Você está na página 1de 3

Limiar

Algo... envolve este mundo.


Abraça-o ou encarcera.
Amante ou algoz cósmico,
há quem diga que o devora.
Lentamente...

* * *

Venho aos limites deste lugar titânico, ao mesmo tempo majestoso e assombroso como
uma cordilheira, com certa regularidade, como quem vem refletir à orla de um lago.
Sobre o que penso? Sobre o Sacrifício, é claro, e sobre meu propósito, que assume
forma cada vez mais nítida e terrível. E se, como água espelhada, a escuridão abissal
entre os portões destas muralhas imensas – portões que só podem ter sido escancarados
por um antigo colosso anterior à criação da própria Ynis Mon – não refletir minha face?
Não me aterroriza mais pensar o contrário: que, sim, talvez a reflita fielmente?
Apesar da gravidade desses pensamentos, brinco de arremessar pedrinhas, senão
rentes à água, direto ao centro da escuridão da passagem, onde não repicam,
simplesmente desaparecem como que engolidas por uma boca voraz e antiga.
Antes, como sempre, arranco um longuíssimo fio da minha comprida cabeleira
negra e o enrolo cerimonialmente no cascalho, como se este fosse um carretel. Arremato
o gesto com um nó sagrado, cujas voltas e reviravoltas apenas mentes lunares,
femininas, são capazes de entender.
Não posso adentrar o Labirinto. Nenhuma majéstia pode. Mas a outros isso é
permitido, o que fazem aos montes, em sua maioria contra a vontade, embora raramente
empreguem a passagem remota e esquecida à minha frente. A essência do Labirinto é a
perdição; assim, um navio em alto-mar que se vê perdido entre ilhas adentrou, sem nem
sequer notar, o Labirinto; a fênix que voou muito alto em meio a nuvens e não sabe
mais distinguir onde é embaixo ou encima adentrou o Labirinto... qualquer porta ou
passagem pode dar no Labirinto.
Não é propriamente raro que coisas também saiam desse cárcere sem grades, apenas
mais raro do que o caminho oposto, porque mais árduo. Afinal, não contemplo uma
visão terrível? Ao longe, centenas, talvez milhares de pontos escuros se penduram nas
muralhas, oscilam ao vento. Não preciso me aproximar para vê-los, até mesmo suas
faces, a esta altura descarnadas pelas incontáveis aves rapaces que chegam a escurecer
os próprios zênites (há mais de um sol neste mundo de claridade, mas também de
escuridão, sem limites): falsas ou pretensas Ariadnes, enforcadas em seus próprios fios
pelo crime de tentar resgatar Teseus fracassados.
Mas estes são nomes e mitos de outro mundo, do lado de lá do Labirinto. Eu falava
de quão raro é escapar desta casa sem janelas. Para além de carcereiros, algozes,
enforcamentos e inanição – destinos concretos, comuns e, ousarei dizer... merecidos,
por quem busca o descaminho –, penso agora numa razão mais abstrata: não se escapa
do Labirinto simplesmente porque é da natureza desses... lugares... dar as boas-vindas,
mas se recusarem a dar adeuses. Talvez não só da natureza dessas construções: porque
despedidas doem. Doem demais...
O que digo? Comparo essa monstruosidade deífica a uma criatura viva, insinuo que
tenha algum tipo de propósito ou emoção? Disse “deífica”, quando mesmo os deuses a
denominam Inescrutável e a deixam estar? Para os infernos com essa... coisa...
Mencionei as falsas Ariadnes salvadoras. Embora eu não seja nem Ariadne,
tampouco salvadora, meu fio é verdadeiro, por isso eficaz. De dentro das sombras
maciças do portão, traz para mim uma figura vacilante. Teseu. Um Teseu, ao menos.
Cambaleia... as aves carniceiras, refesteladas nos labirintos imundos dos intestinos de
mil e uma Ariadnes, anseiam em círculos concêntricos pela iguaria rara.
Atravesso a terra devastada ao sopé das cordilheiras-muralhas na direção da ruína
humanoide. Os sóis quase poentes projetam a sombra (as sombras) das muralhas sobre
os muitos quilômetros de campos de batalha (antigas guerras para proteger – ou
derrubar – os ciclópicos portões). Encontro-o no limiar, fundamentalmente impreciso,
entre luz e sombra. Ali ele cai, como se seu gesto derradeiro houvesse sido o passo que
o colocou pela última vez sob a luz solar: mais um herói vencido não por um monstro
ou vilão, tão somente pelo espaço excessivamente dobrado sobre si dos túneis, salões e
galerias sem fim...
Armado de espada e escudo, protegido por uma cota de malha enferrujada e folgada
em seu corpo magérrimo, o... ser-de-barro – um cavaleiro humano – balbucia um nome
feminino. Diz Dria’ane, mas essa não sou eu. Apesar disso, acolho-o em meus braços, e,
com um beijo na testa, ao mesmo tempo em que encerro seu sofrimento, reanimo meus
poderes com este presente do Labirinto.
Mesmo em meio aos estertores finais, penso, um herói verdadeiro não teria
confundido sua Ariadne com uma ave rapace.

Você também pode gostar