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Uma das questões mais controversas sobre o estudo das filosofias africanas consiste
exatamente na possibilidade de existir uma “Filosofia africana”. Muitos autores partem
de uma definição relativamente simples: a Filosofia africana é a produzida por filósofos
africanos ou a que trata de temas relativos à África. Essa compreensão, porém, é
insuficiente diante da complexidade do que é “ser africano”.
Em primeiro lugar, devemos reconhecer uma distinção evidente entre o norte da
África e o território ao sul do deserto do Saara, também conhecido como África
Subsaariana.
Fontes de pesquisa: Atlas geográfico escolar. 6. ed. Rio de Janeiro: IBGE, 2012. p. 45; Veja mapa com a
região da África subsaariana. Folha de S.Paulo.
O norte da África recebeu desde cedo influência da Filosofia grega, devido, entre
outros fatores, à fundação da cidade grega de Cirene, na região onde hoje é a Líbia. O
pensamento da Grécia Antiga, por sua vez, foi influenciado em muitos aspectos pela
cultura do Egito Antigo, também no norte da África.
No passado, Platão recorreu a um mito egípcio para justificar a primazia da fala
sobre a escrita. Foi também no Egito que nasceu Plotino (c. 204-c. 270), um dos
fundadores do neoplatonismo. Muitos padres da Igreja católica eram do norte da África,
como Agostinho de Hipona, nascido em Tagaste, onde hoje é a província de Souk Ahras,
na Argélia. Além deles, alguns importantes filósofos contemporâneos, como Albert
Camus e Jacques Derrida, nasceram na Argélia. E alguns dos mais importantes filósofos
islâmicos eram mouros, povo originário do norte da África que ocupou parte da península
Ibérica durante a Idade Média.
Portanto, podemos dizer que a maior parte dos filósofos do norte da África se
identifica mais com a Filosofia ocidental ou com a Filosofia oriental islâmica do que com
uma Filosofia africana propriamente dita.
A África Subsaariana, ao contrário, desenvolveu um intercâmbio filosófico menor
com os pensadores europeus. Isso se deve, por um lado, ao contato relativamente tardio
com a Europa – somente a partir do século XVI, com a expansão marítima – e, por outro,
ao caráter do empreendimento colonial de algumas nações europeias, que, colocando os
povos africanos em condição subalterna, os considerava “inferiores” e “atrasados”.
Uma exceção foi o filósofo Anton Wilhelm Amo (c. 1703-c. 1759), nascido na
região hoje ocupada por Gana e levado à Europa como escravo. Fez seus estudos na
Alemanha e foi professor nas universidades de Halle e de Jena. Mas, mesmo nesse caso,
o pensamento filosófico de Amo só foi aceito – e ainda assim sob forte preconceito –
porque ele dialogava diretamente com autores europeus, não incorporando o legado
cultural africano a seu pensamento.
Os debates sobre a existência e o caráter de uma Filosofia especificamente africana
começam a surgir nos países da África Subsaariana somente a partir do século XX, com
o processo da descolonização africana. Como esses países são de
população predominantemente negra, o campo de estudos da Filosofia africana se
desenvolveu relacionado a movimentos como a Diáspora Negra, a Negritude e o Pan-
Africanismo, que dizem respeito a realizações culturais de afrodescendentes tanto dentro
quanto fora do continente africano.
A Diáspora Negra trata do reconhecimento de uma identidade social comum a
descendentes de africanos que, em sua maioria, teriam sido levados à força para o
continente americano ou para o Oriente Médio como escravos. Negritude é um
movimento literário de valorização da cultura negra em países africanos e em países com
passado de opressão colonialista que abrigam afrodescendentes. O Pan-Africanismo é um
movimento político, filosófico e social de união dos povos africanos e de
afrodescendentes que vivem fora da África, em prol de ações afirmativas e que exerceu
forte influência no processo de descolonização da África.
REFLETINDO
Quais são as diferenças entre o norte da África e a África Subsaariana? Quais são as consequências dessas
diferenças para o desenvolvimento do pensamento filosófico no continente africano?
Fachada da Universidade de Ibadan, na Nigéria. Fundada em 1948, é a universidade mais antiga do país.
Foto de 2016.
Para os Akan, “verdade” se diz nokware, e o antônimo de verdade não é “falsidade”,
mas nkontompo, que significa “mentira”. Com base nessa constatação, ele argumenta que
a noção de verdade desse povo tem uma conotação mais moral que cognitiva e recorre à
Filosofia analítica, em especial a Bertrand Russell, para explicar esse fenômeno. Ou seja,
em vez de explorar mitos e crenças ou mesmo discursos de africanos notáveis, a Filosofia
profissional desenvolve um modelo ocidental tradicional de reflexão filosófica sobre
temas africanos.
Uma quarta escola de Filosofia africana é conhecida como Filosofia ideológica
nacionalista e é representada por pensadores que buscam construir uma ideologia de
emancipação política africana. É o caso do guineense Amílcar Cabral, que pensa sobre a
realidade social e política dos países africanos sob uma perspectiva marxista. Em um de
seus escritos, ele afirma:
[…] podemos lutar em todas as colónias portuguesas e
PERFIL até ganhar a nossa independência, mas se a África continuar
com o racismo na África do Sul, com os colonialistas a
mandar ainda, directa ou indirectamente, em muitas terras de
África, não podemos acreditar numa independência a sério
em África. Mais dia menos dia a desgraça virá de novo.
Portanto, nós fazemos parte de uma realidade concreta que é
a África, lutando contra o imperialismo, contra o racismo,
contra o colonialismo. Se não temos consciência disso,
podemos cometer muitos erros. […]
Amílcar Cabral em foto de 1972. Cabral, Amílcar. Alguns princípios do partido. p. 17. (Mantida a
grafia original.)
O agrônomo, teórico e político
marxista Amílcar Lopes
Cabral (1924-1973) nasceu em Devemos admitir que muitos dos representantes da
Guiné Bissau em 1924, mas
mudou-se para Cabo Verde aos
Filosofia ideológica nacionalista não são propriamente
8 anos. Após ter trabalhado na filósofos, mas ideólogos ou ativistas políticos. Por causa
Imprensa Nacional, em 1945, disso, são muitas vezes considerados intelectuais
graças a uma bolsa de estudos
iniciou seus estudos
notáveis – e, portanto, “sábios”. Sendo assim, pode-se
universitários no Instituto dizer que a Filosofia ideológica nacionalista é um tipo
Superior de Agronomia em particular de sagacidade filosófica.
Lisboa. Ao se graduar, em 1945,
passou a trabalhar na Estação
Agronômica de Santarém. REFLETINDO
Retornou para Guiné Bissau Quais são as principais correntes da Filosofia africana? Quais são as
em 1952 a serviço do Ministério dificuldades em considerar a etno-filosofia como Filosofia genuína?
Ultramar. Em 1953, ao realizar
o recenseamento agrícola, se
deu conta da situação social
vigente em sua terra natal. Por Ubuntu e força vital
conta de sua atividade política,
foi obrigado a emigrar para
Quando se trata de temas específicos de Filosofia
Angola, onde se uniu ao africana, é preciso pensar na enorme diversidade de
Movimento Popular de perspectivas. Há milhares de grupos tribais na África
Libertação de Angola (MPLA). Subsaariana, cada um com sua língua, seus valores e seu
Pouco depois, em 1959, fundou
com amigos o clandestino modo de compreender o mundo. Se incluirmos como
Partido Africano para africanas as expressões filosóficas de
Independência da Guiné e Cabo
Verde (PAIGC). Alguns anos
afrodescendentes em outras partes do mundo, então esse
depois, em 1963, o partido saiu leque se abre ainda mais.
da clandestinidade, e Amílcar e Os temas específicos da Filosofia africana,
seu grupo iniciaram a luta
armada contra a metrópole
portanto, não são africanos porque representam a
colonialista. Em 1973, Amílcar africanidade em si mesma, mas porque servem de
Cabral foi assassinado por exemplo de pensamento alternativo à Filosofia europeia
membros descontentes do
próprio PAIGC que haviam sido
e estadunidense. Dentre esses temas, podemos destacar
contratados por agentes o ubuntu, termo usado em algumas línguas banto para
infiltrados da polícia política designar a relação entre o indivíduo e a comunidade,
portuguesa para sequestrar o
dirigente do PAIGC. Para o
o conceito de força vital em oposição ao conceito de
poeta e político português ser na Filosofia tradicional.
Manoel Alegre (1976-), A palavra bantu – banto, em sua forma
Amílcar Cabral foi o mais
inteligente, criativo e brilhante
portuguesa – designa um tronco linguístico que engloba
de todos os dirigentes da luta diversas línguas africanas. Esse termo também é usado
africana pela libertação do para designar centenas de grupos étnicos que habitam o
regime português. Suas
atividades políticas e seu
centro e o sul do continente africano. Uma das principais
engajamento nos movimentos características do banto é o uso da palavra ntu, que se
de independência custaram-lhe refere não só ao ser humano, mas também a uma força
a vida, mas deixaram um
modelo de conduta inspirador
que se espalha pelo universo e que permeia pessoas,
que permanece até os dias de
hoje.
animais, plantas e objetos. Ntu faz parte de outras
palavras, como bantu, muntu, ubuntu, investindo-
as de outros significados.
O sociólogo brasileiro Henrique Antunes PERFIL
Cunha Júnior, especialista em cultura africana e
afro-brasileira, assim explica o sentido desse
termo:
COM A PALAVRA
A CIENTISTA DA RELIGIÃO
O texto a seguir é um trecho de um artigo da psicóloga Brígida Carla
Malandrino, pós-graduada em Ciências da Religião.
Às vezes, o que achamos ser apenas moda é muito mais do que isso, vai muito mais além. Os turbantes
usados pelos povos africanos, por exemplo, têm funções sociais e até religiosas. Ao lado, imagem vetorial de
mulher negra com turbante criada por Ivanchina Anna.