no final de um dia tão adorável era Quinton. — E
quanto a você? Por que escolheu direito?
Ele tomou um gole de vinho e colocou-o na mesa antes de voltar para
colocar o frango na panela. — A verdadeira resposta? Dinheiro.
Eu queria ter sucesso e, em minha mente jovem e pacífica, isso
significava dinheiro. Eu não tinha ideia do que realmente significava sucesso
ou felicidade. Lição aprendida. — Ele mexeu a mistura por alguns segundos,
aparentemente perdido em pensamentos. — Mas eu gostei do curso. Adoro
resolver problemas, encontrar respostas, consertar coisas. E faço muito disso
agora, mas não me resta tempo para mais nada. Quero mais da vida, mas
estou preso onde estou.
— Eu sei como você se sente.
Ele sorriu para mim por cima do ombro.
— Sim, acho que sim. — A tampa foi colocada na panela novamente, e
ele se voltou para mim. — Eu sei que isso é algo terrivelmente americano,
mas você fala inglês muito bem. Não conheço outras línguas além do
espanhol. O material útil, como palavrões e como pedir mais cerveja. Eu
também tenho algumas jóias no meu repertório, como: No me gusta la lucha
libre, e Donde está na biblioteca?
Eu ri totalmente disso, um pouco mais alto que as boas maneiras
definiam.
— Bem, também não gosto de lutas, e sempre acho que se deve saber
onde fica a biblioteca mais próxima.
— É uma informação importante. Eu sabia que você entenderia.
Minhas bochechas estavam quentes e ainda sorriam.
— Lysanne e eu costumávamos ler romances em inglês quando éramos
adolescentes. Todo mundo estuda inglês na escola, começando aos dez ou
onze anos e quase todos falan inglês muito bem. Muitos americanos e
britânicos também se mudam para lá. Em Amsterdã, todo mundo fala. De
onde eu sou, apenas ao sul de Amsterdã, a maioria das pessoas fala. Não tão
bem – não temos tanta prática, – mas Lysanne era obcecada pela América
quando éramos mais jovens, então acho que talvez eu conheça mais gírias e
mudanças de expressão do que a maioria. Não é à toa que ela acabou se
mudando para cá. Não fiquei nem um pouco surpresa.
— Então você aprendeu inglês lendo romances e, o quê? Assistindo
MTV?
Eu assenti.
— E nós conversávamos isso o tempo todo. Então, graças a ela, tive um
pouco de prática.
— Você fala assim com ela agora que está aqui?
— Não, — eu disse, rindo. — Nós sempre falamos holandês agora. Eu
acho que ela sente falta de casa. Eu pensei que ela iria desmoronar quando eu
a trouxesse leidsekaas.
— Qual é esse? — Ele perguntou enquanto mexia a comida novamente e
afastava a panela do fogo.
— O que é um pouco picante.
— Eu quase caí em pedaços por causa desse também.
Ele foi para o armário pegar pratos, e eu deslizei do meu banco para
ajudar, pegando os pratos.
— Então, kaas é queijo, certo?
— Ja.
Ele sorriu e me seguiu com garfos e guardanapos.
— Como é galinha?
— Kip. Dat is een kipfilet. — Apontei para a panela.
— Isso é um filé de frango? — Ele adivinhou.
— Ja. Goed gedaan, Charlie! — Eu elogiei. — Wat is dat? — Eu apontei
para um prato.
— Eu não faço ideia.
— Dat is een borden.
Ele pegou o novo conhecimento e levantou um garfo, com os olhos
brilhando.
— Wat is dat?
— Wat is dis? — Eu corrigi. — Dat is een vork.
— Vork, — ele disse com um sorriso e colocou os talheres atrás de mim
enquanto caminhávamos pela mesa. — Parece inglês.
— É muito parecido, sim. É o idioma mais próximo do inglês no mundo.
A gramática é quase tão complicada também, — brinquei e coloquei o último
prato na mesa.
Charlie me alcançou, ainda sorrindo, ainda olhando para mim com olhos
infinitos.
— Agora eu sei por que Sammy sempre pede que você traduza para ele.
Ele passou por mim – estávamos entre a mesa e a janela – pegando em
meus braços enquanto roçava atrás de mim, seu corpo contra o meu da menor
maneira possível, mas eu senti todos os lugares onde ele me tocou mesmo
depois que ele andou para longe.
— Eu vou pegar as crianças, — eu disse um pouco sem fôlego e corri
para fora da cozinha antes que ele pudesse se virar ou responder.
E assim, nada era simples, as linhas que eu pensei que estavam entre nós
foram apagadas com um dia passado juntos. Porque a verdade era que não
parecia mais que ele era meu chefe. Não parecia que ele era apenas meu
amigo; parecia mais – muito mais. E essa noção me deu uma pausa, me
forçou a retroceder um passo.
Eu amava o meu trabalho. Amava as crianças e me importava com
Charlie. E, pela primeira vez desde que vim para a América, eu não queria ir
embora.
Se eu cruzasse essa linha, talvez tivesse que ir, afinal.
Enquanto comíamos, eu o observei, o ouvi, ri com ele. Não podia negar
que havíamos virado uma esquina perigosa. Quando ele sorria para algo que
eu dizia, os cantos de seus olhos escuros se enrugavam e eu me via sorrindo
para ele.
Charlie era lindo. Ele era inteligente, generoso e encantador.
E ele estava além do meu alcance.
Mas, sentados um em frente ao outro, éramos apenas duas pessoas na
cozinha, bebendo vinho e rindo. Tudo nele dizia que sim, e eu me vi inclinada
para a palavra, desejando poder dizer, desejando que ele o fizesse.
Havia tantas razões pelas quais não podíamos, razões pelas quais eu
costumava reforçar minha determinação em ruínas, empilhando-as como
bolsas de areia cheias de buracos.
Estávamos quase terminando de comer quando a exaustão de Maven do
dia e a soneca perdida venceram. Ela bateu as mãozinhas na mesa, mas seus
dedos agarraram a borda do prato, lançando no ar um spray de ervilhas como
pequenos mísseis.
Movi-me rapidamente, colocando meu guardanapo no meu prato
enquanto me levantava e a pegava. Ela lamentou, com o rosto rosado e a boca
em um pequeno círculo, lágrimas brilhantes rolando pelo rosto enquanto eu a
acalmava. Era muito alto para eu ouvir Charlie se aproximando, mas ele
estava ao meu lado, estendendo a mão para ela, e ela estendeu a mão para ele,
curvando-se nele enquanto enfiava o polegar na boca e chorava ao redor.
— Vamos, bebê, — ele disse gentilmente, esfregando as costas dela com
a mão grande. — Você terminou, Sammy?
— Sim! — Ele disse, pulando da cadeira.
— Deixe-me ir banhá-los, — eu ofereci.
Mas ele balançou a cabeça.
— Eu consigo. Obrigado, Hannah.
Senti uma estranha mistura de orgulho e rejeição.
— Claro, — eu disse, meu rosto corando.
Ele viu e se virou para mim, com os olhos macios.
— Me enche outro copo, sim? Vou demorar apenas um minuto.
E eu sorri de volta, me odiando por me sentir aliviada.
— Tudo certo.
Charlie saiu com seus filhos, e eu tentei esvaziar minha cabeça limpando
o jantar, minha mente e coração colidindo em meus pensamentos
barulhentos.
Você não pertence a este lugar, lembrei a mim mesma enquanto limpava
a bagunça de Maven.
Encontre uma maneira de colocar a parede de volta, pensei enquanto
empilhava os pratos e os carregava para a pia.
Você não pode tê-lo, tentei convencer meu coração enquanto lavava,
enxaguava e guardava tudo.
Eu não deveria ter tomado vinho, minha fina determinação facilmente
oscilava com sua ajuda. Eu deveria ter ido para o meu quarto. Eu deveria ter
sido inteligente e dito a mim mesma com alguma ordem para parar o que
estava fazendo e encontrar uma saída.
Mas, em vez disso, enchi outro copo para Charlie e um para mim. Porque
ele me pediu, eu disse a mim mesma. Porque ele precisava de um amigo.
Porque tudo daria certo. Ele nunca iria ultrapassar a fronteira, mesmo que eu
quisesse.
Meus pés doíam do dia, e a cozinha parecia muito dura, muito rígida.
Então entrei na sala e me sentei, sem me preocupar com a luz.
O fogo era o suficiente. Eu assisti ele estalar e queimar, pensando.
Eu estava pensando tanto que, mais uma vez, não ouvi Charlie se
aproximar, não o percebi até que ele caminhou ao redor do sofá, parecendo
cansado.
Ele sentou ao meu lado e pegou seu vinho, sem dizer nada por um
momento, nós dois perdidos nas brasas laranja e vermelha das toras e nas
chamas tremeluzentes.
Levante a parede.
Eu sorri educadamente e me mudei para me sentar um pouco mais ereta.
— As crianças foram para a cama tranquilamente?
Ele assentiu, com o rosto contente e suave.
— Elas foram. Eu gosto de colocá-los na cama. Isso é estranho?
Eu ri.
— De modo nenhum.
Seus lábios se inclinaram em um sorriso.
— Eu arrumei a cozinha. Obrigada pelo jantar.
— Obrigado por sua companhia e por passar o dia conosco.
— Foi um prazer. É o meu trabalho, afinal.
Ele se virou para encontrar meus olhos, procurando uma resposta para
uma pergunta que eu não o ouvira perguntar, não em voz alta. É isso? eles
pareciam dizer.
Mas era, e nós dois sabíamos disso.
Respirei fundo, fixando o sorriso no lugar.
— Eu deveria ir.
— Onde? Para o seu quarto, sozinha? Para a cama? Não são nem sete. —
Sua voz era leve, mas seu rosto não era. Seu rosto me implorou para ficar.
Quando eu não respondi rápido o suficiente, ele preencheu a abertura com
um comando gentil.
— Termine o seu vinho. Sente-se comigo.
E minha compostura fina como papel estremeceu inutilmente.
— Está bem.
Recostei-me no sofá e virei meus olhos para o fogo mais uma vez.
Charlie não disse nada por um minuto ou dois, nós dois bebendo nosso
vinho e sentando perto o suficiente para que eu pudesse estender a mão e
tocá-lo. Mas não ousei.
— Não me lembro da última vez que passei um dia inteiro com as
crianças, — disse ele. — A caneca de “melhor pai do mundo” é apenas para
mostrar.
Ele estava tentando brincar, mas as palavras estavam pesadas de
arrependimento.
— Foi bom, certo, mas doeu também. Me lembrou de tudo o que eu
estava perdendo.
— Mas você está aqui agora, Charlie. Você está aqui agora.
— Se não for tarde demais.
— Nunca é tarde para mudar de ideia.
Ele considerou isso por um momento.
— Sammy tem cinco anos e Mary e eu nunca o levamos a lugar nenhum
juntos, — ele começou, fazendo uma pausa. — Bem, isso não é exatamente
verdade. Uma vez, quando ele era bebê, fomos ao aquário. Ele era muito
pequeno, eu percebo isso agora, e ele chorou o tempo todo que estivemos lá.
Mary estava infeliz. Quando chegamos em casa, nós dois estávamos fritos.
Entramos em uma briga enorme no segundo em que entramos na porta. Eu
acho que nós dois nos sentíamos como fracassados, para ser sincero. Mas, no
final, nunca mais tentamos de novo. — Ele se virou para mim. — Nós nunca
tentamos. Talvez esse tenha sido o nosso problema o tempo todo.
Seu rosto estava triste e bonito, meio encoberto pelas sombras, e eu
segurei meu copo com as duas mãos para me impedir de alcançá-lo.
— Não sei como devo estar. Eu deveria estar triste por ela ter ido
embora? Porque eu estou – mas por causa das crianças, não por mim mesmo.
Eles não vêem a mãe há nove meses. Ela não fala comigo, não parece se
importar com eles, e eu sinto que os passo para quem os levar. E coloquei
meus próprios desejos e vontades em uma caixa e joguei no rio.
— Você sente falta dela? — Perguntei.
— De modo nenhum. Essa é a pior parte. Eu estava com raiva. Deus, eu
estava com raiva. Ela... — Ele fez uma pausa, engolindo. — Katie te contou?
— Um pouco, — eu admiti.
Ele voltou sua atenção para o fogo.
— Ela estava dormindo com meu melhor amigo. Eu deveria saber.
Deveria saber, porra — ele disse calmamente. — Talvez eu simplesmente
não quisesse ver. Talvez eu soubesse o tempo todo.
Eu não falei, apenas esperei, meus olhos traçando a linha de seu perfil,
sobre sua testa preocupada e nariz comprido, sobre a inclinação de seus
lábios e queixo forte, brilhando com barba loira por fazer.
— Quando ela foi embora, pensei que me libertaria. Fiquei feliz por ter a
presença dela fora da casa, sem perceber o quão difícil tinha sido estar perto
dela, sem entender como ela me afetou sem eu perceber. Eu estava
afundando, me afogando. E ela não se importava – não se importava comigo,
não se importava com nossos filhos. Ela só se importava consigo mesma,
mesmo agora. Ela nunca assinou os papéis do divórcio; tão pouco que ela se
preocupa.
Uma dor indesejada se instalou no meu peito.
— Ela não apareceu na audiência de custódia, apenas me deixou tê-los. E
estou grato, tão culpado quanto isso me faz sentir. É quase mais fácil com ela
desaparecida completamente. Não sei que tipo de inferno eu teria passado se
ela tivesse lutado comigo o tempo todo.
— O que acontece quando alguém não assina documentos de divórcio?
— Perguntei calmamente, curiosamente.
— Ela tinha um prazo para enviá-los e, quando passou, houve um período
de espera antes que eu pudesse pedir um reembolso padrão. Basicamente,
isso significa que ela renunciou a seus direitos, e esses direitos foram
omitidos para mim. Mas ainda há tempo. Se ela aparecer, se decidir brigar,
poderá pedir que a decisão padrão seja revertida, e então brigaremos por cada
migalha. Até que termine, não poderei respirar ou seguir em frente.
— Você acha que ela vai? Você acha que ela vai brigar?
— Brigar é tudo que eu já vi nela. O fato de ela estar calada é a parte mais
irritante de tudo, e isso me deixa sem qualquer contexto para o que ela fará
ou o que não fará. Às vezes me pergunto se ela está fazendo isso de
propósito, se ela sabe como está me torturando. Ela não me quer, mas ela não
quer me deixar ir. Quão fodido é isso?
Ele não queria uma resposta, e eu não tive uma a oferecer.
— Descobrir que sua vida é uma mentira, seu casamento é uma farsa... o
tapete foi puxado e me fez cair pelas escadas em câmera lenta. Eu não sabia
como lidar com isso. Então eu trabalhei. Eu trabalhei e trabalhei e deixei as
crianças com a babá e fingi que estava tudo bem. Alguns dias eu sinto que
está. Mas, às vezes, sinto que o que fiz, em quem me tornei, é irresgatável.
Minha mão se moveu para a dele sem a minha permissão, e quando
percebi o que tinha feito, era tarde demais para recuperá-la.
Ele se virou para olhar nos meus olhos.
— Hannah, eu... — As palavras pareceram entupir sua garganta, e ele
virou a mão sob a minha para entrelaçar nossos dedos.
— Está tudo bem, Charlie, — eu disse logo acima de um sussurro.
— Está? — Ele sussurrou de volta.
E meu coração bateu dolorosamente.
E ele estava se inclinando, eu estava me inclinando e meu pulso estava
acelerado.
— Sim. — Era uma permissão e um apelo, uma única palavra pesada de
anseios e desejos que eu não deveria ter e não deveria sentir. Mas eu sentia.
E ele me respondeu com uma respiração que me puxou para ele,
milímetro por agonizante milímetro.
Fechei os olhos.
Eu me inclinei.
Ele desapareceu e a perda foi instantânea e aguda.
Quando abri meus olhos, os dele estavam tragicamente tristes e
totalmente abatidos.
— Deus, Hannah. Eu sinto muito. Eu sinto muito. Não acredito que... não
deveria...
Abri minha boca para falar, mas ele já estava de pé, já se afastando, já
escorregando pelos meus dedos.
— Isso não vai acontecer novamente, — disse ele com certeza antes de se
apressar.
E toquei meus lábios que quase o provaram e desejei que seu sussurro
fosse uma mentira.
10
NENHUMA QUANTIDADE DE BANKETSTAAF

H annah
Acordei na manhã seguinte me sentindo não descansada, sono
cheio de sonhos inquietos que não conseguia lembrar. Quando abri
minhas pálpebras pesadas e olhei para a moldura, meu primeiro pensamento
foi em Charlie, seguido por uma onda quente de vergonha.
Eu voltei para o meu quarto ontem à noite engolindo lágrimas e rejeição,
perplexa, ferida e confusa. Eu não deveria ter tocado nele, não deveria ter
bebido tanto, não deveria ter chegado tão perto de seu coração. Porque
quanto mais eu sabia, mais ele me contava, a cada minuto que passávamos
juntos – apenas me puxava para mais perto dessa linha.
Eu não queria querer ele, mas a verdade era que eu estava bem além do
ponto de controle.
Porque eu queria que ele me beijasse. Eu ainda queria. Eu disse que sim,
e ele disse que não. E essa foi toda a resposta que eu precisava.
A resposta não fez com que a verdade fosse mais fácil de suportar.
E agora tudo mudaria. Não passaríamos mais dias juntos sem o não ficar
entre nós. Eu me perguntei se o dano era mais profundo, se ele estava
chateado comigo. Eu me perguntei se deveria ir embora, me perguntei se ele
me demitiria.
Um desesperado, Não, correu através de mim, e eu fiz o meu melhor para
empurrar a onda de pânico para baixo.
Havia coisas que eu podia controlar e coisas que não podia. Eu o veria
quando saísse do meu quarto e, enquanto deito em uma cama que não é
minha, cabelos espalhados ao meu redor, rosto virado para o teto em branco,
considero o que diria, o que ele poderia dizer.
Garota estúpida e boba.
Havia realmente apenas uma resposta, uma solução. Eu manteria minha
cabeça erguida e me concentraria no meu trabalho, que era o que eu deveria
estar fazendo desde o começo. Eu levantaria o muro da propriedade e
expectativa e ficaria firmemente do meu lado. E eu esperaria, contra qualquer
motivo, que possamos seguir em frente e fingir que a noite passada nunca
aconteceu.
Esse foi o pensamento que me fortaleceu quando eu saí da cama e me
vesti para o dia. Foi o sentimento que manteve meus nervos abafados
enquanto eu subia as escadas, me preparando para ver Charlie como se
estivesse esperando a guilhotina cair.
Mas ele não estava no andar principal. Katie acenou para mim da cozinha
enquanto colocava biscoitos em uma bandeja, mas não ofereceu nada em
termos de informação. Subi as escadas para acordar as crianças, olhando para
o quarto de Charlie. A porta estava aberta, sua cama vazia e amassada.
Ele já se foi. Acima de tudo, senti alívio em uma grande escala, embora
um pouco de decepção fizesse sua presença conhecida também, talvez para
despejar minhas boas intenções.
Voltei toda a minha atenção para as crianças, ocupando-me em recolhê-
las, vesti-las e levá-las para o café da manhã no andar de baixo.
Katie e eu nos movemos, situando as crianças, e quando elas estavam
comendo alegremente, ela ofereceu um assento na ilha onde uma xícara de
chá me esperava.
— Obrigada, — eu disse enquanto me sentava, envolvendo minhas mãos
em torno da caneca quente.
— Por nada. Charlie saiu assim que eu estava entrando.
Estranho não tê-lo aqui de manhã como ele nos últimos dias.
Eu não sabia o que era sobre o jeito que ela tinha dito, mas a declaração
parecia carregada de perguntas, com os olhos cheios de um pouco de
conhecimento, e isso me fez pensar no que Charlie havia dito a ela ao sair.
Eu tentei sorrir.
— Ele deve ter muito trabalho para cuidar hoje.
— Sim, ele deve, — disse ela, pensativa. — O que vocês fizeram ontem?
Com essa pergunta, percebi que ele não devia ter falado muito.
Tentei, sem sucesso, relaxar.
— Fomos ao zoológico e passeamos pelo parque.
Ela assentiu.
— Lindo dia para isso. As crianças estavam felizes com você sozinha?
Tomei um gole do meu chá, que estava muito quente, mas não queria
responder. Ela me observou de uma maneira que me deixou certa de que não
me daria piedade.
— Charlie veio com a gente.
Seus olhos arregalaram os olhos por uma fração de segundo, mas ela
sorriu.
— Você está brincando.
Eu balancei minha cabeça.
— Ele me disse que não saía com as crianças frequentemente, mas eu não
acreditava que fosse tão ruim assim. É?
Ela deu de ombros, inclinando a cabeça em pensamento.
— Ele não é do tipo que gosta de passeios paternais, não. Só porque ele é
tão ocupado – ou é o que ele diz. Eu suspeito que há um pouco mais a ver
com isso do que aquilo. Charlie se esconde atrás de seu trabalho desde que eu
o conheço. Ficar sozinho já é difícil o suficiente sem a adição de dois filhos
pequenos que você não está acostumado a cuidar. Charlie nem cuida de si
mesmo, e acha difícil acreditar que deveria.
— Ele me contou isso.
Katie silenciosamente me avaliou.
— Tenho algo a oferecer e não exige resposta, apenas algo que acho que
devo dizer. Eu peço que você me perdoe por ser tão ousada. É fácil ver que
algo está acontecendo entre vocês dois – não apenas no rosto dele hoje de
manhã, mas no seu agora.
Eu me endireitei, meu batimento cardíaco dobrando por um suspiro antes
de encontrar seu ritmo novamente.
Ela levantou a mão.
— Não, não diga nada. Eu não estou perguntando. Eu só quero que você
entenda algo sobre Charlie que você pode saber – ou não.
Charlie passou por uma situação difícil e, por causa disso, por estar tão
profundamente ferido, ele torna as coisas mais complicadas do que precisam
ser. Ele quer muito ser feliz, encontrar uma maneira de ser todas as coisas que
deseja. Desde que tive o prazer de trabalhar para Charlie, ele carrega seu
passado nos ombros como se fosse sua cruz. E desde que você entrou nesta
casa, ele encontrou um segundo vento.
Eu olhei para o meu chá, incapaz de falar.
— Não estou insinuando que há mais entre vocês do que existe. Só estou
dizendo que sua calma respiração nesta casa já mudou para melhor. É fácil
ver de onde estou, e tenho certeza de que é de onde Charlie está. Há uma
preocupação em seu rosto, e quero lhe dizer para não se preocupar, não
importa o que tenha acontecido ou o que acontecerá. Porque as coisas sempre
dão certo. A grande roda gira e gira. O relógio bate sem dormir e a vida
continua.
Katie ofereceu um sorriso tranquilizador que fez o seu trabalho.
Ela empurrou o balcão.
— Bem, a roupa não se lava sozinha e agradeço a Deus por isso. Eu
ficaria sem emprego.
Eu ri e ela foi para a lavanderia, deixando-me com meus pensamentos.
Era verdade o que ela havia dito. O mundo estava ligado e as coisas
continuaram avançando. E eu senti a mudança em Charlie, como ela havia
dito, humilhada e comovida com a ideia de que eu o ajudara a encontrar seu
caminho. Porque era isso que eu queria mais do que tudo – a felicidade dele.
E, quanto ao resto, deixaria para trás e olharia para frente, mantendo meus
olhos na esperança de não tropeçar nele novamente, pelo bem do meu
coração.

C harlie
Minha gravata havia sido afrouxada há muito tempo quando
levantei os olhos do meu computador naquela noite. Eram quase
onze horas, o que não me surpreendeu, dado o estado turvo dos meus olhos
ou a dor constante atrás deles.
Dizer que o dia havia sido longo seria uma subestimação grosseira.
Eu tinha começado a trabalhar antes de quase todo mundo – sempre
parecia haver alguém lá, a rotina incessante. Eu até consegui dizer a mim
mesmo que havia chegado mais cedo estritamente pelo meu desejo de
progredir.
Parecia que inventar mentiras para dizer a mim mesmo era meu
passatempo favorito.
Com toda a honestidade, eu não tinha dormido muito, então quando eu
acordei às cinco sem uma única esperança de me afastar novamente, eu me
levantei da cama. Tomei banho e tentei não pensar no rosto de Hannah
quando me afastei dela na noite anterior.
Eu me barbeei e me lembrei de que estava fazendo a coisa certa. Eu me
vesti e disse a mim mesmo que homem miserável e de merda eu era por ter
ignorado a razão de meus próprios desejos.
Porque ao fazer isso, eu a machuquei. E ao machucá-la, eu me
machucava.
Era provável que eu tivesse arruinado tudo no processo.
O metrô estava relativamente quieto às seis da manhã, e eu fiquei
pensando quando o trem desceu os trilhos.
Passar o dia com ela tinha sido demais. As admissões, o vinho – tudo
tinha sido mais do que eu podia suportar. Deveria haver uma linha entre nós,
uma fronteira, mas não havia. Eu a apaguei sozinho com palavras muito
honestas e lábios muito dispostos.
Gostaria de saber se ela sentiu que o momento era um erro. Eu me
perguntei se ela me culpava.
Ela deveria.
Eu me aproveitei dela. Eu tinha aproveitado de sua amizade e bondade,
sua doçura e carinho. Eu coloquei meu fardo nela, puxei-a para o nó
emaranhado da minha vida e coração. Eu estava falando sobre minha esposa,
pelo amor de Deus. E não era assim que eu queria beijá-la pela primeira vez.
Porque eu queria. Deus, como eu queria.
Minha mente soou como aviso, e estava certo e errado, tão certo e errado
quanto meu coração.
Era egoísta e injusto com ela. Eu não poderia dar a ela o que ela merecia,
o que ela precisava, não tão destruído quanto eu estava. Eu não podia pedir
para ela me curar, me consertar, suportar comigo enquanto eu resolvia os
destroços do meu casamento fracassado e da paternidade fracassada. Eu não
queria machucá-la, e senti certamente que faria. Porque a verdade era que eu
não me conhecia mais e não sabia como ser o que Hannah precisava.
Eu estava sozinho por tanto tempo, nem sabia a mecânica do namoro, ou
como as pessoas chamavam agora. As regras mudaram desde que eu fui
solteiro pela última vez, e eu fiquei na poeira. Eu não tinha um encontro
desde que Mary foi embora, antes mesmo, muito antes.
Mas mesmo com esse conhecimento, mesmo com todos esses fatos para
empilhar, acenar com a cabeça e aplaudir por sua correção, meu coração não
conseguiu encontrar uma maneira de se inscrever. Hannah era tudo o que eu
sempre procurara – alguém gentil, alguém que colocava os outros acima de
si. Alguém que sorria, que encontrava alegria e beleza no mundo.
O oposto da minha ex-esposa. Esposa. Dela.
Ir a um museu ou teatro com Mary era uma tarefa árdua, suas constantes
críticas e tédio eram enlouquecedoras. Jantares sozinhos com ela foram
suportados com grandes quantidades de álcool, mas principalmente, tínhamos
saído com amigos, já que estar sozinhos um com o outro era geralmente
insuportável. Principalmente nós saíamos com Jack, às vezes acompanhado
por sua namorada da semana.
Olhar para trás me fez sentir como um tolo. Eles estavam brincando de
gato e rato comigo no meio, inconscientes e sorridentes e incrivelmente
estúpidos.
Tentei imaginar Hannah fazendo algo parecido comigo, algo manipulador
e cruel, e não consegui. Pensei em levá-la a um museu e imaginei seu rosto
virado para uma pintura, cheia de admiração, como estava quando o relógio
do zoológico tocou e os animais dançaram. Imaginei seu sorriso doce
cruzando a mesa enquanto jantava e pensei que não precisaria de uma gota de
álcool para me sentir completamente bêbado.
Mas eu circulei de volta, minha mente guiando meu coração de volta ao
ponto. Eu não poderia ter Hannah porque não podia dar a ela o que ela
precisava ou o que ela merecia.
Suspirei e me afastei da minha mesa, arrumando minha bolsa e apagando
a luz. Desci o elevador ou fui até o meio-fio, com a mão no ar para chamar
um táxi.
Era tarde e eu esperava que ela estivesse dormindo quando eu chegasse
em casa. Honestamente, foi por isso que fiquei até tarde.
Eu sabia que teria que responder pelo que tinha feito, mas pensei que
talvez um pouco de tempo aliviasse o assunto, acalmasse meus nervos, me
desse respostas.
Mentiras, mentiras, mentiras. Eu continuava me dizendo o que queria
ouvir. Talvez algo colaria.
Eu ri comigo mesmo. O que era mais uma mentira na pilha?
Abri a porta, rezando para que eu achasse a casa silenciosa quando entrei.
Mas a sorte não estava do meu lado há muito tempo, e não escolheu aquele
momento para fazer a mudança.
A música flutuava da cozinha, belos riffs de violão e a voz suave de um
homem que perdeu o amor e viveu para contar. Quando entrei na porta, lá
estava Hannah.
Seus lábios se moviam apenas um pouco enquanto ela cantava, seus
longos dedos enrolando a massa com conservas no centro.
Suprimentos de panificação estavam espalhados pela ilha, e uma folha de
bolos já enrolados estava ao lado de seu local de trabalho.
Ela se inclinou para o balcão, seus quadris pressionando contra,
arqueando um pouco, apenas o suficiente para curvar as costas. A sombra de
seu corpo comprido estava embaçada sob o tecido branco e transparente da
camisola, os braços nus, os dedos cobertos de farinha, o cabelo loiro caindo
pelas costas em ondas indesejadas.
Ela era mágica, quieta e firme, surpreendente e real, embora ela parecesse
como algo que eu apenas sonhei.
— Eu não pensei que você ainda estaria acordada, — eu disse, querendo
quebrar o momento antes de fazer algo estúpido.
Ela pulou e tocou seu peito, deixando manchas de farinha branca em sua
pele.
— Você me assustou.
— Sinto muito. — Entrei na cozinha, indo para um banquinho para que
eu pudesse me sentar em frente a ela com o balcão entre nós. Era mais seguro
assim.
Ela corou, voltando os olhos para a tarefa.
— Eu não conseguia dormir.
Eu assenti. O silêncio pairava entre nós. Engoli.
Tinha que ser eu. Eu tinha que falar. Eu devia isso a ela.
Então eu respirei e fiz exatamente isso.
— Hannah, me desculpe.
Ela balançou a cabeça, os olhos ainda baixos quando ela rolou a massa
para cima.
— Por favor, não. Vamos apenas não falar sobre isso.
Outro gole, minha garganta tentando aliviar esse aperto sem sucesso.
— Eu tenho que. Eu necessito te dizer...
Hannah olhou para mim, com dor e preocupação nas sobrancelhas.
— Está tudo bem.
Foi exatamente o que ela me disse ontem à noite, mas hoje à noite,
significava algo completamente diferente.
— Não está tudo bem. — Examinei seu rosto, seus olhos, seus lábios que
consumiram meus pensamentos desde que os vi sorrir. — Sinto muito,
porque o momento está errado. Sinto muito, porque isso – nossa situação – é
muito mais complicada do que eu gostaria que fosse. Me desculpe, eu cruzei
a linha, Hannah. Sinto muito que exista de todo modo. — Passei a mão pelos
cabelos, não sentindo que estava me explicando bem o suficiente. — Eu nem
sei se isso faz sentido.
— Faz sim, — ela disse calmamente, as mãos paradas e cruzadas na
frente dela no balcão.
Eu balancei a cabeça uma vez, sentindo-me agradecido, mas sem saber
mais o que dizer. Eu tinha medo de admitir algo mais. Se eu abrisse a porta
ainda mais, eu acabaria com ela em meus braços.
Eu sabia disso tão bem quanto meu nome.
— Eu gostaria que as coisas fossem diferentes, — disse ela suavemente,
uma admissão inesperada, com os olhos tão abertos, tão honestos.
Lutei contra o nó na garganta novamente antes de dizer a única coisa que
podia: — Eu também.
Hannah suspirou, um som pesado, voltando aos doces e fechando a
conversa com graça e facilidade.
— O seu dia foi produtivo?
Meu suspiro ecoou o dela, e eu me inclinei na superfície da ilha.
— Produtivo o suficiente. Como estão as crianças?
— Elas estão bem. Maven teve febre hoje e mal comeu. Vou mantê-la em
casa amanhã.
Eu assenti.
— Está bem. Ela não pode ir à escola com febre de qualquer maneira. Ela
está bem?
— Vamos ver como ela está de manhã. Dei-lhe ibuprofeno e ela foi
dormir cedo. Eu ia pegar um copo de água e checá-la quando terminasse aqui.
— Eu vou fazer isso, — eu disse e me levantei, indo para o armário onde
estavam seus copos com canudinho. — O que você está fazendo?
— Banketstaaf. É um rolo de massa com pasta de amêndoa e geleia de
damasco no meio. Costumamos fazê-los para o Sinterklaas, mas eu gostava
deles.
Torci a tampa do copo de plástico e o enchi na geladeira.
— Sinterklaas? Como Papai Noel?
Ela riu.
— Não exatamente. Mas a Holanda é de onde veio o seu Papai Noel.
Quando eu era menina, não celebrávamos o Natal. Sinterklaas chega de barco
da Espanha e, uma semana antes do aniversário no sexto, deixamos nossos
sapatos de madeira com feno e cenoura para seu cavalo.
— Como meias?
— Sim, vocês tiveram a ideia disso de nós também, — brincou ela. — E,
à noite, no quinto, a campainha toca e haverá um saco de presentes na
varanda. Que mágica.
Eu sorri, fechando a tampa novamente.
— Eu gosto disso.
Ela sorriu de volta.
— Eu também. É tempo de família, e nossos presentes geralmente são
feitos à mão com poemas ou cartas de Sinterklaas, mas, na verdade, todos
nós os damos um ao outro, embora as crianças não saibam. O truque é ser o
mais inteligente, ter o poema mais engraçado e um presente que corresponda.
Como uma vez, minha oma me deu um rolo que tinha sido da minha bisavó
com um poema que me dizia para nunca parar de fazer o que eu amava ou o
que me satisfazia.
— Eu acho que gosto de seu oma. E o feriado parece mágico, como você
disse. Eu gostaria de ver isso.
— Talvez um dia você veja.
Eu peguei minha mente vagando novamente, imaginando andar pelos
canais de Amsterdã durante as férias com Hannah, e afastei o pensamento,
virando-me.
— Bem, vou verificar Maven e tentar dormir um pouco.
— Tudo certo. Vou terminar aqui e te vejo de manhã.
Não pude deixar de olhar para trás e a encontrei me observando sair. E
isso tornou muito mais difícil de ir.
Mas eu disse a mim mesmo mais uma vez que estava fazendo a coisa
certa e quase acreditei em mim dessa vez.
Quase.
11
MUITO PELO CONTRÁRIO

H annah
Na manhã seguinte, acordei me sentindo melhor do que no dia
anterior, embora ainda estivesse insegura do meu jeito.
Agradecida como eu estava por limpar o ar com Charlie, suportar a
admissão de que ele desejava que as coisas fossem diferentes não me ajudou
a largar a ideia de deixá-lo ir embora.
Mas quando eu puxei os doces do forno na noite anterior, perdida em
meus próprios pensamentos, concentrei minha atenção nas crianças e no meu
trabalho.
Essa era a única coisa que eu podia controlar, então encontrei uma
maneira de aceitar o fato.
Charlie estava na cozinha comendo naquela manhã, um pé enganchado no
degrau do banco, a outra perna longa esticada, os olhos no telefone enquanto
lia. Ele olhou para cima quando eu passei, e nós compartilhamos um sorriso
que me fez acreditar que tudo estava bem.
Subi as escadas, sem ouvir os gritos de Maven até que eu estava na
metade do caminho, e cada vez mais alto eles cresciam.
Meus nervos também subiram, e quando eu abri a porta do quarto dela,
ela quase quebrou meu coração.
Ela estava sentada em sua cama, com o rosto vermelho e úmido de tanto
chorar, as cobertas amontoadas ao seu redor. Havia vomitado, deixando
evidências nos cabelos e na cama, na frente da roupa e, pelo cheiro dela, não
era a única doente.
Sussurrei para ela em holandês e a peguei, sem me importar com minhas
roupas. Ela estava queimando.
Corri para fora do quarto dela e chamei Charlie pelas escadas.
Ele saltou para me encontrar dois passos de cada vez, com o rosto tenso
de preocupação.
— Você poderia acordar Sammy e levá-lo à escola? — Perguntei. —
Acho melhor se ele estiver lá hoje.
Ele escovou o cabelo de Maven para trás.
— Ela está pegando fogo. Aqui, deixe-me segurá-la.
Eu hesitei.
— Deixe-me dar um banho nela. Você não pode ficar doente.
Apenas cuide de Sammy, e eu a trarei para vê-lo quando ela estiver limpa,
para que eu possa trocar a roupa de cama.
Ele assentiu, embora seus olhos não deixassem sua filha.
— Katie, — ele chamou por cima do ombro. A cabeça dela apareceu ao
redor do corrimão ao pé da escada. — Você pode ajudar? Maven está doente.
— Claro, — ela respondeu, dirigindo-se a nós.
Enfiei Maven no meu peito e a balancei, esfregando suas costas enquanto
ela chorava.
— Vou dar um banho nela.
— Obrigado. Eu vou cuidar de todo o resto.
Fui ao banheiro, acalmando Maven. Ela estava miserável, não conseguia
parar de chorar, então seu banho foi curto. Quando voltei para o quarto dela,
Katie estava com as grandes cortinas abertas, mas o voal ainda puxado para
manter o quarto um pouco escuro, e os lençóis de Maven estavam frescos.
Deixei-a em um pull-up e peguei um cobertor leve para envolvê-la, medindo
sua temperatura por último.
Quando o termômetro de ouvido apitou, eu fiz as contas... 101 Fahrenheit
era 38 graus Celsius – uma febre sólida, mas não incontrolável. Depois de
uma dose de ibuprofeno, eu a peguei e me sentei em sua cadeira de balanço,
acalmando e dando tapinhas nas costas dela até que ela finalmente parou de
chorar.
Charlie apareceu alguns minutos depois, com o rosto torto de
preocupação e outra coisa enquanto ele nos olhava, algo que eu não tinha
estrutura para considerar no momento.
Maven olhou para ele e começou a chorar novamente, alcançando-o.
Ele se aproximou e a pegou, segurando-a contra o peito enquanto os
braços dela se esticavam para alcançar seu pescoço.
Suspirei.
— Talvez eu deva ficar em casa. — Ele mudava de um lado para o outro,
balançando-a.
— A febre dela não é tão alta para ser perigosa. Você deveria ir trabalhar.
— Eu não quero ir, — disse ele com a mão nas costas dela e os olhos
cheios de preocupação.
Meu coração apertou.
— Bem, você não precisa, mas acho que deveria. Você ficará para trás
por uma semana, se não for. Estou aqui. Eu vou cuidar dela, e se ela piorar,
prometo que vou informá-lo para que você possa voltar imediatamente.
Charlie respirou fundo e soltou o ar, não parecendo gostar do acordo, mas
sabendo que eu estava certa.
— Tudo bem.
— Nós vamos dar um pouco de comida e água para ela, e assim que o
remédio fizer efeito, ela ficará bem. Não se preocupe.
Ele assentiu, seus olhos viajando pela frente do meu corpo.
— Já são duas camisas que meus filhos arruinaram.
Minhas sobrancelhas torceram, e eu olhei para baixo para encontrar um
pouco de vômito na minha frente.
— E tem muito mais por vir, tenho certeza. Está tudo bem. Deixe-me ir
trocar.
Trocamos de lugar, e eu parei na porta por um momento ao vê-lo sentado
na cadeira de balanço de terno e gravata, balançando sua filha doente com
sobrancelhas desenhadas e olhos baixos, sua bochecha pressionada contra o
cabelo loiro dela.
E então eu suspirei novamente e fui embora. Katie, que havia ocupado
Sammy, ofereceu um sorriso compreensivo quando passei, e corri escada
abaixo para me trocar rapidamente, voltando a correr para trocar de lugar
com Charlie mais uma vez. Quando eu estava sentada, ele deu uma longa
olhada em Maven, passando a mão pelos cabelos dela.
— Ligue-me se ela piorar, ok?
— Eu prometo, — eu disse.
E, com um último sorriso cansado, ele saiu.
Naquela tarde, essa promessa foi cumprida.
Ela vomitara mais três vezes, incapaz de conter água ou remédios, e
quando acordou de uma soneca, sua febre subiu até ficar fora de controle com
40°C.
Katie balançou a cabeça para o termômetro enquanto eu agitava uma
Maven letárgica nos meus braços.
— Passa das quatro – é tarde demais para ligar para o pediatra.
Você precisa levá-la para a emergência.
— Eu também acho, — eu disse sombriamente.
O rosto dela se contraiu com o pensamento.
— A mais próxima é em Monte Sinai. Você sabe, Mary trabalha lá. Mas
não sei se vale a pena ir para outro hospital. Talvez ela realmente esteja lá e
encontre uma maneira de estar presente para sua filha, pela primeira vez —
acrescentou ela com desdém.
Tentei não considerar nada disso, meus pensamentos focados apenas em
Maven.
— Ligarei para Charlie e para um táxi, — disse Katie, — e vou pegar a
bolsa e o cartão do seguro dela. Você a coloca em um pijama.
Eu balancei a cabeça e corri para trocar sua roupa e pegar seu recém
lavado coelho e cobertor, correndo de volta para baixo. Katie a levou – tentei
ignorar o frio em meu suéter úmido onde ela estava enrolada contra o meu
peito – e coloquei meus sapatos e casaco, pegando minha carteira da bolsa e
enfiando-a na bolsa de fraldas. E com um beijo na bochecha de Katie,
estávamos do lado de fora.
Não chequei meu telefone até estarmos no táxi. Uma mensagem de
Charlie esperava, dizendo que ele nos encontraria lá. Katie pegaria Sammy da
escola.
Tudo ficaria bem. Maven ficaria bem.
As crianças ficam com febre o tempo todo, eu disse a mim mesma. Mas
isso não me impediu de ter medo.
A sala de espera não estava muito cheia e, em pouco tempo, fomos
levados para dentro para obter a temperatura e o peso dela e depois para uma
pequena sala onde nos disseram para esperar novamente. Então eu subi na
grande cama de hospital com ela e a segurei.
Eu cantei para ela em holandês até que sua respiração diminuiu.
O movimento ocasional de seus braços ou mãos me dizia que ela estava
bem adormecida, mas eu continuava cantando de qualquer maneira, a ponto
de afastar os fantasmas, o medo e o silêncio da sala fria e estéril. E fiquei
olhando a janelinha quadrada na porta, esperando para ver o rosto de Charlie.
Quando o vi, estava selvagem de preocupação, e fiz um shh com os
lábios, esperando que ele entendesse. Ele entendeu, abrindo suavemente a
porta e silenciosamente fechando-a atrás dele. Ela não se mexeu.
A gravata estava solta e a camisa amarrotada, o casaco, a jaqueta e a bolsa
abandonados na cadeira dura ao lado da cama, mas seus olhos nunca saíam
de Maven enquanto ele se sentava na beirada, seu corpo roçando minhas
pernas, sua mão alcançando as costas dela. Eu me mexi, inclinando-me para
entregá-la, mas ele balançou a cabeça e sorriu. Era um sorriso cansado, um
sorriso triste.
Eu não parei de cantar.
Passaram dez ou quinze minutos antes que um médico chegasse, sem
fazer nenhum esforço para ficar quieto, não que Maven pudesse dormir de
qualquer maneira assim que as cutucadas e estímulos começassem. Ela
acordou chorando e, depois de algumas inspeções e algumas perguntas, foi
decidido que eles administrariam uma injeção intravenosa (IV), dariam algum
medicamento anti náusea e monitorariam por algumas horas.
O médico saiu porta fora e explodiu porta dentro uma enfermeira com
suprimentos.
O IV foi a pior parte de todo o procedimento.
Tentei passá-la para Charlie novamente, mas ela se agarrou a mim e
gritou: — Nana — sua versão do meu nome – e eu continuei a segurando,
cantando para ela com a voz trêmula.
Charlie segurou o rosto dela para ficar de olhos nela enquanto a
enfermeira espetava seu braço.
O choro dela partiu meu coração.
A enfermeira sorriu se desculpando e, quando tudo terminou, ela juntou
as coisas, entregando um picolé que esperávamos que impedisse o estômago
de Maven de se esvaziar novamente. E então ela apagou as luzes e nos passou
o controle remoto da televisão.
Charlie encontrou alguns desenhos animados, e Maven estava sentado no
meu colo, lentamente comendo o picolé, mas comendo tudo ao menos. Isso
era um consolo. Charlie ficou na beira da cama e, embora eu continuasse
tentando passar Maven a seu colo, ele apenas recusava, parecendo satisfeito
apenas em nos assistir.
Cuide dela, eu lembrei a mim mesma.
Mas os olhos dele encontravam os meus uma e outra vez, sua mão e
corpo perto o suficiente da minha coxa para que nos tocássemos, o calor dele
irradiando para mim no frio da sala.
Quando o picolé de Maven se foi e ela adormeceu novamente, ele se
levantou e se inclinou, pressionando os lábios no meu ouvido.
— Eu vou pegar um café. Quer um?
Sua respiração sussurrante enviou um arrepio na minha espinha.
Eu assenti.
Sua mão cobriu a minha que cobria a de Maven e, quando ele se levantou,
ele sorriu para mim com gratidão. E então ele saiu da sala, levando minha
determinação com ele.
Era impossível. Estar perto dele, trabalhar para ele, fingindo que não o
queria, fingindo que não percebi que ele também me queria – tudo isso.
Ser profissional era um sonho. Meu coração já havia se movido além do
limite e não haveria como voltar atrás.
Eu me vi realmente imaginando o que estava nos impedindo, o que havia
entre nós. Não havia nada no meu contrato com Charlie ou a agência que
proibisse, não em voz alta, apenas uma expectativa tácita. Mas a maioria dos
homens que au pairs trabalhavam era casados, e Charlie não era, não da
maneira que importava. Ele era mais velho, sim, mas não tanto.
É claro que, se as coisas não derem certo – e a verdade é que
provavelmente não dariam, uma verdade que era apenas um sussurro que eu
reconhecia – meu trabalho seria afetado. Eu provavelmente teria que deixar,
não apenas Charlie e as crianças, mas a América. Porque eu duvidava muito
que a agência me colocaria uma terceira vez.
Mas ir para casa não doeria tanto se eu perdesse o que tinha encontrado.
De fato, se eu perdesse a vida que construí aqui, em casa era o único lugar
que eu gostaria de estar.
A verdade em meu coração era que eu queria Charlie, e se ele também me
quisesse, valeria a pena o risco. Se ele apenas dissesse sim, nós dois
poderíamos ter o que queríamos.
Eu só tinha que encontrar a coragem de perguntar.

C harlie
Fui para o corredor do hospital com pouco fôlego e um cérebro
confuso, caminhando em direção às máquinas de venda automática
de café que eu tinha visto na sala de espera.
O arrependimento me pressionou por ir trabalhar. Eu preferia ter ficado
para trás do que não estar lá para a minha bebê. Fiquei preocupada com ela o
dia todo e, quando olhei pela janela do quarto do hospital, a culpa era mais do
que eu podia suportar.
A visão de Maven tão doente me fez doer todo.
A visão de Hannah segurando Maven quando ela estava tão doente me
fez doer direto na caixa torácica.
Ela estava cantando baixinho em holandês quando entrei, segurando
minha filha com ternura e carinho que nunca tinha visto da mãe de Maven. O
pensamento me cortou, me cortou tão profundamente que eu não sabia se a
ferida iria curar.
A guerra do que eu tinha conhecido com Mary contra o que eu tinha visto
em Hannah puxou e empurrou meus pensamentos. Como eu não tinha visto o
quão ruim foram todos aqueles anos? Como eu não tinha percebido? Como
eu não sabia o que as crianças estavam perdendo, o que eu estava perdendo?
Mas então admiti a mim mesmo que sabia. Eu sabia o tempo todo, para
sempre. E eu não fiz nada sobre isso.
E essa foi a pior parte de todas.
Fui até a máquina de café e coloquei meu dinheiro, vendo-a derramar
lodo na xícara que seguraríamos para aquecer nossas mãos e um pouco mais.
Eu gostaria de ter algo mais para lhe dar do que a gosma queimada, como
uma xícara de chá em porcelana fina ou um café expresso ou algo de bom.
Ela merecia algo de bom.
Ela merecia muito.
E eu não tinha nada a oferecer.
Ela merecia alguém sem bagagem, sem uma história que teria que levar
consigo. Ela merecia alguém tão leve, puro e bonito quanto ela.
Eu não era nenhuma dessas coisas.
E ainda assim, eu a queria, e ela também me queria. Eu podia ver
claramente em seu rosto, no azul de suas íris, na borda de seus lábios, nos
cantos de seus olhos. Havia uma luz nela que brilhou um pouco mais
brilhante quando eu cheguei perto.
Eu pude ver. E eu não deveria querer fazer nada sobre isso, mas fiz.
Enquanto o lodo cozinhava e derramava, eu desejei tê-la encontrado em
algum lugar, em qualquer outro lugar. Se ao menos as coisas fossem mais
simples... Até um pouco mais simples seria suficiente.
Eu balancei minha cabeça ao pegar o copo quando a máquina parou de
engasgar e ligou novamente.
Se decida, Charlie.
Ela parecia certa, tão certa, mas de alguma forma errada também. Não,
não errada... não no sentido dela e eu, mas como eu deveria pensar que
estava errado. Por causa de alguma força externa, da expectativa pairando
sobre nós. Sobre mim. Mas a verdade era que Hannah parecia certa em todos
os aspectos que contavam, e lutar contra esse sentimento era exaustivo.
Quando a segunda xícara terminou, eu a peguei, arriscando um gole. Fiz
uma careta quando a lama salobra atingiu minha língua, certo de que me
manteria acordado e em parte convencido de que era radiativo.
Virei-me para o corredor, tão perdido em pensamentos que eu não vi ela
até que eu estava quase na porta. Eu parei na hora, o coração incluso.
Mary estava do lado de fora da porta, olhando pela janela em ângulo.
Círculos escuros estavam aninhados sob seus olhos, seus cabelos escuros em
um rabo de cavalo apertado, seus olhos escuros treinados no quarto onde
estava nossa filha febril.
— Quem é ela? — Ela não olhou para mim.
— A babá, — eu disse estupidamente.
— Ela é bonita. — Havia uma ponta em sua voz, mas era monótona.
Eu a observei por uma série de batidas cardíacas antes de falar.
— Onde diabos você esteve, Mary?
— Aqui, — ela disse oca, nunca se movendo além dos lábios.
— Que bonitinha. Suponho que os papéis do divórcio se perderam no
correio e você deixou o seu celular na pista do metrô.
Isso soa certo?
— Eu não sei o que você quer de mim, Charlie.
— Você está falando sério? Você está falando sério agora? — eu
assobiei, tentando não gritar, o café grosso ondulando nas xícaras das minhas
mãos trêmulas. Eu respirei. — Não. Você sabe o que? Eu não estou tendo
essa conversa com você. Aqui está a verdade: tudo o que quero de você é
uma coisa.
Ela finalmente se virou e encontrou meu olhar, o dela vazio, o meu em
chamas – eu podia senti-lo ferver profundamente em minhas entranhas,
fumegando em minha garganta.
— Nos deixe ir. Assine uma renúncia e deixe-nos ir de uma vez por
todas.
Ela empurrou a parede e se virou para sair.
— Droga, Mary, não se afaste de mim. Você já fez isso o suficiente.
— Eu não posso te dar o que você quer, Charlie. Nem agora, nem nunca.
— O que diabos isso significa? Quero dizer, você está certa sobre o fato
de que não pode me dar amor, companhia ou mesmo um maldito divórcio. Eu
até tive que fazer isso sozinho. Mas você pretende me manter firmemente
colocado no inferno até que você receba a porra da noção? Porque foi lá que
você me deixou.
Ela deu de ombros e tentou se virar novamente.
Minha raiva quase ferveu, mas eu a engoli, empurrei para baixo, respirei
fundo. Porque nossa filha estava doente, e Mary estava aqui, mesmo que
apenas por obrigação. Maven precisava dela, e isso tinha que ser o que
importava.
— Pare. Eu irei parar. Apenas... entre e a veja.
Mary balançou a cabeça e continuou girando, os olhos no chão e a linha
de seu perfil na mira de meus olhos.
— Eu não posso. Eu sinto muito.
— Você não sente porra nenhuma, — eu atirei nas costas dela. — Você é
a mãe dela. A mãe dela. E se você realmente sentisse muito, se desse a
mínima para alguém além de você, você entraria lá e seria a mãe dela.
Mas ela não disse nada, apenas continuou andando, e eu não tinha
vontade de detê-la. Ela me decepcionou por anos, e agora não era exceção,
apenas um lembrete.
De alguma forma, as xícaras ainda estavam penduradas nos círculos das
minhas mãos, não esmagadas com o conteúdo derramando sobre os meus
dedos, não voando pelo ar na direção em que ela andava. E eu fiquei lá,
olhando para as costas dela, impotente e sem esperança.
Até que eu andei até a porta e olhei pela janela para Hannah e Maven,
dormindo nos braços uma da outra.
Ela era tudo o que Mary não era. Elas eram dia e noite, o anjo e o diabo.
E eu sabia que encontraria salvação nos braços de Hannah, assim como
encontrei o inferno nos de Mary.
Naquele momento, eu nunca tinha tido tanta certeza de nada na minha
vida.
12
DIGA SIM

H annah
Quando acordei, Maven ainda estava respirando lentamente, o
rosto macio com o sono e as bochechas rosadas de febre. Charlie
estava sentado na cadeira contra a parede, a perna cruzada no tornozelo até o
joelho, os olhos no café intocado.
Ele olhou para cima e nós compartilhamos um sorriso, nada mais.
Poderíamos culpar Maven pelo silêncio, mas era mais do que isso. Estávamos
perdidos em pensamentos, contentes em não falar, porque parecia haver
muito a dizer e não tinha como dizer.
Maven finalmente se mexeu e fomos capazes de fazê-la comer uma
bolacha e beber um pouco de água. E uma vez que ficou claro que ela
manteria isso dentro, eles nos deixaram sair, embora não antes de nos armar
com picolés mágicos e instruções para trazê-la de volta se ela piorasse ou não
mostrasse sinais de melhora.
Charlie estava virado para dentro, com os olhos distantes enquanto
segurava Maven no táxi, a mão nas costas dela, a cabeça inclinada e a
bochecha descansando contra a cabeça dela. Eu o observei sem assistir, senti-
o sem ação ou palavras. A tensão era insuportável, nossa preocupação com
Maven é fundamental. O estresse dos hospitais, cutucando, atiçando e a
preocupação deixou sua marca em nós dois. Estávamos cansados. Por tantas
razões, estávamos cansados.
Já era tarde quando chegamos em casa e nos reunimos para encontrar
uma Katie muito preocupada. Charlie carregou Maven para cima para colocá-
la na cama, e eu contei a Katie o que tinha acontecido. Quando Charlie
desceu, Katie estava vestindo seu casaco e, por alguns minutos, ela se foi, a
porta se fechando atrás dela, me deixando sozinha com Charlie e o silêncio.
Sem mais nada a ser feito e sem mais tarefas para ocupar minha mente,
emoções surgiram, brotando no meu peito, picando meus olhos e ardendo
meu nariz. Eu caí no banco e me dobrei, descansando meu rosto nas palmas
das mãos para esconder minhas lágrimas.
— Ei, — ele disse tão impassível, movendo-se para se ajoelhar na minha
frente. Ele tocou a parte externa do meu joelho, o peso de sua mão um
conforto e uma maldição.
Movi minhas mãos e encontrei seus olhos, limpando minhas bochechas,
rindo em torno de um soluço pelo absurdo de tudo isso.
— Eu sinto muito. Não sei por que estou chorando. Era apenas uma febre,
e ela está bem, mas... — Olhei para as minhas mãos, respirando fundo e
soltando um esforço para conter mais lágrimas. — Era difícil suportar tudo
junto. Assustador. — Balancei minha cabeça e disse novamente: — Sinto
muito. É tão tolo.
— Não, não é, — disse ele calmamente, seu rosto espelhando meu
coração. — Eu não acho nada bobo. Não poder ajudar alguém que você ama
quando está sofrendo é uma coisa desoladora e impotente.
Eu balancei a cabeça, mãos no meu colo, seus olhos nos meus, tão
profundos e sombrios. — Foi assim que me senti. Desamparada.
Mas não havia perigo real. Eu não deveria estar chateada. Eu deveria
ser... — Mais corajosa, mais forte, melhor, mais.
Sua mão mudou do meu joelho para entrelaçar meus dedos.
— Hannah, você tem permissão para sentir o que está sentindo.
O significado era duplo, eu sabia. Eu podia sentir isso no lugar em que
nossas mãos se tocavam, no timbre de sua voz, nas profundezas aveludadas
de seus olhos.
Meus pulmões sorveram rápido e raso, mas não havia ar suficiente.
— É assim tão simples?
— Eu quero acreditar que é.
Nossos rostos foram levados um para o outro – o meu para baixo, o dele
para cima. Ele alcançou meu rosto, segurou minha bochecha, aquecendo os
traços frios das minhas lágrimas com a palma da mão, me dando coragem.
Eu não queria que ele desaparecesse novamente. Não queria que ele
dissesse não de novo.
E eu encontrei minha voz, as palavras resumidas no silêncio do meu
coração, e eu abri meus lábios para falar.
— Diga sim, Charlie. Diga-me que você me quer. — Eu não tinha certeza
de ter dito isso em voz alta; meu coração trovejante era tudo que eu podia
ouvir.
— Eu quis você desde que você entrou pela porta, — disse ele sem
hesitar. — Eu quero você desde a primeira vez que te vi sorrir.
Inclinei-me, e ele também.
— Diga sim, — eu sussurrei contra seus lábios, os nervos nos meus
formigando.
— Sim, — ele implorou a resposta, implorou ao meu coração.
Acabei com os centímetros com o menor dos movimentos e pressionei
meus lábios doloridos nos dele.
Uma explosão de consciência passou por mim, um foco completo no
lugar onde nossos lábios se tocavam, macios, aliviados e febris. Inclinei-me
na palma de sua mão enquanto elas seguravam meu rosto, como se eu fosse
preciosa, me guiando para o ângulo que ele desejava. Sua língua varreu meus
lábios por passagem, e eu a concedi, abrindo para deixá-lo entrar. Sua camisa
estava nítida sob meus dedos enquanto vagavam até seu pescoço, sua
mandíbula, segurando-o perto, implorando para que ele não parasse, para não
pensar, para não desaparecer, para não fazer o que é certo.
Inclinei-me demais, tombando seu equilíbrio, mas o beijo não parou – ele
se levantou, me levando com ele por meio das mãos no meu rosto. Não, o
beijo não parou; aprofundou o momento em que o comprimento de nossos
corpos se pressionou um contra o outro, o som de nossa respiração em meus
ouvidos, a sensação de sua boca quente na minha possuindo todos os
pensamentos.
Quando ele se separou, não foi com medo ou arrependimento; foi com
ternura. Estava com a testa pressionada na minha e os lábios ainda perto, mas
não perto o suficiente.
— Eu não quero parar, — ele sussurrou.
— Então não pare, — eu sussurrei de volta e beijei sua dúvida e a minha.
Eu me perdi nele por um longo tempo, na sensação de seus lábios e mãos,
na sensação de seu corpo contra o meu, meus braços em volta de seu
pescoço, apertando para segurá-lo perto, mais perto ainda. Quanto mais
profundo o beijo, mais quente ele queimava.
Quanto mais eu o queria, mais urgente me sentia.
Com tudo o que tinha, parei, com a respiração irregular, o coração
batendo forte, precisando de ar, precisando dele.
— Charlie, — eu respirei.
Ele tocou meu rosto, arrastando os dedos ao longo da linha do meu
queixo.
— Hannah...
Fechei os olhos pelo fogo na ponta dos dedos. E quando os abri, havia
apenas uma coisa a fazer.
— Venha comigo, — eu disse, minha voz calma.
Peguei a mão de Charlie na minha e ele me seguiu até as escadas que
levavam ao meu quarto. Mas quando minha mão tocou o corrimão, ele me
puxou para uma parada.
Eu me virei para ele, um choque de medo pulsando através de mim com o
pensamento de que tinha acabado, que iria terminar agora, que ele diria uma
palavra e eu seria banida novamente.
Eu não falei; Não pude.
— Hannah, — ele disse, procurando meu rosto, — não precisamos fazer
isso.
O medo aumentou, fechando minha garganta e acelerando meu coração.
Ele já está arrependido. Ele só me quer por um momento, hoje à noite.
Ele não me quer.
— Você não quer… — Eu tropecei em meus pensamentos. — Eu pensei
que você tinha dito...
Ele entrou em mim, acalmando minha preocupação com seus lábios,
fortes e seguros contra os meus. Foi um beijo que me disse o quanto ele fez
falta, um beijo que acalmou e facilitou e aliviou meu medo, substituindo-o
com certeza.
Ele se afastou e olhou nos meus olhos.
— Eu quis dizer o que disse. E tudo que eu quero fazer é segui-la escada
abaixo. Mas eu não quero que você... eu não quero que você se arrependa
disso, se arrependa de mim. Quero que você tenha certeza.
E, com minhas preocupações guardadas, sorri e disse: — Oh, tenho
certeza.
Eu segurei sua mão e o reboquei escada abaixo com pressa, e ele seguiu.
Quando chegamos ao meu quarto escuro, eu o soltei, movendo-me para a
lâmpada ao lado da minha cama. Com um clique, havia luz, apenas um
pouco, apenas o suficiente para ver o olhar em seu rosto quando me virei.
Preocupação e desejo dobraram sua sobrancelha, apertaram os cantos dos
olhos, mas ele não estava me reavaliando – eu sabia. Ele parecia inseguro de
si mesmo, e eu percebi algo que não tinha considerado antes.
Charlie foi casado há anos, sozinho por meses, e embora ele pudesse estar
com outra mulher desde que ficou sozinho, seu rosto e seu corpo me disseram
que não.
Eu me aproximei dele, passando meus dedos pelos seus, meus olhos nos
dele e os dele nos meus.
— Você está com medo? — Perguntei suavemente.
Ele tocou meu rosto novamente, gentilmente escovando meu cabelo para
trás.
— Eu não sei o que estou fazendo, Hannah.
Movi sua mão na minha para a minha cintura e a deixei lá, deslizando
minhas mãos pelo peito dele, angulando meus lábios nos dele.
— Sim, você sabe, — eu disse simplesmente.
E eu o beijei para provar isso.
Ele me beijou de volta, e seus lábios sabiam exatamente o que fazer
quando se separaram. Suas mãos sabiam o que fazer enquanto passeavam
pelas costas do meu suéter, quentes contra a minha pele nua. Seu corpo sabia
o que fazer, serpenteando ao redor do meu enquanto o meu envolvia o dele.
Mas ele ainda estava hesitante, sem pressionar por mais, sem aceitar o
que eu sabia que ele queria.
Então assumi o controle.
Minhas mãos encontraram os botões de sua camisa – o beijo continuava
sem cessar – e eu os desabotoei de cima para baixo, puxando a ponta da
camisa da calça, deslizando-a sobre os ombros, pelos braços. Meus dedos
determinados alcançaram a bainha do meu suéter e quebraram aquele beijo
sem fim por tempo suficiente para puxá-lo e jogá-lo longe.
Foi só quando eu soltei o cinto dele que ele acordou, que suas mãos
seguiram a direção da minha, movendo do rosto para o pescoço e para o
peito. Ele segurou seu membro, seu beijo mais profundo por um momento,
mais forte, procurando minha boca, procurando mais fundo quando cheguei
em suas calças, encontrando seu comprimento longo e duro quente e
confinado.
Ele gemeu na minha boca com o toque. Eu o libertei, acariciei, agarrei-o
até que seus quadris flexionassem e seus braços enrolassem em torno de mim,
me puxando para ele, dizendo que ele me queria. Ele me queria logo, e ele me
queria rápido.
Nós nos beijávamos quando ele me levou para trás na cama, me firmando
enquanto ele me deitava, me pressionando na cama com seu corpo por um
longo momento antes de ele se separar.
Pescoço abaixo, seus lábios se moveram, fechando-se sobre a minha pele
com um movimento de sua língua até chegarem ao vale entre meus seios.
Meus dedos enrolados em seus cabelos dourados, meu coração batia contra
seus lábios, enquanto seus dedos se prendiam na borda do meu sutiã para
puxar, me desnudando para ele, para seu calor, sua boca molhada, sua língua
que varia a ponta do meu mamilo. Sua mão vagava enquanto sua boca estava
ocupada, habilmente desabotoando minha calça antes de deslizar para dentro,
dentro da minha calcinha, cobrindo meu calor, suas pontas dos dedos
traçando a linha do meu núcleo.
Seus dentes roçaram meu mamilo no mesmo momento em que ele
deslizou um dedo em mim, gentilmente curvando-o, pressionando sua palma.
Eu ofeguei seu nome, empurrei meus quadris.
Eu estava impotente enquanto sua mão flexionava e seus lábios se
moviam e sua respiração soprava quente e alta contra o meu peito. Foi só
quando ele perdeu a paciência com minhas roupas que ele se afastou e eu
pude pensar. Seu objetivo era me livrar das minhas calças e calcinhas, um
puxão apressado que me deu tempo para chegar atrás de mim e desabotoar
meu sutiã. E quando eu olhei para ele, seus olhos estavam escuros, subindo e
descendo meu corpo que estava estendido na cama.
Com uma graça elegante, ele se levantou, empurrando as calças pelas
pernas e, uma vez que saiu delas, enganchou as costas dos meus joelhos e
puxou, arrastando-me para o final da cama com força suficiente para me
surpreender. E então ele se ajoelhou reverentemente ao pé da cama e abriu
minhas coxas, seus olhos presos onde minhas pernas se encontravam, seu
lábio ligeiramente aberto, suas mãos procurando, dedos me separando, boca
descendo.
Seu calor encontrou o meu, uma varredura úmida e sedosa de sua língua
contra o centro dolorido de mim.
Charlie sabia o que fazer. Ele sabia exatamente o que fazer.
Meus pulmões se encheram em um suspiro tão profundo, queimando, e eu
segurei o ar, segurei porque não conseguia me mover. Apenas meu coração
entrou em ação, galopando em minhas costelas, cada vez mais rápido com
cada movimento de sua língua e deslizamento de seus dedos dentro de mim,
fora de mim, dentro de mim novamente.
Seu nome passando pelos meus lábios em um gemido sussurrado enviou
um estrondo de sua garganta para o meu centro.
Um assobio entre meus dentes se seguiu quando minhas partes
flexionaram, pulsando em torno de seu dedo.
Sua boca se moveu sobre a minha coxa, através do meu estômago, seus
dedos ainda trabalhando, ainda se movendo enquanto ele subia meu corpo,
sem parar até chegar nos meus lábios. Eu o beijei como se estivesse
morrendo de fome por ele, com desespero e desejo, o sabor do meu corpo em
seus lábios me enviando para o limite, minha boca se abrindo mais, a língua
mais profunda, querendo mais.
O membro longo e nu pressionou contra mim e, no contato, ele se
separou, ofegante.
— Eu não... — ele respirou, parecendo não ter cérebro para terminar o
pensamento, exceto por uma palavra. — Preservativo.
— Você está seguro? — Perguntei.
Ele assentiu.
— Estou segura – com pílula. Confio em você — sussurro a verdade em
frases truncadas, não querendo nada além dele dentro de mim.
Ele me beijou profundamente, mas se afastou novamente para perguntar:
— Tem certeza?
Eu balancei a cabeça e o puxei para mim.
Tudo estava pesado – meu corpo, seu corpo, nossa respiração, nossos
batimentos cardíacos e mãos. Ele empurrou minhas coxas com os joelhos,
estabelecendo-se entre eles, a ponta dele na beira de mim. Eu me inclinei para
ele, abrindo minhas pernas, implorando com meu corpo.
Ele flexionou os quadris e me deu o que eu pedi com lentidão dolorida.
E nós respiramos. Por um longo momento, respiramos e sentimos e não
nos movemos exceto por um pulsar de seu pênis que meus lábios
repercutiram em torno dele.
E depois ele me beijou.
Ele me beijou com vivacidade, com adoração e desejo, e enquanto seus
lábios me diziam quais palavras não podiam, ele se moveu, bombeando seus
quadris, rolando-os quando ele chegou ao fim, uma onda que encheu e
pressionou e deu ao meu corpo que queria, o que precisava. A consciência
desapareceu. Havia apenas o ponto em que nossos corpos se uniam, os nervos
do meu corpo disparando. Ele empurrava forte – ele estava perto; Eu podia
sentir isso em seu corpo, eu podia ouvir em sua respiração. E com uma
estocada, um ronco baixo na garganta, meu nome, um sussurro, ele veio,
pulsando dentro de mim, a grande liberação de seu corpo quando ele me
atingiu rápido e profundo.
E eu perdi o controle, meu corpo apertando uma vez e soltando em
sucessão, puxando-o mais para dentro de mim, coxas segurando-o, meus
quadris balançando, movendo, mais devagar à medida que desaparecia,
deixando meu corpo sensível e saciado.
Ele me beijou, beijou-me com cuidado e adoração e uma doce e delicada
suavidade. Quando ele se afastou, ele alisou meu cabelo, examinou meu
rosto, encontrou meus olhos. E descobri que só queria uma coisa no mundo.
— Fique, — eu sussurrei.
Charlie me beijou novamente e fez exatamente isso.
13
SONHAR É DE GRAÇA

C harlie
A consciência tomou conta de mim, um lento despertar da minha
mente, marcando as sensações que eram tão estranhas para mim – as
pernas de Hannah enroscadas com as minhas, sua cabeça enfiada debaixo do
meu queixo, a suavidade de sua respiração contra a minha pele, seus braços
dobrados entre nós. Eu a abracei apertado, puxei-a para mais perto, de olhos
ainda fechados.
Foram muito poucas vezes na minha vida que acordei emaranhado em
outra pessoa – principalmente na faculdade, antes de Mary. Ela e eu sempre
parecíamos nos unir e nos separar na primeira oportunidade, e nunca nos
tocávamos quando dormíamos.
Mas Hannah e eu nos encontramos no escuro; mesmo quando nos
mexíamos ou rolávamos, o outro se mexia para manter a conexão.
Achei incrível que muita coisa tivesse mudado ao longo de uma noite.
No segundo em que me ajoelhei na frente dela enquanto ela chorava, eu
deveria saber que não haveria volta. E eu não queria. Eu só desejei ter dado o
salto muito antes.
Por um momento, tudo ficou na balança, todas as bolas no ar, a incerteza
entre nós quase opressiva. Mas então ela me pediu para dizer que sim, e eu
dei a ela o que ela queria. Eu queria a mesma coisa o tempo todo.
Eu me perguntei por um momento enquanto segurava sua bochecha
manchada de lágrimas se ela me queria do jeito que eu a queria. Eu me
perguntava se era real, se era Hannah quem me fazia sentir assim ou se
éramos um produto da situação, do meio ambiente.
Mas quando nos beijamos, eu não tinha dúvida de que era ela. Era a
Hannah. Foi a doçura dela, a bondade, a gentileza dela que me chamaram.
Foi o sorriso dela, a risada e a alegria que ela me fez sentir. Era o cheiro dela,
como baunilha e creme. Eram os olhos dela, da cor das dálias azuis que ela
trouxera para casa e mostrava na cozinha.
Hannah estava em todo lugar. Na minha casa. No meu coração.
Nos meus braços.
Contentamento e paz caíram sobre mim. Eu pressionei um beijo
agradecido em seus cabelos.
Eu estava tão nervoso, quase congelado na incerteza de como ser com
ela, com o que eu deveria fazer. Era como se tivesse sido a primeira vez
novamente, como se eu tivesse dezesseis anos, nervoso e atrapalhado. E ela
sabia. Ela sabia, e me lembrou que eu sabia o que fazer, afinal. Eu sabia
muito bem. Ficar com uma pessoa por tanto tempo deixou minhas outras
experiências para trás, e eu me vi maravilhado com Hannah, com seu corpo
comprido, com seu gosto, com os sons que ela fazia e com a suavidade dela.
Ela deu e ofereceu, e eu devolvi. Não havia tomada, nem força, apenas uma
troca de adoração que me enchia, satisfazendo muito mais do que meu corpo.
Ela acordou com uma longa, profunda respiração pelo nariz e a mudança
de seu corpo de alguma forma entrelaçou ainda mais com o meu.
— Mmm, — ela cantarolou e me beijou logo abaixo da clavícula.
— Bom dia, — eu disse.
Ela suspirou.
Suspirei.
E ficamos deitados juntos por alguns minutos, pensando, minha mão
deslizando para cima e para baixo em suas costas nuas, Hannah aninhada no
meu peito.
Eu queria falar, mas não tinha certeza do que dizer.
Precisávamos conversar, e eu não queria. Eu queria ficar lá naquele
momento indefinidamente, evitando toda responsabilidade e decisão.
— Você tem muito trabalho a fazer hoje? — Ela perguntou, as palavras
soprando contra a minha pele.
— Provavelmente, mas eu não vou fazer isso.
Ela se afastou e eu olhei para seu rosto, mais jovem e mais inocente do
que a imagem em minha mente.
— Não? Mesmo que você tenha saído cedo ontem? Eu pensei que você
poderia trabalhar o fim de semana inteiro.
Dei de ombros e alisei seus cabelos dourados.
— Não, não depois de ontem. Eu não deveria ter ido trabalhar, e hoje vou
compensar isso. Eu quero estar aqui com ela. Contigo.
Os olhos dela sorriam, brilhantes, azuis e nítidos.
— Eu não sabia que era tão fácil para você fugir, — ela brincou.
— Bem, minhas prioridades mudaram. — Eu segurei seu corpo no meu,
olhando para o rosto dela.
— Mudaram?
Eu assenti.
— Sim, mudaram. Quero estar aqui o máximo que puder, mais do que
posso. Eu quero mais dias como o zoológico. Eu... quero me sentir assim de
novo, mas não posso se estiver sempre fora. Então sim. Minhas prioridades
mudaram, meu coração mudou e minha vida mudou, tudo graças a você me
mostrando o caminho.
Quando ela sorriu, era tímido, doce e bonito. Eu a beijei; parecia a única
coisa a fazer.
Seus longos dedos seguraram minha mandíbula, seu corpo arqueando
sobre o meu durante todo o tempo.
Nós nos observamos sobre o travesseiro, seus olhos escorregando para
uma incerteza.
— Charlie, o que fazemos agora? — A pergunta era gentil, e eu sabia que
ela não queria falar sobre isso mais do que eu.
— Bem, — comecei, — eu gostaria de ficar aqui na cama com você até
não ter escolha a não ser ir embora. Então, eu gostaria de passar o dia com
você e as crianças. E hoje à noite, eu gostaria de estar aqui com você
novamente. E amanhã à noite. E na noite seguinte.
Ela riu baixinho, sorrindo como se pensasse que eu a estava
apadrinhando.
Mas eu não ri. Eu olhei nos olhos dela para que ela soubesse o quanto eu
estava falando sério.
— Hannah, não sei o que tenho para lhe oferecer quando você já me deu
tanto. E não sei o que vai acontecer a partir daqui. Eu... eu não faço isso há
muito tempo. Minha cabeça está me dizendo que não estou pronto, que vou
machucá-la e não quero te machucar. — Segurei seu rosto, acariciei sua pele
com o polegar, respirei através da dor em meu peito.
Ela cobriu minha mão com a dela.
— Apenas seja honesto comigo. Eu não sou frágil; Eu não vou quebrar.
— Eu tenho uma bagagem.
— Todo mundo tem. Entendo que você já se machucou e o por que sente
que não está pronto. E comigo morando aqui, não há escapatória, não há
separação. Estou preocupada que seja muito, muito rápido. Porque eu não
posso te dizer não, Charlie. Não posso fingir que não te quero aqui tanto
quanto posso tê-lo. É perigoso... você deve entender, não é?
— Eu entendo.
— E então a única maneira de fazer isso é se confiarmos um no outro.
Temos que entender que isso pode terminar facilmente, quer queiramos ou
não. E se isso acontecer, quando acontecer, teremos que lidar com as
consequências.
— As consequências não foram suficientes para me impedir ontem à
noite e não são suficientes para me impedir agora.
Ela sorriu.
— Eles também não são suficientes para me impedir, mas isso não
significa que ainda não estejam lá.
Eu a observei por um suspiro.
— Faz muito tempo que não confio em ninguém. Mas eu confio em você.
— Então vamos tentar, — disse ela. — E as crianças? Acho que não
devemos contar a eles.
— Não, eu também não. Mas Maven é jovem demais para entender, e
acho que, desde que não sejamos afetuosos demais, Sammy não perceberá
nada. Eu acho que está tudo bem apenas ser o que somos – você já faz parte
de nossas vidas, da vida deles. Eu não estou preocupado.
Ela sorriu.
— Então eu também não vou me preocupar.
E então eu a beijei.
Era lento e gentil, um movimento saboroso de bocas, línguas e mãos que
vagavam. O peso de seu peito na minha palma, a sensação de sua coxa entre
as minhas, seu corpo corando contra mim. Cada segundo e cada minuto com
ela era um sonho, uma descoberta – não apenas dela, mas de mim mesmo.
Nós tentaríamos. Eu a teria, e ela me teria. E a exaltação dessa decisão
uniu nossos corpos com uma graça fácil, uma longa apreciação um do outro
que continuou até que estivéssemos cansados e satisfeitos.
Mesmo assim, nenhum de nós queria sair da cama ou do santuário
silencioso da manhã. Mas quando Maven acordou, cantando pelo monitor de
bebê, nosso tempo acabou.
Hannah se vestiu e eu vesti minha calça, juntando o resto das minhas
roupas antes de beijá-la bem e completamente em sua porta.
Nós terminamos – ela foi para o banheiro, e eu subi as escadas, passando
por Katie na cozinha. Ela congelou quando me viu, sua boca se abriu quando
uma sobrancelha subiu, seus lábios se esticando em um sorriso que eu
retornei junto com um encolher de ombros.
— Já era hora, Charlie, — disse ela.
— Você é uma influência terrível, — eu disse de volta e subi as escadas,
ainda sorrindo. Eu poderia sorrir até morrer; eu estava tão feliz.
Joguei minhas roupas na direção da porta do meu quarto e entrei no
quarto de Maven, encontrando-a sentada na cama, cantando para o coelho
enquanto ela o fazia dançar.
— Hey, baby, — eu murmurei quando me aproximei.
Ela sorriu para mim. — Papai!
Peguei-a e a apoiei no meu quadril, inclinando-me para olhar para ela.
— Está se sentindo melhor?
Ela assentiu e enfiou o dedo nos lábios.
— Com fome?
Outro aceno.
Eu beijei sua têmpora.
— Venha, então.
— Picoié?
Eu ri.
— Claro, um picolé de remédio e algumas torradas. O que você acha?
Sua resposta foi enrolar no meu peito, colocando a cabeça debaixo do
meu pescoço, um local onde ela se encaixava perfeitamente. Por um pouco
mais de tempo, pelo menos.
Passamos pelo meu quarto para que eu pudesse trocar de calça e camiseta
antes de descer novamente para a cozinha. Hannah não apareceu, e Katie
parecia que estava prestes a estourar.
Ela praticamente me empurrou com um sorriso tolo no rosto.
Eu tive que rir enquanto colocava Maven em seu assento.
— Não tente esconder, Katie.
Ela riu – minha cozinheira de cinquenta e poucos anos riu como uma
menina – com mãos entrelaçadas na frente dela.
— Eu não posso evitar. Eu a amo, Charlie, e eu te amo. E vocês dois
juntos são os melhores. Ela faz você feliz, e você merece ser feliz depois de
tudo o que aquela mulher te fez passar.
— Você tem sido uma verdadeira profissional em manter isso em
segredo, deixe-me dizer.
Ela deu um tapa no meu braço.
— Está tudo bem, certo? Isso não foi apenas uma… uma única noite, né?
— Eu espero que não.
Ela riu de novo, com as bochechas altas e rosadas enquanto se afastava.
Um momento depois, Hannah entrou, com uma longa trança por cima do
ombro e o rosto cheio de sol.
— Bom dia, — disse ela, encontrando meus olhos e os encarando
enquanto eu entregava o picolé a Maven.
— Bom dia, — Katie e eu ecoamos.
Hannah deu uma olhada em Katie e olhou de volta para mim, sorrindo.
— Ela sabe?
— Acho que ela está esperando por isso há semanas.
Katie e Hannah riram, mas Katie não fez nenhum barulho.
— Não se preocupe comigo, — disse ela enquanto ligava a chaleira. —
Eu não vou deixar isso estranho, mas você certamente não precisa se
esgueirar ao meu redor.
— Bom, — eu disse. — Venha aqui, Hannah. Vamos nos beijar.
Elas riram de novo, mas eu estendi minha mão e acenei para ela.
— Sério, venha aqui. Vamos mostrar a Katie do que somos feitos.
As bochechas de Hannah coraram, balançando a cabeça quando ela se
aproximou, pegou minha mão e me beijou na bochecha antes de se afastar
para ajudar Katie no café da manhã.
— Ugh, porcaria, — brinquei e sentei-me ao lado de Maven, alegre como
um coelho em um campo de trevo, me sentindo feliz pela primeira vez desde
que me lembro.

H annah
Poucas horas depois, nós quatro sentamos no sofá assistindo a
um filme de animação. Bem, Charlie e eu sentamos perto o
suficiente para tocar do ombro ao quadril até o joelho, e Maven sentou no
meu colo, mas Sammy não conseguia ficar parado.
Naquele momento, ele estava deslizando sobre a mesa de café de bruços,
o rosto voltado para a televisão. Os olhos de Charlie estavam nos papéis em
seu colo – sua tentativa de trabalhar – mas quando Sammy girou de bruços e
atravessou a mesa por onde ele veio, Charlie olhou para cima.
— Você está entediado, amigo? — Ele perguntou.
— Simmmm, — ele assobiou. — Eu sou uma cobra! Ik ben de slang!
Charlie sorriu.
— Cara, ele está pegando isso rápido.
— Ja, hij is jong. Ele é jovem, inteligente e curioso.
— Bem, estou condenado então.
Eu ri.
— Je kunt leren.
Uma sobrancelha se levantou.
— Isso parece um pouco sujo.
— Você pode aprender, — eu disse com minha voz de professora. — Juf
Hannah vai te ensinar.
O sorriso dele subiu de um lado.
— Oh, eu tenho certeza que Juf Hannah definitivamente poderia me
ensinar uma coisa ou duas.
Eu ri, mas ele trouxe as costas da mão nas costas da minha e enfiamos os
dedos para trás juntos com um aperto.
— Vamos lá, — disse Charlie e se levantou, jogando a papelada na mesa
de café. — Vamos dar um passeio.
Sammy cantou e pulou pela sala de estar.
— Uma caminhada, uma caminhada, uma caminhada!
Charlie bagunçou seu cabelo.
— Sim, gastar um pouco dessa energia. Depois almoçaremos. O que você
acha?
— Vamooooos! — A palavra sumiu quando ele saiu correndo da sala e
para o banco onde estavam os sapatos.
Charlie pegou Maven e sentiu sua testa.
— Acho que a febre dela quase acabou. Acha que podemos levá-la a
passear no carrinho?
— Ela está muito melhor. Eu acho que o ar fresco pode lhe fazer bem,
não é?
— Ja, — ele disse, sorrindo enquanto se virava para seguir Sammy.
Nós nos ocupamos com sapatos, jaquetas e o carrinho, nos despedindo de
Katie no caminho para o dia fresco do outono.
Charlie segurou a mão de Sammy enquanto caminhávamos em direção ao
parque, e eu segui com o carrinho, assistindo os dois conversarem, Charlie
sorrindo enquanto olhava para o filho, que não parava de falar desde que
saimos.
O céu estava alto, sem nuvens e azul, quebrado apenas pelas copas
ardentes das árvores quando eles começaram a dormir em direção à
primavera. A brisa tinha o menor frio, varrendo as folhas em suas correntes,
sussurrando com o crepitar seco na calçada que as férias estavam chegando,
que lenços e fogueiras, chocolate quente e canela estavam ao virar da
esquina.
Meus olhos traçaram a árvore que ladeava a avenida na altura
correspondente, maravilhando-se com a sombra enferrujada contra o azul-
centáurea do céu atrás deles.
— Que dia adorável, — eu disse quando Sammy começou a cantarolar.
Charlie olhou para o nosso redor, subindo a rua de pedras marrons com
suas velhas lâmpadas de ferro.
— Realmente. Nova York no outono é quase tão impressionante quanto
Nova York na primavera.
Eu suspirei sorrindo.
— Eu gostaria de ver isso.
— Você verá, — disse ele, sorrindo de volta. — O parque é cheio de
árvores florescendo, a grama tão verde e exuberante, e todo mundo está
apenas… revigorado. Novo. Pronto para a mudança.
— Eu posso imaginar.
Ele riu para si mesmo e esfregou a parte de trás do pescoço.
— Parece uma comparação bem estúpida, pensando nisso. A Holanda é a
terra das flores, não é?
— É verdade; há muitas flores. Os campos de tulipas na primavera
pintam a terra em faixas coloridas. A grama é sempre verde, mesmo no
inverno, e a lavanda cresce por toda parte. E o outono também é adorável. Os
canais estão alinhados com árvores ruivas contra as casas antigas. É uma
profusão de cores – verde e exuberante no verão, dourado e quente no
outono. O inverno é monótono, sempre há um pouco de chuva, mas quando
neva... — Suspirei.
— Você sente falta?
Dei de ombros.
— Ultimamente menos.
Ele sorriu com isso, um sorriso apenas para mim.
— Bom.
Viramos a esquina do parque, e Charlie parou na vitrine de uma loja para
olhar para dentro.
— Oh, cara... a antiga lanchonete mudou. — Frustração dependia de suas
palavras. — Adorava esse lugar. Que espaço maravilhoso. Venha aqui e olhe.
Parei o carrinho ao lado da janela e espiei para dentro. Era uma loja
bonita, comprida e estreita, com grandes janelas, mas estava um pouco
antiquada e deteriorada. A maioria tinha sido despojada, e a placa na janela
direcionava os espectadores para o novo local.
— Você deveria transformar isso em uma padaria, — disse ele.
Eu ri genuinamente da sugestão.
Mas ele se virou para mim, sério.
— Estou falando sério. Olha, ele já está arrumado e pronto para usar. —
Ele olhou pela janela. — Com um pouco de remodelação e algum TLC, este
lugar pode realmente ser algo.
Desta vez, quando eu ri, balancei a cabeça.
— É uma loja adorável, Charlie.
A expressão em seu rosto pode quase fazer beicinho.
— Ah, vamos lá. Você não pode nem sonhar com isso?
Olhei para a loja novamente, abrindo a boca para falar, mas por um
segundo não disse nada.
— Eu nem saberia por onde começar. Eu não sei nada sobre o lado
comercial, mesmo que eu tivesse dinheiro para alugar um espaço como esse.
— Eu assenti.
— Psh. Você não precisa de nenhuma dessas coisas para sonhar. — Ele
pegou minha mão, olhando. — O que você faria lá? Como você gostaria que
fosse? Imagine só isso. Sonhar é de graça.
Suspirei e examinei o espaço, indo junto com ele.
— Bem, vamos ver. Pisos de madeira bastante novos fariam a diferença.
Prateleiras brancas atrás do balcão. Quão alto você acha que os tetos são?
Ele estreitou os olhos.
— Altos. Talvez cinco metros?
Eu balancei a cabeça, a emoção deslizando através de mim enquanto
minha imaginação se afastava de mim.
— Grande moldagem. Um grande quadro negro. Caixas de doces com
pequenos sinais manuscritos. Cadeiras alinhadas de frente para a rua, com
uma mesa funda, para que você possa trabalhar aqui ou sentar-se com seus
amigos e olhar para fora. Uma bela baldakijn – como se diz... uma marquise
com amplas listras rosa e branco.
Ele estava me olhando com o rosto cheio de adoração.
— Viu? Sonhar é de graça. Como você chamaria?
— Lekker, — eu respondi com um sorriso tão quente quanto meu
coração. — Significa gostoso, delicioso. Em holandês, tudo é lekker. — Eu
me inclinei para mais perto e sussurrei: — Até o traseiro.
Charlie riu, inclinando a cabeça um pouco para trás. Ele sussurrou de
volta, os olhos brilhando.
— Como você diz bunda bonita?
— Lekker cont.
— Cara, isso realmente soa sujo.
Dei de ombros e rimos juntos e voltamos para a calçada, de mãos dadas e
sorrindo. Porque ele estava certo; sonhar era de graça. E me vi com mais
sonhos todos os dias.

C harlie
O Central Park estava pitoresco naquele dia, assim como minha
vida. Era uma daquelas tardes perfeitas, do tipo que você imaginava
quando era jovem o suficiente para ainda acreditar que as coisas acabariam
como você imaginava. Foi o som de Sammy rindo enquanto eu o perseguia
por um pedaço do parque e a visão de Hannah sentada em um cobertor com
Maven no colo, assistindo e sorrindo. Parecia quase déjà vu, um
reconhecimento de algum lugar profundo e elementar que me fez acreditar
com alguma certeza que eu estava exatamente onde deveria estar. Que tudo
pelo que passei me trouxe para aquele dia, para aquele momento, para os
momentos seguintes.
E havia tantos. Rindo com Katie na cozinha e jantando com Hannah e as
crianças, preparando-as para a cama juntos – novamente uma dança natural
em que Hannah e eu nos encontramos sem necessidade de discussão ou
instrução, apenas nós dois nos movendo em sincronicidade até as duas
crianças estarem na cama.
Descemos as escadas para o quarto dela, de mãos dadas, sem nunca
concordar com isso em voz alta. Parecia o único lugar para ir.
Ela mantinha a lareira limpa, e eu fiz questão de ter uma abundância de
suprimentos, então acendi uma fogueira enquanto ela puxava os travesseiros
para baixo, apoiando-os no estribo.
Acendi o tronco preguiçoso e empilhei madeira em cima e, em pouco
tempo, estava sentado com ela dobrada ao meu lado e a cabeça apoiada na
curva do meu pescoço, nossas pernas esticadas à nossa frente e rostos
voltados para o fogo lambendo os troncos, estalando e crepitando.
Ela suspirou.
Eu também.
— Eu realmente não quero trabalhar na segunda-feira, — eu disse com
tristeza, assistindo o fogo. — Hoje foi muito bom, e aposto que amanhã será
ainda melhor. Estou arruinado.
Hannah riu.
— Eu não consigo imaginar trabalhar tanto quanto você.
— É como se eu estivesse preso em uma roda que não para de girar. Não
há como parar, não há saída. Acho que seria diferente se eu amasse, mas não
amo.
— Alguma vez já amou?
Eu pensei, procurando nos primeiros anos.
— Sabe, no começo, acho que sim. Era emocionante, novo. Eu senti que
estava contribuindo, que fazia parte de alguma coisa. Cerca de um ano
depois, tudo se foi.
— O que você acha que mudou? — Ela perguntou.
— Eu estava exausto, — respondi. — Não é sustentável trabalhar tantas
horas dia após dia, mês após mês. As promoções ajudam e os aumentos
tornam mais fácil por um minuto, mas no final, estamos perseguindo algo que
nunca podemos pegar. Como o segundo trabalho terminou, há mais três a
serem feitos. — Ficamos em silêncio por um momento.
— Se você pudesse fazer qualquer coisa no mundo, o que faria? — Ela
perguntou.
— Fácil. Eu seria um provador profissional de kwarktaart.
Ela riu.
— Estou falando sério.
Eu a segurei um pouco mais perto.
— Eu não sei, Hannah. Eu realmente não sei. Eu nunca soube; é por isso
que entrei para o Direito. Eu gostei bastante e era bom nisso. Quero dizer, tão
bom quanto qualquer pessoa que pode memorizar as coisas – o que, para
mim, é muito bom. Isso fez sentido para mim. Eu costumava pensar que era o
meu chamado. Agora acho que pode ser minha maldição.
— Bem, imagine isso. Sonhar é de graça – ela disse intencionalmente.
— Eu acho que é justo você ter usado minha própria linha em mim.
Eu pensei sobre isso por um tempo, e ela esperou por mim, contente e
paciente.
— É difícil pensar em algo fora do meu diploma. Para que estou
qualificado afinal? Acho que posso ser consultor ou algo assim, mas acabei
com a coisa toda. Eu realmente não quero praticar direito. Eu não tenho
paixões. Quão triste é isso? Estive tão ocupado tentando obter sucesso,
trabalhando em direção ao meu diploma e depois ao meu progresso em minha
carreira, que nunca encontrei nenhum hobby.
— E antes da faculdade?
Dei de ombros.
— Joguei basquete, mas não era bom, apenas alto. E eu jogava
videogames, mas também não era muito bom nisso. Eu gosto de resolver
quebra-cabeças, resolver problemas, tornar as coisas eficientes. — Balancei a
cabeça, me sentindo sem esperança. — Eu não achei que essa seria minha
vida. Eu não pensei que estaria na casa dos trinta e tão infeliz. Eu falhei da
maneira mais importante; Eu não estou feliz. Bem, eu não estava. Não até as
coisas mudarem.
Não até que eu pudesse ver como mudá-los. E isso é em parte graças a
você.
Ela se sentou e se mexeu para encontrar meus olhos, seu rosto doce,
macio e aberto e adorável, tão adorável.
— Sinto que estou vendo a vida de cabeça para baixo há uma década.
Mas agora eu posso ver. Ainda não sei o que fazer, mas posso ver. Você
entende?
Ela assentiu, a pele quente e rosada na minha mão, o rosto inclinado, os
olhos baixos.
— Me desculpe, — disse ela calmamente.
— Não se desculpe. A realização é muito mais doce dessa maneira.
Agora sei o que tenho a perder. Eu sei o que tenho que ganhar. Sei o que
quero, embora ainda não saiba como consegui-lo.
— Acredito que você terá tudo o que deseja, Charlie. Tudo o que você
precisa fazer é chegar e pegar.
Eu sorri e estendi a mão para ela com a esperança de levá-la.
— Oh, isso é tudo o que tenho que fazer?
Ela sorriu de volta e se inclinou para mim, inclinando-se para um beijo.
— Isso é tudo.
E então eu peguei o que ela ofereceu, começando com os lábios.
14
AUSÊNCIA

C harlie
A noite se foi muito cedo, e a manhã veio logo em seguida. O
único consolo real era que era domingo e eu estaria fugindo do
trabalho novamente.
Segunda-feira seria péssima por muitas razões para contar.
Katie estava de folga naquele dia, deixando Hannah e eu cuidarmos de
nós mesmos. E foi glorioso.
Ser pai com Hannah era divertido.
Era tão estranho perceber que poderia ser divertido. Eu nunca tinha sido
uma parte de uma unidade que funcionava como com ela, e cada minuto com
ela tinha me feito mais e mais confiante de que eu poderia ser um bom pai,
que eu queria saber o que fazer, para que eu pudesse ter o que eu queria.
Eu deveria saber que as coisas estavam indo muito bem antes da batida na
porta.
Estávamos todos na entrada, ficando prontos para caminhar até o Museu
das Crianças quando aconteceu, apenas uma batida inócua de juntas na porta
da frente. Eu atendi com um sorriso que escorregou do meu rosto, abaixado
pela ancoragem do meu coração enquanto afundava no meu peito.
O sorriso de Mary não vacilou, mas não alcançou seus olhos.
Não, seus olhos brilhavam com alguma emoção alternativa secundária,
mais real do que aquela falsa felicidade em seu rosto.
Seus cabelos escuros estavam baixos e ondulados, suas roupas limpas e
modestas.
Tudo nela era uma mentira.
— Oi, Charlie.
Eu estava preso no local, olhando para ela por um longo momento.
— Posso entrar? — Ela perguntou, meio brincando, a frase final – para
minha própria casa – não dita.
— Não. — Era quase um resmungo, minha garganta seca estava pegajosa
de choque e desconforto.
A sobrancelha dela se curvou. Ela ainda sorria.
— Como assim, não? Eu queria te encontrar quando soubesse que você
estaria em casa, para que pudéssemos... conversar.
— Não, — eu disse, mais forte desta vez. — Mary, você não pode-
— Eu não posso o quê? — Ela disparou, a verdade em seu coração veio à
tona, as breves gentilezas fora do caminho. — Eu não posso ver meus filhos?
Não posso entrar na minha própria casa?
— Para começar, sim.
— Você não pode fazer isso! Você não pode ditar isso. As chaves desta
casa estão na minha bolsa e essas crianças saíram do meu corpo. Você não
pode me dizer que não posso!
— Na verdade eu posso. Seu nome não está na hipoteca e você nos
abandonou. Você perdeu seus direitos quando não pôde se dar ao trabalho de
comparecer à audiência de custódia.
A cor subiu em suas bochechas, mas ela estudou seu rosto e tom.
— Charlie, escute, me desculpe. Tem sido... difícil, confuso. Não tenho
uma desculpa; Eu percebo isso. Mas eles são meus filhos, e eu quero vê-los.
Esta é minha casa, e eu...
— Isso deixou de ser sua casa no segundo em que você decidiu transar
com Jack, — eu disse com uma frieza de aço que a surpreendeu. — Você não
pode aparece aqui depois de todo esse tempo e muda as regras – regras que
você ditou por sua ausência.
Não é assim que isso funciona.
— Mamãe?
Era Maven, sua voz baixa. Eu me virei para olhar, meu coração partido,
abrindo a porta sem querer.
Hannah estava na entrada com Maven no quadril e Sammy espreitando
por trás dela. Os olhos e o rosto de Hannah estavam cheios de emoção,
tensos, surpresos, tristes e protetores, enquanto ela e Mary se entreolharam.
— Oh, olha, é a babá bonita, — Mary disse com um desprezo seco que
colocou os cabelos no meu pescoço, arrepiando e formigando.
— Deixe-a em paz, — eu rosnei.
Ela olhou para mim, pesada e avaliadora.
— Ah, entendo. — Ela deu um passo para trás e fechou o rosto.
— Não vamos chegar a lugar nenhum hoje, não é?
— Hoje nao. Não até você fazer um esforço para acabar com isso de uma
vez por todas. Você não pode escolher o que quer fazer, e não posso permitir
que você os veja sem um acordo por meio de nossos advogados.
Mary assentiu uma vez.
— Eu quero fazer parte da vida deles, Charlie. Ver você no hospital me
fez perceber o que estava perdendo. Então, por mais que você queira fazer
isso, eu o farei.
Meus olhos se estreitaram.
Estava fácil demais e eu não estava comprando nada disso. Ela manipulou
todos que conhecia, eu o pior de todos, e eu não confiava em nada que ela
tinha a dizer, mesmo quando era a coisa certa a dizer.
Especialmente quando era a coisa certa a dizer.
— Vamos ver, — eu disse.
— Sim, nós vamos.
E ela se virou e desceu as escadas.
Fechei a porta com as mãos trêmulas, o ruído forte alto na entrada
silenciosa.
Hannah permaneceu onde estava, Maven descansando em um braço, o
outro nas costas de Sammy, o rosto ainda tão cheio, como se houvesse mil
coisas em sua mente.
Eu não poderia culpá-la por nenhuma.
Passei a mão pelos cabelos.
— Por que a mamãe estava aqui? — Sammy perguntou calmamente,
subjugado, do lado de Hannah.
Ajoelhei-me ao nível dele e tentei encontrar uma maneira de explicar.
— Eu não sei, amigo. Vou tentar resolver isso com ela, ok?
— Mas ela disse que queria dizer olá. Ela disse que queria ver eu e
Maven.
O calor da dor queimou meus pulmões e coração até que começaram a
doer e arder.
— Eu sei, — eu disse, quase um sussurro. — Eu sei, Sammy. E eu quero
que você a veja. Nós vamos tentar descobrir como, ok?
Porque desde que ela partiu, há algumas regras que ela tem que seguir, só
isso.
Ele assentiu e olhou para os sapatos.
— Ok, papai.
Eu peguei a parte de trás da cabeça dele e beijei o topo dela, fechando
meus olhos contra a dor de tudo, desejando que houvesse uma maneira fácil
de sair, desejando que ela não tivesse vindo, desejando que ela tivesse feito a
coisa certa e procurado os advogados em vez de vir aqui, nos enganando e
nos arrastando para o fundo com ela.
Mas desejos e sonhos, embora livres, não podiam ser contados.
Levantei-me e encontrei os olhos de Hannah.
— Hannah, eu sinto muito. Não posso... não sei por que ela...
— Você a viu? No hospital? — Ela perguntou.
E identifiquei a mais nova emoção no rosto dela – traição.
Eu entrei nela e segurei seu cotovelo.
— Eu vi. Ela estava do lado de fora depois que voltei de buscar o café.
Eu... eu não queria te preocupar.
— Você não queria me preocupar, ou não queria que eu soubesse? — A
pergunta não era acusadora; foi honesta e magoada.
— Eu teria lhe dito, eu juro. — Eu procurei seus olhos, esperando que ela
pudesse ler a verdade nos meus. — Naquela noite... Hannah, muita coisa
aconteceu de uma só vez. E quanto mais eu pensava, menos importante era.
Nada de importante foi dito; tudo o que fizemos foi discutir. Ela nem veio ver
Maven, nem mesmo quando estava doente, e eu... eu... — Minha voz falhou e
eu engoli a tristeza, a decepção, o medo urgente de machucar Hannah.
Mas sua preocupação desapareceu e ela assentiu uma vez.
— Entendo. Apenas... por favor me diga o que está acontecendo. Não
quero me surpreender, não com isso. Não por ela.
— Claro, — eu disse e a puxei para um abraço, suspirando. — Eu sinto
muito.
— Eu também. Você está bem?
Eu beijei seus cabelos e me afastei.
— Na verdade não. Mas eu ficarei.
— Sim, você vai ficar. — E o sorriso dela me fez acreditar que era
verdade.
15
MÃOS OCUPADAS

C harlie
— Explique isso para mim mais uma vez, — eu disse,
esfregando os olhos.
Meu advogado de divórcio e amigo da faculdade, Pete, me observava do
outro lado de sua mesa.
— Desde aqui de cima?
— Do começo.
Ele folheou suas anotações e respirou fundo.
— Entramos com os papéis de divórcio – divórcio culposo sob alegações
de adultério – em junho, depois que ela se recusou a responder às suas
tentativas de alcançá-la. Duas semanas depois, entregamos a ela os papéis em
seu local de trabalho, juntamente com o acordo, declarando que você a
pagaria em troca do dinheiro pago em sua casa e concordaria em guarda
conjunta com você como o principal guardião. Você recebeu a custódia
temporária total das crianças em — ele virou a página — 12 de agosto, e
Mary não respondeu os papéis do divórcio. Ainda estamos a algumas
semanas de podermos pedir uma decisão padrão, mas há muito pouco que ela
poderia fazer para mudar as coisas. Ela renunciou a seus direitos por não
participar do divórcio ou da audiência de custódia temporária. Eu não sei
muitos juízes que acreditariam nela se ela voltasse ao redor neste momento.
— Você acha que ela sabe? Que ainda não solicitamos o padrão?
Pete recostou-se na cadeira.
— É difícil dizer. Não tivemos nenhum tipo de contato do lado dela. Eu
nem sei se ela tem um advogado. Há uma possibilidade de que ela possa
apresentar uma petição para anular a decisão padrão e ter um juiz no seu
caso, mas quanto mais ela demorar, menor será a probabilidade de ela ter isso
negado e realmente começar a participar.
Suspirei, a respiração puxada de algum lugar profundo em meus pulmões.
— Não sei o que devo fazer. Ela quer ver as crianças, e eu não sei como
dizer a elas que não podem ver a mãe. Não me interprete mal; Eu não confio
nela, e com certeza acho que ela deveria ter aparecido há muito tempo. Mas,
se ela está voltando agora, provavelmente não a vi. E se ela vai insistir nisso,
não sei se posso dizer não por uma justa causa. Não quero impedi-la de vê-los
por rancor, mas também não quero colocá-los em risco. Não quero que ela os
transforme em arma, mas não permitir que vejam a mãe... é cruel.
— Charlie, ouça, você sabe como isso funciona. Se você estabelecer uma
precedência, se fizer algum tipo de acordo com ela sob custódia agora,
enquanto tudo estiver em fluxo, isso pode estragar tudo. Você não pode dar a
ela um centímetro ou ela pega tudo. Estamos falando de Mary aqui.
— Então, mantenho-na longe deles até o divórcio acabar?
Ele assentiu.
— É a única maneira de garantir o controle. Se você quer que ela os veja
depois disso, é um jogo justo.
— Isso é tão fodido, — eu disse metade para mim mesmo.
— Eu sei. Bem-vindo à lei do divórcio.
— Obrigado por sua ajuda com isso. Eu sei tanto sobre a lei do divórcio
quanto sobre a cirurgia cardíaca. — Tentei rir, mas saiu como uma risada sem
sentido. — Eu não sei como você faz isso. As fusões e aquisições me secam
regularmente, mas não é nada como tentar resolver os casamentos
fracassados das pessoas.
— Bem, ajuda quando eu trabalho para os mocinhos. É nos momentos em
que trabalho para os idiotas que realmente tenho uma crise de consciência.
Nós dois rimos disso, e eu deixei o escritório de Pete, tão enojado,
oprimido e perdido em meus pensamentos que vaguei por Midtown um
pouco, sem querer voltar ao trabalho.
O trabalho era o último lugar que eu queria estar por dias.
Semanas. Talvez sempre.
Tentei fortalecer minha vontade, lembrando-me do dia em que participei
da audiência de custódia temporária. O pensamento de vê-la pela primeira
vez desde que ela partira me deixou sem sono por dias, e a ansiedade era tão
real, tão pura, tão horrível que me perguntei se eu me desmoronaria no meio
da sala do tribunal. Ela viria, eu estava certo. Ela ia lutar, eu sabia.
Mas ela não apareceu, e isso foi de alguma forma muito pior.
Agora ela queria ver as crianças depois de todo esse tempo, e eu não
podia deixá-la. Eu nem sabia se ela realmente os queria ou se ela estava
apenas tentando me manipular, mas a imagem de seus rostos pequenos
quando os barrei de sua mãe queimou em minha mente. Não era mais fácil do
que pensar que ela os machucaria, que ela não era estável o suficiente para
ser o que eles precisavam.
Parecia errado, tudo sobre isso. Errado, viscoso e sinistro.
E não havia nada que eu pudesse fazer a não ser esperar.

H annah
A boca de Lysanne se abriu como um peixe enquanto o balanço
de Charlotte perdeu força.
Eu parei de falar por pelo menos um minuto inteiro.
— Diga algo.
Ela pintou, sua boca aberta se transformando em um sorriso.
— Eu não pensei que você realmente teria a coragem de beijá-lo, não
importa... tudo isso.
Eu ri e mantive o balanço de Maven uniformemente.
— Honestamente? É tudo o que você tem a dizer?
— Claro que não. É como se você não me conhecesse. — Ela balançou a
cabeça e deu uma sacudida no balanço de Charlotte. — Estou animada e
nervosa por você e Charlie. É complicado, sim?
— Faz apenas alguns dias, então ainda não. Mas tenho certeza que será.
Embora ver sua ex provavelmente foi um vislumbre da complicação.
— Pegajosa e bagunçada. Não acredito que ela apareceu assim. Você
disse que ela não os via há meses?
— Desde que ela deixou todos eles.
— Ela é bonita? — Lysanne perguntou.
Eu assenti.
— Ela é linda, com cabelos e olhos escuros, muito... eu não sei a palavra.
Cosmopolita. Elegante. Um pouco assustador. Mas o estranho era que eu
podia vê- los juntos, mas como se fosse uma versão diferente dele, uma que
eu não conheço.
— Como se ele tivesse um irmão gêmeo? — Ela perguntou
animadamente.
— Sim, um pouco, — eu disse rindo. — Eles faziam sentido, mas não
faziam . Não sei como explicar, a não ser que foi estranho. — Meu sorriso
desapareceu. — Ela não gosta de mim; ela deixou isso bem claro. Não que eu
pensasse que poderíamos ser amigas. Na verdade, eu nem sequer a tinha
considerado. Ela se foi por um longo tempo... então ela sempre foi... fictícia,
apenas um pedaço do passado dele sem rosto. Mas ela tem um rosto agora,
um rosto e uma presença, e eu já posso sentir o peso disso entre Charlie e eu.
— Eu posso ver isso. Agora é real.
— Ele esteve com ela todos esses anos. Estes são os filhos dele com ela.
Ela é a mãe deles. São todos fatos que eu conhecia perfeitamente bem, mas
acho que não os compreendi até ontem.
Lysanne não disse nada, as sobrancelhas juntas enquanto ela empurrava
Charlotte por alguns segundos.
— Eu me preocupo muito com Charlie e já aceitei a verdade do passado
dele. Apenas me abalou ao vê-la, ser confrontada com ela dessa maneira.
— E isso é compreensível. Como Charlie o levou?
— Nada bem. Ele estava muito mais chateado do que eu, e as crianças
também. Charlie tem que suportar tanto. — Eu balancei minha cabeça. — É
por isso que eu não fiz barulho quando descobri que ele a viu no hospital e
não me contou.
Os olhos de Lysanne se arregalaram.
— Ela estava lá?
Eu assenti.
— Eu não a vi; ela não queria ver Maven.
— Isso é horrível.
— Quero acreditar que ela tem seus motivos, mas não é fácil dar
desculpas para ela quando passo tanto tempo com as crianças, quando
consigo ver o quanto elas são maravilhosas e o quanto precisam dela.
— Talvez a razão dela seja apenas que ela é uma vadia egoísta, — disse
Lysanne com naturalidade.
Eu ri.
— Essa não seria a resposta fácil? Mas nada é tão simples.
Nossos corações e mentes são mais complicados do que isso, com
camadas sobre camadas de raciocínio, sentimentos e motivação.
Sempre há outro lado. Sempre existe um motivo, mesmo que não
possamos concordar se é um motivo válido ou não.
— Bem, eu mantenho minha teoria de que ela é apenas uma pessoa
terrível – o que, na minha opinião de especialista, não é uma razão válida.
Eu ri de novo e ela sorriu.
— Eu te amo, — eu disse, balançando a cabeça.
— Eu também te amo. O que você acha que vai acontecer com Charlie?
Será longo? Quero dizer, você mora lá por um futuro próximo. E se as coisas
derem errado? E se a ex dele aparecer mais?
E se ele fizer algo como... — A preocupação tocou seus olhos, sua testa,
sua voz. — E se ele dormir com ela? E se ele...
Eu a parei.
— Lysanne. — O desconforto passou por mim.
Ela tapou a boca com força.
— Podemos nos preocupar com o que acontecerá o dia todo e para
sempre, e nada de bom viria disso. Confio em Charlie para me dizer a
verdade, para ser honesto e aberto comigo. É tudo o que realmente peço a ele,
tudo o que preciso, e acredito que ele me dará isso. No final, se as coisas não
derem certo, eu vou para casa. Não quero aceitar outro emprego aqui, depois
de tudo o que passei.
— Então você vai fugir. É a especialidade da Hannah.
Eu dei a ela uma olhada rasa.
— O que? Só estou dizendo que é assim que você gosta de resolver
problemas, só isso.
— Só não quero me aborrecer com preocupação sobre coisas que não
posso controlar.
— Suponho que seja justo, — ela admitiu. — Estou orgulhosa de você
por assumir o comando de Charlie.
Suspirei.
— Eu estava cansada de esperar e não saber e... estar incerta.
E agora... eu sinto que pertenço de alguma maneira. Não sinto isso há
muito tempo.
Ela sorriu.
— Eu sei. E eu estou feliz por você. O que vocês dois vão fazer hoje à
noite?
— Oh, eu não sei. Ele trabalha tão tarde, tanto. — As palavras eram mais
tristes do que eu pretendia deixar transparecer. — Ele tirou o fim de semana
inteiro, então talvez eu não o veja hoje à noite. Mas isso provavelmente é
bom. Estamos juntos há dias, e um pouco de tempo nos fará bem.
— Você parece tão satisfeita com isso, — ela brincou.
Eu ri, mas seu rosto ficou pálido quando ela olhou para mim.
— Aquele é... oh meu Deus, Hannah, olhe.
Quinton contornou o portão do parque, as mãos nos bolsos, o sorriso no
rosto, os olhos nos meus.
Uma onda de ansiedade correu através de mim, parando meu coração
antes de começar novamente, batendo dolorosamente nas minhas costelas.
— Hannah, — ele chamou enquanto se aproximava. — O que acha disso?
Eu estava voltando de um almoço tardio com uma colega de trabalho e pensei
ter visto você.
Parecia ensaiado, fingido, como uma mentira.
— Olá, — era tudo que eu podia oferecer.
— Imagine isso, — disse ele, parando ao meu lado. — Engraçado
continuarmos nos encontrando.
— Sim, engraçado, — disse Lysanne enquanto observava, sua mandíbula
apertada, ainda empurrando Charlotte no balanço.
Ele rapidamente olhou para ela, duro e afiado, antes de olhar para mim.
— Posso falar com você por um segundo? Sozinho?
Os olhos de Lysanne me disseram para não fazê-lo. Os de Quinton que
não iria ceder. Nós estávamos em público durante o dia.
Se alguma vez houve um tempo seguro, era provavelmente esse.
Então eu assenti.
— Você pode cuidar das crianças para mim?, — Perguntei a Lysanne.
— Sim, é claro, — ela respondeu, suas palavras rígidas.
E então eu o segui até as cercas que ladeavam o parque.
Ele se virou, sorrindo serpentino.
— Eu quero acreditar que é destino termos nos visto duas vezes agora.
Eu sorri educadamente.
— Existe algo que você precisa?
Algo brilhou atrás de seus olhos, algo quente e proibitivo.
— Só que você tome um café comigo. Eu queria... explicar.
Quero dizer, o mínimo que posso fazer é comprar uma xícara de café e
oferecer algum entendimento.
Meu sorriso desapareceu.
— Não acho que seja uma boa ideia.
O dele também desapareceu.
— Hannah, sério, eu só quero conversar, eu prometo.
— Não há nada para discutir, — eu disse com uma nitidez que não
pretendia.
Ele ajeitou os ombros e endireitou as costas, erguendo o queixo apenas
um toque.
— Discordo. Eu acho que há muito o que discutir. Mas eu entendo.
Prometa que vai ligar se mudar de ideia.
Eu dei um passo para longe, meus olhos se estreitaram e o pulso correu
nos meus ouvidos.
— Adeus, Quinton. — Virei-me para caminhar até Lysanne.
— Vejo você por aí, Hannah, — disse ele nas minhas costas.
Eu podia sentir o lugar onde seus olhos me observavam. Mas quando eu
estava ao lado de Lysanne e reuni a coragem de olhar, ele se foi.
O peso do momento me deixou em um lugar que pôs minhas mãos
tremendo quando levantei Maven do balanço e a abracei.
— O que, em nome de Deus, ele queria? — Lysanne cuspiu, pegando
Charlotte também.
Fizemos nosso caminho para a caixa de areia – tive que me sentar antes
de não ter escolha.
— Para me levar para um café.
— Ele... ele o quê? — Ela cuspiu. — Que possível motivo ele teria para
ter oferecido?
— Eu não sei, — respondi honestamente, miseravelmente. — Lysanne,
acho que devo contar a Charlie.
A boca dela se abriu.
— Você absolutamente não deveria contar a Charlie.
Minhas sobrancelhas se uniram.
— Por que não?
— Porque ele vai achar que você faz isso com todos os seus chefes.
— Oh Deus, — eu respirei. — Certamente ele acreditaria em mim.
Certamente ele confia em mim.
— Hannah, sua esposa o traiu. Com o melhor amigo dele.
Tenho certeza que ele confia em você, mas você tem certeza de que ele
entenderá?
— Eu... eu quero acreditar que ele vai.
O rosto de Lysanne estava tenso. Ela respirou ruidosamente pelo nariz e
soltou o ar.
— Você acha que Quinton voltará?
Eu considerei isso.
— Eu não achei que o veria, nem mesmo duas vezes. Depois do que
aconteceu, eu acho... acho que talvez por eu ter dito não com um ar de
finalidade isso pode ser o fim, mas como posso ter certeza?
— Você não pode, não com ele. — Ela me observou por um instante. —
Se não for o fim, se você o vir novamente, então conte a Charlie. Não há
razão para perturbar o status quo por nada, se não for nada.
A ideia me aliviou – de evitar explicar algo que eu não queria falar, não
queria pensar, algo que me humilhara e me assustara.
E então eu disse: — Tudo bem, — esperando contra a esperança que eu
estivesse fazendo a coisa certa.

P assei o resto da tarde na companhia alegre e feliz de Lysanne, e me


senti mais agradecida por ela do que nunca. No momento em que nos
separamos, eu já havia esquecido Quinton, a troca e o que Charlie
poderia pensar.
Passei a noite com as crianças, jantar, banhos, histórias e cama.
Na maior parte do tempo estávamos sozinhos – Katie tinha saído antes do
jantar para ir para casa com o marido – e uma vez que as crianças estavam
dormindo, a casa estava em silêncio. Grande e vazia.
Sem nenhuma distração, meus pensamentos vagaram de Quinton –
imaginando suas intenções, a verdade de nossos encontros coincidentes,
nosso passado – para o meu futuro com Charlie.
E quando pensei em Charlie, meus pensamentos me levaram a Mary,
minha preocupação me impedindo de considerar o bom ou o feliz, apenas
meus medos e ansiedades. Eu a imaginei nesta casa, subindo as escadas em
que andei, comendo na cozinha em que entrei, bebendo do copo de vinho que
bebi, dormindo na cama de Charlie no andar de cima. Não, não a cama de
Charlie... a cama deles.
Eu nunca estive no quarto dele; nós sempre ficávamos a minha, todas as
noites. Não foi dito; nenhum de nós queria dividir a cama no andar de cima e
estávamos perfeitamente satisfeitos em ficar em um espaço que era nosso,
intocado pelas lembranças dela.
Percebi então, sentada na cozinha de Charlie em minha camisola, que só
pensava na casa dele como minha casa desde que entrei pela porta. Tinha
sido tão fácil nunca pensar na casa e nas pessoas nela em termos do passado,
apenas no presente, como se tudo fosse tão novo para eles quanto para mim.
Parecia meu, mas não era, e nunca foi.
Era muito provável que nunca fosse.
Meu estômago se revirou com o pensamento – não com a possibilidade
de não ter tudo para mim, mas com o entendimento de que eu estava
desejando algo sem meu consentimento ou conhecimento. De certa forma, caí
em um sonho, e a aparecimento de Mary foi um despertar rude.
Respirei fundo e fui em direção ao armário em busca de farinha, açúcar e
na geladeira, manteiga, leite e ovos, e ocupei minhas mãos, fiz minha mente
pensar em algo diferente da verdade da minha circunstância, verdade do meu
coração.
Katie mantinha a despensa abastecida com suprimentos para mim, sempre
perguntando o que eu precisava ou queria, às vezes antecipando o que estava
faltando sem que eu precisasse perguntar, e fiquei particularmente agradecida
naquela noite. Em pouco tempo, eu tinha massa folhada na geladeira, bolos
no forno e um prato de maçãs, passas e canela na minha frente.
Era automático e reconfortante, acalmando minha mente ocupada e meu
coração incerto a cada movimento, com o rolo nas mãos enfarinhadas, com a
escovagem da manteiga derretida e a pitada de açúcar. Foi um ato satisfatório
de amor e devoção, uma lembrança da minha infância, família e casa, uma
maneira de dar um pedacinho de mim para outra pessoa. E eu me perdi nos
movimentos.
Eu estava congelando os bolos quando ouvi a chave de Charlie na porta, e
não consegui parar meu sorriso ou o calor em meu peito ou meus pés de me
levarem para a entrada com surpresa e alegria, minhas preocupações e medos
desapareceram no segundo em que ouvi aquele som que significava que ele
estava em casa.
Seu rosto espelhava meu coração.
Nós quase nos apressamos e, em um suspiro, eu estava em seus braços, o
frio da noite agarrando-se a seu casaco, lábios e mãos. Mas eu o beijei para
afastar isto da melhor maneira que pude.
Charlie se inclinou para trás e olhou por cima do meu rosto.
— Olá para você também.
Eu ri e o beijei novamente, rápida e docemente.
— Você está em casa cedo.
Ele encolheu os ombros.
— Sim, eu atingi meu limite. Pensei que tirar alguns dias de folga poderia
me refrescar no trabalho, mas receio que tenha feito o contrário. É
literalmente o último lugar que eu quero estar. — Ele me abraçou. — Quer
saber o primeiro?
Inclinei minha cabeça e fingi pensar.
— Hmm, o metrô?
Ele balançou sua cabeça.
— Adivinhe de novo.
— O banho?
Esse ele considerou.
— Se você estiver nele, então cem por cento sim. — Ele me beijou
novamente.
Eu o respirei, sentindo que não o via há dias, não apenas algumas horas, e
ele parecia fazer o mesmo, suas mãos e lábios me dizendo que sentia minha
falta, que ele queria estar lá o mesmo tanto que eu.
O beijo terminou com um suspiro.
Charlie passou a alça do meu avental entre os dedos.
— O que você está assando?
— Estou congelando oranjekoek e tenho appelflappen no forno.
— Eu não tenho ideia do que você acabou de dizer, mas o cheiro é
incrível.
Eu ri.
— Bolo de laranja, maçã*... como você diz... — Eu abri minha mão e
fechei como um livro. — Giro. Ah... bolso?
— Como um turnover?
— Sim!
Ele bateu nos lábios.
— Eu quero comer tudo isso. Lidere o caminho.
Enrosquei meus dedos nos dele e o puxei para a cozinha.
— Como foi o seu dia?
— Horrível. Eu nem quero falar sobre isso. Como foi o seu?
— Bom. Eu vi Lysanne hoje, o que é sempre bom. Eu me sinto...
completa depois de passar um tempo com ela. Você entende o que eu quero
dizer?
— Eu acho que sim. — Ele pressionou um beijo no meu cabelo quando
paramos.
Eu sorri para ele quando ele olhou por cima do bolo, coberto com pasta
de amêndoa e coberto com esmalte rosa.
— Então esse é... deixe-me adivinhar... o bolo de laranja?
— Sim, está certo. Não sei porque é chamado bolo de laranja; é rosa.
— Tem gosto de laranja?
— Um pouco. Tem cascas de laranja cristalizadas, mas a palavra oranje é
uma cor. A fruta é sinaasappel – acrescentei com um encolher de ombros.
— Então... uma laranja é uma maçã?
Eu ri.
— A primeira vez que vimos laranjas, elas vieram da China, então a
palavra que fizeram para ela era maçã chinesa.
Ele balançou a cabeça e sentou-se na ilha.
— Isso é tão estranho.
— Eu sei. — O cronômetro tocou e eu virei para o forno. — Zo gek als
een deur. — Puxei a prancheta e coloquei a forma no fogão.
— Tão louco quanto uma porta.
Charlie riu do fundo de sua barriga.
— Porque todo mundo sabe que as portas são irracionais.
— Minha oma tem tantas frases engraçadas. Por exemplo, quando éramos
pequenos, se uma brincadeira era feita, não entendíamos, mas ríamos, ela
dizia, Jij bent lachend als een boer met kiespijn. Você está rindo como um
fazendeiro com dor de dente. — Eu demonstrei, segurando minha mandíbula
como se meu dente doesse e rindo desajeitadamente.
Isso ganhou outra risada.
— O melhor foi quando perguntamos sobre sua saúde, e ela nos disse que
era kiplekker, o que significa frango delicioso. Mas isso significa apenas
saudável.
— Lekker tudo.
— Lekker está tudo certo.
Coloquei um apple turnover em um prato pequeno, e ele o pegou com
olhos famintos.
— Minha boca está realmente salivando.
Eu assisti sua língua molhar seus lábios enquanto ele pegava a massa.
Quando ele deu uma mordida, ele gemeu, fechando os olhos.
— Deus, como você faz isso? — Ele perguntou em torno de uma
mordida.
Eu ri, satisfeita com o prazer dele.
— Anos de prática, três ou quatro gerações de receitas e muita manteiga.
Ele comeu com entusiasmo, e eu peguei um para me juntar a ele.
— Devo me acostumar com você estar em casa tão cedo? — Perguntei
antes de dar uma mordida.
Charlie deu de ombros.
— Você não deveria, mas talvez eu tenha passado do ponto em que me
importo em me meter em problemas por abandonar. Por um minuto, pelo
menos. Eu ainda estou repondo pela visita do hospital de Maven. Quão
horrível é isso? Só acho que atingi algum tipo de limite, algum tipo de
parede. Não sei como entrar lá e fingir mais.
Meu coração apertou quando afundou.
— Eu sou uma distração.
As sobrancelhas dele se juntaram.
— Não, você está me salvando.
Balancei minha cabeça, pousando a massa, sem mais fome.
— Não, Charlie. Eu sou... eu não quero ser a razão de você falhar. Eu não
quero te machucar.
Ele estava em seu banco e caminhava em minha direção antes que eu
pudesse me mover, seus olhos escuros e ardentes, suas grandes mãos no meu
rosto, levantando-o.
— Hannah, você provavelmente é uma das melhores coisas que já me
aconteceram.
Meu coração afundou de novo, embora ainda doesse.
— Você entende que eu estive preso? Estou preso na minha vida e na
minha cabeça há mais tempo do que acho que percebi, mas você me mostrou
quanto mais existe, quantas coisas perdi enquanto minha cabeça estava
abaixada. Você abriu uma porta que eu não percebi estar fechada, e agora que
vi o que está do outro lado, não posso voltar. Não posso fingir que não sei. Eu
sabia que queria uma mudança, mas não percebi o quanto queria mais da vida
até ter um vislumbre do que é mais. Meus filhos, minha família, felicidade.
Isso é o que eu quero. Então, por favor, não diga isso. Não diga que você é
ruim para mim, não quando você me mostrou tudo de bom.
Eu não sabia o que dizer, minha garganta apertada e olhos procurando os
dele.
Mas eu não precisava falar. Porque quando ele me beijou, eu bani todos
os pensamentos da minha mente.
C harlie
Eu beijei Hannah e disse a ela sem palavras que eu precisava
dela. Eu segurei seu rosto e falei com as pontas dos dedos, dizendo
que ela havia me mudado apenas por existir. E quando ela me beijou de volta,
eu sabia que ela entendia.
Durante todo o dia, estive pensando nela. Cada marca do relógio tinha
sido anotada em minha mente enquanto eu contava os segundos até vê-la
novamente.
Eu tinha sido consumido. Eu tinha muito menos controle sobre o meu
coração do que eu sabia.
Eu nem queria de volta. De bom grado, eu entreguei a ela.
Hannah nunca me machucaria. Ela nunca me trairia. Era uma verdade,
inata e instintiva, o conhecimento de que ela só queria a minha felicidade e eu
só a dela. E eu nunca voltaria novamente. Eu nunca seria manipulado
novamente, nunca seria usado, agora que sabia o que mais poderia haver.
O beijo continuou, cada vez mais profundo. Ela se inclinou para mim,
respirando pesado e alto, mãos vagando pelo meu peito, em volta da minha
cintura, pelas minhas costas e para baixo novamente, sem parar. Os meus
também não paravam, meus dedos sedentos por sua pele, do lóbulo da orelha
ao esterno e a lugares que eu não conseguia alcançar, não com as roupas dela
no meu caminho.
Então eu a livrei delas.
O avental dela foi o primeiro – a única coisa que eu detestava remover,
lembrando-me de tê-la vestida uma vez com isso mais nada.
Meus dedos torceram o nó em sua cintura e puxaram para afrouxá-la, e eu
a puxei sobre sua cabeça. Ela usava uma camisola da cor de uma nuvem de
tempestade, fina e transparente, o tecido pendurado nos picos de seus
mamilos apertados, seu peito quente suave e flexível na palma de minha mão.
Minha mão livre encontrou sua coxa nua, as pontas dos dedos deslizando sob
a bainha e até o volume de sua bunda.
E seu corpo se curvou para mim, dando e dando e dando, nunca
recebendo. Apenas me deixando tomar, me deixando tocar, me deixando
deslizar meus dedos em sua calcinha para tocar seu centro quente, traçar a
linha lisa e o ponto sedoso, deslizar dentro de seu calor, um prelúdio, uma
promessa de mais, uma promessa que cumpriria no momento em que meu
pau estivesse livre.
Ela gemia no meu peito, o mais suave e mais doce dos tremores de sua
respiração, língua e lábios contra os meus, e eu a segurei contra mim,
pressionei meu comprimento confinado contra ela, gemendo de volta.
Eu andei com ela para a ilha, e uma vez que seu peso estava contra ela,
ela levantou a perna e a abriu, deixando-me entrar, meu polegar em seu
clitóris e meus dedos profundamente dentro dela até seus quadris balançarem
e a respiração acelerar e eu não aguentava mais.
Eu a deixei ir, quebrando o beijo para empurrar sua calcinha pelas pernas,
nós dois olhando, suas mãos no meu peito e as pupilas dilatadas. Minhas
mãos estavam borradas quando desabotoaram meu cinto e calça, meus lábios
encontrando os dela; eles não podiam ficar longe, não podiam deixá-la em
paz, não podiam parar. E então o meu membro estava livre, uma mão
segurando a base, a outra empurrando sua camisola pelas longas coxas, as
pernas se abrindo novamente e os quadris se inclinando para mim. Ela estava
na ponta dos dedos dos pés, e eu dobrei meus joelhos, procurando a conexão,
sentindo o calor dela, respirando pelo nariz quando o encontrei, quente,
úmido e esperando.
Eu flexionei e a preenchi.
Sua bunda estava apoiada no balcão, mas ela não se importou, apenas
colocou as pernas em volta da minha cintura e sussurrou meu nome,
implorando. Mas ela não precisava implorar. Eu daria a ela qualquer coisa,
tudo.
Com um movimento dos meus quadris, eu me afastei e entrei novamente,
suas mãos trêmulas mexendo nos botões da minha camisa, desesperadas para
me tocar. Mas não parei, não parei de me mover, não parei de bombear, não
podia parar, não com os quadris dela imobilizados, imobilizados como
estavam. Ela estava à minha mercê, e eu daria a ela o que ela queria, o que ela
precisava. Eu flexionei novamente, rangendo quando não consegui afundar
mais, dando-lhe a pressão que ela procurava. Minha mão queria pele tanto
quanto a dela, deslizando sob a camisola e no peito, no mamilo.
Ela ofegou, quebrando o beijo, e eu me inclinei para trás para observá-la,
a visão queimando em minha mente – o arco do corpo comprido de Hannah,
o queixo erguido e os olhos fechados, pescoço curvado, camisola pendurada
no pulso quando a toquei, a pele branca como creme de seu estômago, o lugar
onde nossos corpos se encontravam, a visão do meu membro desaparecendo
nela.
Era demais para controlar, forte demais para conter, meus quadris se
movendo mais rápido quando suas sobrancelhas se apertaram e ela sussurrou
seu prazer. Ela me apertou uma vez.
Empurrei com mais força, sacudindo-a. Ela se apertou ao meu redor
novamente. Eu gemia o nome dela. E ela explodiu ao meu redor, pulsando e
flexionando e me puxando para dentro dela até que eu cheguei com uma
pressa, meus nervos disparando, olhos se fechando enquanto eu me movia
com tanta força, ela gritou no mais doce suspiro de êxtase que eu já tinha
ouviu.
Eu me inclinei nela, envolvendo meus braços em volta dela para enterrar
meu rosto em seu pescoço, minha respiração irregular e o corpo ainda
pulsando dentro dela. Os braços dela envolveram meu pescoço, dedos nos
meus cabelos, respiração contra minha pele, enviando arrepios sobre mim. E
eu a respirei, o cheiro de conforto e doçura, e eu sabia com absoluta certeza
que nunca existiria em qualquer lugar do mundo um lugar que eu estivesse
tão feliz como em seus braços.
— Eu senti sua falta, — eu sussurrei em seu cabelo.
Ela beijou meu pescoço com lábios sorridentes.
— Foram apenas algumas horas.
— Eu sei, mas eu senti sua falta de qualquer maneira.
— Eu também senti sua falta, — ela sussurrou de volta. — Leve-me para
a cama, Charlie.
Recostei-me e olhei para seu rosto sonolento e saciado.
— E a cozinha? Todo o seu trabalho duro?
— Eu não ligo. Eu não me importo com nada além de você.
Tudo que eu podia fazer era beijá-la, beijá-la com um coração dolorido e
uma alegria feliz, e fazer qualquer coisa que ela pedisse de mim.

*N.T.: Apple turnover é uma massa folhada que pode ter recheio doce ou
salgado.
16
REFÚGIO

C harlie
Na manhã seguinte, dei um beijo de despedida em Hannah na
porta de entrada e praticamente pulei para o trabalho. Se estivesse
chovendo, eu teria feito uma imitação triste de Gene Kelly e ficado ensopado
enquanto dançava e girava em torno de postes de luz com um sorriso
apaixonado afixado no meu rosto.
Eu fui afetado. A cada dia, eu mudava.
Eu passei a noite inteira com Hannah em meus braços, e no segundo que
a porta da frente se fechou atrás de mim naquela manhã, a única coisa que eu
conseguia pensar era em chegar em casa para ela novamente. Na minha
cabeça, eu sabia que estava apaixonada por ela. Anos e anos de miséria me
deixaram com um excesso de emoção e desejo, ao que parece. Logicamente,
percebi que grande parte de como me sentia era química.
Mas no fundo do meu coração, era mais. Eu também sabia disso. Isso não
era apenas uma negligência de falhas ou uma conexão fácil com alguém que
não significava nada.
Ela significou tudo para mim.
Foi uma devoção cega que senti, e tudo porque confiava nela.
Pela primeira vez na vida adulta, encontrei alguém em quem confiar de
forma implícita e completa. No momento em que conheci Hannah, eu a
chamava de minha amiga. Eu a deixei entrar e aprendi com ela. Eu havia
virado a esquina enquanto perseguia minha felicidade e, desta vez, a vi logo à
minha frente. E eu queria pegar a mão dela. Eu queria puxá-la para uma
parada. Eu queria finalmente segurar a felicidade em minhas mãos depois que
elas estiveram vazias por tanto tempo.
Era uma loucura sentir tanto. Eu sabia. Eu reconhecia isso. Mas, depois
de tanto tempo com alguém que me machucara por esporte, meu coração
estava disposto e pronto para ser tratado com respeito e cuidado.
Era como pisar no sol pela primeira vez.
Dei-me uma avalanche de emoções quando pensei que, tão longe no
relacionamento de Mary e meu, estávamos quase noivos.
Mas onde meus sentimentos por Mary eram escassos e superficiais, senti
Hannah na minha medula. Eu precisava que ela enchesse meu coração todas
as noites, como terra rachada seca em pó, absorvendo cada gota de água para
tentar se encontrar inteira novamente.
O dia de trabalho foi lento, embora eu estivesse ocupado com minha
carga de trabalho crescente. Eu estava respondendo perguntas sobre a carga
de trabalho e a minha ausência também, conversas com pessoas cujos olhos
eram perspicazes e sondadores.
Porque ninguém poderia entender.
— Criança doente, — eu diria. — Você sabe como é.
Eu queria a vida, e não poderia obtê-la sem fugir do meu trabalho, então
evitar o meu emprego eu iria e não teria um único arrependimento.
Maven estava bem, embora eu continuasse inventando desculpas para
chegar em casa aos meus filhos todas as noites, para escondê-los, brincar de
caminhões e Barbies e cantar músicas enquanto tomavam banho. Eu queria
estar em casa nos fins de semana para domingos e passeios preguiçosos,
caminhadas, risadas e tempo.
Era realmente o que eu queria e precisava acima de tudo – o tempo. E eu
tinha muito pouco de sobra.
Então eu me sentei na minha mesa, desejando estar em casa, imaginando
o que Hannah estava fazendo enquanto as crianças estavam na escola,
imaginando o que todos nós faríamos quando eu chegasse em casa,
considerando o quão cedo eu poderia sair sem me meter em mais problemas
do que eu já estava. Eu queria evitar lidar com isso pelo maior tempo
possível. O relógio estava correndo em mim; Eu podia sentir isso.
Era início da tarde quando olhei para cima da minha mesa como se
sentisse ela vindo.
A cabeça de Mary estava alta enquanto ela caminhava pelo escritório em
minha direção, todos os rostos da sala voltados para ela. Fiquei quase
chocado demais para acreditar que era realmente ela, para acreditar que não
tinha manifestado a visão dela como uma espécie de penitência para a minha
felicidade.
Mas ela era real, muito real.
Meu coração caiu no meu estômago, e meu estômago bateu nos meus
sapatos.
Eu parei antes que ela me alcançasse, correndo em sua direção quando a
raiva surgiu no meu peito, agarrando-a pelo cotovelo para girá-la.
— Deus, Charlie, que diabos? — Ela assobiou. Como se ela tivesse o
direito de ficar chateada.
Joguei-a em uma sala de conferências – o escritório estava
completamente silencioso e observando – e fechei a porta atrás de mim.
— O que diabos você está fazendo aqui, Mary? — Joguei o cotovelo para
trás.
O rosto dela se curvou e ficou vermelho de raiva.
— Eu vim falar com você onde poderíamos ficar sozinhos.
Belisquei a ponta do nariz, tentando encontrar algum nível de
compostura.
— Você poderia ter ligado. Você poderia ter enviado um email.
Nós poderíamos ter arranjado um tempo, mas você não pode
simplesmente aparecer na minha casa e no meu trabalho. Isso tem que parar.
Ela teve a coragem de parecer magoada.
— Eu sinto muito. Só achei que você não me responderia.
Ela não estava completamente errada.
— O que você quer? — Perguntei.
— Conversar.
Eu olhei para ela e varri minha mão, como se dissesse: Seja minha
convidada.
Mary respirou fundo e suavizou o rosto.
— Eu sei o que fiz de errado. Cometi muitos erros e não sei como vou
compensar você e as crianças, mas quero. Então o que eu tenho que fazer?
— No momento, não é realmente uma opção. Não até o divórcio ser final.
Algo brilhou atrás de seus olhos, mas eu não consegui identificar o que
era antes de desaparecer novamente.
— Eu não conseguia assinar esses papéis, Charlie. Você... você sempre
foi firme, quem sabia o que fazer e o que queria. Você sempre fez a coisa
certa. Mas eu só me sentia... presa. Você sabe o que eu quero dizer?
Eu balancei a cabeça uma vez, sem saber se estava em uma armadilha ou
um pedido de desculpas.
— Eu só... não sei se quero o divórcio.
— Bem, você realmente não tem escolha. Está arquivado e pronto. —
Mordi minha língua. A última coisa que eu precisava era dar a ela qualquer
informação que ela não tivesse sobre o que poderia acontecer se ela mudasse
de ideia e tentasse estragar as coisas ainda pior.
Ela parecia ferida novamente.
— Eu pensei... Charlie, você estava sempre lá, mesmo quando as coisas
estavam ruins.
— E você pensou que eu iria esperar? — Eu ri, um som seco e sem
alegria. — Quantos anos você teria fodido com Jack? Porque meu palpite
seria todos eles, desde que você possa se safar. E eu estaria disposto a apostar
que, se ele não tivesse cortado você, você e eu não estaríamos aqui agora.
Lágrimas brilhavam em seus olhos.
— Eu sinto muito. Eu realmente sinto.
Ela deu um passo em minha direção, mas eu segurei meu chão,
mandíbula cerrada.
— Eu só queria que houvesse alguma maneira de você de mudar de ideia.
— Seus olhos estavam grandes e tristes, seu rosto voltado para o meu, sua
mão alcançando meus dedos enquanto ela fechava o espaço entre nós.
Afastei minha mão da dela e dei um passo para trás, olhando para ela com
um fogo ardente queimando no meu peito.
E em um instante, a mulher de olhos de corça se foi, seu rosto se
contorcendo.
— Eu nem acredito nisso, Charlie. Você está fazendo isso? Você está
fazendo isso comigo – me recusando? Você realmente quer me jogar fora?
— Você está brincando comigo? — Eu gritei. — Mary, pelo amor de
Deus, você foi embora! Você nos deixou! Você nos jogou fora. E agora...
agora que está quase finalmente, misericordiosamente acabado , você quer
voltar e tentar fazer as pazes? Tentar me manipular novamente para fazer o
que você quer? Você está maluca.
— Isso é sobre a babá, não é? — Ela perguntou com as bochechas
flamejantes e uma voz trêmula.
E então ficou tudo muito claro.
— Eu não sei, Mary. É isso?
— Você está transando com ela, não é?
— Isso não é da sua conta.
Ela fumegou.
— Esses são meus filhos, Charlie. Meus. Essa é a minha vida que ela está
vivendo.
— Essa nunca foi sua vida. Você nunca quis ser mãe. Se você não tivesse
engravidado, não teríamos nos casado. Se não tivesse sido um acidente, você
nunca teria filhos. E você foi quem quis a Maven. Não sinto muito por isso,
nunca poderia me arrepender disso, mas esse era seu plano e para quê?
— Porque eu estava perdendo você! — Ela uivou, lágrimas de raiva
escorrendo pelo rosto. — Você se afastou e eu pensei que você me deixaria!
Mas eu sabia que, se tivéssemos outro bebê, você ficaria. Eu sabia que você
ficaria, e você ficou.
Minhas mãos e rosto formigavam pela onda de adrenalina que disparou
através de mim.
— E no segundo em que você teve Maven, você começou a foder Jack,
— eu disse friamente. — Era muito para finais felizes.
Ela se levantou, sua respiração estremecendo e olhos trêmulos.
— Você não pode me manter longe dos meus filhos. Vou fazer terapia
com você, ter um mediador, o que você quiser. Farei o que você quiser.
Talvez quando você terminar com aquela garota de rosto de vaca que está me
substituindo, você e eu possamos ver se podemos começar de novo. Você é
minha família. Meu. Não dela.
Eu respirei. Eu deixei sair. Eu me recompus e disse: — Peça ao seu
advogado para conversar com Pete.
Mary ficou parada diante de mim por um longo e irritado momento, até
que eu abri a porta e me afastei, olhando-a para baixo.
Só então ela foi embora.
Minhas mãos tremeram quando voltei para minha mesa com uma face de
pedra, recusando-me a fazer contato visual com alguém.
Foi só quando eu estava sentado na minha mesa que soltei um suspiro
perturbado.
Coloquei meu rosto em minhas mãos, atormentado por raiva e culpa e
loucura e confusão.
Foi isso que ela fez. Ela fazia o seu melhor para que todos se sintam
como se – seja lá o que for – fosse a sua culpa, não dela. Eu pensei que era
porque ela realmente acreditava nela mesma. Ela acreditava que queria ver as
crianças, talvez até acreditasse que ainda detinha alguma reivindicação sobre
mim.
A realidade era que, quando ela me deixou, ela me abandonou de uma
situação em que eu nunca deveria ter me metido. Não havia nada para
arrumar, nada para consertar, nada em meu coração por ela, exceto
ressentimento.
Mas havia uma coisa que eu não podia negar, não importa o quanto eu a
odiasse.
Eles eram filhos dela também.
Se ela quisesse vê-los – mesmo que sua motivação fosse impura – ela
deveria poder. Não por ela, mas pelas crianças. Ela era a mãe deles, pelo
amor de Deus, e eles precisavam dela. Que tipo de pai eu seria se não os
deixasse vê-la?
O fato é que ela realmente não podia vê-los, ainda não, não sem algum
tipo de plano. Eu só torcia a Deus para que ela encontrasse Pete para que
pudéssemos fazer algo juntos.
Confusão e perda tomaram conta de mim, seguidas por uma onda de
culpa.
Eu queria contar a Hannah. Eu queria ir para casa naquele minuto e me
perder nela. Eu queria confessar tudo, contar a ela tudo o que estava em meu
coração, tudo o que Mary havia dito, todas as maneiras que ela me
machucou, me usou e me traiu.
Mas não podia. Eu não podia porque estava com medo.
Eu tinha a felicidade ao meu alcance, e agora que a encontrara, tinha tudo
a perder. Eu confiava nela com meu coração, mas como eu poderia confiar
nela com meu passado? Como eu poderia esperar que ela suportasse o peso
do meu divórcio e da minha ex? Minha bagagem a faria arrumar a dela e me
deixar.
Se eu perdesse Hannah por causa da interferência de Mary, nunca iria
superar isso. Se Mary encontrasse uma maneira de me machucar através de
Hannah, eu nunca seria capaz de deixar esse fracasso passar.
Prometi a Hannah que contaria tudo a ela e decidi que o faria.
Quando chegasse a hora, eu contaria tudo a ela. Mas, por enquanto, eu me
apegava ao que tinha com tudo o que tinha.
— Charlie, temos a teleconferência da Logan Tower em cinco, — disse
um dos meus colegas enquanto passava.
Sentei-me e assenti, tentando me recompor enquanto arrumava minha
papelada para a reunião, jurando para mim mesmo que, no minuto em que
pudesse sair deste edifício, eu o faria. E eu iria a algum lugar que estivesse
seguro.
Para Hannah.

H annah
Beijei a testa de Sammy e respondi mais três perguntas antes
que ele me deixasse sair, e no segundo em que me virei da porta
dele, vi Charlie.
Ele ficou no pé da escada, olhando para cima, com o rosto dobrado de
dor, mágoa e preocupação, e eu senti o meu corresponder.
— Charlie, o que... — Mas ele já estava subindo as escadas duas de cada
vez, seus olhos nos meus como uma corda até que ele me puxou em seus
braços e me beijou com desespero, me segurando contra ele, respirando
pesadamente, lábios duros contra os meus.
E eu deixei que ele pegasse o que precisava, beijei-o com tanto fogo
quanto ele deu até que ele se afastou e pressionou sua testa na minha.
— Charlie, — eu respirei.
— Eu preciso de você, — ele sussurrou e esmagou meus lábios com os
dele.
Então eu me entreguei a ele.
Ele me levou para seu quarto e sua cama, o quarto que dividia com ela e,
a cada beijo, ele a bania. A cada respiração, ele encheu seus pulmões comigo.
E eu sabia que o quarto não era mais deles, assim como o coração dele.
Nossas roupas foram derramadas sem nenhum cuidado até estarmos pele
a pele. Suas mãos eram ásperas e rápidas, abrindo minhas pernas, segurando
seu membro para pressioná-lo contra mim.
E com uma flexão rígida de seus quadris, ele me encheu ao máximo, sem
parar para saborear a sensação antes de balançar seu corpo.
— Hannah, — disse ele, a voz tão áspera quanto as mãos.
— Estou aqui, — eu respirei quando ele socou em mim, enviando um
choque pelo meu corpo, meus seios balançando com a força.
Sua mão frenética segurou meu rosto, dedos em meus cabelos, corpo
urgente e veloz em sua extremidade, seu rosto tão cheio de desespero e
desolação e emoção que eu acelerava em direção ao meu. E quando eu o senti
pulsar dentro de mim, quando ele inclinou a cabeça e veio, eu estava bem
atrás dele, cavalgando a onda de seu corpo até a onda desaparecer.
Ele caiu em cima de mim, seu peso me pressionando na cama, seu rosto
enterrado no meu pescoço e o coração trovejando através de sua caixa
torácica. E por um longo tempo, eu o segurei. Eu deixei que ele ficasse,
deixasse que ele sentisse, deixasse que ele existisse lá em meus braços, sem
perguntas. Não falei pelo menos. Minha mente estava cheia delas, circulando,
girando e sussurrando dúvidas.
Ele nos rolou, nos separando com o movimento, me puxando para seu
peito onde ele me segurava, beijou meu cabelo, deslizou sua coxa entre as
minhas para enrolar nossas pernas juntas.
— Você está bem? — Eu finalmente disse baixinho, a coisa mais inócua
que eu poderia dizer.
— Melhor agora, — ele respondeu.
Eu pressionei um beijo em seu peito.
— Dia ruim, só isso. Eu só queria estar aqui onde as coisas são simples.
Meu coração doía e eu me inclinei para trás para olhar seu rosto.
— Sinto muito que as coisas sejam tão difíceis. Eu só quero que você seja
feliz.
As sobrancelhas dele se contraíram.
— Quando estou aqui, estou feliz, e quando não estou aqui, não estou
feliz. E a única coisa que mudou é você.
Ele estava com medo, eu percebi; ele pensou que eu poderia ir, que eu
poderia sair.
Ele não sabia o quão impossível isso seria.
Então toquei seu rosto, desejando poder limpar sua preocupação com as
pontas dos dedos.
— Estou aqui, Charlie. Não vou a lugar nenhum — sussurrei.
Ele me puxou para para um beijo, um que me disse que não acreditava em
mim. Então eu o beijei de volta e disse sem palavras que ele deveria.
17
O OUTRO LADO

H annah
Alguns dias se passaram, assim como o desespero de Charlie.
Ele voltava do trabalho às oito ou nove todas as noites, às vezes
até cedo o suficiente para ler as histórias das crianças e colocá-las na cama.
Ele era realista e irreverente com seu tempo – já se foram os dias das longas
horas e ausência de Charlie – e eu não conseguia parar de me perguntar qual
o preço que ele pagaria.
Ele não tinha me dito o que o perturbara naquele dia, não havia feito nada
além de passar todo momento livre com as crianças e comigo. Isso era algo
que eu não podia reclamar.
O tempo estava mais frio, as folhas caíram quase completamente quando
novembro chegou ao fim. Minha mente estava em Charlie enquanto eu
caminhava para pegar as crianças da escola com um sorriso no rosto
enquanto eu sonhava com o momento em que ele entrara pela porta. Imaginei
o sorriso que conhecia tão bem, e meu próprio sorriso se estendeu ainda mais.
Cumprimentei Caitlyn, que estava atrás do balcão na pré-escola com um
olhar de surpresa no rosto.
— Ei, Hannah. Posso ajudar?
Minhas sobrancelhas se uniram.
— Eu só estou aqui para pegar as crianças.
Os olhos dela se arregalaram.
— O que você quer dizer? Eles não estão aqui.
Um medo frio deslizou através de mim, arrastando arrepios pela minha
pele, agarrando meu coração.
— Como é?
— Eles... eles não estão aqui. A mãe deles os pegou há duas horas.
O frio foi substituído por uma onda de fogo.
— Oh Deus, — eu respirei.
— Eu não pensei... quero dizer, ela está na lista. Eu pensei que era
estranho, ela só esteve aqui algumas vezes desde sempre, mas eu não tinha
instruções ou...
Não ouvi o resto do que ela disse, nem com a mente correndo, nem com
as mãos trêmulas estendendo a mão na bolsa para o meu telefone.
Caitlyn ainda estava falando, se desculpando.
Peguei a mão dela no balcão e apertei.
— Está tudo bem. Eu preciso ligar para Charlie, ok?
Ela assentiu, mas eu mal a vi. Meus olhos estavam no meu telefone, meus
pés voando e a respiração bufando quando saí correndo pela porta e descendo
a calçada.
Charlie atendeu em apenas alguns toques.
— Hey, — ele disse alegremente, sua voz quente e aveludada.
— Eu estava pensando em você.
— Mary está com as crianças, — eu disse, as palavras apertadas.
Uma pausa de Charlie.
— Ela... o que?
— Eu fui buscar as crianças e elas não estavam lá. Charlie, ela os tem.
Não sei o que fazer O que devo fazer? — O pânico aumentou no meu peito,
subindo na minha garganta.
— Vá para a casa agora. Estou a caminho. — A voz dele era calma,
sucinta, direta – a voz de um advogado,– embora por baixo fosse uma
corrente do pânico que ele não podia esconder tão facilmente.
— Tudo bem, — eu disse suavemente.
— Hannah, vai ficar tudo bem. Eu ja estarei lá.
As palavras me acalmaram, a certeza, o conforto que ele ofereceu.
— Ok.
Desligamos e eu quase corri, minhas panturrilhas e canelas queimando de
esforço e contenção, meu coração batendo com medo e preocupação.
Foram necessárias três tentativas para destrancar a porta, a chave instável
na minha mão, mas quando a abri e entrei, me vi completamente
despreparada para o que encontrei.
No caminho apressado para casa, imaginei cenário após cenário horrível.
Mas nunca imaginei que Mary estaria sentada com Maven e Sammy na
cozinha, tomando sorvete.
Eu congelei no limiar da cozinha, meus olhos arregalados e olhando para
a cena sem entender o que estava vendo. Seus rostos se voltaram para mim –
dois com sorrisos, um sem.
Sammy saiu da cadeira e se aproximou de mim, as bochechas erguidas e
o sorvete no rosto.
— Hannah! Mamãe voltou, e ela nos levou para o parque e depois nos
pagou sorvete! Ela me pegou ah-sash-io – é verde, como uma tartaruga – e
Maven pegou morango porque esse é o seu favorito. Venha aqui! Venha dizer
oi! — Ele pegou minha mão e me puxou para dentro da sala.
O rosto de Mary tinha todos os ângulos afiados, a voz com a mesma
ponta.
— Veja. A babá bonita. Espero não ter alarmado você ao buscar meus
filhos um pouco mais cedo.
— Ela é realmente bonita, não é, mamãe? — Sammy sorriu.
— Sim. Muito bonita. — Mary se levantou, erguendo os ombros.
— O que você está fazendo aqui? — Perguntei.
Os olhos dela se estreitaram.
— Na minha casa, você quer dizer? Com os meus filhos?
— Charlie disse...
— Eu realmente não me importo com o que Charlie disse. Estes são meus
filhos, e ele não pode me impedir de vê-los.
Sammy agarrou minha mão, seu sorriso desapareceu.
— Hannah? — Ele perguntou, inseguro, com um pouco de medo.
Inclinei-me para o nível dele e sorri para ele.
— Por que você não pega o iPad e faz um show? Papai estará em casa a
qualquer momento. Dessa forma, eu e sua mãe podemos conversar, certo?
Ele assentiu, olhando para a mãe antes de se virar para sair.
Quando me levantei, Mary parecia assassina – lábios lisos, bochechas
coradas, sobrancelhas unidas e olhos brilhando.
— Tão doce, não é? Não admira que Charlie esteja te fodendo.
Eu respirei fundo, meu pescoço e meu rosto estavam quentes.
— Ele estará em casa em breve, e você pode falar com ele. Isso não é da
minha conta e não sou da sua conta.
Ela riu, um som triste e vazio.
— De onde estou, parece que você está no meu lugar, Hannah. — Ela
disse meu nome como se fosse um veneno amargo.
— Aquele assento estava vazio quando cheguei aqui.
— Sua puta, — ela começou.
A porta se abriu e fechou com um estrondo.
— Hannah? — Charlie chamou ansiosamente.
— Aqui, — eu disse, sem quebrar o contato visual com Mary.
Seus passos ficaram mais altos, parando completamente atrás de mim.
— O que diabos você está fazendo aqui? — Ele rosnou, o som tão
profundo e com raiva que levou tudo o que eu tinha para não me virar.
— Acabei de passar uma tarde com meus filhos, só isso, — ela disse,
como se fosse assim tão simples.
— Você está maluca, Mary, — ele disparou.
— Eu disse a você em seu escritório outro dia que queria vê-los.
A consciência fria subiu nas minhas costelas. Agora eu sabia por que
Charlie estava tão chateado. Ele a viu e não me contou. Ele não tinha me dito
quando me prometeu que faria.
— Você não pode simplesmente...
— Eu posso! — Ela gritou. — Eu posso e vou. Você não pode me dizer
que não posso ver meus filhos porque vou encontrar um caminho.
— Você está me ameaçando?
Ele passou por mim e eu tentei olhá-lo. Seu rosto estava duro como pedra.
Ela deu um passo em sua direção, tudo sobre ela gritando, mas sua voz
estava calma.
— Você me conhece melhor que isso, Charlie.
— Você nunca aceitou o não como resposta. Acho que não deveria me
surpreender, mas de alguma forma, sempre acho que você será melhor do que
é.
— Oh, não jogue alto e poderoso comigo, seu idiota arrogante.
Você é quem está fodendo a ajuda.
— Basta! – ele rugiu, entrando nela, arqueando-se sobre ela. —
Sequestrar as crianças não vai conseguir o que você quer, não percebe? Se
você seguir as malditas regras, pode ter o que quiser.
Mas se não, vai acabar sem nada. Eu vou me certificar disso. Você me
entendeu?
Seu rosto se curvou em desespero furioso.
— Eu não posso ter o que quero, Charlie! Não posso! Tudo se foi, então
eu vou pegar o que quero. Eu retirarei de você, dela – ela cuspiu a palavra em
minha direção.
— Não, você não vai. — Ele a agarrou pelo braço e a guiou para longe, s
discussão ininteligível enquanto se dirigiam para a porta.
Fiquei parada, minhas mãos geladas e o coração trovejando. A briga deles
me alcançou em ondas da sala de estar enquanto o volume aumentava e
diminuía, e quando Maven me alcançou, eu a peguei, levando-a para a pia
para limpá-la.
A porta se abriu e se fechou, e Charlie estava na sala alguns segundos
depois, correndo para mim.
Maven estava no meu quadril, nós dois no círculo dos braços de Charlie,
sua mão subindo na parte de trás da cabeça de Maven, seus lábios
pressionando um beijo no cabelo dela, depois na minha testa.
— Sinto muito, — ele sussurrou. — Eu sinto muito.
— Por que você não me contou? — Perguntei.
Ele sabia o que eu pedi sem nenhuma explicação.
— Sinto muito, — disse ele novamente, sua voz infeliz e dolorida. —
Hannah... eu...
— Você não confia em mim?
Ele olhou nos meus olhos, sua verdade clara e evidente.
— Eu confio. Mas Hannah, eu nunca... eu não sei o que estou fazendo. —
As palavras eram apertadas enquanto ele se atrapalhava com o que dizer e
como dizê-lo. — Estou com medo. Essa é a linha de fundo. Estou com medo
de fazer tudo errado, dar um passo errado e te perder.
— Você vai me perder se esconder as coisas de mim.
Ele assentiu, com os olhos baixos.
— É demais esperar que você aguente tudo isso por mim, não quando
você poderia ter muito mais com outra pessoa. As coisas poderiam ser mais
fáceis. Eu... não sei se as coisas serão fáceis comigo, Hannah. Não com
Mary. Não agora que ela voltou depois de todo esse tempo apenas para nos
arrastar pelo inferno.
Eu balancei minha cabeça, meu coração doendo.
— Eu me preocupo com você, é por isso que vou aguentar isso. Mas
você escondeu isso de mim quando eu pedi para você não fazer. Eu disse que
não queria me surpreender de novo, não por ela. Não por causa de algo que
você poderia ter evitado apenas confiando em mim.
— Eu sei, — ele disse miseravelmente. — Eu sei. Eu sinto muito.
— Eu também.
Ficamos em silêncio por um momento, Maven se aconchegou entre nós, o
silêncio pesado com nossos pensamentos.
Recuei e o entreguei Maven.
— Eu vou checar Sammy.
Seu rosto estava dolorido e triste.
— Estamos... estamos bem?
— Eu não sei, — respondi o mais honestamente que pude. — Vamos
conversar mais tarde, ok?
— Ok.
Eu o beijei na bochecha e saí da sala, procurando por Sammy, perdida em
meus pensamentos. Eu o encontrei em sua cama e me deitei com ele,
realmente não ouvindo seu desenho animado.
A última hora repetiu em minha mente, o balanço de emoções – do medo
ao alívio, da raiva à mágoa – me deixando exausta e confusa. Porque, embora
eu estivesse chateada com Charlie, entendi por que ele não tinha me dito. Não
era desculpa – ele deveria ter me contado, – mas se eu estivesse no lugar
dele, também teria tomado essa decisão.
Sem mencionar, eu tinha meus próprios segredos.
Mas Mary era muito para aguentar. Eu me perguntava como ele tinha
lidado com ela por tantos anos, embora eu imaginasse que quando ela
conseguisse o que queria, ela era mais complacente do que ultimamente.
Agora ela se sentia ameaçada – isso estava perfeitamente claro – e ela estava
se posicionando, mostrando a Charlie que jogaria o que pudesse com ele, e eu
também. Eu era apenas mais uma ferramenta para ela usar para machucá-lo.
Porque isso também estava perfeitamente claro. Ela queria machucá-lo.
Ela não o amava, quer ela te falasse que sim ou não. Ela só queria o que ela
não podia ter, o que ela sentia direito, independentemente de quais escolhas
ela fizesse.
Charlie me deixou sozinha com meus pensamentos o resto da tarde.
Levei Sammy escada abaixo, encontrando Charlie na sala com Maven no
colo, lendo um livro para ela. Sammy se juntou a eles e Charlie me deu um
pequeno sorriso. Eu devolvi, mas não fiquei por lá.
Fui para a cozinha. Katie estava lá, com o rosto cheio de preocupação. Ela
voltou para casa depois de Mary sair, encontrando Charlie e a história do que
Mary havia feito. Ela tinha perguntas – muitas, muitas perguntas – e eu
respondi a todas enquanto reunia ingredientes e começava a misturá-las.
Açúcar, farinha, ovos, água, perguntas e respostas, conflitos e confusão –
tudo foi derramado e dobrado e misturado e amassado até ficarem
irreconhecíveis desde o início.
Durante o jantar, Charlie encheu o ar de perguntas para Sammy, que as
respondeu com exuberância. Foi um esforço da parte de Charlie me deixar
em paz, e eu apreciei essa permissão mais do que ele poderia saber.
Ele colocou as crianças na cama naquela noite, mas antes de subir, ele
parou na pia onde eu estava lavando a louça e me perguntou com suas
palavras e seus olhos se poderíamos conversar quando ele voltasse.
Eu esperei por ele na sala, sentada no sofá com os olhos na lareira escura,
sem saber como me sentia ou o que queria ou como chegamos aqui. Foi um
pedido tão simples – para me dizer a verdade. Foi tudo o que eu pedi e a
única coisa que ele não me deu.
Charlie chegou um pouco mais tarde e sentou-se ao meu lado, de frente
para a lareira, nossos olhos para frente e a sala silenciosa.
Ele não falou por um minuto. Nem eu.
— Eu deveria ter lhe contado, — ele finalmente disse.
— Sim, você deveria.
Ele respirou fundo.
— Ela foi ao meu trabalho no outro dia. O por quê eu não tenho certeza.
Só para... eu não sei. Me pressionar para dar a ela o que ela quer. Ela
pensou... ela pensou que quando chegasse em casa no domingo, eu a deixaria
entrar, que daria a ela tudo o que ela pedisse. E quando eu disse que não,
desencadeou tudo isso. Ela veio para a empresa, ela levou as crianças, ela
apareceu aqui.
Eu não disse nada.
Charlie continuou falando.
— Ela tentou me dizer que não queria o divórcio, que queria compensar
tudo comigo. Disse que queria compensar as crianças. E essa é a parte mais
difícil, Hannah. Por mais que eu não queira vê-la, por mais que eu queira
cortá-la da minha vida para sempre, não posso. Eles são filhos dela. Ela não
vai a lugar nenhum, não importa o quanto eu queira que ela vá.
Tecnicamente, eu ainda sou casado com ela. E esse fato é o porque eu não o
trouxe isso à tona. Eu não tenho medo dela. Eu tenho medo de perder você.
Não tenho nada a esconder, não tenho segredos para guardar, mas tenho
medo de que tudo seja demais.
— Você vai me perder se mentir. Você vai me perder se me expulsar.
— Eu sei, — ele disse calmamente. — Hannah, isso não vai acontecer
novamente. Eu prometo a você isso.
— Você me prometeu isso uma vez antes.
Ele assentiu.
— Mas agora entendo o que prometo.
Meus olhos estavam à frente, mas eu peguei a mão dele.
— Ela não vai deixar você em paz. Nenhum de vocês.
— Não, ela não vai. — Seu polegar se moveu contra o meu. — Não sei o
que fazer sobre ela. Eu tenho a custódia das crianças, e isso não muda,
principalmente depois do comportamento dela – desde que ela nos deixou e
ficou fora por tanto tempo até ela levando as crianças sem me dizer. Enviei
um e-mail para Pete, meu advogado, e contei o que aconteceu. Eu posso
impedi-la de pegar as crianças, mas não posso impedi-la de aparecer aqui.
Não posso impedi-la de confrontar você, e isso me faz sentir tão doente, com
raiva e desamparado.
— Não se preocupe comigo. Posso lidar com ela se tiver você para ficar
atrás de mim.
— Estou aqui, Hannah, — ele disse gentilmente.
Eu me virei para encontrar seus olhos.
— Mesmo quando for difícil? Mesmo quando você se preocupar com
como eu vou reagir?
Ele assentiu.
— Eu só quero protegê-la de tudo isso.
— Mas eu não preciso de proteção. Preciso que você confie que estou
aqui, que não vou a lugar nenhum.
— Eu sei. E eu confio.
Toquei sua bochecha, senti sua preocupação.
— Você não precisa ter medo.
— Eu não estava – até que eu tivesse algo a perder. — Ele virou o rosto
para beijar minha palma. — Você me faz sentir seguro. Você me faz sentir
bem, como se eu pudesse ser o que você vê em mim. E eu não quero voltar.
Não quero voltar para aquele lugar, para aquela vida. Eu só quero você.
Meu coração bateu contra as minhas costelas como se estivesse
alcançando ele.
— Estou aqui e sou sua.
E ele me beijou com agradecimento e desejo que eu esperava que o
impedisse de me fechar novamente. Porque eu podia perdoar muitas coisas,
mas se ele não me considerasse, estaríamos perdidos antes que realmente
tivéssemos a chance de começar.
18
DIGA A PALAVRA

C harlie
Sentei na minha mesa na tarde seguinte, me sentindo um
estranho, me sentindo como um cuspe. Havia duas versões de mim –
antes de Hannah e depois de Hannah – e a versão em que estava sentado na
cadeira que se tornara tão estranha para mim, nem o reconhecia mais.
A outra versão de mim, a versão que eu queria ser, estava focada apenas
nas crianças, em Hannah. A tarde anterior se repetia em minha mente
repetidamente – desde o momento em que ouvi o medo paralisante na voz de
Hannah até o momento em que adormeci com os seus braços em volta de
mim e seu coração ferido, meus filhos a salvo em suas camas.
Mas perguntas me atormentavam, preocupação ocupando todos os
pensamentos. Mary apareceria novamente? Ela nos deixaria em paz? Isso
acabaria? As crianças estavam seguras? Hannah estava segura?
Eu removi o nome de Mary da lista da creche com a ajuda da minha
decisão de custódia e liguei para trocar as fechaduras, o que ajudou a minha
paz de espírito. Apenas não é suficiente. Não é o suficiente para me permitir
fingir que estava bem em deixá-los.
Hannah havia dito que estariam a salvo na escola com o nome de Mary
fora da lista. E ela me garantiu que eu e ela estávamos bem, que ficaríamos
bem.
Eu queria acreditar que as duas coisas eram verdadeiras, mas não
acreditava, e não havia nada que alguém pudesse dizer para me convencer.
Tudo parecia errado, como se eu tivesse entrado numa rua que não
reconhecia.
Enquanto eu estava lá, com a minha imaginação fugindo de mim no
último lugar que eu queria estar no mundo inteiro, eu não conseguia
encontrar uma maneira de acreditar que estava tudo bem.
Não consegui encontrar uma maneira de parar a ansiedade estridente, o
círculo de pensamentos. Meus olhos encaravam através do meu computador,
os alertas dos meus e-mails despercebidos enquanto tocavam e animavam a
parte superior da tela. Meu telefone tocou, mas eu mal o ouvi. Alguém
passou me chamando para uma reunião. Eu não olhei.
Tudo estava errado, eu percebi. E eu tinha que consertar isso.
Havia apenas uma maneira, e decisão e ação subiram no meu peito.
O que eu queria estava na ponta dos meus dedos, e eu poderia ter.
Tudo o que eu precisava fazer era estender a mão e agarrá-lo.
A versão antiga de mim mesmo nem se levantou, apenas se afastou.
Porque eu sabia o que queria e sabia como consegui-lo.
Eu queria estar em casa com minha família. Eu queria protegê-los. Eu
queria dar a eles meu tempo e meu amor. E eu não podia fazer nada disso no
cubículo onde eu estava sentado com meu telefone tocando infinitamente na
minha mesa.
Juntei minhas coisas, avaliando minhas finanças em minha cabeça.
Escrevi um e-mail para meu chefe e me demiti. Levantei-me e vesti meu
casaco, ignorando meus colegas quando eles passaram pela minha mesa,
olhando. Eu nunca atendi meu telefone.
Em vez disso, saí da sala, saí do prédio, me afastei da minha vida antiga e
entrei na minha nova.
A cada passo, eu sentia o peso escorregar dos meus ombros. A cada
quarteirão, eu pensava em Hannah e na vida que queria, na vida que desejava
ter. Enquanto eu corria pelos degraus do metrô, meu sorriso se estendeu tanto
que minhas bochechas doíam.
Porque eu ia fazer o que meu coração queria. E havia apenas uma pessoa
que eu queria contar. Queria contar à garota que mudou toda a minha vida
desde o segundo em que ela passou pela porta e me mostrou o que poderia ser
o amor.
Eu queria contar a Hannah e pedir que ela ficasse comigo. Não como
minha au pair e não para as crianças.
Para mim.
H annah
Katie e eu nos separamos na calçada do lado de fora da casa
com um beijo na bochecha e a promessa de nos vermos depois do
fim de semana do feriado de Ação de Graças. Os dias estavam ficando mais
curtos, o sol se afastando cada vez mais cedo, pintando o céu em cores
ardentes que combinavam com as folhas deixadas nas árvores.
Eu me mantive ocupada em vez de pensar muito sobre tudo entre eu e
Charlie ou Charlie e Mary, em vez de passar o dia me preparando para o Dia
de Ação de Graças, que era no dia seguinte.
Katie estaria fora; as crianças fora da escola; Charlie longe do trabalho. E
tivemos um longo fim de semana à nossa frente com comida e união. E eu
estava ansioso por isso, esperando que pudéssemos começar a consertar as
fissuras entre nós.
Mas a garota boba e tola em mim ainda não se foi; ela estava apenas se
escondendo. E o momento em que senti esperança foi o momento em que me
lembrei que a esperança era uma armadilha.
Mary estava encostada na parede de tijolos do lado de fora da escola, me
observando com as mãos nos bolsos da jaqueta e os tornozelos cruzados na
frente dela. A visão dela enviou adrenalina correndo por mim e meu coração
batendo contra minhas costelas em aviso.
Mas eu levantei meu queixo, apertando minha mandíbula.
— Olá, Mary, — eu disse categoricamente quando me aproximei e parei
na frente dela.
Ela me observou por um momento.
— Não consigo imaginar que você não tenha nada a dizer, então vá em
frente e diga.
Os olhos dela se estreitaram.
— Eles não me deixaram pegar as crianças.
— Não é minha culpa.
— Não, não é. Você não tem nenhum direito — disse ela, como se eu não
soubesse.
— Ele não quer afastar você deles. Você deve saber disso.
Ela encolheu os ombros, sem querer.
— Ele me disse que me manteria longe deles, a menos que eu lidasse com
o advogado dele. Ele também me disse para ficar longe de você. Eu quase
acreditei que ele realmente se importa com você.
Fiquei um pouco mais ereta contra o golpe, mas não falei.
— Espero que você goste de brincar de casinha com minha família. Você
pode ser a mãe fingida dos meus filhos e a esposa de faz de conta para
Charlie. Mas eles nunca serão seus, não de verdade.
— Eu também não sei se eles também serão seus. Pelo menos um de nós
sabe disso.
Ele apertou os lábios.
— Viva enquanto dura, babá bonita. Porque não vai durar muito.
Eu segurei seu olhar por um segundo prolongado.
— Algo mais?
Ela empurrou a parede.
— Eu te vejo por aí. Mesma hora, mesmo lugar?
Tudo nela estava apertado e magoado, ferido e zangado, e eu percebi
então, entendi a crueldade em seus olhos e a perdoei por isso. Eu não gostei
dela – nunca gostaria; nós nunca seríamos amigos – mas eu a perdoei.
— Sinto muito por você ser infeliz, — eu disse calmamente,
sinceramente.
Mary congelou, seus olhos duros como diamantes.
— Você não sente pena de mim. Você não tem ideia de quem eu sou ou
do que passei.
— Não importa. Eu só espero que você encontre uma maneira de passar
por isso.
— Bem, você não é uma porra de um anjo? — Ela disparou, embora sua
voz tremesse um pouco. — Como é o mundo lá de cima no seu cavalo alto?
Eu balancei minha cabeça.
— Mary, eu não quero te machucar. Nenhum de nós quer machucá-la.
— Tarde demais, — disse ela enquanto passava por mim e se foi.
Não foi até ela ir embora e eu entrar que o choque inicial passou,
deixando-me com o medo e a ansiedade que pareciam sempre seguir os
encontros com Mary. Ela veio buscar as crianças novamente e esperou por
mim, esperou apenas para me machucar, me disse sem dizer de forma
completa, que faria novamente.
Ela queria me machucar, porque fazendo isso, machucaria Charlie. Ela
queria me machucar porque me via como uma ameaça.
Ela queria me machucar porque estava machucada.
Fiquei abalada, reunindo as crianças e terminando com elas, conversando
com Sammy como se nada estivesse errado, como se fosse um dia normal. Eu
pensei que Maven poderia saber diferente.
Ela me pediu para abraçá-la, e quando eu a peguei, ela colocou os braços
em volta do meu pescoço e se agarrou a mim, o conforto e o calor dela tão
avassaladores que foi preciso tudo o que eu tinha para conter minhas
lágrimas.
Eu estava tão perdida em emoção que não ouvi meu nome, não a
princípio. Na segunda vez que ele disse isso, um calafrio percorreu minha
espinha.
Eu me virei para o som, encontrando Quinton trotando através da rua em
minha direção.
O sangue correu do meu rosto; Eu sabia porque formigava, pinicando
manchas de frio na minha pele.
Ele era alto, moreno, lindo. Perigoso com aquele sorriso nítido.
— Ei, Hannah, — disse ele quando me alcançou, parando perto de mim,
muito perto.
Dei um passo para trás, tentando me mover ao redor dele.
— Eu sinto muito. Estou com pressa – falei, abalada e desesperada para
sair, para chegar em casa onde era seguro.
Mas ele se moveu para me bloquear.
— Vamos lá, Hannah. Você não tem um minuto?
— Não, eu não tenho. — Tentei dar um passo ao redor dele novamente,
mas ele não me deixou. — O que você quer? — Eu perguntei, minha voz
tremendo.
Ele pegou meu braço.
— Eu acho que você sabe. Eu tenho saudade de você.
Eu me afastei, mas ele não me deixou ir. Sammy apertou minha mão.
— Por favor, me deixe em paz. Deixe-me levar as crianças para casa.
— Eu vou andando com você.
Eu olhei para ele, lutando contra as lágrimas.
— Minha resposta não mudou, e não vai. Estou com alguém.
Seus olhos escuros rolaram com trovões.
— O loiro? Seu chefe?
Meu pânico aumentou com a bile na minha garganta. Ele nos viu. Ele me
seguiu.
— Hannah? — Sammy perguntou, sua voz baixa e com medo.
Eu olhei para ele, apertei sua mão.
— Está tudo bem. Estamos indo.
Mas quando tentei me afastar de Quinton novamente, ele me puxou para
o peito.
— Diga-me, — disse ele entre os dentes. — É ele?
— Sim, — eu respondi com mais força do que eu sentia.
Tudo nele endureceu – seus olhos, sua mandíbula, seus lábios, seus dedos
cravando no meu braço.
— Então, você provoca todos os seus chefes, é isso?
— Você assedia todas as suas au pairs? — Eu atirei.
— Não, só você.
Eu me afastei, mas ele agarrou meu outro braço como um torno, me
segurando.
— Me deixe ir.
— Eu me pergunto o que a agência pensaria sobre você e seu novo chefe.
— Vá em frente e diga a eles, — eu cuspi. — Apenas me deixe em paz.
E eu estava tão oprimida, tão completamente focada na minha fuga, que
eu não vi ele chegando.

C harlie
Eu não pensei – não havia tempo.
No segundo em que vi como ele a conteve, quando vislumbrei
aquele bastardo alto com as mãos nela, com meus filhos entre eles, eu surtei,
pânico e medo e raiva fervendo em mim como uma fornalha.
Eu corri em direção a eles, alcançando-os antes que qualquer um
registrasse minha aproximação. Mas quando ele percebeu, seu rosto brilhou
de surpresa, e ele afrouxou o aperto o suficiente para Hannah arrancar um
braço.
Eu me enfiei entre eles, olhando para ele com tanta raiva que pensei que
poderia queimar.
— Tire suas malditas mãos dela. — Mordi as palavras, meus nervos
disparando e punhos apertados.
No minuto em que ele a soltou, eu o empurrei para longe dela com força
suficiente para fazê-lo girar alguns passos para trás.
Quando ele encontrou o pé, ele se endireitou, alisando a frente do paletó.
— Quem diabos é você? — Eu perguntei, protegendo Hannah e as
crianças com meu corpo.
Ele sorriu, uma expressão presunçosa e cruel.
— Hannah não te contou sobre mim? Antes de ela estar com você, ela
estava comigo.
A fúria brilhava quente e desesperada, a traição estalando no limite
vacilante.
— Hannah, leve as crianças e vá embora.
— Charlie.
Meus olhos estavam nos dele.
— Hannah, — eu avisei, e eu a senti dar um passo para trás. — Agora, o
que diabos você quer?
Ele a observou; ela não tinha saído. Eu podia sentir o medo irradiando
dela e sabia que ela não iria sem mim.
— Só queria ver nossa garota aqui, — disse o imbecil quando ele
finalmente olhou para mim. — As coisas não são as mesmas sem ela. Ela faz
isso com um homem. Sabe o que estou dizendo?
Meu estômago estava pesado, meus pulmões esvaziando como se eu
tivesse sido atingido.
— Eu não fiz, Charlie. Eu nunca... — ela gaguejou atrás de mim.
— Você sabe, — ele continuou, com a voz dura e o corpo quadrado, —
Hannah e eu esbarramos um no outro o tempo todo.
Não acredito que ela não te contou sobre mim.
A realização tomou conta de mim, me puxando para baixo.
E ele viu no meu rosto, seu sorriso se alargando quando ele me provocou.
— Ela é bonita demais, doce demais, inocente demais para eu deixá-la ir
sem lutar. Ela é irresistível, assim como seus bolos e biscoitos. Eu sei que não
pude evitar; não é de admirar que você também não pudesse.
Dois passos e eu o peguei pela camisa.
— Cale a porra da boca, — eu assobiei, as palavras vacilando.
Mas ele riu.
— Desculpe, Charlie. Você não é o primeiro. Duvido que você seja o
último.
Com um rugido, levantei meu punho e o deixei voar, conectando-me com
a mandíbula dele com um estalar dos dedos e um bater de pele.
Ele recuou, atirando a mão no rosto. A queimação na minha mão viajou
até o meu cotovelo, todos os ossos dos meus dedos gritando.
— Fique longe dela, — eu atirei, pontuando o comando com um soco no
meu dedo.
Ele segurou a mandíbula e cuspiu uma gota de sangue no chão.
— Por que você está fazendo isso? — Ela chorou por trás de mim.
Os olhos dele se moveram para ela e mudaram, escureceram e a
prenderam.
— Não estou acostumado a receber uma resposta negativa.
Eu dei um passo em sua direção.
— Bem, acostume-se a isso. Agora dê o fora daqui.
Ele ficou parado por um longo momento, me avaliando enquanto eu
exasperava, o peito arfando, as narinas dilatando, minha mão ardente
implorando pela dor para atingi-lo novamente. E ele deve ter visto.
Ele revirou os ombros para ajustar o casaco, como se fosse uma reunião
do conselho e não uma briga na rua. E com um último olhar para Hannah –
um olhar que enviou um calafrio pelas minhas costas e pelos meus gritos –
ele se virou e se afastou.
Esperei até que ele estivesse do outro lado da rua e a meio quarteirão de
distância antes de encontrar a vontade de me virar. O calor da minha raiva
tinha queimado, deixando nada além de cinzas frias.
Hannah estava chorando, e as crianças também.
Inclinei-me para Sammy e o puxei em meus braços.
— Você está bem, amigo?
Ele assentiu. Eu fiquei de pé, segurando-o ao meu lado, alcançando
Maven.
Eu não toquei Hannah.
— Você está bem? — Perguntei categoricamente. — Ele te machucou?
Ela balançou a cabeça, os olhos baixos e culpados.
— Você mentiu para mim.
— Charlie, nada aconteceu.
— Você o viu? Desde que você partiu?
Ela assentiu.
— Duas vezes. Ele parecia inofensivo. Jurei que lhe contaria se o visse
novamente.
Eu respirei fundo, meu rosto apertado, peito apertado.
— Você me calou por não lhe contar sobre Mary, e agora eu descobro
isso? Você não estava em casa quando cheguei depois do trabalho, então
pensei que talvez estivesse pegando as crianças. E foi isso que eu encontrei.
Ele estava tocando em você. Ele tocou em você antes.
Eu conhecia o olhar no rosto dele porque o usava. Eu conhecia o desejo
por ela, porque sentia.
Eu fiquei furioso.
— Você não apenas escondeu a verdade do porquê deixou seu último
emprego, mas também manteve o fato de que ele estava te perseguindo para
si mesmo. Não sei se você confia em mim mais do que acredita que confio
em você.
A dor iluminou seu rosto.
— Charlie, eu...
— Você dormiu com ele?
Ela recuou como se eu tivesse lhe dado um tapa, seu rosto
empalidecendo.
— Não acredito que você está me perguntando isso.
— Isso não é uma resposta, — eu bati. — Isso é algum tipo de jogo para
você? Eu sou um padrão? Uma conquista? O que?
— Claro que não, — ela arrogou. — Eu não dormi com ele.
Eu olhei nos olhos dela e queria acreditar nela. No fundo, eu posso ter.
Mas naquele momento, eu só conseguia pensar em como tudo isso parecia
familiar. Eu já tinha estado aqui antes, e era um lugar que eu nunca mais
queria estar, um lugar que nunca pensei que estaria com Hannah.
No entanto, aqui estava eu.
— Por favor, me diga que acredita em mim, — ela implorou, seus olhos
brilhando com novas lágrimas.
— O que eu devo pensar, Hannah?
— Você deveria confiar em mim.
— Da mesma forma que você deveria confiar em mim? — Eu revidei,
meus pulmões queimando e doendo. — Não é de admirar que você não tenha
me dito.
O sangue subiu pelo pescoço pálido e pelas bochechas.
— Como você não me contou todas as vezes que sua esposa veio vê-lo?
— Isso é diferente. Eu queria proteger você dela.
— É o que você diz, mas você não seria o primeiro homem que queria
mais de mim. Como vou saber que você não a viu? Ela veio para a escola
novamente hoje, sabia? Ela esperou por mim, me humilhou. Ela quer você e
pensa que eu tenho você, mas agora não tenho tanta certeza.
Foi a minha vez de ficar chocado.
— Não acredito que você disse isso. Não acredito que você pensaria que
eu poderia querer algo com ela depois do que você viu, depois do que ela fez.
Lágrimas caíram por suas bochechas, sua voz quebrada.
— Eu não posso acreditar que você não acredita em mim quando tudo
que eu já fiz foi tentar fazer você feliz. Ela machucou você, e eu nunca
machucaria. E você sabe disso. Você sabe disso. Não fiz nada além de aceitar
sua circunstância, mas, ao primeiro sinal de problema, você me acusa do pior,
tira conclusões precipitadas...
— Eu não estou concluindo nada. Ele disse... — Tentei falar, mas ela não
parou.
— Não é justo, Charlie. Pedi que confiasse em mim e você não
conseguiu. Não com Mary, não com isso. Você vai acreditar no que quiser, e
talvez seja apenas porque ela quebrou você além do que eu posso consertar.
Mas não vou me defender disso. Não disso. — Ela respirou trêmula. — Você
confia em mim ou não? Você acredita que eu dormi com outra pessoa, que
meus sentimentos por você são tudo menos o que eu disse, o que lhe mostrei?
E na minha mágoa, raiva e confusão, eu disse a última coisa que deveria
ter dito.
— Eu não sei.
Seu queixo tremia, as sobrancelhas dobradas pelo peso de sua tristeza
enquanto ela respirava.
— Então, é tudo o que há para dizer.
— Eu acho que sim, — eu disse friamente e dei as costas para ela, meus
filhos na mão, deixando-a de pé na calçada atrás de mim, me vendo ir
embora.
19
ESTRANHOS

H annah
Eu assisti Charlie se afastar através de um lençol de lágrimas,
meu coração se partindo e derramando.
Ele me cortou. A dor e a vergonha do que Quinton fez não foram
suficientes; Charlie teve que me acusar da mesma coisa que eu tentei tanto
escapar.
Eu não podia segui-lo. Eu não podia ir para casa porque casa já não era
mais casa.
Então, eu me virei para pés que não pareciam meus, incapaz de encontrar
vontade de me impedir de chorar, meu rosto estava cheio de lágrimas pesadas
e rápidas, soluços presos na minha garganta.
Não parei até estar na porta de Lysanne. Não fiquei envergonhada quando
o empregador dela atendeu a porta e me conduziu. Não fiquei aliviada
quando Lysanne entrou correndo na sala e me pegou em seus braços. Porque
não havia nada a ser feito, não havia como voltar atrás.
Ela me levou para o quarto e me sentou em sua cama, arrancando a
história de mim. E uma vez que comecei a falar, não consegui parar, até que
tudo acabasse, as palavras saindo de mim como minhas lágrimas.
O tempo todo, eu imaginei o rosto de Charlie, o brilho duro em seus olhos
e sua mandíbula. A traição e a raiva, sua decepção e nojo.
Depois de ser machucada por Mary e por Quinton, nunca pensei que ele
me machucaria também.
E esse corte foi o mais profundo de todos, o que esvaziou a reserva da
minha vontade, a dor tão profunda que eu mal conseguia respirar. Pressionei
as palmas das mãos no peito como se pudesse parar o sangramento, mas não
adiantou.
Lysanne me puxou para ela, alisou meu cabelo, sussurrou: Shh, não me
oferecendo palavras de conforto, porque não havia nenhuma.
E então eu chorei até ficar vazia, até minha respiração se acalmar e
minhas têmporas doerem.
— O que você vai fazer? — Ela perguntou baixinho enquanto me
balançava.
— Eu... eu não sei. Não tenho nada comigo, nenhuma das minhas coisas.
Eu... eu não posso ir até lá. Meu pânico aumentou novamente, preenchendo o
espaço vazio no meu peito. Eu não posso. Eu não posso vê-lo agora. Como
vou vê-lo? Não posso... não posso… — Engasguei com um soluço.
— Shh, está tudo bem. Você não precisa vê-lo. Vou pegar suas coisas,
ok?
Respirei fundo e assenti.
— E o que você fará depois?
Eu me afastei e olhei para o tecido em minhas mãos.
— Eu quero ir para casa.
Ela suspirou, a mão nas minhas costas e o rosto triste.
— Pensei que você poderia.
— Eu nunca deveria ter vindo aqui. Eu nunca deveria ter saído de casa.
Porque eu não pertenço a este lugar, e nunca pertenci, não importa se senti
que sim por um momento. Eu só... eu não posso acreditar...
— Eu sei, — ela ofereceu. E eu sabia que ela tinha. — Eu acho... acho
que talvez você deveria pedir uma ordem de restrição contra Quinton.
— Não importa. Estou indo embora.
— Talvez isso não importe para você, mas e a próxima garota?
Eu encontrei os olhos dela, implorando: — Por favor, não posso falar
sobre isso agora.
Ela engoliu em seco, assentiu e inclinou a cabeça.
— Sinto muito, Hannah.
Mas eu não consegui falar. Porque eu também sentia muito, sentia pelas
coisas que nunca poderia mudar, sentia pelas coisas que perdi, sabendo que
nunca as recuperaria.
C harlie
Duas horas se passaram.
Hannah não voltou para casa.
Eu não queria que voltasse.
A traição foi profunda, profunda demais para ser medida, a dor de ser
enganado – especialmente sobre isso – esmagadora e final.
Foi um pecado fundamental, a derradeira quebra de fé e confiança. E eu
não podia vê-la. Ainda não.
A determinação calma se enrolou em mim, uma resolução que eu sabia
que não seria aliviada sem uma quantidade de tempo, se é que seria. E eu não
tinha ideia de como nos enfrentaríamos ou o que qualquer um de nós diria.
Eu não estava pronto para encarar tudo.
Eu cheguei em casa com as crianças e liguei a televisão, sentando com
elas no sofá – Sammy escondido no meu lado e Maven no meu colo. O fato
de meus filhos estarem presentes em tudo isso era como sal na ferida. Ambos
estavam abalados e subjugados.
Sammy ficou calado e quieto, o que por si só era uma prova de como ele
havia sido afetado.
Olhei através da televisão, minha mente voltada para dentro e meus
nervos disparados. Ela se parecia uma estranha para mim e eu era um
estranho para mim mesmo.
Quando a campainha tocou, todos nós pulamos.
Hannah, foi o meu primeiro pensamento. A segunda foi que não podia ser
ela – ela tinha uma chave – seguida por uma onda conflitante de alívio e
decepção.
Deixei as crianças na sala, sem esperar quem encontrei quando abri a
porta.
Era uma garota, uma garota alta, com longos cabelos castanhos e
impaciente, olhos castanhos acusadores.
— Estou aqui para buscar as coisas de Hannah, — disse ela secamente
com um sotaque holandês.
Meu coração parou.
— Lysanne?
Ela assentiu uma vez, seus olhos cortando através de mim.
Eu saí do caminho para deixá-la entrar, e ela passou correndo, indo para
as escadas.
— Deixe-me mostrar o caminho, — eu ofereci.
— Eu consigo, — ela atirou.
Eu a segui de qualquer maneira.
— Ela está... ela está bem?
Lysanne virou-se, com o rosto cheio de ira e fúria.
— Eu não vou falar dela. Você poderia me deixar fazer isso sozinha?
Dei um passo para trás, me endireitando.
— Claro.
— Obrigada, — ela cuspiu e correu escada abaixo.
Eu a observei ir e passei a mão pela minha boca.
Foi então que percebi que provavelmente era o fim. Se você me dissesse
ontem que não ficaria completamente fora de mim com a perspectiva de
perdê-la, diria que você é louco. Mas agora, depois que ela mentiu para mim,
depois que aquele homem disse o que disse, eu me vi cheio de dúvidas para
lutar contra o sentimento.
Então voltei para a sala e me sentei com meus filhos até ouvir Lysanne
subindo as escadas com as malas de Hannah.
Fiz meu caminho para ajudar, mas ela me lançou um olhar que era
suficiente sem ela me dizer que não precisava de ajuda.
E quando ela os levou em direção à porta, eu me vi perguntando a única
coisa que eu precisava saber.
— Ela vai voltar?
Lysanne virou-se para me prender com seus olhos castanhos e disse: —
Não, Charlie, ela não vai.
E então ela se foi, e meu futuro também.
20
ACABOU, AMOR. ACABOU

H annah
— Eu odeio isso, — disse Lysanne com tristeza, de onde estava
sentada na cama, me observando embalar as poucas coisas que eu
tinha desempacotado no dia anterior.
— Eu também, — respondi simplesmente, honestamente. — Acho que
nós duas podemos concordar que esse não é o caminho que minha carreira
deveria tomar. Está na hora de voltar para casa e deixar tudo isso para trás.
Lysanne balançou a cabeça.
— Mas o que você fará em casa?
— Por um tempo, talvez nada. Eu preciso resolver o que aconteceu. E
então talvez eu possa descobrir o que quero, o que quero fazer, quem quero
ser. Estar aqui deveria ajudar, mas isso só tornou as coisas mais difíceis, e
agora... Agora estou mais perdida do que nunca. — Lágrimas queimavam os
cantos dos meus olhos e a ponta do meu nariz. — Isso tem sido muito difícil,
demais, e eu não quero mais isso. Eu nunca deveria ter vindo pra cá.
Ela escorregou da cama e parou ao meu lado, pegando uma das minhas
mãos nas dela.
— Não diga isso, — ela disse gentilmente.
— Mas é verdade. Nada de bom resultou disso, apenas dor.
— Charlie não era só dor, era?
— Não, mas é por isso que perdê-lo é muito pior. Teria sido mais fácil se
ele fosse como Quinton. Seria mais fácil se eu pudesse odiá-lo. Mas eu não o
odeio. — Tentei respirar, mas caiu e pulou no meu peito. — Mesmo depois
de ele ter me machucado, não posso odiá-lo. Eu acho que é porque... porque...
— Olhei para as minhas mãos.
— Porque você o ama.
Eu balancei a cabeça, as lágrimas que eu queria manter longe enchendo
meus olhos.
— E ele não está errado. Eu deveria ter contado a ele tanto quanto ele
deveria ter me contado sobre Mary. Pedi uma honestidade a ele que não
podia dar e exigi confiança que não poderia retribuir.
Ela fez uma careta.
— Você não contar a ele sobre Quinton não é o mesmo que manter Mary
longe de você.
— Mas é, a seu modo. É por isso que ele não confia nas pessoas. Ela o
machucou muito, traiu sua confiança da maneira mais implacável. E, pelo o
que ele acredita, fiz algo muito próximo para o seu conforto.
— Você está dando desculpas para ele.
— Não, não estou, — eu insisti. — Eu não o perdoei pelo que ele disse e
fez. Eu só quero dizer que eu o entendo. Mas não há mais nada a dizer. Estou
pronta para ir para casa – estava pronta antes de conhecer Charlie. Eu não
pertenço a este lugar, Lysanne. Tudo o que me resta aqui é você, porque perdi
Charlie. O que eu deveria fazer?
Nos machucamos demais para voltar. — Eu balancei minha cabeça.
— Eu estou lutando. Está na hora de terminarmos com isso.
— Mas e se ele estivesse arrependido? E se ele tentasse fazer tudo certo
de novo? E se ele lhe dissesse que não quis dizer o que disse?
— Como eu poderia acreditar nele? Ele me disse a verdade. Ele não sabia
se podia confiar em mim. Ele mentiu para mim sobre Mary, escondeu suas
reuniões com ela de mim. Ele me acusou de seduzi-lo e a Quinton, acreditou
na palavra de Quinton e não na minha. Isso é o que dói mais, e agora... agora
estou cansada. Nós somos um beco sem saída, Charlie e eu.
— Eu só... eu queria que as coisas fossem diferentes.
— Eu também. Mas Charlie olhou em seu coração e não conseguiu ver a
verdade. Eu sei que ele se machucou, mas nunca fiz nada além de dar tudo o
que ele pediu. E tudo o que pedi foi uma coisa simples – a confiança que eu
tinha provado a ele que eu era digna – e ele não podia me dar. — Lágrimas
quentes caíram pelas minhas bochechas, e eu bati nelas, odiando-as, odiando
o buraco no meu peito e meu coração dolorido que estava lá dentro.
— Eu não quero que você vá, — disse ela com lágrimas nos olhos.
— Eu sei. Mas está na hora. Você é tudo o que me resta aqui, mas, a
menos que nos casemos, temo que não possa ficar na América.
Ela riu da piada, embora seu rosto ainda estivesse pesado, seus olhos
brilhando.
— Bem, suponho que a boa notícia é que você estará em casa a tempo de
Sinterklaas. Poderia haver momentos piores para ir para casa. Você estará
ocupada o suficiente para evitar pensar em toda a bagunça.
— Sim, e ficarei feliz pela distração.
— Vou sentir saudades.
Eu a puxei para um abraço.
— Eu irei sentir sua falta também. Vou mandar algumas coisas para você,
sim?
Ela fungou.
— Faça-me alguns waffles holandeses. O verdadeiro. E letras de
chocolate. E cookies de gente pequena.
— Isso é tudo?
— Que tal eu te enviar uma lista?
Eu ri e me afastei.
—Tudo certo.
— Eu te amo, Hannah. E eu sinto muito.
— Eu também te amo, — eu disse e pressionei minha testa na dela.
Uma hora depois, nos despedimos na varanda, nossas lágrimas
alimentadas pela verdade que não sabíamos quando nos veríamos novamente,
estimuladas por nossa tristeza, culpa e sentimento de fracasso. Nada tinha
saído como planejado, e enquanto eu observava a chuva rolar pela janela do
táxi, me perguntei como as coisas haviam saído tão fora dos trilhos.
A verdade é que eu não queria ir embora. Eu queria dizer ao taxista que
virasse e me levasse até Charlie. Eu queria contar tudo a ele – como me
sentia, a verdade sobre Quinton – e implorar para que ele me levasse de volta.
Mas não podia. Não podia forçá-lo a confiar em mim, e não deveria.
Então eu iria para casa e fingir que nada disso havia acontecido, por mais
impossível que isso fosse. Porque eu havia mudado, e ele era o motivo. Ele
era o motivo de tudo.
Mas ele nunca foi meu, não de verdade. Nós estávamos apenas brincando
de casinha, como Mary havia dito.
Acabei percebendo um pouco tarde demais.
C harlie
A música tocava silenciosamente na cozinha no final da tarde,
enquanto eu comia o jantar do Dia de Ação de Graças com meus
filhos. Nós estávamos sozinhos.
Completamente sozinho.
Hannah se foi, deixando um vazio silencioso onde ela esteve, e eu estava
tão ciente desse fato, como um membro fantasma. Meu cérebro não
conseguiu encontrar uma maneira de se conectar com a verdade – ela não
estava lá e não iria voltar.
Passei a noite anterior com meus filhos, mas depois que eles dormiram,
arrastei meu corpo dormente pelas escadas, a casa quieta como uma tumba.
Um copo de uísque não foi suficiente. Três me fizeram sentir como se eu
estivesse bem. Quatro me sentaram ao pé da cama em frente à lareira escura,
olhando para a fuligem e as cinzas, imaginando como eu a perdi, como perdi
minha fé e esperança, perdendo minha felicidade junto com ela.
Eu acordei na manhã seguinte em sua cama, procurando por ela. Mas o
lado dela da cama estava frio e eu estava sozinho.
Eu pensei que a solidão era ruim depois de Mary. Mas até Hannah, eu não
me senti verdadeiramente amado. E a diferença tornou meu isolamento
infinitamente mais difícil de suportar.
Ao me sentar com meus filhos no Dia de Ação de Graças, senti que havia
muito mais arrependimentos do que coisas pelas quais agradecer.
Sammy tinha mil perguntas que não podia responder. Maven até
perguntou algumas que eram quase mais difíceis. Ela falou tão pouco, e a
tristeza em seus olhos era quase demais para suportar. Eu conhecia o
sentimento.
Seus corações também estavam partidos.
Katie havia deixado instruções e preparado a comida na geladeira, então
eu me ocupei naquela tarde cuidando dela, esperando que talvez isso nos
animasse a ter uma refeição tão familiar e reconfortante. Mas não. Vi Hannah
em todos os lugares – na torta de maçã com uma grade trançada, nos
biscoitos que ela havia feito, na cadeira vazia onde ela estaria sentada, no
buquê de rosas que já havia começado a murchar, suas pétalas se abrindo e
enrolando nas pontas. E ela não estaria lá para substituí-los.
Eu estava sozinho e perdi a única coisa, além dos meus filhos, que
significava alguma coisa.
E eu nunca perdoaria nenhum de nós por isso.
Naquela noite, eu acabei no quarto dela novamente, embora desta vez eu
acendi uma lareira, sentei na cama dela com cheiro dela, de casa.
Eu já havia me machucado antes no que parecia uma outra vida, e aquelas
velhas feridas não haviam se curado. Eu pensei que eles tinham. Eu pensei
que Hannah tinha me curado. Mas ao primeiro sinal de problemas, elas se
separaram novamente, brutas, zangadas e implacáveis.
E não conseguia encontrar uma forma de uni-las novamente.
21
CASA É AQUI

H annah
O vôo tinha sido longo, mas eu não tinha descansado muito, não
com meus pensamentos em Charlie, nas crianças, em meus
arrependimentos enquanto fugia, corria para casa.
A percepção que me atingiu ao máximo quando voava sobre o Atlântico
foi que eu realmente o amava. Eu o amava mesmo que ele tivesse me
machucado. Eu o amava mesmo que ele não estivesse livre para me amar de
volta. Eu o amava por como ele amava seus filhos e como ele me fez sentir.
Eu o amava por me querer, por me dar um vislumbre de uma vida em que eu
pertencia a alguém e onde eles me pertenciam, mesmo que eu não pudesse
mantê-los.
E o que mais doía era que não importava que eu o amava porque não tive
escolha a não ser ir embora.
Esperei minhas malas no carrossel com olhos turvos, rolei-as para fora na
chuva forte, peguei um trem para casa, com minha mente em Charlie o tempo
todo, em todas as coisas que eu deixara para trás em Nova York, em todas as
coisas eu deixei na Holanda para onde voltaria.
Quando saí da estação, entrei em um táxi à espera e, quando nos
afastamos, o motorista fez uma pequena conversa, perguntando sobre minha
viagem, se eu estava em casa para o feriado, sobre minha família, e eu não
queria falar de nada disso, não queria falar, principalmente sobre a América
ou o que havia acontecido lá. Mas eu sorri e respondi da mesma forma.
Foi uma boa prática para quando cheguei em casa.
Quando abri a porta e chamei disse “olá”, descobri que toda a minha
família estava em casa.
Eles inundaram a entrada, sorrindo e brilhando, loiro e alto, e com cada
beijo, abraço e palavra do holandês em vez do inglês, encontrei meu ânimo
elevado, meu coração se enchendo pelo momento.
Todo mundo estava conversando ao mesmo tempo – mamãe calando
meus irmãos gêmeos de oito anos, que estavam pulando, perguntando o que
eu havia trazido a eles. Annelise, minha irmã mais velha, e Johanna, minha
irmã mais nova, conversaram e riram, me observando com vontade de me
deixar sozinha e ouvir a história real.
Oma me abraçou e me disse que eu parecia faminta – ela sempre cheirava
a baunilha, canela e casa. E papai passou o braço em volta dos meus ombros,
sussurrando que ele tinha sentido minha falta.
Mamãe nos conduziu de volta para a cozinha, nosso cômodo favorito da
casa.
Todos nós sentamos à mesa comprida da sala de jantar que mamãe e
Annelise haviam arrumado com biscoitos e doces, chá e café. Eles voavam ao
redor, colhendo colheres e guardanapos extras e geralmente mexendo.
— Você viu a Estátua da Liberdade? — Bas perguntou.
— Você comeu cachorro-quente em um carrinho? — Coen perguntou
antes que eu pudesse responder.
— Você foi atacada? — Bas perguntou logo depois.
Papai se arrepiou.
— Meninos, talvez dêem um pouco de espaço para Hannah.
Eles fizeram caretas para ele.
— Se sua boca precisa de algo para fazer, coma um biscoito.
Eles não precisaram ser avisados duas vezes. Tornou-se um esporte
instantâneo ver quem podia comer tudo de uma só vez.
Johanna sorriu para mim do outro lado da mesa.
— Não acredito que você está em casa! — Mal posso esperar para ouvir
o porquê, — disse o rosto dela.
— Eu também senti sua falta, — eu disse com uma risada.
Annelise e mamãe finalmente se sentaram, sorrindo para mim.
— Como está a loja? — Perguntei. — Quem está cuidando hoje? Não
achei que vocês todos estivessem em casa.
Mamãe riu.
— Como se pudéssemos ficar no trabalho quando soubemos que você
estaria aqui. Todos nós sentimos sua falta terrivelmente, Hannah.
Eu sorri de volta.
— Eu também senti falta de vocês.
— Sara e Julia estão na loja. Eles disseram para lhe dizer olá.
Nós os veremos amanhã, eu acho.
— O que aconteceu que você voltou correndo para casa sem aviso? —
Oma perguntou sem malícia ou acusação. Era apenas o seu jeito direto,
intrometido e carinhoso.
Todo mundo ficou em silêncio, e um rubor subiu pelas minhas bochechas.
— Eu estava com saudades de casa, Oma. Teria sido minhas primeiras
férias fora de casa.
— Bah, — disse ela com um aceno de mão. — Você não é um bebê,
Hannah, e eu te conheço bem para pensar que você daria as costas e correria
para casa porque sentia falta da sua mãe.
Aconteceu alguma coisa? Você está bem, não está?
— Sim, Oma, eu estou bem, — eu disse um pouco baixinho.
Ela não acreditou em mim, e seu rosto me disse isso.
Mas quando ela abriu a boca para discutir, mamãe interrompeu.
— Hannah, como está Lysanne? Como foi a América? Temos seus
cartões postais, mas quero ouvir sobre as aventuras que você teve.
Oma olhou para mamãe.
— Mas eu quero saber...
— Pegue um biscoito, mamãe, — mamãe disse insistentemente.
Oma pegou o biscoito que a mãe lhe lançou, mergulhando-o no café com
um olhar no rosto.
Sorri para mamãe com gratidão e comecei a contar histórias sobre Nova
York e Lysanne, contornando meus empregos fracassados e a bagunça
emaranhada que havia encerrado tudo isso e me enviado para casa. Quando
terminei, Oma parecia pronto para explodir de perguntas, e eu me afastei da
mesa.
— Se estiver tudo bem, acho que gostaria de tomar um banho e me deitar
um pouco.
— Sim, claro, — disse mamãe, parecendo aliviada. Ela também viu Oma.
Papai levou minhas malas para o andar de cima, e mamãe enfiou o braço
no meu, me levando atrás dele.
— Você está bem? — Ela perguntou baixinho quando estávamos fora do
alcance da voz do resto da família, ainda conversando ruidosamente na
cozinha.
Eu me inclinei nela.
— Não, mas suponho que ficarei.
Ela assentiu.
— Estou aqui, se você quiser conversar. Eu estou sempre aqui.
— Eu sei, — eu disse, desejando poder contar tudo a ela, decidindo que
contaria assim que eu resolvesse tudo sozinha. — Sinto muito por voltar para
casa tão de repente.
— Por que você se desculparia? Eu nunca quis que você fosse embora —
ela disse, rindo. — Nova York é muito longe. Eu senti sua falta, meu anjo. E
ter você em casa agora é o melhor presente que eu poderia receber. Eu não
posso nem explicar como eu estava com medo do feriado sem você. Não
seria muita festa com um dos meus filhos desaparecidos. — Ela apertou meu
braço, me aproximando um pouco mais.
— Também senti sua falta. Eu não deveria ter ido embora, mamãe —
falei, lágrimas brotando do nada quando paramos do lado de fora do meu
quarto.
Ela procurou meu rosto.
— Não chore. E não se arrependa de ir. Não acredito que as coisas
aconteçam por uma razão. A ideia do destino nunca me atraiu; Eu desejo ser
o mestre do meu futuro. Mas tudo o que acontece com você, bom ou ruim, é
uma chance de aprender e crescer. Portanto, não deseje mudar o passado.
Apenas considere o futuro e use o que aprendeu para se fortalecer. É tudo o
que você pode fazer. Isso e esperar o tempo passar, para que qualquer que
seja sua dor, tenha tempo para curar.
Ela não esperou que eu respondesse, apenas me puxou para um abraço, e
eu afundei em seus braços, fechando os olhos, lutando contra minhas
lágrimas por mais alguns minutos até que eu estivesse sozinha.
Mamãe me soltou quando papai saiu do meu quarto, pressionando um
beijo no meu cabelo antes de pegar a mão de mamãe e me deixar sozinha
com meus pensamentos.
Meu quarto estava como eu o deixara – um conforto e uma maldição.
Porque mesmo sendo o mesmo, eu havia mudado. Eu nunca seria a garota
que sentou na cama pela última vez e sonhava com seu futuro com um
romantismo feliz e sonhador.
Eu não desfiz as malas – estava muito cansada, muito desgastada –
apenas coloquei minhas malas de lado e as abri, vasculhando-as em busca de
artigos de toalete e uma muda de roupa. No fim do corredor, entrei no
chuveiro, esquentando a água o mais que pude, esperando até a corrente ficar
morna antes de me arrastar de volta.
Vesti-me sonolenta com leggings, um suéter grande demais e meias altas
e confortáveis, trançando meus cabelos úmidos. E quando voltei para o meu
quarto, encontrei minhas duas irmãs sentadas na minha cama, de pernas
cruzadas e excitadas.
Annelise apontou para a porta.
— Feche isso e nos conte tudo.
Suspirei.
— Lise, estou tão cansada. Podemos falar depois?
— Não. Agora feche a porta! Você sabe que Oma está ouvindo.
Johanna riu.
— Ela não suporta não saber.
Suspirei novamente, desta vez ainda mais pesado. E então eu fechei a
porta porque os olhares em seus rostos diziam que não iriam embora até eu
contar.
— Mova-se, — eu dirigi quando me aproximei, subindo na cama com
elas.
— O que aconteceu? — Johanna perguntou. — Você realmente está bem,
não está?
Eu só tinha um pequeno sorriso para oferecer como garantia.
— Eu vou ficar bem, mas agora... não, eu não estou bem. Na verdade não.
— Comece do começo, — Annelise ordenou e se inclinou para ouvir.
E assim eu contei a eles. Contei a elas sobre Quinton e seus avanços e
minha partida. Contei sobre Charlie, sobre quem ele era e como eu me
importava com ele, sobre Mary e as crianças e toda a provação, todo o
caminho até a nossa luta e minha viagem para casa.
Eu deixei de fora a parte em que eu o amava.
Eles me observavam, prendendo cada palavra, cada giro e virada,
oferecendo apenas suspiros e bocas abertas e o ocasional ruído de desdém,
especialmente sempre que eu falava de Mary.
— Você não falou com ele desde que saiu? — Annelise perguntou.
Eu balancei minha cabeça.
— Você se importa muito com ele, não é? — Annelise me observou com
olhos que viam demais.
— Sim, muito.
— Você já pensou em ligar para ele? — Johanna perguntou.
— Cem vezes, mas não vou. Não posso, não depois do jeito que as coisas
terminaram. Não há nada a dizer. — Respirei fundo. — Eu nunca deveria ter
aceitado o emprego, não depois de Quinton. Eu sabia no segundo em que vi
Charlie pela primeira vez, mas achei que sabia melhor. E no final, eu o
machuquei, e ele me machucou. Era uma situação perigosa, e eu nem pensei
duas vezes, apenas pulei.
Eu não deveria ter saído de casa em primeiro lugar. Tudo o que aconteceu
na América foi uma bagunça, e agora só quero esquecer tudo.
Lágrimas caíram das minhas pálpebras, muito pesadas e rápidas para
qualquer coisa, exceto uma queda livre dos meus cílios.
Johanna pegou minha mão.
— Sinto muito, Hannah. Sinto muito que isso tenha acontecido.
— Mamãe disse para não me arrepender. Ela disse que eu deveria estar
feliz por isso ter acontecido, mas dói demais estar pronta para isso.
— Bem, — Annelise começou, — mamãe é muito sábia sobre essas
coisas.
— Sim ela é.
Ela assentiu e saiu da minha cama.
— Vamos, Johanna. Vamos deixá-la sozinha para descansar, sim?
— Sim, é claro, — respondeu Johanna, me abraçando com força antes de
seguir Annelise até a porta.
Annelise sorriu da porta.
— Você vai dormir. Vamos fazer para você oliebollen, então eles estarão
prontos quando você acordar, e nós vamos ter certeza que tenha o suficiente
para você comê-los até que esteja doente e sobre algo.
Eu ri.
— Isso realmente parece perfeito.
E então elas saíram do meu quarto, me deixando em paz.
Deslizei para debaixo dos cobertores e ouvi o som da chuva batendo na
minha janela, desejando coisas que nunca poderia ter.
22
QUERER E PRECISAR

C harlie
Os três dias seguintes foram um desvio nebuloso.
Katie estava de folga no fim de semana e eu estava sozinho. Eu
me dediquei a cuidar de Maven e Sammy. Tendo as mãos cheias ajudava – no
momento em que acordassem, eu ficaria ocupado e agradecido. Grato por seu
amor e pela maneira como eles encheram meu dolorido, machucado coração.
Para o propósito que eles me deram.
Mas no momento em que eles estavam na cama e a casa estava em
silêncio, eu me perdia novamente, contando meus erros e arrependimentos. E,
quando a manhã chegava e o sol derramava através da fenda entre as cortinas
em uma cunha, eu acordava e desejava Hannah.
Mas não havia mais nada a ser feito.
Segunda de manhã, acordei com o sol, deitado na cama por um longo
tempo, olhando através do meu travesseiro para o vazio.
Costumava pertencer a alguém. Costumava ser quente todas as noites,
mas agora estava frio e vazio. Pertencia a Mary, mas agora...
Agora pertencia a uma garota, a garota, a pessoa que havia ido embora, a
que eu mandei embora. Aquela que me machucou.
Saí da cama e desci as escadas para fazer café, minhas mãos se movendo
sem nenhuma direção. E uma vez que a máquina terminou uma xícara, sentei-
me à mesa da cozinha, meus olhos fixos nas rosas moribundas na janela.
Não tive coragem de jogá-las fora.
A porta da frente se abriu e Katie entrou com um sorriso que desapareceu
quando me viu na cozinha.
— Ei, Charlie, — disse ela com falsa leviandade, colocando sacolas de
compras na ilha da cozinha. — Tudo certo?
— Não, Katie, não está.
— O que aconteceu? — Ela perguntou enquanto se aproximava, o rosto
tenso de preocupação.
Um suspiro me escapou que explicava tudo. Ela sentou-se ao meu lado.
— Hannah se foi.
— O que? Charlie, como assim?
Eu assenti e respirei cansado. E então eu contei tudo a ela.
Largando o meu emprego. Mary e Hannah e Quinton e a luta. E ela ouviu
com as sobrancelhas arqueadas e a mão descansando na minha.
— O que você vai fazer?
— Não tem nada para fazer. Ela não vai voltar.
Uma sobrancelha se levantou.
— E ela te falou isso?
Eu balancei minha cabeça.
— Você não entende.
— Me esclareça.
— Algumas coisas não podem ser consertadas, Katie. Ela mentiu para
mim sobre ele.
— E você mentiu para ela sobre Mary.
— Exatamente. Nós dois estamos errados. Nos machucamos, e o
ferimento que ela fez em mim é um do qual não consigo me recuperar. Eu
não... Eu quero confiar nela, mas era muito perto de casa. Você sabe, nunca
suspeitei de Mary e Jack. Nem uma vez, nem por um segundo. Eu confiava
nela cegamente. Ela nem tinha feito nada para merecer. E Hannah fez de tudo
para ganhar, mas eu não poderia dar a ela. Estou arruinado.
Ela balançou a cabeça, os olhos pesados e tristes.
— Não quero acreditar. Não quero acreditar que não há nada que você
possa fazer para recuperá-la.
— Eu também não quero acreditar. Mas ela não vai voltar.
— Então vá buscá-la.
— É um pouco tarde demais para tudo isso. Ela estava certa – eu não
conseguia olhá-la nos olhos e dizer que acreditava nela, não quando
importou.
— Você acredita?
Passei a mão pela boca.
— Ela não teria mentido para mim. Eu sei que ela não teria.
— E você não acha que vale a pena contar isso a ela? Parece-me que você
deve desculpas a ela.
— Eu devo. Só não sei como ou se ela vai ouvir. E eu não sei para que
fim. Eu não estou pronto para isso; Eu sabia disso antes mesmo de começar.
Eu sabia que a machucaria. Eu também não esperava me machucar. E ela foi
embora. Ela não confia em mim.
— Então você passou todo o fim de semana lambendo suas feridas. Você
não acha que vale a pena lutar por ela?
Emoção floresceu no meu peito.
— Claro que acho. Ela é a única mulher pela qual já senti vontade de
lutar. Eu não lutei por Mary, nem lutei por nosso divórcio.
Eu não lutei pelos meus filhos, não até Hannah, e tudo porque eu estava
com medo. Eu quero lutar por ela, mas não sei como. Como faço para corrigir
isso? Não há nada que eu possa dizer para acertar.
Katie, eu a quero de volta, mas tenho medo.
— Bem, perdoe-me por dizer isso, mas isso é besteira.
Abri minha boca para discutir, mas ela me interrompeu.
— Talvez seja hora de fazer assim mesmo. Foi fácil largar o emprego?
Não — ela respondeu por mim — não foi. E não era também participando de
audiências de custódia e reuniões de advogados e trabalhando tão duro
quanto você fazia para manter a casa funcionando. Não foi fácil para você
começar a ficar em casa mais tempo, e não foi fácil para você ajudar com as
crianças, mas você conseguiu. Não foi fácil confiar em Hannah, mas você
confia. E você deveria. Ela não faria nada para machucá-lo.
— E se eu machucá-la?
— Bem, é um risco que ela terá que optar por assumir ou não. Mas não
use isso como desculpa para não perguntar.
Ela me observou por um momento, procurando nos meus olhos, mas não
encontrou respostas. Eu não tinha nada a oferecer.
Então, tendo dito sua parte, ela mudou o assunto.
— O que você fará com as crianças agora que ela se foi?
— Vou manter Sammy na pré-escola, mas depois deste mês, vou manter
Maven em casa comigo para economizar dinheiro – pelo menos até descobrir
o que vou fazer comigo mesmo. Temos muito para nos manter por um longo
tempo, especialmente se eu vender a casa.
O rosto dela continuava ficando mais triste, e meu coração continuava
afundando.
— Bem, — ela disse depois de um segundo, — não se preocupe comigo,
está bem? Se você precisar me deixar ir, não quero que pense duas vezes.
Porque eu vou ficar bem.
Eu cobri sua mão com a minha.
— Obrigado. Agora, preciso de toda a ajuda que conseguir.
Sammy apareceu na porta com os cabelos em todas as direções e os olhos
brilhantes.
— Oi, Katie!
— Ei, amigo, — disse ela alegremente. — Você está com fome?
Ele assentiu.
— Ainda há mais poffertjes? Hannah fez uma sacola grande! Ela voltará
antes que eles se acabem, papai?
Eu balancei minha cabeça e tentei sorrir.
— Não, Sammy. Lembra? Hannah foi para casa.
O sorriso dele caiu, os ombros inclinados.
— Oh sim. Talvez eu possa desenhar uma foto para ela.
Podemos enviar uma carta para ela?
Eu saí da minha cadeira e me ajoelhei na frente dele.
— Eu não tenho o endereço dela, mas se você quiser escrever para ela,
talvez eu possa encontrar uma maneira de chegar até ela, ok?
Ele assentiu com os pés descalços.
— Kay. Eu só quero dizer a ela que sentimos sua falta. Talvez se
dissermos que sentimos sua falta, ela volte.
Estendi a mão para o meu filho e o puxei para dentro do meu peito, minha
própria dor e rachadura abertas.
— Talvez sim, — eu disse baixinho antes de deixá-lo ir.
Katie alimentou Sammy enquanto eu acordava Maven e a vestia, e uma
hora depois, eu os deixei na escola e fui para casa sozinho.
Mesmo com Katie em casa, a casa era muito grande e silenciosa. Fiz meu
caminho para o meu escritório, tentando não pensar no quarto vazio de
Hannah quando passei por ele, a porta fechada, como se pudesse guardar as
memórias lá dentro. Mas não adiantou.
O escritório parecia estrangeiro, cheio de livros que não tinham mais
valor. Sentei-me na cadeira que fazia parte de outra vida. E olhei para a porta
aberta, inseguro do meu futuro.
Era demais, aquele quarto. Peguei meu laptop e saí, fechando a porta atrás
de mim.
Não havia como escapar disso.
O melhor que eu podia fazer para se distrair era incomodar Katie na
cozinha enquanto ela dobrava as toalhas. Conversamos sobre nada enquanto
eu procurava imoveis, tentando entender o que eu poderia pedir para a casa e
o que eu conseguiria que era menor, mais modesto, menos vazio e sem as
memórias que esse lugar mantinha.
Foi logo antes do almoço quando a campainha tocou.
Abri a porta esperando um pacote, mas encontrei Lysanne, com a
mandíbula cerrada e os olhos duros.
— Hannah me pediu para lhe trazer isso, — disse ela antes que eu tivesse
a chance de cumprimentá-la, empurrando um envelope para mim.
Eu peguei e saí do caminho.
— Por favor, entre.
Ela suspirou quando passou por mim e entrou na entrada.
— Ela está bem? — Perguntei.
— Não, ela não está.
Respirei fundo e limpei minha garganta.
— O que é isso?
— Abra e veja por si mesmo.
Eu a observei por um segundo, minha mente cheia de perguntas, minha
boca não falava, tempo suficiente para ela cruzar os braços e acenar com a
cabeça para o envelope na minha mão.
Então eu abri, despreparado para a lavagem de emoções que me atingiram
quando vi o que havia dentro.
Primeiro, uma carta dirigida às crianças com a letra de Hannah, a longa
inclinação de suas cartas elegante e fácil.

S ammy e Maven,

É hora de eu ir para casa. Adorei todos os dias que passei com você e toda
a diversão que tivemos ao assar, tocar e cantar juntos. Sentirei muita falta de
vocês dois e pensarei em vocês o tempo todo, eu sei disso. Eu escrevi meu
endereço aqui. Vocês vão me enviar cartas? Vou enviar cartas de volta.
Sinto muito por não ter sido capaz de me despedir e dar um último
abraço em vocês dois, mas envolvam seus braços ao seu redor muito bem.
Feche os olhos e aperte. E lembrem-se de mim. Eu não vou esquecer vocês.

—H annah

M eu coração bateu contra minhas costelas, minha garganta


apertando ainda mais quando vi o endereço que ela havia escrito
abaixo era na Holanda.
Meus olhos se voltaram para os de Lysanne, que ainda estavam me
olhando com irritação.
— Ela voltou para a Holanda? — Eu respirei, desacreditando, e fui até o
banco para afundar nele.
Ela assentiu uma vez.
— Você não esperava que ela ficasse depois de tudo isso, não é?
— Bem, sim. Sim, eu esperava. Eu... eu nem pensei que isso estava na
mesa.
Eu olhei para as minhas mãos, folheando a página atrás da carta. Ela
desenhou uma foto dela e das crianças no parque com um arco-íris no céu,
perfeitamente adorável, perfeitamente feliz.
E eu percebi que havia algo no fundo do envelope e cheguei.
Era uma Polaroid dela e das crianças que ela havia tirado, os três sorrindo
e esmagados na moldura. Toquei a imagem do rosto dela com o polegar.
— Eu... — Minha garganta se fechou; Engoli as palavras.
— Ela foi sexta-feira para casa. Tentei fazê-la ficar, tentei ligar para você,
mas não adiantou.
Meus olhos ainda estavam na foto na minha mão.
— Não acredito que ela se foi.
— Bem, não acredito que você acreditou em Quinton sobre ela.
De todas as coisas. Ela não contou sobre ele, o que eu entendo que te
incomoda, mas ela tinha os motivos dela, o primeiro que Quinton não tinha
nada a ver com você e segundo que dói nela falar sobre isso.
— O que aconteceu entre eles?
— Essa não é a minha história para contar. — Ela sentou-se ao meu lado.
— Ela nunca teria machucado você, Charlie. Ela é a pessoa mais amorosa,
leal e generosa que já conheci em minha vida, e você a acusou de algo
impensável. Isso é, depois que sua esposa a confrontou, a machucou. E então
você deu o golpe final. E agora ela se foi. Ela correu todo o caminho de volta
para casa, fugiu para estar onde está segura, e a culpa é sua.
— Eu sei, — eu disse miseravelmente e passei a mão pela minha barba
por fazer. — Eu sei. E não há nada que eu possa fazer sobre isso. Ela estava
certa. Meu coração e minha alma estão emaranhados e quebrados, e eu não
posso amá-la como ela merece.
Eu tenho muito em cima de mim para dar a ela o que eu gostaria de poder
dar.
As bochechas dela queimaram.
— Isso não é de todo verdade. Você está aqui, ferido e fazendo beicinho,
triste por ela, mas há muito que você pode fazer. Você está quebrado, sim,
mas ela te ama. Ela te ama e cuidará de você. E você sabe que ela pode. Você
sabe que ela pode curar qualquer coisa; é a mágica dela.
— Mas ela se foi. Ela não vai voltar.
Lysanne inclinou-se para mim.
— Então faça ela voltar. Você é o único que pode. Você precisa falar com
ela. Você precisa dizer a ela que sente muito e como se sente, ou vai perdê-la
para sempre.
— Eu já não perdi? — Perguntei, minha voz rouca.
— Não, eu não acredito que você tenha perdido. Mas você precisa se
desculpar e deve ouvi-la. Prove que você será o que ela merece, porque ela
merece tudo. E acho que você pode dar a ela.
Você só precisa decidir pentear o cabelo, dar uma boa barbeada e fazer
algo a respeito.
Eu pisquei para ela, minha mente tropeçando no que ela disse.
A verdade era que eu devia muito mais a Hannah do que um pedido de
desculpas. No fundo, percebi que tinha esperança de que, de alguma forma,
não tivesse terminado. Geograficamente, eu pensei que ela estava ao virar da
esquina, mas, em vez disso, ela tinha percorrido o meio do mundo para se
afastar de mim.
Lysanne estava certa. E havia apenas uma coisa que eu poderia fazer
sobre isso.
Eu só esperava que Lysanne estivesse certa.
Porque se houvesse uma chance, eu aceitaria.

H annah
Quando meu telefone tocou, o nome dele era o último que eu
esperava ver na minha tela. Eu olhei para o meu telefone por um
longo segundo sem fôlego, meus olhos em seu nome, antes de sair da cozinha
sob olhar atento e aceitar a ligação.
— Olá, Charlie, — eu respondi suavemente, tristemente.
— Hannah, — disse ele, as profundezas de seus sentimentos em uma
respiração, uma palavra, duas sílabas – meu nome. — Eu... eu recebi sua
carta.
Saí e fechei a porta atrás de mim, sentada na varanda, sem dizer nada.
— Sinto muito, — ele sussurrou. — Eu quero que você saiba, me
desculpe. Pelo que eu disse, pelo que não disse.
— Eu também.
Ele fez uma pausa. Eu não falei — Eu... eu quero que você entenda... eu
quero explicar. Quando eu vi você com ele, quando ele disse o que disse, eu
não acreditei nele. No meu coração, eu não acreditei nele. Na minha alma, eu
sabia melhor. Mas minha mente me disse que eu já tinha estado lá antes.
Você tem que entender que, quando confrontado com o pensamento dele e de
você, meu cérebro tocou um aviso. E eu sei que isso não é justo. Sei muito
bem o que Mary fez comigo e o que perdi por causa disso. Eu lhe disse antes
de começarmos isso que eu te machucaria, e machucou. Eu te disse que
estava quebrado e estou.
— Eu sei. Sei por que você está machucado e entendo por que você sentiu
o que sentiu. E também sinto muito, por não lhe contar sobre ele e por não
confiar em você sobre Mary. — Apoiei os cotovelos nos joelhos, os olhos na
planta em frente à casa, o padrão da casca como um labirinto. — Charlie,
Quinton e eu não dormimos juntos.
— Eu sei. Eu acredito em você.
— Mas ele queria.
Silêncio.
Eu respirei fundo, dolorosamente.
— Ele não me deixou em paz, não a partir do momento em que entrei
pela porta deles. Na noite anterior à minha partida, ele entrou no meu quarto
enquanto eu dormia, e ele... ele... — Engoli em seco.
— Quando eu acordei, suas mãos estavam em mim e ele estava me
beijando. Mas ele não fez o que poderia ter feito e saiu quando eu pedi. Na
manhã seguinte, eu me demiti.
— Hannah... — A palavra era grossa e pesada com dor.
— Ele me encontrou de alguma maneira; Sei isso agora depois que ele
admitiu que nos viu juntos. Ele estava me seguindo, eu acho.
A primeira vez pareceu como se tivesse sido uma coincidência. Na
segunda vez, eu não acreditei nele. Eu queria te dizer , em seguida, mas...
Charlie, você não é o único que tem medo. Eu pensei que você poderia
acreditar que isso era algo que eu tinha feito. E foi exatamente isso que você
acabou pensando. Eu deveria ter lhe contado desde o início.
— Não, não faça isso. Me desculpe. Eu sinto muito. E eu... eu te acusei
de... Deus, Hannah.
Meus olhos se encheram de lágrimas.
— Você registrou uma queixa? Diga-me que você fez.
Eu balancei minha cabeça, esquecendo que ele não podia me ver.
— Não. Eu deixei o país. Ele não pode me machucar aqui.
Ele xingou baixinho.
— Ainda pode haver um caminho. Você vai me deixar investigar? Porque
podemos ser capazes de processar. Poderíamos...
— Charlie, por favor, — eu disse gentilmente. — Está tudo bem.
— Não está tudo bem. Nada sobre isso está bem.
— Mas está. Por mais que eu odeie tudo isso, está tudo bem.
Porque você e eu parecíamos bons e corretos, mas não era a hora certa,
para nenhum de nós. Mas eu não pertenço a isso; Eu nunca pertenci. Eu
gostaria de poder ter trabalhado apenas para você. Eu gostaria de poder ter
ajudado você, mas apenas compliquei as coisas. Eu só fiz isso mais difícil.
— Não, — ele disse, sua voz rouca. — Você me ajudou. Você fez tudo
melhor, não pior. Eu quero você de volta. Diga-me o que tenho que fazer.
Quero que você volte para casa, Hannah.
— Eu estou em casa. Charlie, você não entende? Sua vida... Sua vida é
muito complicada, cheia demais para mim, você não vê? Estar lá causou tanta
dor a Mary que ela colocou em risco a segurança de Maven e Sammy. O fato
de eu estar lá complica você ser capaz de resolver seu divórcio, seu trabalho...
— Eu deixei o meu emprego, Hannah.
Eu parei.
— Você o que?
— Eu saí no dia em que você me deixou. Eu vim para casa para lhe dizer,
mas você estava pegando as crianças. E quando fui te encontrar, vi você com
ele.
Respiração funda e tremula, uma pausa de grávida.
— O que você vai fazer? — Eu finalmente perguntei.
— Eu não sei. Só sei que não quero mais ficar longe de casa.
Eu não quero ficar longe de você. Mas agora... Agora, você se foi. Eu
acho... Eu torci por um segundo que não fosse real – esse sentimento de que
havia acabado — ele disse, as palavras quebrando.
Minha respiração engatou, minhas palavras tremiam quando lágrimas
quentes rolaram pelas minhas bochechas.
— Eu gostaria que as coisas tivessem sido diferentes. Eu gostaria que o
momento tivesse sido melhor. E agora, é tarde demais.
— Charlie, isso é a coisa certa — insisti. — Você ainda é casado. Você
tem Mary para resolver e seus filhos que precisam de você. E eu preciso de
um tempo. Eu só preciso de tempo.
— O tempo vai fazer você mudar de ideia?
— Talvez. Mas não posso voltar. Não posso. Eu nunca deveria ter saído
em primeiro lugar. Mas por um momento eu tive você, e isso fez valer a
pena.
Ele não falou; o silêncio era opressivo.
— Eu não quero nada além de felicidade para você, — eu disse.
— E eu espero que você encontre. Eu sei que você vai.
— Não sem você, — ele sussurrou.
— Você irá. Eu sei isso.
Posto assim, ele não recusou.
— Hannah, eu... eu não sei o que dizer.
Engoli a pedra na minha garganta.
— Acho que é aqui que dizemos adeus.
Ele não disse nada por um longo momento em que o vento soprou no
carvalho e seus galhos estalaram e farfalharam.
— Me desculpe eu não poder ser tudo o que você merece, — ele
finalmente disse.
— E me desculpe por não poder salvá-lo. — Minha respiração parou,
minhas lágrimas silenciosas, e quando encontrei minha voz, eu disse palavras
que me quebraram completamente porque eu sabia que nunca mais ouviria
sua voz. — Adeus, Charlie.

C harlie
Coloquei minha mão cobrindo minha boca, cotovelos nos
joelhos, a dor no peito profunda e ardente.
A revelação do que ele tinha feito com ela, do que eu tinha feito com ela,
era quase demais para suportar. Eu a machuquei muito pior do que eu poderia
imaginar, acreditando nele e depois do que ele tinha feito. Mas eu tinha feito
muito pior por não ficar do lado dela, por não confiar nela quando mais
importava.
Eu não consegui olhar além de mim mesmo para ver a verdade dela.
Eu tinha que fazer as pazes com ela. Eu não podia desistir. Não sem lutar
por ela.
E eu sabia exatamente o que fazer. Eu só esperava que ela me aceitasse de
volta.
23
DEIXANDO IR

H annah
A música tocava no alto-falante portátil, a luz do alto brilhando
sobre a longa bancada no centro da sala, coberta de farinha, e
minhas mãos estavam amassando a massa, apertando e dobrando-a e
apertando-a novamente.
A padaria havia fechado uma hora antes, e mamãe tinha ido para casa,
deixando Annelise e eu para terminar os preparativos para a manhã seguinte.
Eu estava encarregada da massa, e Annelise estava ocupada embebendo
grãos, frutas e fermento em nossos pães.
Passei minha infância nesta cozinha com cheiro de açúcar e fermento,
baunilha e canela. Eu adormecia quando era uma garotinha debaixo da mesa
ao som das mulheres da minha família conversando, rindo, fofocando e
compartilhando suas vidas umas com as outras. Eu me sentei no colo de meu
opa e o ajudei a enrolar banketstaaf e persegui meus irmãos pequenos ao
redor do balcão e sob os pés da nossa família.
Este lugar era minha casa tanto quanto a casa onde morávamos. Talvez
mais.
Dias se passaram desde que Charlie ligou, e eu não me encontrei muito
mais perto de encontrar paz ou conforto. Não com o tom definitivo do que
dissemos, não com os milhares de quilômetros que eu colocara entre nós.
Tive a sensação de que demoraria muito tempo até que meu coração se
curasse. Enquanto isso, eu assava e me perdia nos negócios movimentados da
minha família.
Parecia a única coisa a fazer.
— Você teve notícias dele novamente? — Annelise perguntou, lendo
minha mente, quebrando o silêncio.
— Não, — respondi, agradecida pelo fato de ele não ter tentado ligar
novamente em igual medida para a mágoa que senti que ele não tinha.
— Você acha que vai?
— Não, não sei. — Fiz uma pausa, sacudindo a massa, os olhos nas mãos.
— Acabou. Nos despedimos. E meu único consolo é que está atrás de mim.
Não sei se poderia ter resistido a ele se ele não tivesse me deixado ir, se ele
não tivesse desistido.
— Então, se ele lutasse, você se curvaria?
— Eu não sei. Eu não quero saber.
Ela fez barulho.
— Eu não acredito nisso.
A mágoa passou por mim.
— Não, acho que eu também não. Sinto falta dele. Sinto falta das crianças
e de Katie e... Sinto falta de tudo. Por um momento, fiz uma vida para mim
mesma e a perdi quase no mesmo fôlego. Mas estou em casa agora; Eu me
encaixo aqui de uma maneira que não me encaixo em nenhum outro lugar.
Annelise secou as mãos, procurando meu rosto.
— Você não se encaixou com Charlie?
Não encontrei os olhos dela.
— Eu pensei que talvez pudesse. Mas eu não pertenço àquilo, Annelise.
Essa vida não era minha, e nunca poderia ser. Eu queria o coração de Charlie
antes que ele estivesse livre para me dar, quando ainda estava danificado,
quando ainda não estava curado.
— Apenas um momento ruim. É isso?
— Foi um momento ruim, mas na hora certa. Eu acho... acho que ele
precisava de mim. E desejo mais do que tudo que as coisas tivessem sido
diferentes, mas não são. Não é culpa de ninguém.
— É tudo tão final, — ela disse, — tão desolador. Como você pode estar
tão... eu não sei. Calma? Aceitando? Você não quer lutar?
Você não quer tentar mudar seu destino?
Amasse e dobre, amasse e dobre, a massa fria e flexível em minhas mãos.
— Como posso lutar contra algo que não posso mudar? As coisas que eu
quero não estão ao meu alcance. Se estivessem, estariam em minhas mãos.
— Como a padaria?
— Sim, — eu respondi calmamente. — Como a padaria.
Ela se moveu para o meu lado, recostando-se na mesa para me encarar.
— Hannah, eu gostaria que as coisas fossem diferentes.
— Eu sei. Eu também.
— Tudo foi decidido antes mesmo de nascermos. Eu quase gostaria que
tivesse sido você, mas eu também amo isso aqui.
— Eu também sei disso. E então é inevitável. Você entende? Só posso
aceitar o que é oferecido.
— E Charlie não está em oferta?
Suspirei.
— Ele quer estar, mas Annelise... sua esposa, ela quer... Ela quer coisas
que não pode ter também. E ela vai me machucar para chegar até ele. Ela
usará as crianças para machucá-lo, machucá-lo ainda mais do que ela já fez.
E eu quero ajudá-lo. Eu quero salvá-lo.
Coloquei minhas mãos na superfície enfarinhada da mesa e finalmente
olhei para cima.
— Talvez tenha sido apressado sair logo. Talvez eu devesse ter ficado.
Mas depois de tudo, quando ele me acusou, quando disse que não sabia se
podia confiar em mim, fiquei muito machucada para ficar. Tudo contou,
todas as maneiras pelas quais não podíamos estar juntos, e eu saí. E agora, eu
não posso voltar. Não quero voltar, não quando tudo é difícil, desconhecido e
estrangeiro. Mas eu desejo... desejo muitas coisas que nunca terei. E só sei
que pertenço a este lugar , não àquele.
Seus olhos eram tristes e suaves, seu próprio desejo de mudar as coisas
escritas em seu rosto.
— Sinto muito, — disse ela.
— Eu também.
— O que você vai fazer agora?
— Bem, por enquanto, dobrar a massa, assar e me esconder aqui, onde é
seguro e quente, onde posso me curar. E então... Então eu não sei. Ensinar
talvez.
— Talvez você possa ensinar a Oma alguns modos.
Eu ri.
— Não é possível. Ela os perdeu muito antes de você ou eu.
As sobrancelhas de Annelise se ergueram.
— Você acha que ela já os teve?
Dei de ombros.
— Mamãe parece pensar assim.
— Oma já te encurralou para contar a ela sobre Charlie?
— De alguma forma, encontrei uma maneira de evitá-la, mas ela vai me
pegar em algum momento, eu sei. Ela é rápida para uma velha senhora.
— Muito ágil. Talvez se você se certificar de que ela tomou bastante
vinho em Sinterklaas, isso a atrasará.
Eu ri.
— E eu serei a responsável por ela quebrar um quadril? Não, obrigada.
— Bem, me avise se você quer que eu ajude a interferir. Fico feliz em
deixá-la boa e bêbada – ou pelo menos mantê-la ocupada.
Talvez eu até a deixe me ensinar a tricotar; ela tenta me convencer a
aprender desde os seis anos.
— Oh Deus. — Eu ri. — Você realmente me ama.
E ela sorriu, me puxando para um abraço.
— Eu realmente amo, Hannah. E estou feliz que você esteja em casa.
— Eu também, — eu disse, desejando que as palavras fossem
verdadeiras.

C harlie
O que você vai fazer sobre isso, Charlie?
A resposta foi qualquer coisa. Tudo. Tudo o que eu puder.
Era a resposta nas minhas costas quando entrei no hospital, uma dúzia de
discursos percorrendo minha mente ansiosa.
Quando saí do elevador, procurei Mary no corredor sem encontrar o que
estava procurando. As enfermeiras de posto me olharam enquanto eu pedia
por ela, prometendo que a pagariam.
Então, sentei-me e esperei, sem saber se ela viria.
Ela veio.
Suas costas estavam retas e mandíbula cerrada, seu corpo apertado e
braços cruzados sobre o peito.
Eu me levantei quando ela se aproximou.
— O que você quer? — Ela perguntou.
— Podemos conversar? Em algum lugar privado?
Ela me observou por um momento antes de assentir.
— Venha comigo.
Eu a segui pelo corredor, passando pelos olhos atentos das enfermeiras e
até a sala de plantão vazia.
A porta se fechou atrás de nós e ficamos a alguns metros um do outro,
nenhum de nós falando.
Ela cruzou os braços.
— Bem?
— O que você quer de mim? — Eu perguntei mais sério do que pretendia.
O rosto dela ficou tenso.
— Para começar, quero ter acesso às crianças.
— Quando você renunciar seus direitos a eles, poderá ter isso.
— Você quer que eu desista para que eu possa tê-los? — Ela zombou. —
Isso é ridículo, Charlie.
— Não é. Como posso concordar em deixar você vê-los quando não é
confiável, é instável? Quando você não seguirá as regras? Se você quer vê-
los, precisa provar que não os usará.
Ela olhou para mim através do espaço entre nós.
— Se você não os der, eu lutarei por eles.
— Deixe-me pintar essa imagem para você, — eu disse, as palavras frias.
— Vamos dizer que você brigue comigo, e vamos dizer que você vença.
Você os terá pelo menos metade do tempo e completamente por conta
própria. Todo banho e toda refeição, toda história de ninar e toda carga de
roupa. Você não quer isso. Admita que você não quer isso. Você não me
quer, nem as crianças ou nada disso. Então o que você quer?
Sua mandíbula flexionou, seus olhos brilhando.
— Eu quero minha vida de volta.
Minha raiva explodiu. Passei a mão pelo cabelo para me dar um segundo
para processar.
— Mary, como diabos você sugere recuperar? O que você quer de mim?
O que eu deveria fazer? Você levou as crianças sem me dizer. Você apareceu
após meses de silêncio e espera tudo. Você nos deixou.
— Você me expulsou!
— Porque você fodeu meu melhor amigo! Jesus Cristo, por que eu sou o
bandido aqui?
— Bem, você parece que superou super rápido. Como está sua linda
babá?
— Ela se foi. — As palavras eram vazias e desoladas.
Ela revirou os olhos.
— Não fique tão triste. Tenho certeza que você pode apenas contratar
outra, não pode? Você tem que pagar a mais por boquetes?
Aquela labareda de raiva pegou fogo, alimentada por um vento doloroso
nas minhas costelas, correndo pelas minhas veias a cada batida do meu
coração, e eu explodi.
— Você fez isso! — Eu gritei. — Você não entende? Você não vê o que
fez comigo? Você me arruinou. Eu cometi erros, Deus sabe que cometi, mas
se você não tivesse me tratado dessa maneira – mentido, trapaceado, me
manipulado, me machucado repetidamente – se não fosse por você, eu não
estaria quebrado, desconfiado, procurando maneiras pelas quais ela pode ter
me traído. Eu não a teria perdido se estivesse inteiro.
Mary ficou muito quieta, os olhos muito arregalados, os lábios um pouco
entreabertos.
— Você a ama.
— Eu a amo e não deveria ter deixado você ditar meu futuro. Eu a amo e
deveria ter confiado nela. E eu deveria ter trabalhado mais para mantê-la
longe de você. Mas não posso mudar isso mais do que você pode mudar o
fato de que dormiu com Jack ou que nos abandonou. — Fiz uma pausa,
olhando-a, recuperando o fôlego, e com honestidade e rendição na minha voz
quebrada, perguntei novamente: — O que você quer, Mary?
— Eu quero voltar, — disse ela, as palavras tremendo e desgastadas.
— Bem, você não pode. Você não me amava, e não ama agora. Nossas
vidas, aquela vida que você sente falta – aquela vida era uma mentira.
— Mas é o mais próximo que eu já cheguei do real. — Lágrimas
brilhavam em seus olhos e ela desviou o olhar. Com uma respiração trêmula,
ela se sentou na beira de uma das camas. — Eu sinto muito. Estou ferrada,
Charlie. Eu sei que estou ferrada. Quando saí, perdi tudo – minha casa, meu
marido, minha família, meu lugar. E, durante todo esse tempo, lidei com isso
sem lidar de forma alguma. Eu me fechei. Eu trabalhei. Eu comi Eu dormi.
Até que eu vi ela aqui com você, com Maven, em meu lugar. E algo em mim
estalou.
Seus ombros caíram, o rosto pesado de exaustão, a luta lavada fora dela.
— Voltei ao jeito que sempre fui porque não sabia mais o que fazer,
como lutar. Eu queria minha vida antiga de volta, e foi nesse momento que
percebi. E toda vez que você me dizia não, isso só me fazia forçar mais.
Sentei-me ao lado dela, a cama inclinando sob o meu peso adicionado.
— Eu não quero te dizer não. Não quero afastar você das crianças. Mas
não vou entregá-los a alguém que os machucará. Não vou.
— Eu sei. É por isso que eles estão melhor com você.
Meu peito se apertou com exaltação e tristeza.
— Se você seguir as regras, poderá vê-los. Você pode vê-los mais cedo
ou mais tarde se renunciar a seus direitos. É a única maneira de saber que
você não vai revidar. E eu preciso que você deixe essa velha vida ir embora.
Porque não há como voltar atrás, apenas avançar. Você é a única que pode
fazer a escolha de deixar ir, para que todos possamos seguir em frente.
Mary suspirou.
— A babá disse uma coisa quando a vi pela última vez, algo em que não
consigo parar de pensar. Ela disse que não queria me machucar, que nenhum
de vocês queria. Mas eu queria te machucar.
Queria machucá-la e não sei dizer por quê.
— Você ainda quer?
Ela pensou sobre isso, os olhos em suas mãos entrelaçadas entre os
joelhos.
— Isso não me deixou feliz e não consegui o que eu queria. Como você
disse, não há como voltar atrás, principalmente pelo fato de estar apaixonado
por sua babá.
— Hannah. Ela não é a babá há muito tempo.
— E se eu assinar a renúncia, se eu seguir suas regras, posso ver as
crianças?
— Quando você quiser, — prometi e quis dizer isso.
Ela assentiu com a cabeça no chão e encontrou meus olhos.
— Diga-me o que eu preciso fazer, e eu farei.
Então eu disse.
24
PERTENCER

H annah
A noite estava fria com o cheiro de neve no ar, e nossa lareira
estava crepitando e quente. Todos nós sentamos na sala de estar, os
sofás, cadeiras e lugares no chão ocupados além do meio da sala onde os
mais jovens da família pulavam em círculos. Todos nós cantamos, todos nós
quinze – toda a minha família.
Era 5 de dezembro e Sinterklaas chegaria naquela noite. Nós comemos
até estarmos prontos para explodir e nos acomodamos na sala de estar com
café e biscoitos e cantando. A qualquer momento, a campainha tocaria – meu
tio já tinha saído com os presentes para deixar na varanda. E então todos nós
abriríamos nossos presentes e poemas.
Meu primo começou “The Wind Keeps Blowing” e, enquanto minha
família cantava em um coro de vozes, senti lágrimas ardendo no meu nariz e
em meus olhos, minha garganta apertando as palavras em um sussurro, a
familiaridade do momento e a saudade em meu coração uma combinação que
me levou para baixo.

A través das árvores, o vento continua soprando,


Em nossas casas, sentimos sua força.
O Santo dos Santos continuará?
Ele conseguirá passar a noite?
Ele conseguirá passar a noite?
S im, ele vence a escuridão,
Em seu cavalo, tão feroz e rápido.
Quando ele aprende, ansiamos por sua presença,
O Santo Bom chegará finalmente.
O Santo Bom chegará finalmente.

C onforme nossas vozes morreram, a campainha tocou. As crianças


correram gritando pela porta com todos nós nos calcanhares, e
quando Coen e Bas abriram a porta, eu parei tão subitamente que
Johanna esbarrou em mim, mamãe esbarrou nela e Oma esbarrou em mamãe.
Charlie estava no degrau da casa parecendo cansado, confuso e
esperançoso, examinando os rostos na soleira até encontrar o meu e segurou
meus olhos, enviando um choque de alívio através de mim em uma batida do
meu coração.
Todos nós olhamos para Charlie com a boca aberta, e ele ficou lá,
olhando para trás, todos nós atordoados em silêncio.
Até meu irmão quebrar o silêncio.
— Quem é você? — Bas perguntou, acusando.
Charlie olhou para ele.
— Me desculpe... eu... você fala inglês?
Os gêmeos se viraram para nos olhar, completamente perplexos.
Eu me encontrei e dei um passo à frente. Charlie? O que... O que você
está fazendo aqui?
Ele respirou fundo – pensei que ele pudesse ter ficado petrificado por um
momento com o choque.
— Hannah, eu... — Ele engoliu em seco.
— Vá em frente e diga, — disse Oma, impaciente.
Todos nos viramos para olhá-la, algumas risadas surpresas rolando
através de nós.
Minha mãe virou-se para ela.
— Vamos, mamãe, todo mundo. — Ela dirigiu a multidão de volta da
porta, oferecendo-me um aceno encorajador.
Saí para a varanda onde havia me despedido dele alguns dias antes, a
varanda onde ele agora estava com olhos esperançosos e preocupados.
— Charlie, o que... Como... — eu gaguejei, incapaz de formular frases ou
pensamentos coerentes.
— Há muito a dizer. Eu tinha que vir aqui e dizer isso. Tenho que dizer o
que você significa para mim sem milhares de quilômetros entre nós.
E quando olhei nos olhos dele, sabia que estava perdido.
— Quando Mary saiu, minha vida desmoronou e descobri que tudo o que
pensava saber sobre quem eu era e o que queria era mentira. Quando você
entrou nessa minha vida destruída, aprendi que a vida poderia ser muito mais
do que era. Quando eu vi você com ele, quando ele disse o que disse, fiquei
muito quebrado para ver a verdade quando mais importava. E quando você
me deixou, eu sabia que tinha que tentar recuperar você.
— Charlie, — eu respirei, — eu...
— Por favor, — ele implorou, — não diga não. Ainda não.
Eu balancei a cabeça e ele continuou.
— Não sei como lhe dizer que você me salvou. Porque quando eu te
conheci, eu era uma sombra, uma sombra do homem que eu queria ser. Mas
você me iluminou e me mostrou o que eu poderia ser, o que eu queria. Você
me deu a coragem de estender a mão e pegar o que eu queria, e traí esse
presente por não estar ao seu lado. E eu poderia te dar mil desculpas, mas
nenhuma delas me absolveria do mal que fiz.
— Eu não sei como dizer que sinto muito. Porque eu deveria ter
acreditado em cada palavra que você disse. Eu sabia no meu coração que
você nunca mentiria, e eu sabia nas profundezas da minha alma que você
nunca me machucaria. Mas eu tinha usado toda a minha confiança em alguém
que abusou, e quando você precisou de mim, eu a abandonei, assim como eu
fui abandonado. Eu te machuquei da mesma forma que eu fui machucado.
— Mas o que eu sei é que eu te amo. Amo você pelo modo como encheu
minha vida de alegria, pela bondade e graça que você respira em tudo o que
faz. Amo você por me mostrar que tipo de homem eu quero ser – um homem
que poderia merecer alguém como você. Eu te amo e sinto muito. E se você
me perdoar, passarei todos os dias e toda respiração provando isso para você.
Ele deu um passo mais perto, seus olhos cheios de amor, adoração e
esperança.
— Eu confio em você, Hannah. Eu estava magoado e com medo – com
medo de te perder, com medo de te amar. Eu estava errado, e você estava
certa sobre tudo, exceto uma coisa. Você pertence. Você pertence a mim e eu
pertenço a você. Lar não é lar, não sem você.
Ele parou e eu respirei, e nos entreolhamos em silêncio.
— Beije-a, seu tolo! — Oma disse ansiosamente, inclinando-se para fora
da janela aberta ao nosso lado.
— Mamãe! — Ouvi minha mãe xingar, agarrando-a pelos ombros para
puxá-la de volta.
Mas eu ri, com lágrimas nos olhos enquanto Charlie sorria para mim.
— Eu te amo, Hannah. Eu te amo mais do que eu sabia que podia amar.
Preciso de você mais do que acreditava ser possível.
Venha para casa. Por favor, volte para mim.
Acabei com a pequena distância entre nós, toquei seu peito, olhei nas
profundezas de seus olhos, sem saber o que dizer.
Ele tocou minha bochecha, segurou meu rosto, implorando.
— Eu só quero te fazer feliz. Eu só quero te dar tudo de mim – meu
coração, minha vida, meu amor. Você vai me deixar?
E a verdade do meu coração era tudo o que eu podia ouvir, tudo o que eu
podia falar, apenas uma palavra, uma palavra que eu já desejei de seus lábios
que ele agora desejava dos meus. E eu dei a ele.
Eu daria qualquer coisa a ele.
— Sim.
Um som aliviado escapou dele, uma risada ou um soluço que soprou
contra meus lábios pouco antes de ele os beijar, selando sua promessa,
selando meu destino, marcando seu nome no meu coração.
Eu mal ouvi os aplausos da minha família atrás de mim, muito perdida
em seus braços, boca e lábios quando nos viramos juntos, ainda nos
abraçando quando o beijo terminou.
Ele pressionou a testa na minha, os olhos fechados.
— Sinto muito, — ele murmurou. — Me perdoe.
— Eu perdoo, — eu sussurrei de volta. — Eu te amo, — eu disse, esse
simples fato nos absolvendo.
E ele me beijou novamente com a promessa de eternidade em seus lábios.

C harlie
Hannah em meus braços era tudo que eu sempre desejaria
enquanto vivesse. Eu sabia disso antes. Eu sempre soube disso.
Eu relutantemente a deixei ir, e ela se inclinou para mim quando a porta
se abriu atrás dela.
Nós nos voltamos para a família tagarela dela.
— Todo mundo, — disse Hannah, — esse é Charlie. Charlie, conheça
minha família.
Todos eles falaram ao mesmo tempo, me alcançando. Sua mãe beijou
minhas bochechas, as dela altas e rosadas. Seu pai enganchou minha mão
com um aperto forte e um sorriso caloroso, e suas irmãs se revezaram
beijando minhas bochechas também, três vezes em lados alternados. Seu
pequeno oma foi o próximo, quase empurrando uma de suas primas para me
alcançar.
— Venha aqui, — disse ela, com as mãos para cima e abertas, alcançando
meu rosto.
Eu obedeci, inclinando-me para ela me alcançar e beijar minhas
bochechas também. Mas ela me segurou lá em vez de me deixar ir.
— Eu posso ver por que ela não queria falar sobre você. Eu teria dito a
ela que ela estava sendo estúpida.
Eu ri.
— Bem, estou feliz por ter tido o seu apoio.
— Sim, bem, eu tenho idade suficiente para saber quando você tem algo a
perder e se arrepender de não ter ido atrás. Mas diga-me, Charlie – você veio
até aqui por ela, mas se você a levar embora, você a tratará com cuidado?
— Eu juro, — eu disse, minha voz baixa e séria.
Ela deu um tapinha na minha bochecha e sorriu.
— Você é um bom garoto. Você cuide dela.
— Eu vou cuidar.
— É bom mesmo.
— Vamos lá, mamãe, — disse a mãe de Hannah, balançando a cabeça se
desculpando comigo.
Eu conheci sua tia, tio, primos e seus irmãos mais novos. Todo mundo era
tão loiro e tão alto que eu me sentia quase como se tivesse uma altura normal.
A multidão entrou na sala e Hannah me conduziu para sentar em uma
poltrona. Ela sentou no braço, inclinando-se para mim, o braço em volta dos
meus ombros.
— Onde estão as crianças? — Ela me perguntou enquanto todos estavam
se acomodando.
— Minha mãe veio da Flórida depois que eu descobri o que precisava
fazer. Eu não... eu não podia deixar você ir. Me desculpe por não ouvir.
— Eu não, — ela disse suavemente e beijou minha têmpora. — Vamos
ficar um pouco. Podemos ir a algum lugar?
Meu braço deslizou em torno de sua cintura, minha mão descansando em
sua coxa. — Claro. Há tanta coisa que quero dizer, muito mais. Eu só... não
acredito que estou aqui e que você disse sim.
Ela escovou meu cabelo da minha testa.
— Tudo o que eu sempre quis dizer foi sim, Charlie.
Hannah me beijou gentilmente, castamente, e tudo que eu queria fazer era
a puxar para o meu colo e segurá-la, beijá-la e amá-la.
O tio dela se afastou com uma piscadela e todos começaram a cantar uma
música alegre em holandês, a maioria deles. Alguns deles se harmonizaram, o
som era tão adorável que me senti nostálgico sem entender o que eles diziam.
A campainha tocou um momento depois e, desta vez, quando as crianças
a abriram, foi para um saco de presentes. Os gêmeos arrastaram a bolsa de
veludo pela corda como se estivessem carregando uma bola de vinte pontos e,
quando a abriram, revezaram-se distribuindo o conteúdo. Havia um presente
para todos – todos, menos eu, é claro, mas eu já tinha meu presente. Não
havia literalmente mais nada que eu pudesse ter pedido.
Eles abriram seus presentes um de cada vez. Todos os presentes tinham
um poema ou carta em anexo e os liam em voz alta – Hannah traduziu para
mim. A maioria deles era brincadeira ou provocava o destinatário, e todos
pareciam ter significado, nada extravagante, todos pensativos.
E assim, eu tive uma ideia.
Mas não por hoje à noite. Hoje à noite, tudo que eu queria era Hannah.
Comemos doces, tomamos café, conversamos e respondemos milhares de
perguntas até Hannah desaparecer para fazer as malas, dando-me tempo de
sobra para puxar Oma e pedir sua ajuda, acabando alistando as irmãs e a mãe
também, porque, aparentemente, não havia segredos naquela casa. E assim
que finalizamos nosso plano, Hannah voltou com uma pequena sacola para
pegar minha mão novamente. E nos despedimos da família dela com
promessas de nos vermos no dia seguinte.
No segundo em que a porta se fechou, eu a puxei para mim e a beijei. Eu
a beijei quando a neve começou a cair, o calor dela uma parte de mim, nossa
respiração se misturando. Eu a beijei e disse a ela o quanto a amava, e
esperava que ela entendesse.
— Eu não posso acreditar que você está aqui, — disse ela quando se
afastou.
— Era a única coisa que restava a fazer, a única maneira que eu sabia
para provar que eu quis dizer isso quando falei que queria você de volta. —
Eu a beijei novamente, apenas uma vez, e peguei sua bolsa. — Além disso,
eu tinha Lysanne nas minhas costas com uma forquilha.
Ela riu aos seus pés enquanto nós andávamos.
— Sim, ela faria isso.
— Ajudou que ela estava certa. Eu devo muito a você, mais do que posso
lhe pagar, mais do que posso dar. Mais do que eu mereço.
Ela me puxou para uma parada na calçada.
— Por que você não sente que me merece?
Eu assisti o rosto dela ao luar, a neve sussurrando ao nosso redor.
— Porque você é toda correta, tudo de bom. Porque tudo o que você toca
é melhorado. Mas tudo o que toco estraga. Você é jovem, bonita e livre. E eu
gostaria de poder sempre pertencer a você e somente a você.
— Você é meu agora?
Eu me aproximei.
— Hannah, sou seu por tanto tempo quanto você me quiser. Eu sou seu,
mesmo que você não me queira. Meu coração estava em suas mãos no
primeiro momento em que vi seu rosto.
— Então não é sobre o que achamos que merecemos. Trata-se de honrar o
que nos foi dado. Prometo honrar seu amor se você honrar o meu.
— Eu vou, — eu respirei, andando em sua direção. — Eu vou.
E fechei o voto com um beijo na neve que caía.
Nós corremos para o hotel a alguns quarteirões de distância e subimos as
escadas para o meu quarto. O prédio era antigo, mas o interior havia sido
reformado, embora eles tivessem deixado a lareira original – quando ela
entrou no banheiro, eu acendi a lareira. E então apaguei as luzes, arrancando
meus sapatos e pendurando meu casaco, subindo na cama para esperar por
ela.
Quando ela abriu a porta, ela saiu e caminhou pela sala silenciosa.
Hannah era um anjo de branco, com pele de alabastro e cabelos da cor do
trigo, seus olhos como vidro do mar, claros e azuis, profundos e fixos em
mim. O fogo moldou o tecido transparente em um brilho laranja, seu corpo
uma silhueta, mas eu podia ver todas as curvas, ver as sombras de seus seios
e mamilos pontudos, o vale de sua cintura e o inchaço de seus quadris.
E quando ela estava ao meu lado, quando ela estava em meus braços,
quando a respiração dela era minha, eu não me senti mais livre.
Eu não queria ser livre. Eu só queria ser dela.
Minhas mãos seguravam seu rosto à luz do fogo, seguravam seu corpo
contra o meu, deitavam-na, seus cabelos em torno dela como ouro. Corpo
abaixo, eu me movi, suas pernas se separando e coxas se movendo contra
minhas coxas, depois minha cintura, minhas mãos querendo tocá-la. Elas
deslizaram pelas pernas dela, levantando sua camisola até ela ficar presa na
cintura, mas meus olhos estavam para baixo, no centro dela, que era onde eu
mais queria tocar.
Eu me acomodei entre suas coxas, abrindo-as, minha respiração irregular
quando meus dedos a abriram, e eu abaixei meus lábios, fechando minha
boca sobre seu sexo.
Um suspiro escorregou dela com o contato, suas mãos girando nos meus
cabelos quando eu varri minha língua, coxas tremendo quando deslizei meu
dedo em seu calor, e tomei meu tempo, esperando até que seus quadris
rolassem e a respiração aumentasse. E então eu a soltei, recuei na cama,
cheguei com o fogo nas minhas costas e estendi a mão entre as omoplatas
para pegar minha camisa e puxá-la sobre minha cabeça.
Segurei meu cinto enquanto ela me observava com pálpebras pesadas e
lábios inchados, as pernas ainda abertas e os quadris mexendo suavemente.
Eu desabotoei minhas calças e saí delas, subi em seu corpo, empurrando sua
camisola pelas costelas, sobre os seios. Ela se moveu para puxá-la sobre a
cabeça e, antes mesmo de desaparecer, meus dedos estavam roçando seu
pescoço longo, sua clavícula. O peso de seu peito repousou na minha palma,
seu mamilo apertado sob o meu polegar, seus lábios se separaram, seus olhos
nos meus. E eu abaixei minha boca na dela quando seus dedos se fecharam ao
redor do meu membro, seus quadris dobrando até meu sexo descansar contra
o seu.
Eu flexionei meus quadris, deslizando nela gentilmente enquanto minha
língua procurava sua boca com um objetivo lento. E quando eu a preenchi,
quando não havia espaço entre nós, pele com pele, coração com coração, eu
estava inteiro. Eu estava em casa.
Nós nos movemos juntos, os braços dela em volta do meu pescoço, minha
mão segurando sua coxa, nossos corpos uma onda e os lábios nunca se
separando, até que ela virou a cabeça, os olhos fechados, sussurrando meu
nome enquanto eu estocava mais rápido, mais forte. Seu pescoço arqueou, o
queixo apontado para o teto, um suspiro de prazer que marcou uma pulsação
trêmula através dela quando ela veio, e eu estava bem atrás dela, deixando
meu passado ir com o futuro em meus braços.
25
SONHADORES

H annah
Acordei na manhã seguinte emaranhada em Charlie, dolorida e
sensível da melhor maneira possível.
Por um longo tempo, fiquei deitada acordada em seus braços, ouvindo seu
coração bater e sua respiração lenta, pensando no meu futuro, nem um pouco
com medo.
Ele me mostrou a renúncia, me disse que Mary havia deixado ele e as
crianças irem. Ele me disse novamente o que eu sempre soube – que ele
confiava em mim, que ele me amava – e eu sabia que ele nunca iria duvidar
de mim novamente. Conversamos sobre Quinton através das minhas
lágrimas, e eu não duvidei que Charlie nunca se perdoaria por não acreditar
em mim.
Mas não tínhamos falado sobre o que viria, embora eu soubesse que ele
gostaria que eu voltasse com ele, e sabia que iria.
Não havia mais perguntas. Tudo foi reduzido à sua forma mais simples –
eu o queria e ele me queria.
Depois de um tempo, ele acordou, suas mãos encontrando meu cabelo e
seus lábios encontrando os meus, quase como se precisassem ter certeza de
que eu era real. E o beijo se aprofundou com a respiração, nossos corpos
encontrando o caminho juntos novamente.
Passamos a manhã na cama, apenas decidindo sair quando estávamos
com muita fome para ficar onde estávamos. Por isso, tomamos banho e nos
vestimos, caminhamos ao longo do canal até encontrarmos um café para
brunch e comemos pão, geléia e queijo até ficarmos satisfeitos.
E então voltamos para a casa dos meus pais. Coloquei minha cabeça
apenas para pedir emprestadas suas bicicletas, um cobertor e uma cesta, o que
levou todos a falar conosco. Mas uma hora depois, depois de parar no
mercado, estávamos sentados em um cobertor xadrez, bebendo vinho e
comendo mais pão e mais queijo.
Charlie deu uma mordida no queijo, esticado no cobertor ao meu lado, o
vento agitando seus cabelos enquanto ele olhava através do campo e em
direção aos pastos verdejantes. A neve não tinha parado e o dia estava claro,
ensolarado, fresco e perfeito. Eu olhei na mesma direção com um suspiro.
— Tão bonito, — disse ele.
— É mesmo, não é?
— O campo também é agradável.
Eu sorri para ele, tocando seu rosto enquanto o beijava, passando o
polegar sobre o lábio inferior quando me afastei.
— Eu tenho algo para você. — Ele foi buscar sua bolsa enquanto eu
observava, curioso.
E quando vi o que estava em suas mãos, fiquei chocada demais para falar.
Ele me entregou o sapato de madeira, recheado até a borda, pintado com a
cena de uma padaria com um toldo listrado rosa e uma placa que dizia
Lekker, e ao longo da borda estavam as palavras: Lar é onde está o coração,
em holandês. Toquei as palavras e encontrei seus olhos brilhantes.
— Charlie...
— Olhe dentro.
Então eu fiz. No interior, havia desenhos enrolados de Sammy e Maven e
um floco de neve que eles fizeram para mim com palitos de picolé. Minha
curiosidade aumentou quando encontrei o conjunto de colheres medidoras de
prata de Oma aninhadas na cama de feno, chegando a um rolo de papel por
último, amarrado com uma larga fita vermelha.
Coloquei o sapato no chão e desamarrei a fita, o papel desenrolando para
revelar uma listagem de imóvel.
Minhas mãos ficaram dormentes. Era a lanchonete perto da casa de
Charlie, e atrás dela havia um contrato de arrendamento não assinado.
Meus olhos se voltaram para os dele e ele se sentou.
— Estou pensando no que quero fazer da minha vida desde que você me
deixou, e sabia sem dúvida que queria estar com você e que não queria voltar
para o direito. E quando pensei em estar com você, isso me fez querer minha
família, querer aquele futuro com o qual sonhei. Isso me fez pensar por que
eu tinha que encontrar outro emprego. Isso me fez pensar se eu poderia
ajudá-la a ter seu sonho para que eu pudesse ter o meu.
Ele olhou para os papéis em minhas mãos, mas meu olhar permaneceu em
seu rosto comprido, em seu nariz elegante e nas curvas de seus lábios.
— Você tem a capacidade e a habilidade de administrar uma padaria, e eu
tenho o dinheiro para investir e a perspicácia nos negócios para ajudá-la a
administrar. O apartamento acima da loja também era para locação, e eu
tenho tudo pronto para listar minha casa e fazer essa locação. Eu posso ficar
em casa com as crianças e você pode ter sua padaria. E seria seu. Os papéis já
foram elaborados e tudo está em seu nome. Se algo acontecer, se eu te perder
de novo, se eu te perder de vez, a loja é sua.
Engoli as lágrimas e ele pegou minha mão.
— Hannah, apenas diga a palavra. Diga a palavra, e é sua. Se você
precisar de tempo para pensar...
— Sim, — eu soltei, a palavra apertada com emoção e minhas bochechas
quentes.
Ele procurou meu rosto, sua voz baixa.
— Você tem certeza? Não... eu sei que te coloquei em foco com tudo
isso, e eu...
Eu o calei com um beijo, subindo de joelhos quando seus braços
envolveram minha cintura.
Quando me afastei, ele olhou para mim com um sorriso preguiçoso e
nebuloso.
— Você me comprou uma padaria, — eu disse com admiração.
Ele encolheu os ombros.
— Eu só estou nisso pelo kwarktaart.
E eu ri contra seus lábios e o beijei novamente, sabendo que os sonhos
eram livres e me sentindo a mulher mais sortuda do mundo, porque cada um
dos meus se tornaram realidade.
EPÍLOGO

C harlie - Dois Anos Depois


Tudo cheirava a maçãs.
O cheiro pairava no ar do apartamento, tanto quanto o sofá, a
mesa ou a cadeira de balanço onde eu estava sentado, balançando Ava, sua
bunda tão pequena que cabia na palma da minha mão. Ela tinha apenas um
mês de idade, e ela cheirava a maçãs também, maçãs e leite e bebê – aquela
inebriante mistura que fez você sentir a sua mortalidade, tão certo como ele
fez você se sentir infinita.
Era cedo – o sol havia começado a clarear o céu e os pássaros ainda não
acordaram e começaram a cantar. Maven e Sammy ainda estavam dormindo
por mais uma hora pelo menos, e Hannah já estava lá embaixo na padaria
com Fein – sua prima que havia se mudado recentemente da Holanda – se
preparando para o dia. Com appelflappen, se eu tivesse que adivinhar.
Tornara-se o best-seller da loja nos últimos meses, segundo meus números,
talvez por causa da entrada do outono ou das próximas férias. Ou talvez
porque a comida de Hannah fosse mágica, e as pessoas simplesmente não
conseguiam enjoar.
Eu apostaria que a segunda era verdade, e eu poderia atestar o fato de que
Hannah era de fato mágica.
Passamos os últimos dois anos construindo a loja e construindo nossas
vidas juntos, nós dois encontrando fácil simetria e harmonia.
No fim de semana após o final do meu divórcio, Hannah e eu voamos
com os filhos para a Holanda e nos casamos. E ninguém nos disse que
estávamos nos apressando, e ninguém nos acusou de sermos loucos.
Parecia que todos que realmente se importavam conosco sabiam tão bem
quanto nós que fomos feitos um para o outro.
Mary fez o que eu pedi e, a princípio, ela tentou.
Ocasionalmente ligava e pedia para ver as crianças, mas essas ligações
haviam se tornado poucas e distantes até que parassem completamente. E
Quinton foi acusado e acabou em liberdade condicional, com um divórcio e
uma ordem de restrição. Nós não o vimos novamente.
A construção da padaria tinha sido estressante e longa, mas quando
abrimos, os negócios decolaram. A lanchonete sempre funcionava bem, mas
Lekker era uma adição tão bem-vinda ao bairro que se tornara um item
básico, o lugar para onde todos iam tomar café e comer doces pela manhã,
onde trabalhavam na grande mesa de frente para a janela, exatamente como
Hannah havia imaginado.
Dentro de seis meses, estávamos no preto.
E eu posso estar no céu.
Não me interpretem mal; ser um pai que fica em casa era estranho e
desorientador e me fez sentir como se tivesse perdido uma parte de mim
mesmo, perdido minha identidade. Mas também era tudo o que eu queria. Eu
pude treinar o time da pequena liga de Sammy e assistir ao recital de balé de
Maven, que era realmente apenas um adorável rebanho de gatos de uma dúzia
de crianças de cinco anos de idade em tutus. A monotonia do dia-a-dia de
criar filhos pequenos era equilibrada pelo sentimento de retidão, pelo
entendimento de que eu estava onde precisava estar, onde queria estar. E eu
tinha sido capaz de ajudar Hannah a construir algo de que ambos estávamos
orgulhosos, dar a ela o sonho dela como eu queria.
Ela já havia realizado todos os meus.
Eu cantarolei “Hey Jude” esfregando as costas de Ava enquanto eu a
embalava. Era a minha hora favorita do dia – quando o mundo estava
dormindo, meu bebê estava nos meus braços, minha esposa estava lá embaixo
fazendo o que amava, e o dia estava cheio de possibilidades e promessas. Era
a primeira coisa que fazia todos os dias, antes do café, antes de qualquer
coisa. Eu me sentava nesta cadeira e segurava minha filha enquanto
considerava o quão feliz eu era.
Ava se contorceu, esticando os braços sobre a cabeça e punhos cerrados,
aconchegando o rosto no meu ombro, torcendo por algo que ela
provavelmente não conseguiria de mim.
— Vamos. Você quer mamãe?
Ela chorou um pouco, e eu sorri enquanto me levantava e descia as
escadas do prédio com meus chinelos, calças de dormir e um capuz – meu
uniforme.
Hannah estava atrás dos estojos, carregando-os com bandejas de doces
com pequenas placas de giz, parecendo tão alegremente feliz quanto eu, se
não um pouco cansada. Ela acenou, e Fein correu para abrir a porta da frente
para mim.
Entrei na loja quente quando Hannah deu a volta no balcão, desatando o
avental e nos alcançando – eu primeiro, seus cabelos nas bochechas e
baunilha nos lábios enquanto ela me beijava docemente, e depois Ava, cujas
costas ela deu um tapinha.
— Bom dia, meus amores, — disse ela com aquele sorriso.
Eu me mexi para que Hannah pudesse ver seu rosto.
— A bebê está com fome.
— Ah, venha aqui, leifje, — Hannah saiu quando pegou o bebê e a
embalou.
Ava virou o rosto no segundo em que percebeu onde estava, boca aberta e
frenética. Ela deu um grito frustrado.
Hannah sorriu e a balançou, calando-a enquanto se sentava em uma das
poltronas nos fundos e situava Ava, que chiou e se contorceu até que ela
estava chupando alegremente com o dedo de Hannah apertado em seu punho.
Sentei-me no braço da cadeira e Hannah se inclinou para mim.
— Cansada? — Perguntei.
— Mmm, — ela cantarolou sem compromisso e suspirou sonhadora. —
Algumas vezes tudo parece um sonho.
— Ela começará a dormir melhor à noite e as coisas ficarão mais fáceis.
Hannah olhou para mim e sorriu.
— Não, eu quero dizer você. Isso.
Eu segurei sua bochecha, polegar seu lábio.
— Eu prometi a você que faria o que pudesse para deixá-la feliz.
— E você me disse que eu pertencia a você.
— Então o que você está dizendo é que estou certo? Porque eu amo estar
certo.
Ela riu.
— Sim, você estava certo. E eu te amo.
E quando olhei para ela, não pude dizer as palavras de volta. Eu não
conseguia falar nada. Então, eu a beijei em vez disso, assim como eu a
beijava centenas de milhares de vezes, e toda vez, ela sabia o quanto eu a
amava.
SOBRE A AUTORA

Staci fez muitas coisas até agora em sua vida: designer gráfica, empresária, costureira,
designer de roupas e bolsas, garçonete. Não pode esquecer isso. Ela também é mãe de três
meninas que certamente crescerão para partir um número de corações. Ela já foi esposa,
embora certamente não seja a mais limpa ou a melhor cozinheira. Ela também é super
divertida em uma festa, especialmente se ela bebe uísque, e sua palavra favorita começa
com f, termina com k.
Desde as raízes em Houston até uma temporada de sete anos no sul da Califórnia, Staci
e sua família acabaram se estabelecendo em algum lugar no meio e igualmente ao norte,
em Denver. Eles são novos o suficiente para que a neve ainda seja mágica. Quando ela não
está escrevendo, está jogando, limpando ou criando gráficos.

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staci@stacihartnovels.com

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