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A educação escolar prisional no Brasil sob ótica multicultural: identidade, diretrizes


legais e currículos
Odair França de Carvalho*
Selva Guimarães**

Resumo
Este artigo busca refletir sobre a constituição do espaço escolar na prisão. Primeiramente apresentamos os
marcos legais da Educação de Jovens e Adultos Presos. Em seguida as especificidades da educação prisional
perante a diversidade dos sujeitos. E por fim refletimos sobre a identidade da educação prisional e possibilidades
de construção de um currículo. Conclui-se que a educação no ambiente prisional talvez seja uma das
oportunidades reais de prática ressocializadora na medida em que oferece ao aluno outras probabilidades na
reconstrução da sua identidade e de resgate da cidadania do homem preso.
Palavras-chaves: Educação de Jovens e Adultos; Identidade; Legislação; Currículo.

Prison education school in Brazil: identity, and legal guidelines, curriculum

Abstrat
This article presents some thoughts on the constitution of the school in prison. First we present the legal
framework of Youth and Adult Prisoners, then the specificities of prison given the diversity of subjects and
finally the identity of prison education and possibilities of building a resume. Our conclusion is that education in
the prison environment is perhaps one of the real opportunities for re-socialized in practice because it provides
the student with other probabilities in the reconstruction of their identity and citizenship rescue the convict.
Keywords: Youth and Adults Education; Identity; Legislation; Curriculum.

Introdução educadores e sociedade civil para garantia da oferta


educacional adequada às especificidades de cada
A educação escolar prisional nos últimos público. O texto está organizado da seguinte forma.
anos ganha destaque nas discussões do Ministério Inicialmente, examino os marcos legais da
de Educação e em órgãos públicos e nas modalidade Educação de Jovens e
organizações que têm como foco planejar e criar Adultos/Educação Prisional, ressaltando as
oportunidades para grupos e segmentos Diretrizes Curriculares para Educação Prisional
historicamente excluídos ao longo dos séculos. editadas pelo Conselho Nacional de Educação em
O país chega ao século XXI com grandes 19 de maio de 2010. Trato de algumas
déficits na alfabetização e na Educação de Jovens e peculiaridades da educação prisional. Reflito sobre
Adultos (EJA). Conforme dados do Pnad (2006): a) tensões e possibilidades da construção de currículo
o IBGE registrou 14,4 milhões de analfabetos com multiculturais que atendam ao processo de educação
15 anos ou mais: no Nordeste (20,7%), Norte escolar.
(11,3%), Centro-Oeste (8,3%), Sudeste (6,0%) e Sul
(5,7%); b) desses analfabetos, 69,4% eram negros; e Diretrizes da Educação de Jovens e Adultos
c) 22,2% de analfabetismo funcional de 15 anos ou Presos
mais. Em termos absolutos, 30,5 milhões: no Sul e
Sudeste a taxa era de 16,5%, Nordeste (34,4%), A Educação Prisional é fruto desse processo
Norte (25,6%) e Centro-Oeste (20%) (Documento- de conquistas advindas desse movimento histórico
Base Nacional Preparatório à VI Confintea, 20, da constituição dos Direitos Humanos no Brasil e da
2008, Brasília). São indicadores de uma população EJA.
com baixa escolaridade. Para ela, os piores postos Uma das primeiras leis a garantir a
de trabalho, as piores condições de moradia e saúde, Educação no Sistema Prisional foi a Lei de
quando existem. São as principais vítimas de Execução Penal - Lei n.º 7.210, de 11 de julho de
violências múltiplas. Esse é o mesmo perfil de 1984 em seu Art. 11. A assistência será:
pessoas que superlotam as prisões brasileiras. Tal
cenário exige esforços dos gestores públicos, I - material;

* Endereço eletrônico: carvalhouab@gmail.com


** Endereço eletrônico: selva@ufu.br
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II - à saúde; programas suplementares de material


III - jurídica; didático escolar, transporte, alimentação e
IV - educacional; assistência à saúde;
V - social; § 1º - O acesso ao ensino obrigatório e
VI - religiosa. gratuito é direito público subjetivo.
§ 2º - O não-oferecimento do ensino
A educação é especificamente tratada na Lei obrigatório pelo Poder Público, ou sua
de Execução Penal, na Seção V, Da Assistência oferta irregular, importa responsabilidade
Educacional: da autoridade competente.
§ 3º - Compete ao Poder Público recensear
Art. 17. A assistência educacional os educandos no ensino fundamental, fazer-
compreenderá a instrução escolar e a lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou
formação profissional do preso e do responsáveis, pela freqüência à escola
internado. (BRASIL, 1998).
Art. 18. O ensino de 1° grau será
obrigatório, integrando-se no sistema A Lei de Diretrizes e Bases da Educação de
escolar da Unidade Federativa. 1996, no Título III, que trata do direito à educação e
Art. 19. O ensino profissional será do dever de educar nos artigos 4 e na Seção V, que
ministrado em nível de iniciação ou trata da Educação de Jovens e Adultos 37 que
aperfeiçoamento técnico. destaca a integração da EJA à Educação Básica -
Parágrafo único. A mulher condenada terá observada a sua especificidade.
ensino profissional adequado à sua
condição. Artigo 4 . O dever do Estado com educação
Art. 20. As atividades educacionais podem escolar pública será efetivado mediante a
ser objeto de convênio com entidades garantia de:
públicas ou particulares, que instalem I – ensino fundamental, obrigatório e
escolas ou ofereçam cursos especializados. gratuito, inclusive para os que a ele não
Art. 21. Em atendimento às condições tiveram acesso na idade própria;
locais, dotar-se-á cada estabelecimento de II – universalização do ensino médio
uma biblioteca, para uso de todas as gratuito;
categorias de reclusos, provida de livros [...]
instrutivos, recreativos e didáticos VI – oferta de ensino noturno regular,
(BRASIL, 1995, p. 247). adequado às condições do educando;
VII – oferta de educação escolar regular
Além da Lei de Execução Penal, a educação para jovens e adultos, com características e
do preso é abordada na Constituição Federal de modalidades adequadas às suas
1988 (Art.208), que assegurou aos jovens e adultos necessidades e disponibilidades,
o Direito Público Subjetivo ao Ensino Fundamental garantindo-se aos que forem trabalhadores
Público e Gratuito: as condições de acesso e permanência na
escola;
I - educação básica obrigatória e gratuita VIII – atendimento ao educando, no ensino
dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de fundamental público, por meio de
idade, assegurada inclusive sua oferta programas suplementares de material
gratuita para todos os que a ela não didático-escolar, transporte, alimentação e
tiveram acesso na idade própria; assistência à saúde;
II - progressiva universalização do ensino IX – padrões mínimos de qualidade de
médio gratuito; ensino, definidos como a variedade e
[...] quantidade mínimas, por aluno, de insumos
[...] indispensáveis ao desenvolvimento do
VI - oferta de ensino noturno regular, processo de ensino-aprendizagem;
adequado às condições do educando; [...]
VII - atendimento ao educando, em todas as Art. 37. A educação de jovens e adultos será
etapas da educação básica, por meio de destinada àqueles que não tiveram acesso

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ou continuidade de estudos no ensino passando pela Educação Básica em suas variações,


fundamental e médio na idade própria. como Ensino Fundamental (1998), Ensino Médio
§ 1o Os sistemas de ensino assegurarão (1998) e Tecnológico (1999), além das
gratuitamente aos jovens e aos adultos, que especialidades, como Educação de Jovens Adultos
não puderam efetuar os estudos na idade (2000), Educação Especial (2001), Educação
regular, oportunidades educacionais Indígena (2000), Educação das Relações Étnico-
apropriadas, consideradas as Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
características do alunado, seus interesses, Brasileira e Africana (2004) e o Ensino Superior e
condições de vida e de trabalho, mediante suas diretrizes para os Cursos de Graduação.
cursos e exames. Como afirma Rusche, a Educação Prisional
§ 2o O poder público viabilizará e e a Educação de Jovens e Adultos estão interligadas
estimulará o acesso e a permanência do na constituição e suas especificidades.
trabalhador na escola, mediante ações
integradas e complementares entre si. O primeiro fato que poderíamos criar
28§ 3o A educação de jovens e adultos acerca da especificidade da Educação de
deverá articular-se, preferencialmente, com Adultos Presos é o de que ela faz parte,
a educação profissional, na forma do enquanto processo metodológico, da
regulamento. História da Educação de Adultos e tem,
portanto, seu desenvolvimento pedagógico
Esta lei garantiu a flexibilidade da inserido nessa historia. O segundo fato é o
organização do ensino básico, inclusive a aceleração de ser um projeto d educação que se
de estudos e a avaliação de aprendizagens extra- desenvolve no interior das prisões e que,
escolares, entre outras, estabeleceu as idades de 14 e desta forma, está inserido também na
17 anos para o ensino fundamental e médio e, além historia das prisões e das formas de
disso, diminuiu as idades mínimas dos participantes punições (RUSCHE, 1997, p.13).
dos Exames Supletivos (15 anos para o Ensino
Fundamental e l8 anos para o Ensino Médio, o Esses aspectos evidenciam as singularidades
Plano Nacional de Educação (Meta 17) de 2000. e diversidades dessas modalidades educativas
A partir de 1996, com promulgação da Lei forjadas no decorrer do tempo e dos interesses
9394\96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação políticos, sociais e econômicos. No ano 2005, após
Nacional, ao estabelecer a Organização da um longo período de debates em torno da
Educação Nacional e os seus respectivos atores importância da Educação nos estabelecimentos
trouxe em seu bojo os princípios dos Programas de penais, foi firmado um Protocolo de Intenções entre
Formação nos diversos níveis de formação na os Ministérios da Educação e da Justiça, e no ano
tentativa de seu um nivelamento. 2006 foi elaborada uma proposta de Diretrizes para
O Parecer 11/20001 e a Resolução Educação Prisional, com o objetivo de conjugar os
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01/2000 , ambos do Conselho Nacional de esforços para a implementação de uma política
Educação, são instrumentos que apresentam o novo nacional de educação para jovens e adultos em
paradigma da EJA e sugerem: extinguir o uso da privação de liberdade. Dentre os frutos desses
expressão supletivo; restabelecer o limite etário para esforços nasceram: as Resoluções do Programa
o ingresso na EJA (14 anos para o Ensino Brasil Alfabetizado, que incluíram a população
Fundamental e l7 anos para o Ensino Médio); prisional dentre o público de atendimento
atribuir à EJA as funções: reparadora, equalizadora diferenciado das ações de alfabetização; a parceria
e qualificadora e buscar promover a formação dos com a UNESCO e o Governo do Japão para a
docentes e contextualizar currículos e metodologias, realização de cinco seminários regionais e do
obedecendo aos princípios da Proporção, Equidade primeiro Seminário Nacional sobre Educação nas
e Diferença. O diálogo com várias iniciativas Prisões, que culminaram na elaboração de uma
entidades educacionais e associações científicas e proposta de Diretrizes Nacionais para a oferta de
profissionais da sociedade e ONGs contribuiu para educação no sistema penitenciário; a inclusão da
elaboração dessas normativas. educação como uma das metas do Programa
Desde então, os currículos têm sido Nacional de Segurança Pública com Cidadania; a
regulados em forma de diretrizes, que estão inclusão da educação nas prisões no Plano de
presentes desde a Educação Infantil (1999), Desenvolvimento da Educação (PDE) e das

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matrículas nos estabelecimentos penais no censo Victor Hugo


escolar e os recursos advindos do Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento da Educação Concebemos o espaço prisional como um
Básica e de Valorização dos Profissionais da espaço de aprendizagens que tem o ser humano
Educação (FUNDEB) para os alunos matriculados. como sujeito histórico e social. Freire adverte que
A proposta das diretrizes nacionais para a “para ser válida a educação deve considerar as
oferta de educação para jovens e adultos em condições em que o homem vive num exato lugar,
situação de privação de liberdade nos momento e contexto” (FREIRE, 1980, p.34). Sendo
estabelecimentos penais traz em seu bojo avanços e assim, as práticas educativas nos estabelecimentos
desafios a implantação da educação em todas as penais devem ser pensadas a partir das suas
unidades prisionais do país. Dentre os movimentos especificidades. A escola é por nós considerada um
que impulsionaram a elaboração das Diretrizes espaço multicultural e multi-social, diverso e ao
destacamos: I e II Seminários Nacionais de mesmo tempo singular. Para Santos,
Educação nas Prisões; Conferências Internacionais
de Educação de Adultos (V e VI CONFINTEA); e o universo prisional guarda algumas
as manifestações e contribuições provenientes da especificidades que são relevantes e que
participação de representantes de organizações marcam decisivamente as práticas dos
governamentais e de entidades da sociedade civil sujeitos que convivem em seu interior, quer
em reuniões de trabalho e audiências públicas do corpo dirigente, funcional e ou/, ainda,
promovidas pelo Conselho Nacional de Educação. da massa encarcerada (2007, p.94).
Desses dois Seminários resultaram as seguintes
proposições: Esse universo é marcado por uma cultura e
- Ao Ministério da Educação e Justiça caberia por elementos do próprio contexto social tais como:
realizar: fomento, apoio e indução da política de a linguagem, os valores, as normas, as crenças, a
educação nas prisões em parceria com os estados; ciência, a educação, a repressão, violência, a ordem,
- Fortalecimento das Parcerias Institucionais– a disciplina que muitas vezes manifestam de forma
Secretaria Estadual de Educação e as Secretarias velada em suas teias de relações. As unidades
responsáveis pela administração penitenciária; prisionais priorizam a manutenção da ordem,
- Construção do Plano Estadual de Educação nas isolamento, segurança e disciplina e muitas vezes
Prisões; tornam-se quase impenetráveis a mudanças. Dentre
- Parcerias com Universidades e Sociedade Civil algumas de suas características principais está o não
Organizada; reconhecimento dos encarcerados como sujeitos.
- Elaboração de Proposta Pedagógica diferenciada; (GOFFMAN, 1997)
- Financiamento da Educação de Jovens e Adultos O espaço prisional, dessa forma, é regido
em Situação de Privação de Liberdade via por um modo peculiar de existência, com suas
FUNDEB/ matrícula na rede, Programa Brasil regras, condutas e seus códigos, específicos,
Alfabetizado e outros programas do Governo tornando-se, assim, um espaço de conflitos e tensão
Federal, Estaduais e Municipais. entre os seus atores. Nesse viés, os sujeitos se
-Construção, ampliação e instalação de espaços submetem à adesão dessas regras e condutas, na
adequados para a oferta em todas as Unidades e tentativa de sobreviver e tornar o tempo mais breve
-Formação e valorização dos profissionais. possível a sua estadia na prisão. Essa teia de
Nessa trajetória, em 2010 foram aprovadas costumes, valores e normas comuns aos
as Diretrizes Nacionais para a oferta de educação aprisionados se dá no processo de socialização pelo
para jovens e adultos em situação de privação de qual o sujeito se apropria da linguagem, dos
liberdade nos estabelecimentos penais, que trazem códigos, e dos conhecimentos do grupo e da cultura
em seu cerne orientação para implantação da social da instituição.
Educação Prisional nas unidades prisionais como Nesse cenário, dentre as atividades que são
uma política pública nacional em todas as unidades desenvolvidas na prisão, temos atividades
da Federação. educacionais. O espaço em que ocorre o ato
educativo é singular e diferente de outros espaços
Especificidades da Educação Prisional como igreja, família, grupo de amigos, entre outros.
A pergunta é: está organizada a educação
‘Quem abre uma escola fecha uma prisão’. escolar dentro do sistema penitenciário? As salas de

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aulas, bibliotecas, horários de funcionamentos são à educação, geralmente atingindo de 10% a


elementos que fazem parte da essência da escola? 20% da população encarcerada nas
Como estes estariam presentes nesse espaço. Afinal, unidades pesquisadas. As visitas às
que escola é essa? Assim, a escola para prisão como unidades e os depoimentos coleta dos
a escola extramuros tem como um dos seus maiores apontam a existência de listas de espera
desafios a formação da cidadania que leve a extensas e de um grande interesse pelo
autonomia, liberdade, alteridade e participação na acesso à educação por parte das pessoas
construção de uma sociedade mais humana e justa. encarceradas;
O relatório acerca da situação da educação • quando existente, em sua maior parte
nas prisões brasileiras e da América Latina sofre de graves problemas de qualidade
Educação nas Prisões Brasileiras (2009), estudo apresentando jornadas reduzidas, falta de
realizado pela Plataforma Brasileira de Direitos projeto pedagógico, materiais e infra-
Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e estrutura inadequados e falta de
Ambientais (Plataforma DhESCA Brasil), que profissionais de educação capazes de
visitou unidades prisionais nos estados do Pará, responder às necessidades educacionais dos
Pernambuco, Rio Grande do Sul, São Paulo e encarcerados (Educação nas Prisões
Distrito Federal, nos apresentam alguns dados sobre Brasileiras, 2009 - Plataforma DhESCA
a educação nas prisões brasileiras Brasil).

A educação para pessoas encarceradas Nesse sentido, há grandes desafios a serem


ainda é vista como um “privilégio” pelo superados ao organizar um sistema educacional
sistema prisional; prisional brasileiro, grande em dificuldades, mas
• a educação ainda é algo estranho ao também em possibilidades, sistema esse que foi
sistema prisional. Muitos professores e sendo estruturado com experiências singulares em
professoras afirmam sentir a unidade estados, cidades e unidades. Acreditamos que o
prisional como uma ambiente hostil ao maior desafio seja implantar ações educativas
trabalho educacional; significativas em parceria com a área de segurança,
• a educação se constitui, muitas vezes, em a instituição penal institucionaliza e retira
“moeda de troca” entre, de um lado, independência e autonomia das pessoas e a escola
gestores e agentes prisionais e, do outro, por outro lado liberta e leva a autonomia do ser
encarcerados, visando a manutenção da humano. Para Rusche,
ordem disciplinar;
• há um conflito cotidiano entre a garantia A educação nas prisões é um desafio viável
do direito à educação e o modelo vigente de e os problemas e dificuldades que se
prisão, marcado pela superlotação, por apresentam, em quase nada diferem dos
violações múltiplas e cotidianas de direitos problemas e das dificuldades que a
e pelo superdimensionamento da segurança educação popular, em geral, enfrenta no seu
e de medidas disciplinares. dia-a-dia, uma vez que nossos objetivos
também são comuns a ela (RUSCHE, 1995,
Quanto ao atendimento nas unidades: p. 16).

• é descontínuo e atropelado pelas Assim, a educação prisional é um espaço de


dinâmicas e lógicas da segurança. O construção, de luta e da construção da sua própria
atendimento educacional é interrompido identidade. E, devido aos fatores expostos acima,
quando circulam boatos sobre a existe um campo para construção de políticas
possibilidade de motins; na ocasião de educacionais pautado em programas de educação
revistas (blitz); como castigo ao conjunto não–formal, devido à possibilidade de flexibilidade
dos presos e das presas que integram uma que esta oferece, como: cursos de diversas durações,
unidade na qual ocorreu uma rebelião, cursos de formação profissional inicial e
ficando à mercê do entendimento e da boa continuada, atividades de leitura, de cultura, de
vontade de direções e agentes teatro e cinema, expressões artísticas, na tentativa
penitenciários; de construir uma educação emancipatória e
• é muito inferior à demanda pelo acesso democrática.

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Identidade e currículo: preocupações com a A identidade é parte fundamental do


diversidade cultural movimento pelo qual os indivíduos e os
grupos compreendem os elos, mesmo
Um currículo, muitos currículos, grande imaginários, que os mantém unidos.
parte dos currículos Compartilhar uma identidade é participar,
existentes têm fome; muita fome. Existe com outros, de determinadas dinâmicas da
fome por toda parte em vida social- nacional, religiosa, lingüística,
um currículo. Há fome de sujeito, de étnica, racial, de gênero, regional, local
identidade, de verdade, fome (p.13).
de agrupamentos, de re-agrupamentos, de
conhecimentos, fome de Ao buscar a identidade de uma população
desempenhos iguais. Os currículos que em 2010 atingiu o número 494.273 pessoas,
demonstram também fome de distribuídos em 1.771 unidades penais do país,
disciplina, de saber, de poder, de estratos. sendo milhares reclusos em delegacias de polícia.
Marlucy Alves Paraís Estima-se que de cada 100 mil habitantes no Brasil,
247 estão encarcerados. Perguntamos-nos quem são
Sendo o espaço escolar um espaço de estes sujeitos que buscam a escola na prisão. Os
construção e reconstrução de identidades e tendo estudos sobre o perfil do interno penitenciário
claro em nossas convicções que o currículo é um brasileiro evidenciam que são em sua maioria:
espaço onde se travam lutas entre dominantes e 73,83% jovens entre 18 a 34 anos — idade
dominados em torno de diferentes significados entre economicamente produtiva; 93,51% do sexo
o político e o social, presente na política masculino; 56,43% são pretos e pardos, com uma
educacional. Para Souza escolaridade deficiente (65,71% não completaram o
ensino fundamental) 15 e oriundos de grupos
[...] o currículo é um espaço de poder, um menos favorecidos da população (DEPEN,
campo de lutas, em seguida, que esse é um Ministério da Justiça). Outro ponto que merece
espaço político. Assim aprendemos que o destaque é a questão da mulher no sistema
currículo é uma construção social e que, penitenciário, que, devido há uma presença
portanto o importante é perguntar “que numérica mais reduzida no sistema penitenciário
conhecimentos são considerados válidos” (6,49% da população nacional carcerária) gerado a
para uma determinada sociedade (SOUZA, invisibilidade das necessidades desta nas políticas
2004). penitenciárias. Em geral se ajustam aos modelos de
atendimento tipicamente masculinos. Sendo assim,
Neste aspecto, temos participado da também os processos de construção identitária, por
afirmação de um discurso contemporâneo “que serem processos culturais, estão imersos em
preserva a preocupação com o fortalecimento do constantes lutas e disputas pela imposição de
poder de indivíduos e grupos subalternizados” significados.
(MOREIRA E MACEDO, p.12) e assim caminha Sauer (2010) afirma que a falta de acesso à
numa “linha de análise que focaliza a produção de educação da população carcerária brasileira tem
identidades sociais” (idem). contribuído para o processo de exclusão social já
Pois, para Moreira e Macedo, anterior à prisão:

Quadro 1
Escolaridade antes de chegar a Prisão
Escolaridade Percentual
Analfabetos 11,8%
Ensino Fundamental (incompleto) 66%
Ensino Fundamental Completo ou mais 22,2%
FONTE: Ministério da Justiça/ Departamento Penitenciário Nacional – 2008

O tempo que passam na prisão - e levando para se dedicarem à educação, sobretudo quando a
em conta que mais da metade cumpre penas maioria (73,83%) é jovem, com idade entre 18 e 34
superiores a 9 anos - seria uma boa oportunidade anos. Mas o aproveitamento de tal oportunidade

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ainda não se dá, uma vez que apenas 10,35% dos mais flexível do trabalho educacional, exigindo
internos estão envolvidos em atividades formas de organização da aprendizagem. Dentre as
educacionais escolares oferecidas nas prisões. No principais questões ao pensar a questão educacional,
Brasil, de acordo com Departamento Penitenciário está
Nacional, de uma população de 494.273 pessoas,
apenas 39.653 internos (9,68%) estão estudando no A singularidade do ambiente prisional e
cárcere em diferentes formas de educação (formal, pluralidade de sujeitos, culturas e saberes
não formal e informal). presentes na relação ensino-aprendizagem;
Yamanoto, ao referir-se ao panorama a necessidade de se refletir sobre a
educacional do sistema prisional explica que importância que o atendimento educacional
na unidade prisional pode vir a ter;
O inexpressivo número de pessoas presas elaboração de um currículo próprio para a
que tem acesso à educação esconde outra Educação nas Prisões, que considere o
realidade mais preocupante: não há, hoje, tempo e espaço dos sujeitos da Educação de
no país, uma normativa que regulamente a Jovens e Adultos inseridos nesse contexto
educação formal no sistema prisional, o que [...] (BRASIL/UNESCO, Relatório Nacional
dá margem para a existência de para Educação na Prisão, p. 2-6).
experiências diversas e não padronizadas
que dificultam a certificação, a Goodson3 apresenta um possível caminho
continuidade dos estudos em casos de na tentativa de construir um currículo para educação
transferência e a própria impressão de que prisional, ao referir-se à aprendizagem narrativa
o direito à educação para as pessoas presas como “um tipo de aprendizagem que se desenvolve
se restringe à participação em atividades de na elaboração e na manutenção continuada de uma
educação não-formal, como oficinas narrativa de vida ou de identidade” (2007, p.248).
(YAMAMOTO, 2009, p. 11). Para o autor, essa aprendizagem emergiria dentre os
seguintes aspectos: o trajeto, a busca e o sonho,
Os estudos sobre a educação na prisão sendo eles motivos centrais na vida e ao longo da
mostram que entre trabalhar e estudar os presos vida. Martins, ao estudar a produção do autor,
preferem trabalhar, devido à remissão pelo trabalho chama a nossa atenção para
- a cada 3 dias trabalhados, os presos adquirem o
direito de 1 a menos na pena, ao passo que os dias as maneiras de investigação e as formas
estudados cabe à autoridade judicial acatar ou não. como Goodson se insere no debate sobre o
Outro agravante é a falta de flexibilidade dos currículo como um artefato social, com uma
horários para o estudo, que, em sua maioria história social do conhecimento que leva em
acontecem no período da manhã e tarde, não conta, a um só tempo, várias preocupações
favorecendo a conciliação trabalho e educação. da teoria social: as questões sobre o poder,
Os estudos sobre currículo (Sacristan, 1998, a legitimidade, as exclusões, as geografias e
Goodson, 1995e 2006, Moreira e Silva, 1994) têm cartografias centrais e periféricas, o que
revelado que eles estabelecem diferenças, representam as permanências e as tradições
constroem hierarquias, produzem identidades, curriculares, assim como o que representam
aderem a certas teorias e refutam outras, prestigiam as inovações, as mudanças e a sucessão de
certos saberes em exclusão de outros. Os estudos reformas contemporâneas (2007, p.41-42).
culturais e outros movimentos têm provocado
mudanças na maneira de conceber o conhecimento e Nesse sentido, ao pensar a educação
a cultura. Assim, saberes e culturas até então prisional e construção de um currículo seria de suma
marginalizados começam a serem vistos de outra importância levar em conta quais são os
ótica. A teorização curricular edificou várias formas conteúdos/conhecimentos importantes para processo
pelo qual o currículo pode ser pensado. de educação ou reeducação desses sujeitos. E que
Portanto, ao pensar um currículo para dar esse processo deveria abarcar o sujeito em todas as
conta dessa realidade multifacetada e diversa, dimensões de sua personalidade: ética, estética,
acredita-se que um currículo pautado em prescrição política, artística, cultural, no âmbito da saúde, do
seria impossível no ambiente prisional, devido a trabalho e das relações sociais. Assim, a educação,
suas peculiaridades e necessitaria de uma ordem independentemente de onde ocorra, deve levar em

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56 Odair França de Carvalho, Selva Guimarães

considerações aspectos das culturas hegemônicas e capacidades dos indivíduos para tomar decisões
não-hegemônicas, ressignificando-as, e, nesse rápidas em ambientes tão contraditórios quanto
sentido, os estudos culturais têm contribuído para as encontramos nessa sociedade em constantes
reflexões e modificações das políticas e práticas mudanças e para que as aprendizagens estejam
curriculares. entrelaçadas com a vida na busca.
A aprendizagem é vista como uma tarefa
formal, que não se relaciona com as necessidades e Notas
interesses dos alunos, uma vez que muito do
planejamento curricular se baseia nas definições 1 O parecer do Conselho Nacional de Educação -
prescritivas4 sobre o que se deve aprender, sem CNE Nº 11/2000 - CEB - aprovado em: 10.5.2000
nenhuma compreensão da situação de vida dos que tratava da Aprovação das Diretrizes
alunos. (GOODSON, 2007, p.250) Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens
Assim, ver a aprendizagem como parte da e Adultos que teve como relator o Professor
vida e da história de vida do aluno nos faz Carlos Roberto Jamil Cury.
compreender que ela está localizada em um 2 Que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais
contexto que também tem história no que se refere para a Educação de Jovens e Adultos.
ao aluno, e também as histórias e trajetórias das 3 Ivor F. Goodson é professor da Universidade de
instituições talvez possam ajudar a mudar o futuro Brighton - Inglaterra, atualmente é considerado
social de seus alunos e futuros cidadãos. um dos grandes expoentes em estudos curriculares
ao afirma que currículos atuais são excludentes,
Como síntese... trabalha na perspectiva de que as histórias de vida
são um caminho para a construção dos “currículos
Ao debruçar-me sobre a construção desse narrativos” e coloca o professor como um dos
artigo-ensaio, concluo que pensar uma Educação atores mais marcantes do processo educativo.
Prisional que tenha como objeto o homem preso e Manifesta, permanente preocupação com os
não a figura do aprisionado tem muito a contribuir sujeitos, especialmente aqueles negligenciados,
no resgate desse sujeito, caso seja construída com pouco reconhecidos ou culturalmente pouco
base em um currículo inovador e flexível e não valorizados, como é o caso dos professores
perca as perspectivas do conhecimento e da cultura (MARTINS, 2007).
e enviesado pelas dimensões política, social e 4 Para Goodson, o currículo prescritivo não se
cultural. refere somente ao currículo que foi escrito como
E que, talvez, o maior desafio dessa documento oficial, é resultante das políticas e das
Educação seja romper com as perspectivas de negociações sobre o que deve ser ensinado. A
educação já consolidadas, como disciplinadora, prescrição também está nas marcas específicas da
dominadora, excludente, e construir uma nova transmissão da cultura, cujas seleções, explícitas e
ordem que busque a superação da relação ocultas, marcam o que deve ser aprendido e do
contraditória opressor/oprimido, para que uma nova que será composta a herança cultural.
ordem social seja construída em relações de
liberdade, igualdade e emancipação, e optar assim
por uma educação para liberdade (FREIRE,2001). Referências Bibliográficas
Talvez seja o momento de arriscar-se em
perspectivas emergentes como os enfoques
multiculturais e que tragma novas roupagens e BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade.
diálogos sobre relações entre o uno e o diverso, o Rio de Janeiro: JorgeZahar, 1998.
velho e o novo, popular e o erudito, e assim abrir a
BAUMAN,Z. Modernidade e ambivalência. Rio
possibilidade de construir um ser humano melhor. E de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
isso só poderá ser possível pela construção de
espaços democráticos e participativos, seja na prisão BRASIL. MEC, SEB. Indagações sobre currículo.
ou não, onde a identidade do sujeito e a sua própria Brasília, 2008.
história de vida sejam pontos de partida para
edificar uma escola multicultural. ______. Constituição da República Federativa do
Portanto, o principal papel da educação, Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 21ª
seja ela na escola ou na prisão, é desenvolver as ed. atual. eampl. São Paulo: Saraiva, 1999.

Horizontes, v. 31, n.2, p. 49-57, jul./dez.2013


A educação escolar prisional no Brasil sob ótica multicultural: identidade, diretrizes legais e currículos 57

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Sobre os autores:

Odair França de Carvalho: Doutorando em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia-MG, Brasil e
doutorado sanduíche pela Universidade Autônoma de Barcelona - Bolsista CAPES-DMS e PDSE – Barcelona –
Espanha.

Selva Guimarães: Professora da Faculdade de Educação e do Programa de pós-graduação em Educação da


Universidade Federal de Uberlândia –Uberlândia-MG.

Recebido em: 10/2012


Aprovado em: 05/2013

Horizontes, v. 31, n.2, p. 49-57, jul./dez.2013

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