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FILOSOFIA E AFRICANIDADE

Uma das questões mais controversas sobre o estudo das filosofias africanas consiste
exatamente na possibilidade de existir uma “Filosofia africana”. Muitos autores partem
de uma definição relativamente simples: a Filosofia africana é a produzida por filósofos
africanos ou a que trata de temas relativos à África. Essa compreensão, porém, é
insuficiente diante da complexidade do que é “ser africano”.
Em primeiro lugar, devemos reconhecer uma distinção evidente entre o norte da
África e o território ao sul do deserto do Saara, também conhecido como África
Subsaariana.

Fontes de pesquisa: Atlas geográfico escolar. 6. ed. Rio de Janeiro: IBGE, 2012. p. 45; Veja mapa com a
região da África subsaariana. Folha de S.Paulo.

O norte da África recebeu desde cedo influência da Filosofia grega, devido, entre
outros fatores, à fundação da cidade grega de Cirene, na região onde hoje é a Líbia. O
pensamento da Grécia Antiga, por sua vez, foi influenciado em muitos aspectos pela
cultura do Egito Antigo, também no norte da África.
No passado, Platão recorreu a um mito egípcio para justificar a primazia da fala
sobre a escrita. Foi também no Egito que nasceu Plotino (c. 204-c. 270), um dos
fundadores do neoplatonismo. Muitos padres da Igreja católica eram do norte da África,
como Agostinho de Hipona, nascido em Tagaste, onde hoje é a província de Souk Ahras,
na Argélia. Além deles, alguns importantes filósofos contemporâneos, como Albert
Camus e Jacques Derrida, nasceram na Argélia. E alguns dos mais importantes filósofos
islâmicos eram mouros, povo originário do norte da África que ocupou parte da península
Ibérica durante a Idade Média.
Portanto, podemos dizer que a maior parte dos filósofos do norte da África se
identifica mais com a Filosofia ocidental ou com a Filosofia oriental islâmica do que com
uma Filosofia africana propriamente dita.
A África Subsaariana, ao contrário, desenvolveu um intercâmbio filosófico menor
com os pensadores europeus. Isso se deve, por um lado, ao contato relativamente tardio
com a Europa – somente a partir do século XVI, com a expansão marítima – e, por outro,
ao caráter do empreendimento colonial de algumas nações europeias, que, colocando os
povos africanos em condição subalterna, os considerava “inferiores” e “atrasados”.
Uma exceção foi o filósofo Anton Wilhelm Amo (c. 1703-c. 1759), nascido na
região hoje ocupada por Gana e levado à Europa como escravo. Fez seus estudos na
Alemanha e foi professor nas universidades de Halle e de Jena. Mas, mesmo nesse caso,
o pensamento filosófico de Amo só foi aceito – e ainda assim sob forte preconceito –
porque ele dialogava diretamente com autores europeus, não incorporando o legado
cultural africano a seu pensamento.
Os debates sobre a existência e o caráter de uma Filosofia especificamente africana
começam a surgir nos países da África Subsaariana somente a partir do século XX, com
o processo da descolonização africana. Como esses países são de
população predominantemente negra, o campo de estudos da Filosofia africana se
desenvolveu relacionado a movimentos como a Diáspora Negra, a Negritude e o Pan-
Africanismo, que dizem respeito a realizações culturais de afrodescendentes tanto dentro
quanto fora do continente africano.
A Diáspora Negra trata do reconhecimento de uma identidade social comum a
descendentes de africanos que, em sua maioria, teriam sido levados à força para o
continente americano ou para o Oriente Médio como escravos. Negritude é um
movimento literário de valorização da cultura negra em países africanos e em países com
passado de opressão colonialista que abrigam afrodescendentes. O Pan-Africanismo é um
movimento político, filosófico e social de união dos povos africanos e de
afrodescendentes que vivem fora da África, em prol de ações afirmativas e que exerceu
forte influência no processo de descolonização da África.
REFLETINDO
Quais são as diferenças entre o norte da África e a África Subsaariana? Quais são as consequências dessas
diferenças para o desenvolvimento do pensamento filosófico no continente africano?

Há uma Filosofia africana?


Uma vez definido o sujeito de africanidade como negro, africano ou
afrodescendente e herdeiro de um legado de diferentes formas de resistência à dominação
colonialista, ainda é preciso definir se é possível dizer que o saber produzido por esse
sujeito pode ser considerado Filosofia. O debate sobre a possibilidade de uma Filosofia
genuinamente africana se desenvolveu paralelamente aos movimentos de independência
das várias nações africanas. Durante a colonização, as potências europeias impunham
uma ideologia de pertencimento à Metrópole. No entanto, embora fossem membros de
um império colonial, os colonizados eram tratados como cidadãos de “segunda classe”.
A colonização alterou dramaticamente o modo de vida das populações da África
Subsaariana. Em primeiro lugar, foi o colonizador que trouxe o conceito de africano, que
não existia até então: antes da colonização, os diferentes povos da África se identificavam
como pertencentes a diferentes sociedades, reinos ou grupos tribais, e não em relação ao
continente. Em segundo lugar, promoveu o despovoamento da África, com o envio de
grandes contingentes populacionais para além-mar, principalmente para o trabalho
escravo nas colônias europeias na América. Em terceiro lugar, o colonizador impôs uma
identidade artificial, vinda “de fora”, mas não soube reconhecê-la após a independência
das ex-colônias; pelo contrário, ao africano foi associado o estereótipo do primitivismo,
como era impropriamente representada a África Subsaariana antes da chegada dos
primeiros exploradores portugueses. Nesse sentido, o
filósofo estadunidense Lewis R. Gordon comenta:
PERFIL
A escala das rotas de comércio na África Antiga até
a Era das explorações, as grandes bibliotecas localizadas
em lugares como Tombuctu ou o antigo Império Songhai, e
as cidades que receberam os soldados e mercadores
portugueses nas costas da África sugerem uma África
muito diferente daquela predominante depois de trezentos
anos confiscando seu mais precioso recurso: sua
população.
Gordon, Lewis R. An introduction to African Philosophy.
Cambridge: Cambridge University Press, 2008. p. 24-25. (Tradução do
Lewis R. Gordon em foto de 2015. autor.)

Lewis Ricardo Gordon (1962-) Um dos grandes problemas filosóficos após a


nasceu nos Estados Unidos.
Graduou-se em 1984 pelo independência dos países africanos, portanto, era
Lehman College na Universidade definir o que conta e o que não conta como Filosofia
de Nova York. Lecionou em africana. A etnofilosofia foi uma das primeiras e
importantes instituições, como as
Universidades de Brown, Purdue principais correntes da Filosofia africana no século
e Temple. Atualmente, é XX. Para os etnofilósofos, o pensamento africano
professor de Filosofia com foco marca sua especificidade em relação ao europeu
nos estudos africanos, judaicos,
caribenhos e latino-americanos na buscando dialogar com a sabedoria popular –
Universidade de Connecticut. provérbios, máximas, contos, lições de sabedoria, etc.
Fundou, ainda, o Centro para –, principalmente a sabedoria das sociedades tribais.
Estudos Afrojudaicos.
Seu trabalho filosófico enfoca a As críticas à etnofilosofia não foram poucas. O
Filosofia africana e, empreendimento etnofilosófico esbarrava no fato de
particularmente, as questões que as sociedades tribais das quais emanaria uma
relacionadas ao problema da raça
e do racismo, fenomenologia pós- suposta sabedoria popular eram sociedades ágrafas,
colonial e existencialismo negro e isto é, não possuíam escrita. Nesse sentido, não havia
africano. Para esse filósofo, o como alcançar uma interpretação africana em “estado
racismo é uma condição derivada
de uma situação de hiper- puro”, anterior às influências exercidas pelos
racionalidade nascida da colonizadores europeus. Além disso, a etnofilosofia
racionalidade racista. Nesta, a era criticada por tomar como Filosofia um saber tão
inferioridade racial é vista como
um valor intrínseco que emana da diferente do que tradicionalmente conhecemos como
própria “carne” do indivíduo, no Filosofia, que de modo algum poderia ser considerado
caso, do negro. filosófico.
Dedica-se ainda a estudos acerca
do pensamento de W. E. B. Du Uma versão um pouco diferente da etnofilosofia
Bois (1868-1963), sociólogo e é expressa pela escola da sagacidade
historiador estadunidense filosófica ou sabedoria filosófica. Enquanto a
afrodescendente, o primeiro a
conquistar um doutorado pela etnofilosofia se debruça sobre a linguagem em busca
Universidade de Harvard. Além de uma visão de mundo subjacente a discursos não
de Du Bois, Gordon tem se propriamente filosóficos, a escola da sagacidade
dedicado a estudar o pensamento
do psiquiatra e filósofo Frantz filosófica busca identificar alguns indivíduos como
Omar Fanon (1925-1961), representativos de sua cultura e dessa visão de mundo
importante pensador africana. É o que comenta o filósofo queniano Henry
afrocaribenho cujos trabalhos
exerceram forte influência nos Odera Oruka (1944-1995):
estudos pós-coloniais, na teoria
crítica e no marxismo. Em qualquer cultura, as celebradas realizações do
pensamento consistem nas ideias de seus sábios, cientistas,
poetas, profetas, filósofos, estadistas, moralistas etc.
[...]
Podemos pensar na glória da cultura grega, por exemplo, sem pensar em figuras
como Platão, Aristóteles e Demócrito? Quem teria alguma coisa significativa a dizer sobre
a civilização e a cultura britânicas sem ter em mente figuras como William
Shakespeare, Francis Bacon, John Locke e Winston Churchill? Sem as ideias dessas
pessoas a cultura britânica seria uma cultura de suínos e não de mentes.
Em nosso próprio continente, África, certas mentes recentemente apareceram e
parecem permanecer símbolos de luzes intelectuais da cultura africana moderna. Figuras
como Nkrumah, Nyerere e Senghor deram formas e expressões especiais à cultura africana
moderna, ainda que uma cultura política. No campo da literatura e da erudição em geral
temos Chinua Achebe, Wole Soyinka e Willy Abraham no oeste, e Okot p’Bitek, Ngugi wa
Thiong’o e Ali Mazrui no leste. Essas figuras são símbolos das luzes intelectuais das
culturas africanas modernas. Naturalmente haverá muitas outras.
Oruka, Henry O. Ideology and culture: the African experience. In: Coetzee, P. H.; Roux, A. P. J. The
African Philosophy reader. London: Routledge, 2005. p. 70. (Tradução do autor.)

Outra vertente da Filosofia africana é conhecida como Filosofia profissional e se


define como Filosofia com base no modelo europeu. Isso não significa que os pensadores
ligados a essa corrente sejam apenas comentaristas de autores europeus, mas sim que
usam os conceitos e as formas de análise da Filosofia europeia para refletir sobre diversos
aspectos da realidade.
Um exemplo disso é o trabalho do filósofo Kwasi Wiredu (1931-), nascido em Gana
e professor na Universidade de Ibadan, na Nigéria. Wiredu desenvolve um estudo sobre
o conceito de verdade na língua akan, de um povo nativo de Gana.

Fachada da Universidade de Ibadan, na Nigéria. Fundada em 1948, é a universidade mais antiga do país.
Foto de 2016.
Para os Akan, “verdade” se diz nokware, e o antônimo de verdade não é “falsidade”,
mas nkontompo, que significa “mentira”. Com base nessa constatação, ele argumenta que
a noção de verdade desse povo tem uma conotação mais moral que cognitiva e recorre à
Filosofia analítica, em especial a Bertrand Russell, para explicar esse fenômeno. Ou seja,
em vez de explorar mitos e crenças ou mesmo discursos de africanos notáveis, a Filosofia
profissional desenvolve um modelo ocidental tradicional de reflexão filosófica sobre
temas africanos.
Uma quarta escola de Filosofia africana é conhecida como Filosofia ideológica
nacionalista e é representada por pensadores que buscam construir uma ideologia de
emancipação política africana. É o caso do guineense Amílcar Cabral, que pensa sobre a
realidade social e política dos países africanos sob uma perspectiva marxista. Em um de
seus escritos, ele afirma:
[…] podemos lutar em todas as colónias portuguesas e
PERFIL até ganhar a nossa independência, mas se a África continuar
com o racismo na África do Sul, com os colonialistas a
mandar ainda, directa ou indirectamente, em muitas terras de
África, não podemos acreditar numa independência a sério
em África. Mais dia menos dia a desgraça virá de novo.
Portanto, nós fazemos parte de uma realidade concreta que é
a África, lutando contra o imperialismo, contra o racismo,
contra o colonialismo. Se não temos consciência disso,
podemos cometer muitos erros. […]
Amílcar Cabral em foto de 1972. Cabral, Amílcar. Alguns princípios do partido. p. 17. (Mantida a
grafia original.)
O agrônomo, teórico e político
marxista Amílcar Lopes
Cabral (1924-1973) nasceu em Devemos admitir que muitos dos representantes da
Guiné Bissau em 1924, mas
mudou-se para Cabo Verde aos
Filosofia ideológica nacionalista não são propriamente
8 anos. Após ter trabalhado na filósofos, mas ideólogos ou ativistas políticos. Por causa
Imprensa Nacional, em 1945, disso, são muitas vezes considerados intelectuais
graças a uma bolsa de estudos
iniciou seus estudos
notáveis – e, portanto, “sábios”. Sendo assim, pode-se
universitários no Instituto dizer que a Filosofia ideológica nacionalista é um tipo
Superior de Agronomia em particular de sagacidade filosófica.
Lisboa. Ao se graduar, em 1945,
passou a trabalhar na Estação
Agronômica de Santarém. REFLETINDO
Retornou para Guiné Bissau Quais são as principais correntes da Filosofia africana? Quais são as
em 1952 a serviço do Ministério dificuldades em considerar a etno-filosofia como Filosofia genuína?
Ultramar. Em 1953, ao realizar
o recenseamento agrícola, se
deu conta da situação social
vigente em sua terra natal. Por Ubuntu e força vital
conta de sua atividade política,
foi obrigado a emigrar para
Quando se trata de temas específicos de Filosofia
Angola, onde se uniu ao africana, é preciso pensar na enorme diversidade de
Movimento Popular de perspectivas. Há milhares de grupos tribais na África
Libertação de Angola (MPLA). Subsaariana, cada um com sua língua, seus valores e seu
Pouco depois, em 1959, fundou
com amigos o clandestino modo de compreender o mundo. Se incluirmos como
Partido Africano para africanas as expressões filosóficas de
Independência da Guiné e Cabo
Verde (PAIGC). Alguns anos
afrodescendentes em outras partes do mundo, então esse
depois, em 1963, o partido saiu leque se abre ainda mais.
da clandestinidade, e Amílcar e Os temas específicos da Filosofia africana,
seu grupo iniciaram a luta
armada contra a metrópole
portanto, não são africanos porque representam a
colonialista. Em 1973, Amílcar africanidade em si mesma, mas porque servem de
Cabral foi assassinado por exemplo de pensamento alternativo à Filosofia europeia
membros descontentes do
próprio PAIGC que haviam sido
e estadunidense. Dentre esses temas, podemos destacar
contratados por agentes o ubuntu, termo usado em algumas línguas banto para
infiltrados da polícia política designar a relação entre o indivíduo e a comunidade,
portuguesa para sequestrar o
dirigente do PAIGC. Para o
o conceito de força vital em oposição ao conceito de
poeta e político português ser na Filosofia tradicional.
Manoel Alegre (1976-), A palavra bantu – banto, em sua forma
Amílcar Cabral foi o mais
inteligente, criativo e brilhante
portuguesa – designa um tronco linguístico que engloba
de todos os dirigentes da luta diversas línguas africanas. Esse termo também é usado
africana pela libertação do para designar centenas de grupos étnicos que habitam o
regime português. Suas
atividades políticas e seu
centro e o sul do continente africano. Uma das principais
engajamento nos movimentos características do banto é o uso da palavra ntu, que se
de independência custaram-lhe refere não só ao ser humano, mas também a uma força
a vida, mas deixaram um
modelo de conduta inspirador
que se espalha pelo universo e que permeia pessoas,
que permanece até os dias de
hoje.
animais, plantas e objetos. Ntu faz parte de outras
palavras, como bantu, muntu, ubuntu, investindo-
as de outros significados.
O sociólogo brasileiro Henrique Antunes PERFIL
Cunha Júnior, especialista em cultura africana e
afro-brasileira, assim explica o sentido desse
termo:

Na raiz filosófica africana denominada


de Bantu, o termo NTU designa a parte
essencial de tudo que existe e tudo que nos é
dado a conhecer à existência. O Muntu é a
pessoa, constituída pelo corpo, mente, cultura Henrique Antunes Cunha Júnior
e, principalmente, pela palavra. A palavra com em foto de 2016.
um fio condutor da sua própria história, do seu
Henrique Antunes Cunha
próprio conhecimento da existência. A
Júnior (1952-) atual mente
população, a comunidade é expressa pela professor no Centro de Tecnologia
palavra Bantu. A comunidade é histórica, é do Departamento de Engenharia
uma reunião de palavras, como suas Elétrica na Universidade do
existências. No Ubuntu, temos a existência Ceará, possui graduação em
Engenharia Elétrica e Sociologia.
definida pela existência de outras existências. Não obstante ser professor de
Eu, nós, existimos porque você e os outros engenharia, sua formação em
existem; tem um sentido colaborativo da Sociologia permite que se dedique
existência humana. também a temas relacionados às
Cunha Júnior, Henrique A. Ntu. Revista Espaço questões sobre etnias negras,
Acadêmico, n. 108, p. 90, maio 2010. africanidades e afrodescendência
com particular ênfase na área de
Educação. Seu interesse por esses
O ubuntu é assim diretamente relacionado à te mas pode ser percebido em
existência humana e implica a noção de trabalhos como Abolição
inacabada e a educação dos
indissociabilidade entre o sujeito e a comunidade. afrodescendentes, no qual discute
Essa expressão pode ser interpretada como a a história dos movimentos negros
descrição de um fato e, ao mesmo tempo, como pós-abolicionismo na interface
com a educação, ou, ainda, em Os
uma regra de conduta: o ser humano é um ser- negros não se dei xaram
com-os-outros e, concomitantemente, um ser- escravizar: temas para as aulas
para-os-outros. de história dos afrodescendentes,
no qual propõe, na vertente de
O uso dessas expressões para definir formação de professores, a
o ubuntu pode lembrar a Filosofia europeia, em discussão do escravismo em aulas
especial o pensamento do filósofo alemão Martin de História. Muitos de seus artigos
dedicam-se também a discutir e a
Heidegger (1889-1976), mas não podemos nos pensar, por exemplo, sobre a
enganar. Ubuntu remete a uma visão de mundo questão das cotas em
especificamente africana e envolve, entre outras universidades para os
afrodescendentes no Brasil.
coisas, a noção de que o ser humano só se torna De particular importância e
pessoa por meio de outra pessoa, o que implica o interesse é seu
conceito de ancestralidade. trabalho Tecnologia africana na
formação brasileira. Nele, Cunha
A ancestralidade é um dos conceitos-chave Júnior traça um fio histórico e
para compreendermos a Filosofia afro-brasileira. discute o papel da escravidão nos
Para o filósofo e educador Eduardo Oliveira, a ciclos econômicos do Brasil, bem
como os custos e as consequências
ancestralidade, que não se confunde com o dessa prática para os africanos e
parentesco, é um elemento fundamental da afrodescendentes.
identidade afrodescendente no Brasil e para o
ensino dessa cultura.
A ancestralidade, inicialmente, é o princípio que
organiza o candomblé e arregimenta todos os princípios e
PERFIL valores caros ao povo de santo na dinâmica civilizatória
africana. Ela não é, como no início do século XX, uma
relação de parentesco consanguíneo […]. Posteriormente,
a ancestralidade torna-se o signo da resistência
afrodescendente. Protagoniza a construção histórico-
cultural do negro no Brasil e gesta, ademais, um novo
projeto sociopolítico fundamentado nos princípios da
inclusão social, no respeito às diferenças, na convivência
sustentável do Homem com o Meio Ambiente, no respeito à
experiência dos mais velhos, na complementação dos
Eduardo de Oliveira em foto de
2008. gêneros, na diversidade, na resolução dos conflitos, na
O professor da Faculdade de vida comunitária entre outros. […]
Educação da Universidade Federal da
Bahia, Eduardo David
Oliveira, Eduardo. Epistemologia da
Oliveira (1972-), nascido em ancestralidade.
Pernambuco, tem dedicado seus
esforços acadêmicos ao estudo das
culturas africanas e das relações As implicações políticas do ubuntu são bem
interétnicas em intersecção com o evidentes. A relação de pertencimento a uma
campo educacional. A partir da ideia
de “ancestralidade africana”, tema ao comunidade serve como fator de reconhecimento de
qual se dedicou ao longo de sua pós- identidades sociais africanas após a negação da
graduação, busca compreender e
intervir na educação com ênfase nas identificação com as nacionalidades europeias no
relações étnico-raciais do cenário processo de descolonização da África. Mas
educacional brasileiro em profunda
conexão com o pensamento complexo o ubuntu possui também implicações metafísicas,
e o paradigma da remetendo a uma concepção africana sobre a natureza
multirreferencialidade. Na construção
de seu próprio pensamento, Oliveira é da realidade: a força vital. O conceito de força vital no
tributário da filosofia de Félix Guattari pensamento banto foi apresentado pela primeira vez
(1930-1992) e Gilles Deleuze (1925-
1995). pelo belga Placide Tempels (1906-1977) nos termos
Oliveira é graduado em Filosofia de uma etnofilosofia. Por não ser africano, seu olhar
pela Universidade Federal do Paraná;
é especialista em Filosofia africana e sobre o pensamento banto é limitado e foi criticado
questões inter-raciais, com formação pela metodologia pouco rigorosa. Entretanto, uma
interdisciplinar; e possui mestrado em
Antropologia e doutorado em ideia básica de Tempels foi retomada e aprofundada
Educação. Tem assessorado diversos por diversos filósofos africanos: a de que o conceito
grupos de movimentos sociais
populares, sobretudo aqueles ligados à de força vital seria um correlato da noção de ser na
negritude, educação popular e Filosofia europeia. O filósofo luandense Alexis
economia solidária. Entre seus
trabalhos publicados contam- Kagame (1912-1981) associa a raiz ntu a quatro
se: Cosmovisão africana no Brasil: categorias fundamentais do pensamento
elementos para uma filosofia
afrodescendente (2003), Ética e banto: muntu designa o ser dotado de
movimentos sociais populares: práxis, inteligência; kintu refere-se ao ser não
subjetividade e
libertação (2006), Filosofia da inteligente; hantu é o termo usado para o contínuo
ancestralidade: corpo e mito na espaço-tempo; e kuntu é a categoria de modalidade.
filosofia da educação
brasileira (2007) e Ancestralidade na Trata-se de uma concepção dinâmica e intimamente
encruzilhada (2007). relacionada às concepções religiosas africanas.
REFLETINDO
De que forma o ntu nas línguas banto contribui para uma visão de
mundo não individualista? Que relação podemos estabelecer entre
a força vital relativa ao ubuntu e o conceito de ser na Filosofia
europeia?
Saiba mais
CRÍTICA DA RAZÃO NEGRA
A Crítica da razão pura (1781), de Immanuel Kant, é tida como uma das obras
basilares do pensamento e da epistemologia modernas. Nela, Kant buscou traçar e
explicitar as possibilidades humanas de conhecer.
Em uma referência explícita a essa obra, o filósofo e cientista político camaronês
Achille Mbembe (1957-) apresenta seu entendimento acerca da negritude diante da
modernidade e das questões sobre alteridade no cenário mundial do início do século XXI.
Tendo como referenciais teóricos o desconstrutivismo, o pós-estruturalismo, a
fenomenologia e o pensamento de Gilles Deleuze, Mbembe defende a noção do “devir-
negro” do mundo. Para ele, o pensamento europeu sempre adotou a identidade como a
relação do mesmo com o mesmo, isto é, o ser em seu próprio espelho, e não como uma
relação de pertença mútua ao mundo. Diante dessa lógica de autocontemplação e
enclausuramento, o negro e a raça têm, para a cultura europeia, significado a mesma
coisa. O negro é sempre aquele que vemos quando nada se vê, quando nada queremos
compreender, libertando, assim, dinâmicas passionais e irracionais. Essa irracionalidade
refere-se também a judeus, mongóis e chineses, que compõem o delírio da visão
eurocêntrica e branca. Assim, toda a humanidade “subalterna” correria o risco de se tornar
“negra”, de se tornar aquele que se vê quando nada vemos. É a esse processo de
“enegrecimento” dos homens em situação de desigualdade que Mbembe chama de devir-
negro do mundo.

COM A PALAVRA

A CIENTISTA DA RELIGIÃO
O texto a seguir é um trecho de um artigo da psicóloga Brígida Carla
Malandrino, pós-graduada em Ciências da Religião.

A captura e a separação da família alargada e nuclear desestruturam


visceralmente a pessoa de tradição bantu, que perde, nesse momento, a possibilidade
de dar continuidade à participação vital, uma vez que foram rompidos os laços de
solidariedade vertical e horizontal. […]
Já no que diz respeito ao território, para o bantu, ele demarca o espaço da
estrutura social. A terra é um aspecto do grupo. Cada família alargada e cada clã
possuem territórios bem delimitados. [...] O vínculo com a terra serve de elemento de
união à comunidade de sangue ou parentesco. […] A inserção do grupo no espaço
fortifica a coesão, a solidariedade e a consciência comunitária. Ao sair da terra rompe-
se a participação coletiva. Caberia perguntar […] como se reestrutura a relação com
a terra antes do embarque, durante a estada nos barracões e após a travessia, quando
se chega às propriedades dos senhores.
Malandrino, Brígida Carla. Espaços de hibridações e de diálogos culturais: o caso
Bantu. Revista de Estudos da Religião, p. 7, mar. 2009.

1. Quais são os dois aspectos da religiosidade dos banto tratados no texto?


2. De que modo as crenças religiosas dos povos banto dizem respeito aos estudos
filosóficos africanos contemporâneos?
3. A escravidão teria significado uma ruptura total com as crenças e a visão de mundo
africanas? Justifique.
Diálogos
QUANDO “SER NEGRO” PODE SER MERCADO
A ideia de uma cultura propriamente africana e, em decorrência, de uma
Filosofia africana é necessária e legítima. No entanto, cuidados devem ser tomados.
Vivemos em um mundo capitalista e o capital a tudo abraça, a tudo coopta. É, à
semelhança de um buraco negro, algo que suga e traz para si tudo o que existe
ajustando as coisas à sua própria lógica. Note a profusão de produtos
“étnicos”: revistas para negros, maquiagem para negras, roupas com estilo africano.
A indústria da “africanidade” não conhece limites e a todo momento há novos
lançamentos de produtos, dos mais variados tipos e para as mais diversas
“necessidades”. O capital é capaz de transformar lutas e ideias necessárias e legítimas
em nichos mercadológicos. Como não sucumbir diante dessa imensa “fábrica”?
Um caminho seguro para não cair nessa malha que naturaliza todas as coisas
por meio de uma abordagem a-histórica é justamente historicizar a questão de ser
africano ou afrodescendente. Recusar a “africanidade” como estratégia de mercado
pelo conhecimento e estudo da história da África, sua cultura, seus processos de
colonização e independência, a escravidão e as condições de abolição constitui-se em
um meio crítico e consciente para julgar aquilo que é pertinente e separar daquilo que
não passa de oportunismo de mercado. E mais: buscar conhecer os estudos
sociológicos que tratam não apenas das questões étnicas, mas de seus desdobramentos
nos dias atuais, dá a você condições de perceber essas problemáticas de maneira mais
clara.
Pois bem, justamente por conta da presença massiva do arsenal mercadológico
e das incansáveis propagandas acerca do que significa “ser negro” dentro dessa lógica
banalizadora e redutora do pensamento, há que se refletir. Por meio da atitude
filosófica, do estudo e do conhecimento, é possível vislumbrar a possibilidade de
assumir um posicionamento de maneira consciente e crítica.

Às vezes, o que achamos ser apenas moda é muito mais do que isso, vai muito mais além. Os turbantes
usados pelos povos africanos, por exemplo, têm funções sociais e até religiosas. Ao lado, imagem vetorial de
mulher negra com turbante criada por Ivanchina Anna.

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