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Bruno dos Santos Farnetano

[1]
Vasculite é inverno quente
Uma visão sobre as vasculites sistêmicas

Bruno dos Santos Farnetano

2020
Valença . Rio de Janeiro

[2]
www.interagireditora.com.br
contato@interagireditora.com.br
Tel.: [24] 9.8822.4986

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de reprodução integral ou parcial em qualquer forma.

ISBN: 978-65-86463-01-9
1ª Edição - Valença - Rio de Janeiro
Interagir 2020
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Bruno dos Santos Farnetano

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1 . Vasculite
2 . Sistêmicas
3 . Vasoespasmo
4 . Acoplamento
5 . Saúde
6 . Anti-neutrófilos
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Índice para catálogo sistemático:
1. Medicina e Saúde
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* As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabili-


dade do autor, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da Editora.
Não é permitida a reprodução deste texto e dos dados nele contidos, sem a
prévia autorização do autor. Reproduções para fins comerciais são proibidas.
Vasculite é inverno quente
Uma visão sobre as vasculites sistêmicas

Bruno dos Santos Farnetano

2020
Valença . Rio de Janeiro

[4]
Bruno dos Santos Farnetano

Vasculites são reações inflamatórias


que têm os vasos sanguíneos como palco
de suas ações. Como existem vasos san-
guíneos por todo o corpo, as vasculites
podem ter apresentação clínica protei-
forme: de isquemias do sistema nervoso
central a úlceras vulvares, por exemplo.
Muitas vezes, é a descoberta de um de-
sequilíbrio das proteínas corporais (uma
inflamação, portanto) que nos apontará
para a possibilidade de vasculite numa
determinada situação.

[5]
Vasculite é inverno quente

Dedico o livro ao amigo José Angelo de Souza Papi, pela


ousadia em tentar reparar a maior obra divina – o Ho-
mem – num contexto tão caótico.

[6]
Bruno dos Santos Farnetano

Colaboradores

Queridos amigos,

Ana Luisa Sampaio


Angelo Atalla
João Batista Magro Filho
João Paulo Lomelino Gonçalves
José de Resende Barros Neto
Livia Moreira de Mendonça
Paulo Benevenuti Junior
Ricardo Rocha Bastos
Ronaldo Afonso Torres
Tania Coelho dos Santos

[7]
Vasculite é inverno quente

Alunos do UNIFAGOC

Adriana Gontijo Arantes Resende, Amanda Fontes de


Carvalho Pinto, Ana Paula Peixoto do Nascimento, Bruno Cos-
ta Barbosa, Camila Maciel Dias, Camila Miranda Coelho, Clara
Vitral de Sá, Farley Henrique Duarte, Guilherme Augusto Garcia
Figueiredo, Iran Nunes Martins, Itamara Fernanda Bonyeri Lo-
pes, João Pedro Simião Abreu Carvalho, Jomar Soares Migliorini,
Jonas Bresciani Padilha, José Anderson de Souza Padilha, Joyce
Ramos Fernandes, Kaique Antônio Moreno Leão de Azevedo,
Lorena Lyerk Amorim de Sousa, Lorena Nayara de Souza, Luc-
ca Scolari Goyata, Luila Cristina Goncalves Ribeiro, Luis Felipe
Guimarães Cunha, Luisa Azevedo Magalhães Vieira, Lunara dos
Santos Pires, Marcella Alvarenga Abreu, Marcos Fernandes Mou-
rao, Maria Eduarda Azevedo Botaro, Nayane Carla Soares Saraiva,
Rafael de Souza, Rayane da Cruz Alves, Tamara Chagas Ribeiro,
Thalita Thiara Gomes Araújo, Vanessa Fátima Fonseca, Vinícius
Cabral de Lara e Vitor Aredes Almeida.

[8]
Bruno dos Santos Farnetano

Bruno dos Santos Farnetano, médico formado


pela Universidade Federal do Estado do Rio de Ja-
neiro (UNIRIO) em 2006, com residência em Clínica
Médica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), em 2009, e Mestre pela Universidade Federal
de Viçosa (UFV), em 2018. Hoje professor de Clínica
Médica do curso de Medicina do Centro Universitá-
rio Governador Ozanam Coelho (UNIFAGOC), em
Ubá, e da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Tra-
balhou por seis anos com José Angelo de Souza Papi,
nos ambulatórios de Doenças do Colágeno da UFRJ, e
com sua equipe clássica, Alycia Coelho Cesar da Fon-
seca, Maria Isabel Dutra Souto e Flávio Victor Signo-
relli e, segundo ele, “tive a honra de conviver”, com a
estimada, renomada – “e única!” – Blanca Elena Rios
Gomes Bica, reumatologista.

[9]
Vasculite é inverno quente

Índice
14 Prefácio

17 PRIMEIRA PARTE

18 O livro

21 As vasculites sistêmicas - Bruno dos Santos Farnetano

27 Malabarismos proteicos - Ricardo Rocha Bastos

34 Vasculites e o outro lado da moeda - José de Resende


Barros Neto

38 A clínica partilhada! - João Baptista Magro Filho

42 Cherchez la femme! - Sobre as doenças psicossomáticas


na contemporaneidade - Tania Coelho dos Santos

48 SEGUNDA PARTE

49 Quando suspeitar de uma vasculite?

52 Nas vasculites de pequenos vasos associadas ao ANCA,


os pacientes sempre apresentarão sua titulação positiva?

54 É sempre necessária a biópsia de um sítio acometido


para fechar diagnóstico de uma vasculite?

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Bruno dos Santos Farnetano

56 Todas as três categorias (grandes, médios e pequenos va-


sos) podem afetar quaisquer tamanhos de vasos?

58 Como identificar e tratar uma vasculite na emergência?

60 Visto que numerosas doenças manifestam-se com uma


clínica semelhante a das vasculites e que as mesmas são
raras e possuem alto potencial lesivo aos órgãos, como
fazer o diagnóstico definitivo diante de suas heterogenei-
dades clínicas?

62 Há algum marcador laboratorial específico para as


vasculites?

64 Qual é a abordagem terapêutica de forma geral das


vasculites?

66 Como fazer o diagnóstico diferencial entre as vasculites


de pequenos vasos através de suas características mais
marcantes?

68 Quais são as características das manifestações cutâ-


neas das vasculites e quais os possíveis diagnósticos
diferenciais?

71 Como acontece a síndrome pulmão-rim na poliangiíte


microscópica?

72 É correto afirmar que a vasculite de Churg-Strauss pos-


sui a síndrome pulmão-rim, já que o acometimento renal
ocorre em 1/3 dos casos?

73 Como diferenciar clinicamente a poliangiíte granuloma-


tosa eosinofílica (Churg-Strauss) da poliangiíte granulo-
matosa (Wegener)?

75 Como fazer o diagnóstico diferencial entre as vasculites


por depósitos de imunocomplexos?

[ 11 ]
Vasculite é inverno quente

79 Qual é o padrão de acometimento mais prevalente na


vasculite lúpica?

82 A poliangiíte microscópica pode acometer grandes vasos


ou somente pequenos e médios vasos? Quais os princi-
pais órgãos afetados pela doença?

84 Por que o anticorpo anticitoplasma de neutrófilos


(ANCA) positivo tem relação com glomerulonefrite?

85 Como diferenciar se estamos diante de uma vasculite se-


cundária à artrite reumatoide ou de uma sobreposição
entre a vasculite de células gigantes (polimialgia reumá-
tica) e a artrite reumatoide?

88 Como fazer a diferenciação das vasculite de pequenos


vasos por complexo imune?

90 Tendo em vista que a tromboangiíte obliterante é uma


doença que cursa com processo inflamatório vascular,
por que não foi incluída na classificação de vasculites de
Chapel Hill, 2012?

91 Quando pensar na doença de Kawasaki?

92 É possível diferenciar poliarterite nodosa (PAN), polian-


giíte com granulomatose (GPA) e granulomatose eosino-
fílica com poliangiíte (EGPA) através de achados angio-
gráficos renais?

93 Uma vez que as vasculites de grandes vasos (Takayasu


e arterite temporal) são semelhantes em suas manifesta-
ções, como se dá o diagnóstico diferencial entre as duas?

96 Como podemos diferenciar clinicamente a doença de


Kawasaki da púrpura de Henoch-Schönlein?

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Bruno dos Santos Farnetano

98 Quando suspeitar de poliarterite nodosa (PAN), uma


vasculite de vasos médios, e quais exames complementa-
res são necessários para o diagnóstico?

100 A VISÃO DO ESPECIALISTA

101 O que o médico que suspeita de uma vasculite deve saber


sobre a biópsia de pele?

104 Quando um pediatra pensa numa vasculite?

108 O que precisamos saber sobre procedimentos estéticos


em pacientes imunossuprimidos?

111 O que um oftalmologista nos diz sobre as vasculites?

113 Quando o hematologista pensa em uma vasculite?

117 O papel do dermatologista no diagnóstico das vasculites

[ 13 ]
Vasculite é inverno quente

Prefácio

Devo, em primeiro lugar, agradecer a gentileza de meu ex-


-aluno e amigo, Bruno Farnetano, de pedir a mim o prefácio do
livro Vasculite é inverno quente, de sua autoria e do grupo de
colaboradores que o auxiliaram.
Este livro, que também a mim foi dedicado, trata de assunto
da maior relevância para a prática do clínico.
As vasculites são enfermidades que continuam a desafiar o
médico na destrinça de sua história natural, diagnóstico e trata-
mento.
De modo geral, são enfermidades sistêmicas, de natureza
inflamatória, com quadro clínico febril e consumptivo, associados
a marcantes artralgias, mialgias e neuralgias. O exame físico reve-
la acometimento cutâneo que fornece pistas para o diagnóstico:
púrpura palpável, gangrena de polpas digitais ou livedo reticular.
Existem, igualmente, com frequência mais reduzida, as for-
mas “isoladas” da doença e que podem acometer o sistema nervo-
so central, o tubo digestivo e a pele.
As manifestações sistêmicas decorrem do acometimento de
vasos de pequeno, médio e grande calibres. Como consequência,
nesses níveis surgem oclusões arteriais, pelo processo inflamató-
rio, em vasos de grande calibre (doença sem pulsos, síndrome do
arco aórtico); em vasos de médio calibre (isquemia e infartos) e

[ 14 ]
Bruno dos Santos Farnetano

naqueles de pequeno calibre (hemorragias e pequenos infartos).


Fenômeno interessante que pode ocorrer por dano vascular
é o chamado vasoespasmo de acoplamento, que explica na
isquemia a jusante que vai se associar e agravar o quadro da lesão
vascular primária.
Os métodos de imagem, como exames complementares,
auxiliam no diagnóstico através das arteriografias, indicando for-
mação de microaneurismas, estreitamento arterial; do ecodoppler
arterial, que pode evidenciar halo de edema na parede do vaso
estudado; das tomografias computadorizadas que evidenciam es-
pessamento da parede vascular; e da ressonância magnética, que
destaca vasos com alteração da sua estrutura.
Mais recentemente, o FDG-PET scan tem se revelado de es-
pecial valor como método de diagnóstico e acompanhamento do
curso clínico. Por medir atividade inflamatória no nível dos vasos,
pode indicar a fase evolutiva em que se encontra a lesão que se
deseja avaliar.
As vasculites possuem marcadores sorológicos, os anticor-
pos anti-neutrófilos: os ANCAs. Todavia, estão reservados para
um grupo especial de vasculites de pequenos vasos, com processo
inflamatório granulomatoso, configurando grupo especial deno-
minado de vasculites associadas aos ANCA.
As duas formas mais prevalentes das vasculites se encon-
tram representadas, nos jovens, pela púrpura de Henoch-Shöen-
lein e, nos idosos, pela arterite de células gigantes, ambas com
padrões de histopatologia muito específicos: respectivamente na
biópsia de pele e no segmento de artéria temporal superficial. Tais
exames são considerados “padrões ouro” no diagnóstico dessas
enfermidades.
Os recursos terapêuticos incluem corticosteróides e imu-
nossupressores, principalmente o metotrexate, a azatioprina e a
ciclofosfamida. Os agentes biológicos foram selecionados como
recursos terapêuticos para as formas refratárias. O rituximab sur-

[ 15 ]
Vasculite é inverno quente

giu como possibilidade de extrema eficácia para as formas resis-


tentes das vasculites ligadas ao ANCA. Da mesma forma, o inibi-
dor de IL-6, tocilizumab, atua nas formas de difícil controle das
arterites de células gigantes.
O curso dessas enfermidades é crônico e sujeito a períodos
de agudização. Evoluem melhor os casos que fazem uso perma-
nente de imunossupressores.
Interessante citar a observação de casos tidos como inativos
e que sofrem morte violenta. Tais casos necessitaram de exames
post mortem e, quando estudados nos níveis arteriais, pode-se
constatar a presença de lesões ativas nas áreas examinadas. De-
vemos considerar que essas doenças não costumam entrar em re-
missão?
Cabe, ainda, referir que o diagnóstico diferencial das vas-
culites é também desafiador e se complica frente às enfermidades
tidas como grandes imitadoras: a sífilis, a tuberculose, a han-
seníase, as reações às drogas, a endocardite bacteriana subaguda e
as infecções pelos vírus das hepatites B e C e o HIV.
Todos esses tópicos são abordados no presente livro de Far-
netano e colaboradores.
Boa leitura!

José Angelo de Souza Papi


Médico
Professor de Clínica Médica da Universidade
Federal do Rio de Janeiro

[ 16 ]
Bruno dos Santos Farnetano

PRIMEIRA PARTE

“Para ser grande, sê inteiro: nada


Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.”

Fernando Pessoa

[ 17 ]
Vasculite é inverno quente

O livro
Eu me chamo Bruno dos Santos Farnetano, sou médico
formado pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO) em 2006, com residência em Clínica Médica pela Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 2009, e Mestrado
pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), em 2018. Hoje sou
professor de Clínica Médica do curso de Medicina do Centro Uni-
versitário Governador Ozanam Coelho (UNIFAGOC), em Ubá, e
da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Trabalhei por seis anos
com o querido José Angelo de Souza Papi, nos ambulatórios de
Doenças do Colágeno da UFRJ, e com sua equipe clássica, Aly-
cia Coelho Cesar da Fonseca, Maria Isabel Dutra Souto e Flávio
Victor Signorelli. Tive a honra de conviver, também, com a esti-
mada – e única! – Blanca Elena Rios Gomes Bica, reumatologista
renomada.
Papi, em um momento histórico importante, no recém-i-
naugurado Hospital Clementino Fraga Filho, da UFRJ, vindo da
Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, monta um serviço
para atendimento de pacientes com doenças sistêmicas autoimu-
nes. Ele é um dos grandes desbravadores das doenças sistêmicas
reumatológicas no Brasil e as encarou de frente, como um náufra-
go encara o mar, por décadas. Sobre seus ombros tive a oportuni-
dade de atender dezenas de pacientes com vasculites e, então, me
atrevo a conduzir meus alunos na busca por respostas, tentando
trazer algo de palpável e concreto para este estudo tão complicado
dentro de doenças tão caóticas.

[ 18 ]
Bruno dos Santos Farnetano

Como o calor no inverno, as vasculites são improváveis.


Possíveis, mas improváveis. Pensar numa vasculite é como pen-
sar em um inverno quente. Estas doenças permeiam a imagina-
ção dos alunos, que sempre as trazem para o painel diagnóstico
quando diante de uma apresentação sindrômica, normalmente
sistêmica, que lhes é estranha. Internos ansiosos – e estudiosos –
ao imergirem nas vasculites, as colocam como a possibilidade do
paciente do dia seguinte (mesmo atendendo uma gripe!), quando
não raro flutuam na dúvida hipocondríaca: será que eu tenho
uma vasculite?, que por vezes até esfriam – no inverno quente
– as suas barrigas.
Em Ubá, no UNIFAGOC, em uma manhã quente de in-
verno, começamos a estudar as vasculites e, a partir desse estudo,
produzimos este material. Uma sequência de perguntas e respos-
tas que brotaram das dúvidas sinceras de uma turma de Medici-
na que se deparou com um artigo – 2012 Revised International
Chapel Hill Consensus Conference Nomenclature of Vasculitides
– publicado na Revista Arthritis & Rheumatism, e então se viu obri-
gada a digerir um volume complexo de conteúdo teórico abstrato.

Papi e eu, em 2009, nos ambulatórios da UFRJ

[ 19 ]
Vasculite é inverno quente

“Porque a vida é um verdadeiro


caos onde ele (o homem) está perdido.
O homem suspeita disso; mas tem pavor
de se encontrar cara a cara com essa re-
alidade terrível, e procura ocultá-la com
uma cortina fantasmagórica, onde tudo
está muito claro... O homem de cabeça
clara é aquele que se liberta dessas ‘ideias’
fantasmagóricas e olha a vida de frente, e
assume que tudo é problemático nelas, e
se sente perdido. Como isso é a pura ver-
dade – a saber, que viver é se sentir perdi-
do –, aquele que o aceita já começou a se
encontrar... Essas são as únicas ideias ver-
dadeiras: as ideias dos náufragos. O resto
é retórica, postura, farsa íntima. Aquele
que não se sente verdadeiramente perdi-
do, perde-se inexoravelmente; quer dizer,
jamais se encontra, nunca encara a pró-
pria realidade.” - José Ortega Y Gasset.

[ 20 ]
Bruno dos Santos Farnetano

As vasculites sistêmicas

Bruno dos Santos Farnetano


Médico
Professor de Clínica Médica da Universidade Federal de Viçosa
Professor de Clínica Médica do UNIFAGOC
Instagram: @bruno.farnetano
www.brunofarnetano.com

[ 21 ]
Vasculite é inverno quente

As vasculites sistêmicas
Em 1866, Kussmaul and Maier relataram o primei-
ro caso de vasculite sistêmica (periarterite nodosa) em um
aprendiz de alfaiate de 27 anos. A causa da doença foi atri-
buída a uma infestação de vermes, sendo difundido dentre a
comunidade médica o primeiro mito sobre as vasculites. Des-
crevendo o exame post-mortem, Kussmaul and Maier escreve-
ram sobre encontrar inúmeros objetos enganosamente seme-
lhantes a filárias não desenvolvidas nas seções microscópicas
que foram removidas da carne, sangue e muco intestinal. Des-
de tal publicação sobre este caso-índice de vasculite, o campo
sofreu muitas mudanças.
O nome vasculite sistêmica refere-se a diversas con-
dições que podem comprometer qualquer tipo de vaso por
um infiltrado inflamatório com necrose, geralmente havendo
acometimento multiorgânico.
Em 1994, os objetivos da primeira Conferência Inter-
nacional de Consenso de Chapel Hill sobre a nomenclatura de
vasculites sistêmicas (CHCC 1994) eram alcançar nomes con-
sensuais para as formas mais comuns de vasculite e construir
uma definição específica para cada uma delas. Em 2012, outra
Conferência Internacional de Consenso de Chapel Hill (CHCC
2012) foi convocada para melhorar a nomenclatura do CHCC
1994, alterar nomes e definições conforme apropriado e adi-
cionar categorias importantes de vasculite que não foram in-
cluídas no CHCC 1994.
De 1866 até os dias de hoje, muitos médicos e profis-

[ 22 ]
Bruno dos Santos Farnetano

sionais de saúde, ancorados na realidade da vida de seus pa-


cientes, encararam e encaram de frente os que padecem com
vasculites. Esses profissionais são e sempre serão os que fa-
zem o mundo funcionar. Entram em campo. Jogam. Ganham.
Perdem. Sofrem.
Há relatos de que Friedrich Wegener foi membro do
partido nazista, mas, apesar da suspeita, Wegener não foi cul-
pado por falta de provas da condenação como criminoso de
guerra. Ele permaneceu calado sobre os acontecimentos até
a sua morte.

Premissa maior
As vasculites são um grupo de doenças raras e imprová-
veis. Normalmente quando você achar que é, não é... apesar de
poder ser (e um dia será). Isso mesmo. Doenças raras acontecem
raramente, então sempre coloque na frente das vasculites as doen-
ças mais prováveis e que possam estar se manifestando de forma
atípica. Por exemplo, é sempre mais provável a manifestação atípi-
ca da tuberculose do que a manifestação típica de uma vasculite.
E, assim como a tuberculose, uma séria de outras doenças imita-
doras também ocuparão esse espaço (sífilis, linfoma, HIV, hepa-
tite C, hepatite B, doenças tireoidianas). E as doenças imitadoras,
por serem traiçoeiras, habitarão o nono círculo do inferno.
No livro A Divina Comédia, Dante Alighieri descreve uma
viagem às camadas do inferno que seguem um padrão de profun-
didade e de gravidade de acordo com a moral medieval. O pecado
mais grave era o pecado da traição, e na última camada do Inferno
estavam, acompanhados pelo próprio Lúcifer, grandes traidores
da humanidade: Judas, Brutus e Cássio. Também na nona e últi-
ma camada do inferno coloco as doenças traidoras, aquelas que o
apunhalam pelas costas, como Brutus fez com seu pai. Sem usar
um punhal, a traição destas doenças se dá pelas manifestações clí-
nicas que podem ser enquadradas em diversas síndromes diferen-

[ 23 ]
Vasculite é inverno quente

tes e ocultar a sua gravidade.


Anos mais tarde, Alexandre Dumas, em seu livro de 1854,
Les Mohicans de Paris, 12 anos antes do relato da primeira vas-
culite, dizia Cherchez la femme, cuja tradução literal é procure
a mulher.

Il y a une femme dans toute les affaires; aussitôt qu’on


me fait un rapport, je dis: ‘Cherchez la femme’.

Em português: há sempre uma mulher envolvida em todos


os casos. Assim que me trazem um relatório, digo logo: procurem
a mulher.
No nosso raciocínio clínico, pensando em doenças traiço-
eiras e nos cenários das vasculites, adaptarei a frase para: poderá
sempre haver uma doença imitadora envolvida em todos os casos
que suspeitamos de uma vasculite. Assim que me trouxerem o re-
latório, direi logo: procurem a imitadora.
São imitadoras: sífilis, endocardite infecciosa, linfomas,
HIV (sigla em inglês do vírus da imunodeficiência humana), do-
enças da tireoide, hepatites B e C, e tuberculose.
Começaremos o nosso caminho estabelecendo a premissa
maior, que deverá ser lembrada e repetida mentalmente antes da
leitura de cada pergunta que virá na sequência:

Nunca suspeite de
vasculite, e sim de uma vasculite.
Falar Eu acho que é vasculite é semelhante a olhar pela
janela, ver um pombo e dizer: Eu acho que é um animal. Assim
como um pombo é uma ave, que tem um gênero e uma espécie,
as vasculites também são classificadas quanto ao calibre dos vasos
acometidos. Então, se ao invés de identificar um animal lá fora, eu

[ 24 ]
Bruno dos Santos Farnetano

identificar uma ave, já estou muito na frente de quem vê somen-


te um animal. O que estou dizendo é que você sempre deve, ao
suspeitar de uma vasculite, definir qual o calibre dos vasos aco-
metidos, e então dizer: “Eu acho que é uma vasculite de grandes,
médios ou pequenos vasos”. Entende como isso faz a diferença?
Afinal, uma paciente jovem com dor nas carótidas, diferença de
pulso entre os membros superiores e doença de arco aórtico do-
cumentada, será melhor descrita como tendo somente uma vas-
culite ou uma vasculite de grandes vasos? Um paciente idoso com
rinossinusite de repetição, glomerulonefrite (sedimento urinário
ativo!) não será melhor descrito como tendo uma vasculite de pe-
quenos vasos?

[ 25 ]
Objetivo deste livro
O objetivo deste livro é que você descreva um pombo como
sendo um pombo e não como um animal, atentando para os pom-
bos que voam por aí e não para os pombos descritos nos livros.
Observando o mundo real e analisando o que há de concreto, sua
mente vai se expandir.

[ 26 ]
Bruno dos Santos Farnetano

Malabarismos proteicos

Ricardo Rocha Bastos


Médico
Professor de Clínica Médica da
Universidade Federal de Juiz de Fora
Autor dos livros O Método
Clínico e Já pensou se fosse assim?
https://freewaymed.wixsite.com/cursofreeway/academics

[ 27 ]
Vasculite é inverno quente

A saga das proteínas: do


Big Bang aos diagnósticos

Será que foi mesmo assim?


Já há muito se deu o Big Bang. As forças gravitacional, ele-
tromagnética, atração fraca e interação nuclear forte já se sepa-
raram como resultado da inflação cósmica. A primeira geração
de mega estrelas (compostas somente de H e He) completou sua
vida, lançando em espasmos finais todos os elementos que cons-
tituirão o universo.
No terceiro planeta de uma estrela de segunda geração, que
pertence ao aglomerado do esporão de Orion, situado numa galá-
xia em espiral que faz parte do chamado grupo local de galáxias,
algo de extraordinário está acontecendo.
Em particular, arranjos de C, H, O e N crescem em comple-
xidade e passam a se ligar: temos as proteínas. O aparecimento de
arranjos ainda mais complexos, envolvendo também P, permite
que as moléculas se reproduzam. Faz-se vida.

Vida como manifestação das funções proteicas


Ainda que desafie nossas definições, sabemos que a vida é
também o resultado das ações das multifacetárias proteínas.

[ 28 ]
Bruno dos Santos Farnetano

Assim como as proteínas estão na base de todas as ações


vitais, um conhecimento ainda que superficial de suas funções
é importante ferramenta clínica, o que aqui trabalharemos.

Proteínas como ferramentas da inflamação


O organismo humano coloca uma série de proteínas em
ação quando se sente sob ameaça (trauma, infecção, neoplasia,
desarranjo do sistema imunitário). Esta resposta orgânica (essen-
cialmente um novo ponto de equilíbrio das proteínas corporais)
à agressão se chama inflamação. Trata-se de um fenômeno de alta
complexidade, variável estruturação, e capaz da dualidade: se por
um lado protege, por outro pode lesar. O lado prático disto é que
podemos avaliar, através de exames laboratoriais, se este processo
(inflamação) está em andamento.

Vasculites são consequências de inflamação


Vasculites são reações inflamatórias que têm os vasos san-
guíneos como palco de suas ações. Como existem vasos sanguíne-
os por todo o corpo, as vasculites podem ter apresentação clínica
proteiforme: de isquemias do sistema nervoso central a úlceras
vulvares, por exemplo. Muitas vezes, é a descoberta de um dese-
quilíbrio das proteínas corporais (uma inflamação, portanto) que
nos apontará para a possibilidade de vasculite numa determinada
situação.

O exame histórico e mais simples (mas útil


se usado com conhecimento de causa)
Se deixarmos uma amostra de sangue venoso humano an-
ticoagulado em repouso num tubo de ensaio graduado, uma hora
após observaremos uma coluna de sedimento que pode ter sua

[ 29 ]
Vasculite é inverno quente

altura medida em milímetros. Esta grandeza se chama, clinica-


mente, velocidade de hemossedimentação (VHS).
Embora alguns laboratórios forneçam o resultado da VHS
em meia hora, uma hora e duas horas, apenas o resultado em uma
hora tem importância clínica. Ainda, os valores de referência for-
necidos pelos laboratórios são geralmente inadequados (e fonte
de ansiedade para os pacientes) por não levarem em conta sexo e
idade. Vale a pena conhecer as fórmulas corretoras:
• VHS de um homem é normal até: idade (em anos) / 2
• VHS de uma mulher é normal até: (idade em anos + 10) / 2
• Observe que não trabalhamos com um limite inferior para
VHS, pois tal raramente tem algum significado clínico.
Uma VHS acelerada (acima dos valores referenciados) sig-
nifica que algo está diferente na composição das proteínas daque-
le plasma, embora não seja específica de qualquer condição em
particular. Antes de avançarmos, é importante saber que algumas
condições não-inflamatórias podem acelerar a VHS, a saber:
• Anemia;
• Gravidez (acelera a VHS gradualmente, podendo ser al-
cançado um nível de até 70mm/h após 20 semanas de gestação);
• Macrocitose (hemácias com volume maior que o normal,
indicado por um aumento no índice volume corpuscular médio,
VCM, no hemograma);
• Contraceptivos orais e heparina;
• Uma condição de proliferação monoclonal de mastócitos:
as gamapatias monoclonais.

Veja algumas aplicações


1. Uma senhora de 70 anos, com queixa de dores em cintu-
ras escapular e pélvica há cerca de 1 ano, tem, à ausculta cardíaca

[ 30 ]
Bruno dos Santos Farnetano

apenas no 2º espaço intercostal esquerdo, a onomatopeia TUM


quando inspira e TLÁ quando expira. Um eletrocardiograma
(ECG) é inteiramente normal, mas uma radiografia de tórax em
PA e uma VHS de 90mm/h dão pistas importantes. Esta vinheta
sugere algo?
Sim, as queixas dolorosas são típicas do que chamamos po-
limialgia reumática, uma condição que aumenta a probabilidade
de uma vasculite: arterite de células gigantes que, por sua vez, au-
menta a probabilidade de aneurismas de aorta (o que a radiografia
confirmou). A VHS acelerada foi a testemunha do estado inflama-
tório por trás dessas manifestações.

2. Uma mulher de 30 anos, com úlceras vulvares de repe-


tição, é examinada pela ginecologista. Astuta e bem formada no
método clínico, a profissional ainda colhe uma história de desâni-
mo e emagrecimento, e providencia um exame físico de aborda-
gem, que revela ausência de pulsos arteriais em MMSS, mas sua
presença normal em MMII. VHS obtida no mesmo momento é de
120mm/h. Está pensando em algo?
Certamente. Uma mulher jovem com tal sugestão de infla-
mação (VHS muito acelerada) e sinais de comprometimento de
grandes artérias torácicas quase certamente sofre de uma vasculi-
te: arterite de Takayasu.

3. O homem de 35 anos já não aguenta mais “tomar anti-


bióticos para sinusite e bronquite”. O exame físico de abordagem
revela apenas roncos e sibilos difusos, além de material sanguino-
lento ao assoar as narinas. Com VHS de 85mm/h e hemograma
revelando 1200 eosinófilos/ml, o médico sabe o que precisa ser
investigado. E você, sabe?

Naturalmente. Toda pessoa com rhino-sinu-bronquite de

[ 31 ]
Vasculite é inverno quente

repetição, com evidência inflamatória (VHS acelerada) e eosinofi-


lia, deve ser considerada para um tipo de vasculite: granulomatose
eosinofílica com poliangiíte.

4. O homem de 58 anos, que se consulta com intensa lom-


balgia que o acorda à noite, tem, às investigações, hipercalcemia,
prejuízo da filtração glomerular e VHS de 110mm/h. O que con-
siderar inicialmente?
Esta trinca: hipercalcemia, prejuízo da função renal e gran-
de aceleração da VHS, nesta idade, aponta fortemente para uma
gamapatia monoclonal: mieloma múltiplo. A eletroforese das pro-
teínas plasmáticas vai mostrar um pico na região das imunoglobu-
linas, que a imunofixação (outro exame complementar) mostrará
ser uma proteína monoclonal (de uma classe das imunoglobuli-
nas). Um exemplo de VHS muito acelerada sem inflamação. Não
temos vasculite aqui.

Mas por que, exatamente, a VHS se


acelera numa inflamação?
As condições inflamatórias que aceleram VHS o fazem por
alterarem a composição proteica do sangue. Mas como isto se dá?
Você já ouviu falar das interleucinas? Quando o organismo sofre
uma agressão (uma infecção, por exemplo), as células da imuni-
dade inata produzem IL-1, fator de necrose tumoral e, principal-
mente, IL-6, que, agindo sobre o fígado, modulam a produção de
proteínas, num fenômeno chamado reação de fase aguda. Neste
contexto, algumas proteínas têm sua:
• Síntese diminuída (proteínas negativas de fase aguda): por
exemplo, albumina, transferrina;
• Síntese aumentada (proteínas positivas de fase aguda): por
exemplo, proteína C-reativa (PCR), alfa-1 glicoproteína ácida, fer-

[ 32 ]
Bruno dos Santos Farnetano

ritina, fosfatase alcalina, fibrinogênio.


É este desequilíbrio das concentrações habituais das proteí-
nas plasmáticas que estará na raiz da aceleração da VHS.

Mas não se pode dosar diretamente uma


proteína da reação de fase aguda?
É possível, sim.
Das proteínas de fase aguda, a de maior uso clínico é a pro-
teína C-reativa (PCR), cuja concentração sanguínea é geralmente
inferior a 0,6 mg/dl ou 6 mg/l. Embora possa subir em inflama-
ções em geral, elevação da PCR aumenta a probabilidade de infec-
ção (principalmente bacteriana).
Importante é notar que a fosfatase alcalina (FA), a par de
subir nas doenças em que as vias biliares estão sob stress e nos
aumentos de turnover ósseo, é molécula da reação de fase aguda
em algumas vasculites importantes, como a arterite de células gi-
gantes e a arterite de Takayasu. Podemos solicitar a dosagem da
fosfatase alcalina total ou a dosagem das isoenzimas hepática e
óssea. Nas vasculites citadas, é a isoenzima hepática que se eleva
(bem de acordo com a ideia de que o fígado é a fonte de produção
das proteínas de fase aguda, não é mesmo?).

Teremos muitas situações profissionais em que a pessoa à


nossa frente poderá estar sofrendo de uma vasculite. Confirmar
a existência de uma inflamação em andamento será muito útil.
VHS, PCR e FA serão ferramentas úteis.

[ 33 ]
Vasculite é inverno quente

Vasculites e o
outro lado da moeda

José de Resende Barros Neto


Médico Nefrologista
Diretor de Inovação, Ensino e Pesquisa do Grupo NefroClínicas
Diretor Científico da Sociedade Mineira de Nefrologia
Instagram: @drjoseneto

[ 34 ]
Bruno dos Santos Farnetano

Vasculites e o
outro lado da moeda
A agonia da incerteza promove comportamentos irracionais
do ser humano sob uma heurística que paradoxalmente defende
a racionalidade.
É angustiante assistir a um paciente e não saber aquilo que
ele tem, ou mesmo não oferecer algum tipo de estratégia terapêu-
tica convencional. Nesse cenário surgem prescrições baseadas
na ansiedade do médico, muitas vezes catalisadas por desfechos
substitutos como proteinúria, níveis de complemento ou alguma
prova inflamatória.
As vasculites sistêmicas, a meu ver, expressam sobremanei-
ra essas incertezas, limitações e a fragilidade do ser humano. De
forma bimodal conseguem mostrar os dois espectros que viven-
ciamos no cotidiano da prática clínica: o agudo e o crônico.
Enxergo claramente a evolução exponencial e todo o bri-
lhantismo da medicina na atuação de casos agudos. Tratamentos
para infartos, pneumonias e traumas são diuturnamente aprimo-
rados e os resultados são muito expressivos.
Infelizmente não podemos dizer o mesmo de doenças crô-
nicas. Elas não param de crescer, têm seu tratamento ancorado na
ponta dos galhos e os pífios resultados são imputados à vítima; no
caso, nossos pacientes.
A síndrome metabólica, expressão da resistência insulínica

[ 35 ]
Vasculite é inverno quente

e com apresentação fenotípica bastante variável, lidera com folga


as estatísticas relacionadas às doenças crônicas que são a porta de
entrada para gerar muitas daquelas patologias em que consegui-
mos atuar com brilhantismo no palco das agudizações.
Fato que existe um problema, certo? E se concordam co-
migo, deixo-lhes minha impressão do caminho para mitigar esse
impasse.
A abordagem da raiz do problema e não apenas dos galhos
acometidos!

Como assim?
Comida de verdade, minimamente processada, aquela com
a qual o ser humano evoluiu, sem rótulos comerciais ou de ma-
cronutrientes, é um exemplo categórico de como atuar de forma
pragmática e sem ater-se exclusivamente à convencional ferra-
menta dos médicos: o receituário.
Na situação específica da síndrome metabólica, a redução
dos carboidratos entra como protagonista, enquanto em doenças
autoimunes pode ser interessante testar a retirada de potenciais
gatilhos, como glúten, lactose, FOODMAPs ou lectinas.

Há evidências para isso?


Rodeados por 50 tons de cinza, busca-se loucamente por
preto e branco.
Entender e usar de forma pragmática as ferramentas da saú-
de baseada em evidências me parece a forma mais concreta de
lidar com os anseios de nosso sistema límbico.
Medidas não-farmacológicas tendem a ter um baixo risco
de dolo e, quando orientadas sob a premissa da formação de hábi-
tos, os resultados práticos podem ser surpreendentes.

[ 36 ]
Bruno dos Santos Farnetano

O quebra-cabeça da saúde, nome que criei para mostrar aos


pacientes da importância das peças no todo, incluem, além da ali-
mentação, hidratação, sono, movimento, cuidados com a saúde
mental e com potenciais toxinas exógenas (álcool, tabaco, medi-
camentos ou mesmo suplementos).
As vasculites são a expressão máxima da doença multissis-
têmica e, assim como acontece de forma geral, o tratamento dos
flares (reativação da doença) é otimizados a cada dia. Infelizmen-
te, condições subjacentes são subvalorizadas sob o falso pretexto
de falta de aderência ou de evidências.
O paradigma do paraquedas sugere não ser preciso um en-
saio clínico randomizado para demonstrar que pular de um avião
com esse dispositivo é mais efetivo em reduzir mortes do que sal-
tar sem ele.
Essas condutas correspondem à minoria na prática médi-
ca, com uma estimativa de 0,06%. Creio que nos atentar para o
paradigma evolucionário e entender quais hábitos o ser humano
deveria cultivar fazem parte dessa minoria.
E para implementar isso no dia a dia não basta dizer para
o sujeito que ele precisa emagrecer, parar de fumar ou fazer exer-
cícios. Isso exige do profissional da saúde uma atuação pró-ativa
que demanda muito estudo na área, intenção e persistência.
Só assim as vasculites, e por que não dizer, o ser humano,
serão efetivamente tratados em toda a sua amplitude com um
olhar amplo para os dois lados da moeda.

[ 37 ]
Vasculite é inverno quente

A clínica partilhada!

João Baptista Magro Filho


Médico Psicanalista
Professor da Universidade Federal de Minas Gerais

[ 38 ]
Bruno dos Santos Farnetano

A clínica partilhada!
As doenças são construções de pilares complexos e sinuo-
sos. São soluções instáveis, tênues e incomodativas estabelecidas
pela própria pessoa em determinada história, lugar, tempo e cir-
cunstâncias socioeconômicas.
Ao mesmo tempo, são oportunidades que nos permitem
encontrar uma pessoa e estabelecer com ela uma aliança tera-
pêutica, na direção de tornar-se uma pessoa melhor.
Nós somos um pouco como os navios, carregamos âncoras
que aumentam o nosso peso e que paradoxalmente nos permitem
estabelecer uma parada em um porto ou até mesmo em alto-mar.
Haverá sempre uma tensão nos acompanhando e que, de-
pendendo de nossa conduta e circunstâncias, poderá tornar-se
um problema com necessidade de ajuda. A ajuda poderá ser com
um profissional e/ou com alguém como eu, um semelhante. Po-
derá ser realizada em torno da doença, especificamente, ou em
torno da pessoa como um todo. Sua conduta estará baseada em
premissas fundamentais para o estabelecimento de um tratamen-
to adequado às pessoas.
Como você trata? Qual o seu estilo? O que você receita?
E se você trata, você já foi tratado? Você afinou o seu instru-
mento? Quais os seus instrumentos? Você investigou suas pró-
prias queixas, suas dores, seus temores, suas dificuldades, suas vir-
tudes? Você parou um tempo para pensar sobre si mesmo? Você
investigou como reage a cada problema de saúde que lhe é apre-

[ 39 ]
Vasculite é inverno quente

sentado? Investigou como você reage a cada pessoa? E se a pessoa


à sua frente possui uma queixa, um problema, uma doença, você
compreende que também possui forças que ela mesma poderia
dispor para melhorar? Você trabalha sozinho ou em grupo? Você
cuida de uma pessoa, de uma família? Você atende pessoas indivi-
dualmente e ou em grupos de ajuda mútua?

Pense sobre essas frases:

“Eu me trato com o Dr. Papi”

Sujeito: Eu

Predicado: me trato com o Dr. Papi

Objeto Direto: me

Verbo Pronominal: trato

Adjunto Adverbial: com o Dr. Papi

O sujeito demonstra aqui ser ele próprio o seu agente de


cura. Mas não sozinho!! Necessitamos de alguém, de um Dr. Papi
e ou de uma ajuda mútua.
Há uma nova clínica médica sendo construída. Eu a cha-
mo de clínica partilhada. Ela amplia os recursos e os agentes, am-
pliando a roda terapêutica. Ela estabelece que a terapêutica me-
dicamentosa seja complementada ou até mesmo substituída por
novos procedimentos, tais como ativação do paciente, grupos de
ajuda mútua, prescrições sociais, mudanças de hábitos, etc. Ela
chama atenção para a valorização do ato médico, insistindo que
ele se constitui numa opção terapêutica. Ela propõe que médi-
cos atuem em grupos, cooperando entre si e oferecendo soluções
partilhadas. Ela estabelece que o paciente compreenda o processo
terapêutico, participe e manifeste consentimento.

[ 40 ]
Bruno dos Santos Farnetano

Nesse livro começamos a falar em torno de vasculites


sistêmicas e a delicada trama envolvida em seu estabeleci-
mento nas pessoas. Podemos pensar em oferecer-lhes infor-
mações qualificadas para que compreendam melhor seu
problema. Podemos pensar em incluí-las em um grupo de
ajuda mútua onde pessoas com problemas semelhantes pos-
sam trocar e vivenciar novos caminhos. Podemos prescrever
medicamentos que diminuam suas dores e enfrentem sua pa-
tologia. Podemos propor uma prescrição social que as inclua
em grupos de sua comunidade, ativando sua ação vital.

Podemos tantas coisas!


Estamos dispostos a tornar o impossível possível?

[ 41 ]
Vasculite é inverno quente

Cherchez la femme!

Sobre as doenças
psicossomáticas na contemporaneidade

Tania Coelho dos Santos


Psicanalista
Pós-doutorado no Departamento de Psicanálise de Paris VIII
Professor Associado, Nível IV no Programa de Pós-graduação em
Teoria Psicanalítica/UFRJ, Pesquisadora do CNPQ nível 1 C
Presidente do Instituto Sephora de Ensino e Pesquisa
de Orientação Lacaniana/ISEPOL, Membro da École
de La Cause Freudienne, da Escola Brasileira de
Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise
Membro da Associação Universitária de Pesquisa
em Psicopatologia Fundamental
Editora de aSEPHallus Revista de Orientação Lacaniana
E-mail: taniacs@openlink.com.br
Currículo Lattes http://lattes.cnpq.br/2382878203911516

[ 42 ]
Bruno dos Santos Farnetano

Cherchez la femme!

Sobre as doenças
psicossomáticas na contemporaneidade

No campo da psicopatologia, assim como na clínica médica


em geral, não existe nenhuma doença que não seja “uma doença
em particular”. Ainda que o valor do diagnóstico em psicopatolo-
gia dependa essencialmente da possibilidade de estabelecer com
clareza uma síndrome, o sintoma é sempre singular. Uma síndro-
me é um tipo ideal que se reconhece por meio da presença de um
certo número de signos. Mas é preciso cherchez la femme (pro-
curar a mulher), isto é, a singularidade da causa. Por que tratamos
como equivalentes a causa e a mulher? Explico: “A mulher” como
uma categoria universal não existe, pois as mulheres são uma clas-
se infinitamente aberta. O homem é típico. Acreditamos que exis-
te o herói, o indivíduo com qualidades excepcionais, o modelo, o
tipo ideal para todos os outros homens. As neuroses e as psicoses
são como as mulheres, classes abertas. Precisamos procurar a sin-
gularidade do caso clínico e a manifestação única, inusitada, fora
de série de uma síndrome.
Proponho uma analogia. Não existe a vasculite, existem
vasculites. Aproveito para estender a excelente linha de raciocínio
escolhida por Bruno Farnetano à infinidade de doenças de origem
inflamatória que parasitam o campo da psicopatologia nos dias de
hoje. É preciso cherchez la femme (procurar a mulher). Procu-
rem a causa. Uma mulher é a causa do desejo que pode levar um
homem às mais impressionantes proezas heroicas ou a cometer

[ 43 ]
Vasculite é inverno quente

os piores crimes. Eu não disse a mulher. Eu disse uma mulher,


uma única, em sua singularidade. No campo da causa é preciso
procurar aquela que não se repete, que é contingente e determina
um único caso.
Nesse caso particular, o da psicossomática, é preciso encon-
trar a enigmática causa de cada doença. Diante da proliferação
das fibromialgias, da artrite reumatoide, do lúpus, da esofagite,
das doenças do cólon irritável, das dores lombares misteriosas que
caminham do pescoço ao calcanhar, das enxaquecas insuportá-
veis, das labirintites que brotam e desaparecem na mais completa
escuridão, não podemos deixar de perguntar: o que foi que de-
sencadeou isso? Até porque já sabemos que os tratamentos clíni-
cos mergulham frequentemente na mais absoluta impotência em
muitos desses quadros. Penso muito especialmente nos mistérios
da clínica da dor.
O nascimento da psicanálise no século XIX introduziu no
campo do conhecimento científico as razões da subjetividade hu-
mana. O inconsciente é uma hipótese fundamental, desenvolvida
por Freud, para explicar as motivações profundas dos sintomas
psiquiátricos. Até então, estes sintomas tinham sido abordados de
modo descritivo e puramente classificatório. O espírito científico
caracteriza-se pelo gosto investigativo, pelo esforço de buscar as
causas invisíveis à percepção e ao bom senso, mas que determi-
nam a emergência dos fenômenos. A ciência moderna baseia-se
no primado da razão sobre a observação. A neurose histérica foi
a estrada real que o primeiro psicanalista percorreu à procura da
causa dos sintomas neuróticos. Foram as mulheres com seus sin-
tomas histéricos que obrigaram a medicina a acolher a dimensão
psíquica do inconsciente como causa. Estes sintomas contraria-
vam o saber da anatomia, da fisiologia, pois não tinham nenhu-
ma base anatomopatológica. Freud descobriu que a fantasia era
traumática e explicava o surgimento no corpo das dores da alma.
Para todo o ser humano o advento da sexualidade é traumático. É
percebido como alguma coisa que vem de fora. Essa é a causa das
fantasias histéricas de sedução sexual na infância. O culpado era

[ 44 ]
Bruno dos Santos Farnetano

sempre o outro. O pai, o irmão, o tio ou a babá. O sujeito histéri-


co, até mesmo nos dias de hoje, é incapaz de perceber um desejo
como seu. Essa descoberta revelou o campo inédito da causalida-
de psíquica das doenças nervosas.
Os sintomas histéricos são interpretáveis. Originam-se num
pensamento de natureza amorosa ou hostil que foi energicamente
rechaçado da consciência. Alguns exemplos. Uma mulher apai-
xonada decepcionou-se com o amante e gostaria de lhe dizer que
“suas palavras soaram como uma bofetada”. Em lugar de dizer ou
pensar conscientemente essa frase, ela a rechaça, e em seu lugar
seu rosto fica paralisado como se ressoasse a dor de uma bofeta-
da. Outra jovem, tomada de fúria, estava em vias de dizer ou de
pensar conscientemente: “eu quero que você desapareça! Nunca
mais quero ver a sua cara”. Em lugar do ato psíquico de fala ou de
pensamento, surge uma cegueira histérica. São exemplos simples,
clássicos, que ilustram a importância do mecanismo do recalque
ou do rechaço de um processo psíquico da consciência. Quan-
do a ideia é rechaçada da consciência, torna-se inconsciente, mas
o afeto ligado a ela – a raiva ou o amor – encontra uma via de
descarga através do sintoma no corpo. A interpretação correta do
sintoma costuma eliminá-lo.
A hipótese da causa psicológica do sintoma clínico genera-
lizou-se durante o século XX e surgiu uma medicina interessada
na doença psicossomática. Quem não conhece a expressão “Freud
explica”? Os poderes da interpretação do inconsciente, quando as-
sociados ao tratamento médico adequado, prometiam ultrapassar
as barreiras obscuras da relação entre o corpo e a mente. No final
do século XX e início do século XXI parecia bem aceito o fato de
que alguns sintomas clínicos eram uma manifestação psicosso-
mática, e que podíamos contar com os poderes da interpretação
da causa sexual para tratá-los. Descobrimos, nessa época, que os
novos sintomas contemporâneos parecem ter desenvolvido uma
resistência à interpretação. Novamente nos reencontramos na es-
curidão nos dias de hoje. Em lugar do traumatismo sexual – a tal
da mulher enigmática, causa sexual do desejo –, estamos cercados

[ 45 ]
Vasculite é inverno quente

de sintomas que não têm nenhuma explicação no campo do in-


consciente.
O que é que explica essa mudança? Penso que a leitura deste
livro pode ajudar o leitor a compreender a importância da atitude
do médico diante do paciente no sucesso do tratamento. Médicos,
psiquiatras, psicólogos e psicanalistas nos dias de hoje têm muita
pressa. Não se dedicam mais, como Freud e muitos médicos des-
tacados faziam, a escutar o paciente. Nem a estabelecer com cla-
reza uma anamnese, a história clínica, a correlação entre as causas
biológicas e as contingências psíquicas. Os sintomas estão ficando
mudos porque os profissionais encarregados de tratá-los estão fi-
cando surdos.
A emergência de uma farmacopeia eficiente – é o caso dos
psicofármacos – também dispensa a escuta e a elaboração de um
diagnóstico mais cuidadoso. A medicina de massa não tem tempo
para construir a singularidade do caso. Exames de laboratório dis-
pensam o médico de aprofundar uma anamnese. O uso da “prova
terapêutica” como método clínico dispensa maiores investigações.
O critério é pragmático, resolutivo. Se a medicação funcionar, en-
tão descobriremos qual era a doença. Na clínica psicanalítica, um
forte pragmatismo isenta o analista de aprofundar o conhecimen-
to sobre o inconsciente de cada um. Existe hoje uma pressa em
eliminar o sintoma e restabelecer uma adaptação do analisando
ao comportamento normal ou, quando isso não é possível, adap-
tá-lo ao seu sintoma. Muitas vezes é difícil distinguir um analista
de um terapeuta cognitivo-comportamental. Esqueceram-se que
Freud definiu o método psicanalítico como uma investigação do
inconsciente. A cura surge por acréscimo. Nunca a buscamos di-
retamente.
Os novos sintomas contemporâneos mais comuns – ano-
rexia, bulimia, compulsões, inibições, fibromialgia, cólon irri-
tável, alergias a glúten, lactose, aveia, amendoim, leites de todo
tipo, dores misteriosas e processos inflamatórios crônicos como
o lúpus e a artrite reumatoide – desafiam a prática clínica em sua

[ 46 ]
Bruno dos Santos Farnetano

inevitável fronteira com a psicopatologia. Ainda estamos longe de


compreender sua dinâmica psíquica e mais uma vez será preciso
reinventar o caminho. Novamente trata-se de cherchez la femme.
Para começar a reinventar a clínica, sugiro o método clássico: es-
cutem seus pacientes!

REFERÊNCIAS
---------------------------------------------------------------------------------------
Coelho dos Santos, T. A transmissão do espírito científico e o ensino da noso-
logia na universidade. In: Teixeira, A.M. et AL (orgs.) Psicopatologia Lacaniana
II, Ed. Autêntica, BH/MG (no prelo).
_________________ O que é e onde começa a pós-modernidade? In: Coelho
dos Santos, T. et alli (orgs.). Reconfigurações do imaginário no século XXI,
Editora CRV, Curitiba, 2019.
_________________ Ditadura da homogeneidade ou direito ao gozo autista
do sinthoma? In: Revista sSEPHallus de Orientação Lacaniana, 7(14), 14-26,
Recuperado do http://www.isepol.com/asephallus/numero_14/artigo_01.html.

[ 47 ]
Vasculite é inverno quente

SEGUNDA PARTE
“Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento...”

Adelia Prado

[ 48 ]
Bruno dos Santos Farnetano

PERGUNTA 1:

Quando suspeitar de uma vasculite?


Isso! Quando suspeitar de uma vasculite e não de vasculite.
Lembra do pombo?

Primeiro, identifique se seu paciente se encontra em um dos


cenários abaixo:
1) Acometimento multiorgânico (ex.: sedimento urinário
ativo e infiltrados pulmonares, púrpuras sem plaqueto-
penia e rinossinusite de repetição, convulsões e úlceras
mucosas, inflamação sistêmica e carotidínea, etc.);
2) Quadro neurológico não explicado (mononeuropatia
múltipla em paciente sem diabetes é o carro-chefe desse
item);
3) Sinais de inflamação crônica (perda ponderal com ano-
rexia, albumina baixa, VHS elevada, aumento de ferriti-
na, hipergamaglobulinemia policlonal, plaquetas eleva-
das).

Segundo, descarte obsessivamente outras doenças mais pro-


váveis, e nunca se esqueça das doenças imitadoras.

Terceiro, a vasculite é de grandes, médios ou pequenos va-


sos?

[ 49 ]
Vasculite é inverno quente

Exemplo 1: Paciente com febre, perda ponderal, elevações


de escórias nitrogenadas e mononeuropatia múltipla. Sedimen-
to urinário mostra cilindros hemáticos. Opa... Lesão de nervos e
glomérulos! Pequenos vasos. Já sei que não é poliarterite nodosa
e nem Takayasu.
Exemplo 2: Paciente com febre, perda ponderal, hiperten-
são, elevações de escórias nitrogenadas e nódulos subcutâneos
dolorosos. Sedimento urinário normal. Esse sedimento normal
fala contra a lesão glomerular. Será que a lesão renal (aguda, cla-
ro) pode ser por vasos maiores? A biópsia dos nódulos mostra, ao
exame histopatológico, vasculite de artérias médias e arteríolas.
Os vasos afetados têm parede espessada e com infiltração neu-
trofílica. Olha aí, lesão de médios vasos. Não deve ser nenhuma
vasculite associada aos anticorpos anticitoplasmas de neutrófilo
(ANCA).

E olhe sempre a pele. Como a vasculite cutânea pode ser acom-


panhada de vasculite sistêmica, a possibilidade de doença sistêmica
deve ser considerada em todos os pacientes com lesões cutâneas.

[ 50 ]
Bruno dos Santos Farnetano

Conceitualmente, as vasculites são definidas pela presença


de leucócitos inflamatórios nas paredes dos vasos com dano rea-
tivo às estruturas murais. Tanto a perda da integridade do vaso,
levando a sangramento, quanto o comprometimento do lúmen
podem resultar em isquemia e necrose do tecido à jusante.
Lesão de pequenos vasos: são vasculites que afetam vasos
arteríolas, vênulas e capilares, e eventualmente algumas artérias.
Os danos ocorrem por depósitos de imunocomplexos (por exem-
plo, púrpura de Henoch-Schönlein, vasculite crioglobulinêmica,
vasculite lúpica, entre outras) e sem depósito de imunocomple-
xos – pauci-imunes, frequentemente associados ao ANCA (ex.:
poliangiíte microscópica, granulomatose com poliangiíte – We-
gener –, granulomatose eosinofílica com poliangiíte Churg-S-
trauss, entre outras). Uma grande parte destas vasculites leva ao
acometimento glomerular (sedimento urinário ativo mostrando
hematúria dismórfica e/ou cilindros hemáticos). Outros sinais são
as púrpuras e petéquias (normalmente antecedidas por ardência
e/ou prurido no local) e mononeuropatia múltipla (por lesão da
vasa nervorum).
Lesão de médios vasos: são vasculites que afetam artérias
que nutrem as vísceras maiores, como as artérias interlobares dos
rins (por isso não há glomerulonefrite). Depois da fase de infla-
mação, podem complicar com infarto, hemorragias, trombose e
formação de microaneurismas (clássicos na doença de Kawasaki,
em coronárias, e, na poliarterite nodosa, em artérias dos rins, in-
terlobares, arciformes, interlobulares).
Lesão de grandes vasos: são vasculites que afetam a aorta
e seus ramos principais, como os ramos do arco aórtico de vasos
maiores da cabeça e pescoço. A fase aguda é caracterizada por in-
flamação, e na fase crônica há esclerose e estreitamento dos vasos,
levando à isquemia.
Vasculites são, em regra, diagnósticos de exclusão.

[ 51 ]
Vasculite é inverno quente

PERGUNTA 2:

Nas vasculites de pequenos vasos


associadas ao ANCA, os pacientes
sempre apresentarão sua titulação positiva?

Nunca diga nunca ou sempre. Mario Ferreira dos Santos,


em seu romance Homens da Tarde, do meio do século passado,
quando as vasculites eram ainda mais caóticas do que são hoje,
fala sobre o nunca e o sempre.
“... Sempre? Esta palavra sempre lhe abafa (Vitor). Dá a im-
pressão física de nunca. Sempre é nunca... não pode ser, ah! Não
pode ser. Sempre, não.”
Mas voltemos ao ANCA.
Os ANCA são produzidos pelo sistema imunológico de
uma pessoa e atacam erroneamente proteínas dentro dos neutró-
filos. Os testes ANCA detectam e medem a quantidade desses au-
toanticorpos no sangue.
Os ANCA são relativamente específicos para um grupo de
distúrbios associados à inflamação vascular, que são conhecidos
como vasculites associadas ao ANCA: granulomatose com po-
liangiíte (Wegener), poliangiíte microscópica e granulomatose
eosinofílica com polangiíte (Churg-Strauss). Dessa forma, é im-
portante ressaltar que o termo vasculite associada ao ANCA pode
ser interpretado de maneira errada, pois nem todos os pacientes
com diagnóstico clínico (e mesmo histopatologicamente compro-
vado) têm ANCA detectados.
Estudos indicaram que, em até 40% dos pacientes com vas-
culites de pequenos vasos, os valores de ANCA podem vir ne-
gativos. Sendo assim, não podemos afirmar que a totalidade dos
pacientes o apresentarão, apesar do paciente mostrar todas as

[ 52 ]
Bruno dos Santos Farnetano

características clínicas e histológicas compatíveis com vasculite


associada ao ANCA. Então, não podemos associá-lo ao curso a
atividade da doença.
Além disso, a titularidade pode mudar com o tempo e o pa-
ciente, que é negativo para ANCA no início e pode se tornar po-
sitivo para ANCA após o desenvolvimento de uma doença mais
generalizada.
O ANCA faz parte do filme que assistimos onde o enredo é
a vida da doença. Ele pode entrar em cena a qualquer momento,
mas nunca (nunca!) será um fator decisivo para o diagnóstico e
tratamento.
Lembrando, geralmente são vasculites que afetam vasos ar-
teríolas, vênulas e capilares, e eventualmente algumas artérias. Os
danos ocorrem sem depósito de imunocomplexos. São as vascu-
lites pauci-imunes.
Pauci: prefixo latino que significa pouco; pequena quanti-
dade.

[ 53 ]
Vasculite é inverno quente

PERGUNTA 3:

É sempre necessária a biópsia de um sítio


acometido para fechar
diagnóstico de uma vasculite?
Mas, e a biópsia?
A biópsia é uma parte importante do manejo de pacientes
com lesões cutâneas suspeitas de vasculite. Estudos de imunoflu-
orescência direta (DIF) também devem ser realizados em pacien-
tes com sinais cutâneos de vasculite de pequenos vasos (pápulas
e placas de urticária e púrpura palpável), para avaliar a predo-
minância da imunoglobulina A (IgA), o que aumenta o risco de
envolvimento renal. A imunofluorescência direta é um compo-
nente essencial da avaliação da vasculite cutânea em adultos, e
deve sempre ser realizada quando disponível em pacientes com
características de vasculite cutânea de pequenos vasos. Ao con-
trário das biópsias para DIF realizadas para a avaliação de doen-
ças cutâneas causadas por bolhas, retiradas da pele perilesional,
as amostras de lesões vasculíticas devem ser retiradas de dentro
das lesões.
Mas observe: os critérios de classificação e critérios diag-
nósticos não necessariamente exigem confirmação microscópica
de um processo patológico, mesmo que ele seja uma característica
definidora da doença.
A distinção entre definições e critérios de diagnóstico ou
classificação deve ser clara para entender que os termos histopato-
lógicos usados nas definições não significam que um diagnóstico
da doença possa ser feito apenas se o processo patológico for dire-
tamente observado histologicamente em uma amostra de tecido.
Por exemplo, a mononeurite múltipla clinicamente aparente
pode ser um critério de diagnóstico ou classificação para vasculite

[ 54 ]
Bruno dos Santos Farnetano

que afeta os nervos periféricos sem a necessidade de uma biópsia


de nervo na qual a vasculite é observada histologicamente. Ainda
mais em um paciente sem diabetes. Da mesma forma, no contexto
clínico apropriado, as lesões pulmonares cavitárias documentadas
por estudos de imagem podem ser um critério substituto suficien-
te para concluir que um paciente apresenta inflamação pulmonar
granulomatosa necrosante, mesmo que o tecido não tenha sido
examinado histologicamente. Mas, antes, exclua tuberculose.
Importante saber que cada vasculite tem seus critérios diag-
nósticos bem definidos. Pesquise!

Agora passe para a Parte 2 deste livro,


e leia o comentário da Dra. Ana Luisa Sampaio.
Urgente!

[ 55 ]
Vasculite é inverno quente

PERGUNTA 4:

Todas as três categorias (grandes, médios e pequenos


vasos) podem afetar quaisquer tamanhos de vasos?
Agora eu que pergunto. Você já se interessou pelas vasculites?

“Não há assuntos pouco interessantes; apenas há


pessoas pouco interessadas.” - G. K. Chesterton

Nós começamos dizendo que o principal é definir qual ta-


manho de vaso é acometido. Mas somos médicos e lidamos com
a maior obra de Deus: o ser humano. As regras em medicina têm
exceções, e a melhor forma de responder à pergunta é da seguinte
maneira:
Sim, a vasculite de grandes vasos afeta as artérias grandes
com mais frequência do que a vasculite de vasos médios ou pe-
quenos; a vasculite de vasos médios afeta predominantemente as
artérias médias; e a vasculite de vasos pequenos afeta predomi-
nantemente as artérias pequenas e outros vasos pequenos. Porém,
um conceito-chave é que as vasculites das três categorias princi-
pais pode afetar qualquer tamanho da artéria. É muito importan-
te perceber que as vasculites de vasos médios e até vasculites de
vasos grandes podem afetar pequenas artérias.
Ou seja, quando descrevemos um quadro típico de uma
vasculite (por exemplo, Takayasu), estamos descrevendo as ma-
nifestações comuns desta doença incomum. O degrau abaixo –
de probabilidade – é o das manifestações incomuns das doenças
incomuns.
Foque nas manifestações comuns das vasculites antes de
pensar que elas fugirão do padrão clássico.

[ 56 ]
Bruno dos Santos Farnetano

Veja os quatros degraus de probabilidade:


1) Manifestações comuns de doenças comuns...
2) ... são mais comuns que manifestações incomuns de do-
enças comuns...
3) ... que são mais comuns que manifestações comuns de
doenças incomuns...
4) ... e que são mais comuns que manifestações incomuns
de doenças incomuns.

[ 57 ]
Vasculite é inverno quente

PERGUNTA 5

Como identificar e tratar


uma vasculite na emergência?

“O pesadelo era o descanso do desespero. Passava


noites a sonhar e os dias a cismar.”
Victor Hugo

Eu sei que nos seus pesadelos aparecem pacientes inintubá-


veis, tóraces a serem drenados, marca-passos a serem passados e...
vasculites a serem pulsadas!
Mas a realidade se impõe e estará sempre disposta a trocar
os seus fantasmas!
Primeiro ponto: o diagnóstico diferencial principal e mais
urgente sempre será a sepse. Melhor tratar uma sepse e deixar a
vasculite para depois do que fazer o contrário. Doenças sistêmicas
na emergência são sepse (sozinha ou com outra doença). Abra o
protocolo e prescreva antibiótico. Você não fará pulsoterapia com
corticoide na emergência.
Mas não tem problema se você, na emergência, pensar numa
vasculite. É sempre bom pensar na forma em que a realidade con-
creta se apresenta diante de você. Trabalhando em emergências
durante muitos anos, um dia, numa sexta-feira, atendi uma pa-
ciente com história de broncoespasmo há dois anos, eosinofilia,
mononeuropatia múltipla e lesões de pele (vide fotos a seguir).
Era Churg-Strauss. Eu sei que estão querendo abolir os epônimos,
mas vou falar Churg-Strauss. Ok?
Você não vai tratar uma vasculite na porta do hospital. Nun-
ca! Você pode até identificá-la.

[ 58 ]
Bruno dos Santos Farnetano

Fotos de arquivo pessoal

Fotos de arquivo pessoal

[ 59 ]
Vasculite é inverno quente

PERGUNTA 6:

Visto que numerosas doenças


manifestam-se com uma clínica semelhante
a das vasculites e que as mesmas são raras
e possuem alto potencial lesivo aos órgãos,
como fazer o diagnóstico definitivo diante
de suas heterogeneidades clínicas?
Cuidado. Não fale apenas vasculites e sim uma vasculite de
grandes, médios ou pequenos vasos.
Veja o fluxograma.

TAK – Takayasu, GCA – arterite de células gigantes, PAN – poliarterite no-


dosa, MPA – poliangiíte microscópica, EGPA – Churg-Strauss, GPA – Wege-
ner, aGBM – doença da membrana basal anti-glomerular, IgA V – vasculite
por IgA, CV – vasculite por crioglobulinemia, RV – vasculite reumatoide.

[ 60 ]
Bruno dos Santos Farnetano

Para utilizar o fluxograma acima, lembre-se dos cenários


apresentados na resposta da Pergunta 1 deste livro, e então
perceba que o próximo passo é definir o tamanho do vaso.

É claro que antes disso você deve exaustivamente investigar


doenças mais prováveis e doenças imitadoras (Inferno de
Dante!).

[ 61 ]
Vasculite é inverno quente

PERGUNTA 7

Há algum marcador laboratorial


específico para as vasculites?

Não pense no laboratório antes de identificar qual o tama-


nho do vaso acometido! Nunca (sempre?).

Respondendo à pergunta: não, não há exames laboratoriais


específicos para diagnosticar vasculites. No entanto, é difícil diag-
nosticar vasculite ativa na ausência de qualquer evidência de in-
flamação. A análise laboratorial inicial deve incluir o seguinte:
– Hemograma completo e diferencial: o número elevado de
glóbulos brancos pode ser indicativo de inflamação devido a vas-
culite ou infecção. A anemia pode ocorrer durante a inflamação
ou como parte de uma doença crônica;
– Contagem de plaquetas: para eliminar a trombocitope-
nia como causa das lesões cutâneas purpúricas ou petéquias. As
plaquetas também são aumentadas inespecificamente durante a
inflamação;
– Urinálise: um sedimento anormal da urina (por exemplo,
hematúria) pode ser o único sinal de envolvimento renal em al-
guns casos de vasculite sistêmica. O exame de uma amostra de
urina recém-centrifugada fornece o maior rendimento para a de-
tecção de glóbulos vermelhos dismórficos ou moldes de glóbulos
vermelhos, que são indicativos de glomerulonefrite, a manifesta-
ção mais grave de vários tipos de vasculite. (Veja doença glomeru-
lar: avaliação em crianças.);
– Enzimas hepáticas: para detectar comprometimento he-
pático;

[ 62 ]
Bruno dos Santos Farnetano

– Creatinina sérica e nitrogênio da ureia no sangue: para


detectar comprometimento renal e avaliar a função renal;
– Taxa de sedimentação de eritrócitos e/ou proteína C-rea-
tiva: como indicadores de inflamação.

E, mais uma vez, agora com outras palavras: após uma his-
tória clínica abrangente, exame físico e avaliação laboratorial bá-
sica, identifique o tamanho do vaso, exclua doenças ou condições
que imitam vasculites ou causam vasculites secundárias, e então
verifique se os achados são consistentes com um dos tipos conhe-
cidos de vasculite primária.

[ 63 ]
Vasculite é inverno quente

PERGUNTA 8

Qual é a abordagem terapêutica de


forma geral das vasculites?
Os corticoides fazem parte desse tratamento. Sabemos que
é tóxico e que quanto menos, em tese, é melhor. Devemos ter cui-
dado com os efeitos adversos e as profilaxias, mas ele certamente
estará presente.
A abordagem terapêutica das vasculites, de forma geral, se
apresenta em três momentos:
1) Indução de remissão – geralmente envolve o uso de do-
ses médias a altas de glicocorticoides com o uso de um agente
imunossupressor adicional em algumas formas da doença. A fase
inicial do tratamento pode, portanto, ser mais intensiva que as fa-
ses subsequentes do tratamento, envolvendo o uso de doses mais
altas ou medicamentos com maior risco de toxicidade;
2) Manutenção da remissão – começa depois que a remis-
são é alcançada. A dose de glicocorticoides geralmente é constan-
temente reduzida, conforme tolerado, para limitar o desenvolvi-
mento de toxicidade induzida por drogas. Tanto os glicocorticoides
quanto outros imunossupressores podem ser mantidos em uma
determinada dose por um período de tempo, dependendo da con-
dição específica, e posteriormente reduzidos ou descontinuados,
algumas vezes após serem diminuídos, de acordo com os ajustes
terapêuticos específicos da doença, baseados em protocolos. Os
objetivos da fase de manutenção da remissão da terapia são: man-
ter o controle da atividade da doença, prevenir a recorrência da
doença após a redução ou a descontinuação dos medicamentos, e
minimizar os riscos de toxicidade do medicamento;
3) Monitoramento – onde os pacientes precisam monitorar
a atividade da doença e a toxicidade do medicamento durante a

[ 64 ]
Bruno dos Santos Farnetano

fase ativa do tratamento. Porém, os pacientes com a maioria das


formas de vasculite também precisarão monitorar a recorrência
da doença, após obter remissão livre de medicamento e interven-
ções adicionais para prevenir complicações da doença, e terapias
devem ser implementadas no início do tratamento. Sendo assim,
devido a intenção de minimizar os riscos de prejuízo à saúde pelo
uso prolongado de medicamentos, principalmente os glicocor-
ticoides, algumas medidas devem ser implementadas no início
do tratamento, sendo algumas delas: atualização dos exames de
rastreamento para tuberculose e imunizações contra influenza e
pneumonia pneumocócica; ingestão adequada de cálcio e vita-
mina D na dieta para prevenção de osteoporose; uso de aspirina
para tratamento de aterosclerose e, se uma dose baixa de aspirina
for usada, um inibidor da bomba de prótons também deve ser
administrado, pois glicocorticoides em altas doses são um fator
de risco para sangramento gastrointestinal, diminuindo as chan-
ces de úlceras pépticas; deve haver uma prevenção de infecções
oportunistas, uma vez que o uso de glicocorticoides aumenta a
suscetibilidade a estas doenças.

[ 65 ]
Vasculite é inverno quente

PERGUNTA 9

Como fazer o diagnóstico diferencial


entre as vasculites de pequenos vasos
através de suas características mais marcantes?
As vasculites de pequenos vasos acometem tipicamente va-
sos com diâmetro inferior a 50mm e se apresentam em dois gru-
pos: vasculites associadas ao ANCA, e vasculites de pequenos va-
sos do complexo imune.
As vasculites associadas ao ANCA são vasculites necrotizan-
tes que não envolvem substancialmente a deposição de complexos
imunes. Suas principais variantes clínico-patológicas incluem po-
liangiíte microscópica, granulomatose com poliangiíte (Wegener)
e granulomatose eosinofílica com poliangiíte (Churg-Strauss).
A poliangiíte microscópica manifesta-se mais comumente como
glomerulonefrite necrosante e/ou capilarite pulmonar; a inflama-
ção granulomatosa geralmente está ausente; o ANCA está presen-
te em mais de 90% dos pacientes. Na granulomatose com polian-
giíte há uma produção típica de inflamação granulomatosa das
vias respiratórias superior e inferior, além de glomerulonefrite; o
ANCA está presente em mais de 80% dos pacientes, geralmente
ANCA antiproteinase-3. Já a granulomatose eosinofílica com po-
liangiíte é marcada pela presença de hipereosinofilia no sangue
periférico. Os pacientes geralmente apresentam rinossinusite crô-
nica e/ou asma; o ANCA está presente em aproximadamente 40%
dos pacientes, geralmente ANCA anti-mieloperoxidase.
Em relação às vasculites de pequenos vasos do complexo
imune, sua principal característica é a presença de depósitos de
imunoglobulina e/ou complemento na parede dos vasos. A glo-
merulonefrite frequentemente está presente. Suas principais re-
presentantes são a doença da membrana basal anti-glomerular,
vasculite crioglobulinêmica, vasculite por IgA e vasculite urti-

[ 66 ]
Bruno dos Santos Farnetano

cariforme hipocomplementêmica. A doença da membrana ba-


sal anti-glomerular é uma vasculite que pode afetar tanto capi-
lares glomerulares quanto capilares pulmonares, com deposição
da membrana basal dos autoanticorpos da membrana antibasal.
O envolvimento pulmonar normalmente causa hemorragia pul-
monar, e o envolvimento renal causa glomerulonefrite aguda ou
rapidamente progressiva, tipicamente associada à formação cres-
cente. A vasculite crioglobulinêmica é caracterizada pela presença
de crioglobulinas, que são depositadas nas paredes dos capilares,
vênulas ou arteríolas, resultando em inflamação nos pequenos va-
sos, e que geralmente ocorre devido à infecção pelo vírus da he-
patite C. Frequentemente envolvem pele, glomérulos e nervos pe-
riféricos. Já a vasculite por IgA (púrpura de Henoch-Schönlein)
é uma vasculite sistêmica caracterizada pela deposição tecidual de
complexos imunes dominantes por IgA1 e é a forma mais comum
de vasculite sistêmica em crianças. Geralmente afeta a pele e o
trato gastrointestinal e frequentemente causa artrite. E, por fim,
a vasculite urticariforme hipocomplementêmica (vasculite anti-
-C1q) é uma vasculite associada à urticária e hipocomplemente-
mia. Glomerulonefrite, artrite, doença pulmonar obstrutiva, dor
abdominal recorrente, uveíte e episclerite também podem ser ob-
servadas.

[ 67 ]
Vasculite é inverno quente

PERGUNTA 10

Quais são as características das


manifestações cutâneas das vasculites e
quais os possíveis diagnósticos diferenciais?
As características clínicas comuns das vasculites cutâneas
incluem petéquias, púrpuras palpáveis, bolhas hemorrágicas, nó-
dulos subcutâneos, ulcerações ou necrose digital, livedo reticular,
livedo racemoso e urticárias.
Petéquias são máculas pontuais não palpáveis e palpáveis
(com menos de alguns milímetros de diâmetro), que resultam
da inflamação capilar e extravasamento de glóbulos vermelhos.
A púrpura palpável é uma manifestação comum da vasculite de
pequenos vasos. A rápida inflamação das vênulas e arteríolas ma-
nifesta-se inicialmente como pápulas e placas eritematosas infil-
tradas. Estas progridem para lesões levantadas à medida que os
danos nas paredes dos vasos aumentam. As bolhas hemorrágicas
relacionam-se com envolvimento de pequenos vasos em toda a
derme, podendo resultar em necrose do tecido sobrejacente e ex-
travasamento de glóbulos vermelhos. Já os nódulos subcutâne-
os associam-se com uma inflamação intensa de vasos de tama-
nho médio (vasos com paredes musculares na derme profunda
e subcutânea), que pode levar à formação de lesões nodulares. A
ulceração e necrose tecidual ocorrem quando a vasculite resul-
ta em perfusão vascular reduzida na pele. Úlceras superficiais
podem ocorrer em pacientes com vasculite de pequenos vasos;
úlceras profundas são geralmente o resultado de doença dos va-
sos médios. O livedo reticular se apresenta como uma rede vas-
cular irregular, reticulada, localizada ou disseminada, com um
tom vermelho-azul ou violáceo. Resulta do comprometimento
do fluxo sanguíneo em vasos de tamanho médio, e pode ocor-
rer no cenário de vasculopatia devido a vasoespasmo, estados hi-
percoaguláveis, trombose, aumento da viscosidade do sangue ou

[ 68 ]
Bruno dos Santos Farnetano

fenômenos embólicos, bem como em associação com vasculite.


O livedo racemosa apresenta um padrão vascular mais abrupto e
quebrado do que o livedo reticular. Está fortemente associado à
síndrome de Sneddon, um distúrbio não vasculítico caracterizado
por lesões cutâneas livedoides e acidentes cerebrovasculares, mas
também pode ocorrer em vasculites e outros distúrbios. Por fim,
diferentemente da urticária não vasculítica, as lesões de vasculite
urticariforme geralmente persistem por mais de 24 horas e fre-
quentemente estão associadas a uma sensação de queimação ou
dor, em vez de prurido. As lesões podem conter áreas purpúricas,
podendo se resolver com hiperpigmentação.
As lesões de vasculite cutânea ocorrem mais comumente
em uma distribuição simétrica na parte inferior das pernas, áre-
as dependentes ou em áreas de roupas constritivas devido ao au-
mento da pressão hidrostática nesses locais. As lesões cutâneas
são frequentemente assintomáticas, mas podem estar associadas a
prurido, sensação de queimação ou dor.
O curso da doença é variável; alguns pacientes experimen-
tam um episódio único e limitado de vasculite, como geralmen-
te ocorre com vasculite secundária a medicamentos ou infecção,
enquanto outras vasculites são caracterizadas por doença crônica
ou recidivante. A duração dos sintomas varia de vários dias a dé-
cadas.
Quanto aos diagnósticos diferenciais, a presença de uma
erupção petequial ou purpúrica não indica necessariamente a
presença de vasculite. Exemplos de outros distúrbios que po-
dem apresentar esses achados incluem dermatoses purpúricas
pigmentadas, púrpura macular por exposição crônica ao sol,
terapia com glicocorticoides, trauma ou anticoagulantes locais
dependentes (por exemplo, dermatite de estase ou erupção de
drogas maculopapulares), picadas de artrópodes, escorbuto, de-
ficiências ou disfunção plaquetária, distúrbios hipercoaguláveis e
trombóticos, embolia séptica, amiloidose sistêmica, estrongiloidí-
ase, púrpura fulminans e vasculopatia livedoide. Imitadores co-

[ 69 ]
Vasculite é inverno quente

muns de vasculite.
Dentre as mais comuns, temos as dermatoses purpúricas
pigmentadas (também conhecidas como capilarite: máculas, re-
mendos ou placas pontuais e inesgotáveis), que acometem geral-
mente a parte inferior das pernas. A púrpura macular também se
enquadra, uma vez que pode ocorrer devido à exposição crônica
ao sol; terapia com glicocorticoides, trauma ou anticoagulantes
locais dependentes (por exemplo, dermatite de estase ou erupção
de drogas maculopapulares). Picadas de artrópodes também po-
dem simular as lesões (por exemplo, percevejos).
Dentre os imitadores de vasculite menos comuns, temos o
escorbuto (hemorragia perifolicular), deficiências ou disfunção
plaquetária (petéquias ou púrpura macular), distúrbios hiper-
coaguláveis e trombóticos (púrpura retiforme não inflamatória),
gangrena digital, livedo reticular, embolia séptica (petéquias nas
extremidades distais, púrpura retiforme não inflamatória), ami-
loidose sistêmica (púrpura periorbital), estrongiloidíase (púrpura
periumbilical), púrpura fulminans (lesões purpúricas acentuada-
mente demarcadas no cenário de coagulação intravascular dis-
seminada ou sepse), vasculopatia livedoide (também conhecida
como atrophie blanche; apresenta úlceras perfuradas nas pernas
com livedo reticular ou livedo racemosa circundante).

[ 70 ]
Bruno dos Santos Farnetano

PERGUNTA 11

Como acontece a síndrome pulmão-


rim na poliangiíte microscópica?
A poliangiíte microscópica acomete vasos de pequenos e
médios calibres, causando, dessa forma, acometimento capilar
tanto pulmonar quanto renal. O acometimento renal a partir da
vasculite é evidenciado em apenas 18% dos pacientes, porém, sub-
sequentemente se desenvolve em até 85% deles. A manifestação
pulmonar mais frequentemente associada à poliangiíte microscó-
pica é a hemorragia alveolar, presente em até 45% dos pacientes.
Esses acometimentos são independentes, mas quando presentes
ao mesmo tempo constituem a síndrome pulmão-rim caracterís-
tica da poliangiíte microscópica.

Atenção: a síndrome pulmão-rim pode ocorrer em diversas


doenças, dentre elas: lúpus eritematoso sistêmico, artrite reuma-
toide, envenenamento por paraquat (um herbicida), hantavirose,
leptospirose, etc.

[ 71 ]
Vasculite é inverno quente

PERGUNTA 12

É correto afirmar que a vasculite de Churg-


Strauss possui a síndrome pulmão-rim, já que o
acometimento renal ocorre em 1/3 dos casos?

Cuidado. Preste atenção sempre na realidade e no que há de


concreto na sua frente. Em um paciente com síndrome pulmão-
-rim e Churg-Strauss, é correto afirmar isso. Mas a doença não se
resume a essa manifestação. O quadro pode abrir, por exemplo,
com uma síndrome nefrítica sem acometimento pulmonar.
Churg-Strauss é caracterizada por uma tríade clínica de
asma, hipereosinofilia e vasculite necrosante. Asma é a principal
característica da síndrome. O pulmão é o órgão comprometido
mais frequentemente, em 70% dos casos, seguido pelos rins, atin-
gindo 1/3 dos pacientes. Esses, quando acometidos juntos, são ca-
racterizados pela síndrome pulmão-rim.
O complexo da síndrome pulmão-rim é determinado com a
combinação de hemorragia alveolar difusa seguida de glomerulo-
nefrite rapidamente progressiva, dentro dos protocolos diagnós-
ticos de níveis de anticorpos anticitoplasma neutrófilo (ANCA),
broncoscopia, tomografia de tórax e sedimento urinário. Foram
encontradas três formas principais: granulomatose com poliangií-
te, síndrome de Churg-Strauss e síndrome de Goodpasture.

[ 72 ]
Bruno dos Santos Farnetano

PERGUNTA 13

Como diferenciar clinicamente a


poliangiíte granulomatosa eosinofílica (Churg-
Strauss) da poliangiíte granulomatosa (Wegener)?

Apesar das duas doenças acometerem principalmente o


mesmo calibre de vasos (vasculites de pequenos vasos), serem as-
sociadas ao ANCA e, também, na maioria dos casos, acometerem
os mesmos órgãos, como pulmão e rim, existem peculiaridades
específicas de cada doença que são descritas para diferenciá-las.
Uma diferença já apresentada no nome das doenças é que
o Churg-Strauss é uma doença eosinofílica, ou seja, há infiltrado
inflamatório eosinofílico nos vasos que são acometidos, o que não
ocorre em Wegener.
Além disso, os antígenos das duas patologias são diferentes:
P-ANCA está relacionado ao Churg-Strauss; e C-ANCA relacio-
nado a Wegener.
As manifestações clínicas no Churg-Strauss geralmente são
descritas em três fases, sendo elas: fase prodrômica, que pode du-
rar anos com sintomas como asma atópica e rinite de fácil contro-
le. A fase eosinofílica, na qual observa-se infiltrado eosinofílico
em vários órgãos, principalmente em trato respiratório e trato
urinário. E a terceira fase, também chamada de fase vasculítica,
que é caracterizada por uma vasculite sistêmica acentuada que
pode acometer praticamente todos os sistemas do corpo humano,
incluindo o sistema nervoso periférico, desenvolvendo mononeu-
rite múltipla, TGI podendo causar de uma simples dor abdominal
a um quadro de abdome agudo, sistema cardíaco podendo ser afe-
tado, ocasionando miocardite, pericardite, insuficiência cardíaca
ou até mesmo vasculite de coronárias com consequente infarto do
miocárdio. O sistema respiratório é afetado em praticamente to-

[ 73 ]
Vasculite é inverno quente

dos os doentes, não só com a asma da primeira etapa, mas também


com infiltrados na radiografia de tórax, que são vistos em até 77%
dos portadores da doença. O derrame pleural também é muito
visto nesses pacientes. O acometimento renal é mais brando que
em outras vasculites, mas também podem ocorrer complicações.
Já as manifestações clínicas de Wegener são bem inespecífi-
cas, sendo isso uma dificuldade para se dar o diagnóstico, prolon-
gando o tempo até a descoberta e piorando, assim, o prognóstico.
A sintomatologia de Wegener pode surgir de modo grada-
tivo ou abruptamente. As primeiras manifestações ocorrem, ge-
ralmente, no trato respiratório superior, podendo ocorrer, inclu-
sive, hemorragia nasal, sinusite, otite, tosse e expectoração com
a presença de sangue. Há também presença de febre, mal-estar
geral, anemia, inapetência, dores e tumefações articulares. Assim
como Churg-Strauss, Wegener pode acometer todos os sistemas
do corpo humano, gerando os sintomas já citados acima. Uma di-
ferenciação de sistemas acometidos pode ser feita pela glomerulo-
nefrite necrosante, que é comum em Wegener e pouco comum em
Churg-Strauss. O acometimento renal em Wegener é, em regra,
mais comum que em Churg-Strauss.
A síndrome pulmão-rim é comumente vista na doença de
Wegener, apesar de poder estar presente também em Churg-S-
trauss.

[ 74 ]
Bruno dos Santos Farnetano

PERGUNTA 14

Como fazer o diagnóstico diferencial entre as


vasculites por depósitos de imunocomplexos?

Vamos ver um pouco destas vasculites de pequenos vasos.


Vasculites crioglobulinêmicas: ainda não existem critérios
diagnósticos estabelecidos, mas geralmente se utilizam os seguin-
tes critérios para diagnosticá-las:
– Criocrito elevado, superior a 1% ou 50 mcg/L. Esse teste é
feito com coleta de 10 a 20 ml de sangue em tubos pré-aquecidos
a 37ºC sem anticoagulantes. Após 30 minutos a uma hora, o soro
é centrifugado e colocado em um tubo posteriormente resfriado a
4ºC para permitir a precipitação da crioglobulina.

Além de um ou mais dos seguintes:


– Indicadores clínicos de vasculite ou trombose crioglobu-
linêmica: envolvimento de pele, articulação, rim, sistema nervoso
central, nervos periféricos, gastrointestinal, pulmonar e/ou car-
díaco, além da diminuição da concentração sérica de C4. A con-
firmação histológica com biópsia não é necessária se o paciente
apresentar púrpura palpável típica;
– Evidência histológica e imunoquímica direta de crioglo-
bulinas em amostras trombóticas ou vasculíticas patológicas. Esse
tipo de pesquisa, no entanto, raramente é utilizado na detecção da
doença na prática clínica.
É importante saber que as vasculites crioglobulinêmicas es-
tão muito relacionadas ao vírus da hepatite C. Estima-se que 50%
dos pacientes portadores do HCV apresentam crioglobulinemia
mista, e cerca de 30% a 50% destes apresentam manifestações de

[ 75 ]
Vasculite é inverno quente

vasculites.
Doença da membrana basal antiglomerular (síndrome de
Goodpasture) – a doença deve ser suspeitada em pacientes com
glomerulonefrite aguda, principalmente se acompanhada de rápi-
da progressão ou hemorragia pulmonar.
O diagnóstico precisa de demonstração de anticorpos anti-
-GBM em soro ou rim, devendo a biópsia ser sempre feita na
ausência de contraindicação.
A microscopia de luz costuma mostrar glomerulonefrite cres-
cêntica, enquanto a imunofluorescência mostra deposição li-
near de IgG nos capilares glomerulares e nos túbulos distais,
sendo este achado praticamente patognomônico.

Vasculite por IgA (púrpura de Henoch-Schönlein) – a


clássica manifestação da doença se baseia na tétrade que inclui:
púrpura palpável sem trombocitopenia e coagulopatia, artrite/ar-
tralgia, dor abdominal e doença renal. Pode apresentar ainda en-
volvimento escrotal, de sistema nervoso central e periférico, além
de trato respiratório e olhos.
Quando tal doença acomete adultos, estes podem apresen-
tar intussuscepção e possuem maior risco de desenvolver doenças
renais mais graves.
O Colégio Americano de Reumatologia define os seguintes
critérios para o diagnóstico da doença:
– Púrpura palpável: púrpuras elevadas, não relacionadas à
plaquetopenia;
– Idade de início inferior a 20 anos: idade de início dos sin-
tomas antes dos 20 anos;
– Dor abdominal: geralmente difusa, que piora às refeições,
ou presença de sangramento nas fezes;
– Alterações na biópsia de pele: o exame histológico eviden-
cia granulócitos em paredes de arteríolas ou vênulas.

[ 76 ]
Bruno dos Santos Farnetano

São necessários dois ou mais dos quatro critérios para defi-


nir o diagnóstico.
A EULAR (The European League Against Rheumatism)
apresenta algumas diferenças em seus critérios diagnósticos. São
eles:
– Púrpura palpável (critério obrigatório) e pelo menos um
dos seguintes:
– Dor abdominal difusa;
– Artrite ou artralgia;
– Envolvimento renal (hematúria ou proteinúria);
– Biópsia com vasculite leucocitoclástica com depósito pre-
dominante de IgA ou glomerulonefrite proliferativa com depósito
predominante de IgA6.

Vasculite urticariforme hipocomplementêmica: consiste em


urticária e evidência de vasculite leucocitoclástica na biópsia de
pele. Afeta principalmente a pele, mas também pode comprome-
ter outros órgãos, como pulmões, rins e trato gastrointestinal.
O diagnóstico é feito com base nos seguintes critérios:

Critérios principais: O paciente deve apresentar os dois


critérios a seguir:
– Urticária por mais de 6 meses;
– Hipocomplementemia.

Critérios menores: o paciente deve ter pelo menos dois dos


critérios:
– Venulite da derme (estabelecida por biópsia);
– Artralgia ou artrite;

[ 77 ]
Vasculite é inverno quente

– Glomerulonefrite leve;
– Uveíte ou episclerite;
– Dor abdominal recorrente;
– Positividade no teste de C1q precipitina por imunodifu-
são associado a nível suprimido de C1q.

[ 78 ]
Bruno dos Santos Farnetano

PERGUNTA 15

Qual é o padrão de acometimento mais


prevalente na vasculite lúpica?

Primeiro ponto: essa paciente tem lúpus? Começamos por


aí. Vamos pensar em padrões de vasculite lúpica numa paciente
que tem lúpus, ok?

O espectro clínico da vasculite no lúpus eritematoso sistê-


mico (LES) é amplo devido ao potencial de envolvimento inflama-
tório de vasos de todos os tamanhos. Entretanto, o envolvimento
de pequenos vasos é o mais comum e manifesta-se com lesões
cutâneas, como púrpura palpável, petéquias, lesões papulonodu-
lares, livedo reticular, paniculite, hemorragias lascadas e ulcera-
ções superficiais. Como exemplo, uma grande série incluindo 670
pacientes com LES identificou vasculite em 11% dos pacientes. As
lesões cutâneas foram a principal apresentação clínica da vasculi-
te, presente em 89% dos pacientes; os 11% restantes dos pacientes
com vasculite apresentaram envolvimento visceral.
A forma mais comum de acometimento no LES, ocorren-
do em 10 a 15% dos casos, é a vasculite urticariforme. As lesões
de vasculite urticariana podem persistir por mais de 24 horas e
evoluir para petéquias ou púrpuras dolorosas que podem cursar
com hiperpigmentação. A vasculite também pode afetar pequenas
artérias, resultando em microinfartos das pontas dos dedos das
mãos, dos dedos dos pés, das cutículas e das dobras das unhas
(hemorragias lascadas), e da superfície extensora do antebraço e
da canela (foto). As palmas das mãos (foto), as solas dos pés e a
área ao redor do tornozelo são menos comumente envolvidas. O
envolvimento do tornozelo pode evoluir para úlceras dolorosas e

[ 79 ]
Vasculite é inverno quente

perfuradas lentamente. Podem ocorrer lesões do tipo periarterite


nodosa.
A vasculite urticariforme e o LES têm características sobre-
postas e há especulações de que a síndrome da vasculite urticari-
forme hipocomplementêmica (HUVS) esteja dentro do espectro
do LES. Algumas características sobrepostas do HUVS e do LES
incluem artrite, glomerulonefrite e presença de hipocomplemen-
temia e anticorpos antinucleares (ANA). O HUVS pode ser uma
característica do LES, ou mais comumente pode se desenvolver
em pacientes com LES de longa data.
Outros tipos específicos de envolvimento vasculítico no
LES incluem vasculite mesentérica, vasculite hepática, vasculi-
te pancreática, vasculite coronária, vasculite pulmonar, vasculite
retiniana, bem como vasculite do sistema nervoso periférico ou
central. Alguns casos de aortite, semelhantes aos observados na
arterite de Takayasu, foram relatados.

Foto de arquivo pessoal

[ 80 ]
Bruno dos Santos Farnetano

Foto de arquivo pessoal

[ 81 ]
Vasculite é inverno quente

PERGUNTA 16

A poliangiíte microscópica pode


acometer grandes vasos ou somente
pequenos e médios vasos?

Quais os principais órgãos


afetados pela doença?

Pode sim, mas seria a manifestação incomum desta doença


incomum.

Poliangiíte microscópica (MPA) é uma forma de vasculite


sistêmica de pequenos vasos, associada aos anticorpos anticito-
plasma de neutrófilos, que preferencialmente acomete vênulas,
capilares e arteríolas, e que pode, entretanto, envolver artérias e
veias. A MPA afeta pequenos vasos (mais raramente, artérias de
calibre médio) em qualquer órgão, resultando numa grande varie-
dade de sintomas inespecíficos. As manifestações clínicas iniciais
são indicativas de inflamação sistêmica: febre, artralgias, mialgias,
fadiga e/ou perda de apetite. À medida que a doença progride,
90% dos doentes apresentam envolvimento renal com glomeru-
lonefrite pauci-imune necrosante e crescêntica, que pode ter um
curso rápido e progressivo se não tratado imediatamente. O en-
volvimento pulmonar (hemorragia alveolar, derrame pleural) é
frequente e manifesta-se com sintomas como tosse, dispneia ou
hemoptise. A manifestação mais grave é doença pulmonar e re-
nal combinada (síndrome pulmonar-renal). O envolvimento gas-
trointestinal pode apresentar-se com dor abdominal, náuseas ou
vômitos, e pode ser fatal em caso de isquemia, peritonite ou per-
furação. São também observados sintomas neurológicos (princi-

[ 82 ]
Bruno dos Santos Farnetano

palmente mononeurite múltipla), envolvimento dermatológico


(principalmente angiíte leucocitoclástica) e músculoesquelético
(artralgias, mialgias) e sinais oculares (por exemplo, episclerite,
vasculite da retina, uveíte). O envolvimento cardiovascular (por
exemplo, pericardite, insuficiência cardíaca) é raro.

[ 83 ]
Vasculite é inverno quente

PERGUNTA 17

Por que o anticorpo anticitoplasma de neutrófilos


(ANCA) positivo tem relação com glomerulonefrite?

Certos autores sugerem que alguns anticorpos se ligando


aos neutrófilos promovem a granulação do neutrófilo. Este adere à
parede do vaso, é atacado por um autoanticorpo e libera seus con-
teúdos de radicais livres e enzimas proteolíticas. Isso levaria a uma
inflamação na parede do vaso. O acometimento renal associado
ao ANCA nas vasculites expressa-se por uma glomerulonefrite
crescente pauci-imune. A glomerulonefrite (GN) pauci-imune é
mais comum em adultos em comparação com crianças, e a etio-
logia ainda não é completamente compreendida. A positividade
do ANCA ocorre em 80% dos pacientes com GN pauci-imune.
Na literatura há poucos casos de acometimento renal isolado e
ANCA positivado.

[ 84 ]
Bruno dos Santos Farnetano

PERGUNTA 18

Como diferenciar se estamos diante de uma


vasculite secundária à artrite reumatoide ou de uma
sobreposição entre a vasculite de células gigantes
(polimialgia reumática) e a artrite reumatoide?

As duas entidades descritas acometem vasos de tamanhos


diferentes!
A polimialgia reumática é caracterizada por rigidez dolo-
rosa e matinal sobre as cinturas escapulares e de quadril, e está
presente em aproximadamente 40 a 50% dos pacientes com arte-
rite de células gigantes (ACG). Esta vasculite é classificada como
uma vasculite de grandes vasos, devido ao envolvimento prefe-
rencial pela aorta e seus principais ramos proximais, e tem como
manifestações clínicas: aneurismas, dissecção de aorta, estenose e
ectasia, acometendo indivíduos com mais de 50 anos.
A polimialgia reumática teve o nome de artrite reuma-
toide do idoso, tendo em vista a idade dos acometidos, as dores
articulares e o fator reumatoide positivo.
Já a vasculite secundária à artrite reumatoide refere-se a um
processo inflamatório destrutivo na parede dos vasos sanguíne-
os, e ocorre em pacientes com artrite reumatoide grave de lon-
ga data. Comumente, os vasos afetados são de tamanho médio
ou pequeno. A doença clinicamente evidente é incomum, sendo
sua incidência anual também muito rara. Com o uso de terapias
antirreumáticas (DMARD) agressivas e eficazes para modificar a
doença, a manifestação tornou-se menos comum, e estudos mos-
tram uma redução desde a década de 80 para menos de 1%. As
manifestações clínicas desse acometimento são principalmente
cutâneas, podendo ocorrer púrpura, petéquias, pápulas, úlceras

[ 85 ]
Vasculite é inverno quente

em membros inferiores, vasculite digital e lesões isquêmicas. Ma-


nifestações cardíacas também podem ser encontradas, como pe-
ricardite. Trombose e formação de aneurisma não foram observa-
das. O acometimento da aorta também não é comum.
O diagnóstico de vasculite reumatoide deve ser suspeitado
em pacientes com história de artrite reumatoide de longa data,
que desenvolvam sinais característicos de vasculite cutânea, prin-
cipalmente. Além da positividade dos marcadores como fator
reumatoide e presença do anticorpo anti-CCP, os fatores de risco
incluem títulos elevados dos marcadores e doença extra-articular
em outros locais, como nódulos reumatoides.

Perceberam que mais uma vez o tamanho dos vasos acome-


tidos é importante?

Eu atendi, há cerca de 10 anos, uma paciente com artrite


reumatoide de difícil controle e lesões de pele compatíveis com
vasculite de pequenos vasos. Veja a foto a seguir.

[ 86 ]
Bruno dos Santos Farnetano

Foto de arquivo pessoal

[ 87 ]
Vasculite é inverno quente

PERGUNTA 19

Como fazer a diferenciação das vasculites de


pequenos vasos por complexo imune?

As vasculites por complexo imune são vasculites que pos-


suem depósito de imunoglobulina e/ou complemento nas paredes
dos vasos. Afetam, principalmente, pequenos vasos (vênulas, ca-
pilares e pequenas artérias). Podem ser classificadas como vascu-
lites associadas à etiologia provável ou como vasculite associada à
doença sistêmica.
As vasculites de pequenos vasos do complexo imune são:
doença da membrana basal antiglomerular (anti-GMB), vasculi-
te IgA (Henoch-Schönlein) (IgAV), vasculite crioglobulinêmica
(CV) e vasculite hipocomplementêmica urticeral (HUV) (vascu-
lite anti-C1q).
Trata-se de um grupo heterogêneo de doenças que tem em
comum um quadro de vasculite cutânea e que, de modo carac-
terístico, se manifesta por púrpura palpável e ocorrência de glo-
merulonefrite.
A apresentação da Anti-GMB é muito parecida com outras
formas de glomerulonefrite rapidamente progressiva (insuficiên-
cia renal relativamente aguda com proteinúria e sedimento ne-
frítico com células dismórficas e modelos granulares). Apresenta
acometimento pulmonar com hemorragia alveolar. Para se fechar
o diagnóstico, é importante que se ache anticorpos anti-GBM no
soro ou no rim. A biópsia renal deve ser realizada, a menos que
haja contraindicação, já que a precisão dos testes sorológicos é va-
riável. Além disso, a biópsia renal fornece informações importan-
tes sobre a atividade e a cronicidade do envolvimento renal, que
podem ajudar a orientar a terapia.

[ 88 ]
Bruno dos Santos Farnetano

A vasculite IgA é uma vasculite típica de pacientes pediátri-


cos. A clínica clássica é a tétrade: púrpura palpável, dor abdomi-
nal, artralgia ou artrite e danos nos rins. É uma doença que pode
envolver outros órgãos como escroto (dor escrotal) e danos ao
sistema nervoso central e periférico (cefaleia, convulsões, encefa-
lopatia). Nos adultos, a clínica é semelhante. A diferença é que em
adultos a intussuscepção é rara e tem maior risco de envolvimento
renal importante (inclusive doença renal terminal). O diagnóstico
normalmente é baseado na clínica. Em pacientes que têm uma
apresentação incompleta ou incomum, uma biópsia pode ser im-
portante para fechar o diagnóstico, já que mostrará uma deposi-
ção de IgA no órgão afetado (pele ou rins).
A vasculite crioglobulinêmica (CV) tem uma variedade de
apresentação clínica muito grande. As características mais co-
muns são artralgia, púrpura, úlcera de pele, glomerulonefrite e
neuropatia periférica. Se ocorrer uma doença hematológica clo-
nal, infecção viral ou doenças do tecido conjuntivo, deve-se sus-
peitar ainda mais da CV. A característica laboratorial mais impor-
tante é a crioglobulina e um baixo nível de complemento C4. Na
maioria das vezes a biópsia não é necessária, mas pode ajudar a
estabelecer evidências histopatológicas para confirmação da do-
ença. O diagnóstico, portanto, é uma associação de dados clínicos,
laboratoriais e patológicos.
Na vasculite hipocomplementêmica urticeral (HUV) (vas-
culite anti-C1q), as placas de urticária podem ser encontradas em
qualquer parte do corpo, tendem a ser pruriginosas e duram cerca
de 24 horas. Além de achados cutâneos, a artralgia é o achado sis-
têmico mais comum. O diagnóstico deve ser abalizado quando há
urticária recorrente ou persistente (por mais de seis meses) com
características clínicas indicativas (artralgia, glomerulonefrite
leve, uveíte ou episclerite ou/e dor abdominal recorrente), acha-
dos sorológicos (teste positivo de precipitina C1q por imunodifu-
são com um nível suprimido de C1q suprimido), ou evidência de
doenças sistêmicas.

[ 89 ]
Vasculite é inverno quente

PERGUNTA 20

Tendo em vista que a tromboangiíte


obliterante é uma doença que cursa com
processo inflamatório vascular, por que
não foi incluída na classificação de
vasculites de Chapel Hill, 2012?

Uma questão conceitual.


A tromboangiíte obliterante é uma doença vascular não ate-
rosclerótica rara, cuja associação mais reconhecida é com o taba-
gismo. Envolve vasos pequenos e médios em tamanho, e além de
ser um processo inflamatório, também causa obstrução do vaso
ao qual ela afeta. Não se reconhecem exatamente os mecanismos
relacionados, mas sabe-se que ela poupa, relativamente, a parede
do vaso acometido e forma um trombo ricamente celular, espe-
cialmente de células gigantes. Não causa processo necrótico na
parede do vaso. Ou seja, apresenta processo patogênico diferente
das vasculites sistêmicas encontradas nos critérios classificatórios
de Chapel Hill.

[ 90 ]
Bruno dos Santos Farnetano

PERGUNTA 21

Quando pensar na doença de Kawasaki?

Pensaremos em doença de Kawasaki em crianças com um


quadro de febre alta, caracterizada como uma febre de duração
acima de cinco dias, normalmente não remitente (mas, se não for
tratada com antipiréticos, a temperatura não retorna ao normal),
e > 39° C (cerca de 102° F), e estando associada com irritabilidade,
letargia ocasional ou dor abdominal com cólicas intermitentes.
Normalmente, em um ou dois dias do início da febre, congestão
conjuntival bulbar bilateral aparece sem exsudato.
É uma doença de crianças, em regra, apesar de descrita em
adultos com sinais e sintomas semelhantes.

[ 91 ]
Vasculite é inverno quente

PERGUNTA 22

É possível diferenciar poliarterite nodosa


(PAN), poliangiíte com granulomatose (GPA)
e granulomatose eosinofílica com poliangiíte
(EGPA) através de achados angiográficos renais?

A princípio, nenhuma anormalidade angiográfica é patog-


nomônica de determinada vasculite, mas elas podem ser clara-
mente usadas para apoiar um diagnóstico. Os angiogramas de
artéria renal na PAN podem mostrar aneurismas, oclusões e irre-
gularidades na parede vascular. Por outro lado, não se espera que a
angiografia renal seja útil na avaliação de uma vasculite de peque-
nos vasos – GPA e EGPA, porque os vasos mais comumente afeta-
dos (artérias intraparenquimatosas, arteríolas, capilares, vênulas
e veias) estão abaixo da resolução dos angiogramas usuais. Logo,
a demonstração histológica obtida por biópsia é usualmente mais
eficiente neste caso. Desta maneira, deve-se ressaltar que, como
na angiografia, nenhum achado histológico é patognomônico de
qualquer síndrome vasculítica específica. Desta forma, conclui-se
que o método mais efetivo para diferenciar PAN, GPA e EGPA
é a combinação de parâmetros clínicos, sorológicos, histológicos
e angiográficos, e que um dado isolado não deve ser usado para
distinguir as mesmas.

Atenção: PAN, por não pegar glomérulo, não dará sedimen-


to urinário ativo!

[ 92 ]
Bruno dos Santos Farnetano

PERGUNTA 23

Uma vez que as vasculites de grandes


vasos (Takayasu e arterite temporal) são
semelhantes em suas manifestações, como se
dá o diagnóstico diferencial entre as duas?

Idade! Principalmente idade!

Embora essas vasculites sejam muito semelhantes, as apre-


sentações das manifestações comuns podem guiar o diagnóstico
diferencial, e a idade da manifestação é um critério importante na
distinção entre essas duas vasculites.
A arterite de Takayasu é uma doença inflamatória crônica
progressiva caracterizada como vasculite granulomatosa crônica,
que envolve a aorta e seus principais ramos. Os principais sinais
e sintomas são as alterações isquêmicas secundárias às oclusões
arteriais, alterações dos pulsos arteriais periféricos mais frequen-
tes (ausência, diminuição de amplitude ou diferença na pressão
arterial em relação ao membro heterólogo de 30 mmHg), o que
chama-se de doença sem pulso, sopro e frêmito em trajetos ar-
teriais, carótidas sensíveis à palpação, parestesias e claudicação,
principalmente em membros superiores (MS). Além disso, a vas-
culite de Takayasu acomete principalmente mulheres mais jovens,
sendo a idade abaixo de 40 anos.
Já a vasculite temporal ou de células gigantes, que também
é uma vasculite crônica granulomatosa sistêmica, acomete prin-
cipalmente os ramos extracranianos das carótidas, sendo mais
comum em pessoas com mais de 50 anos. Acima dos 70 anos é
a vasculite mais prevalente. Os principais sinais e sintomas são:
claudicação da mandíbula, que é um sintoma clássico da vasculite

[ 93 ]
Vasculite é inverno quente

temporal. Cefaleia recorrente ou de novo padrão também é muito


comum, com frequência é associada à polimialgia reumática, sen-
do que a perda da visão por neuropatia óptica isquêmica anterior
é a complicação mais temida, podendo causar amaurose.
No fim das contas, o que mais importa é a extensão da vas-
culite, e não o nome dela.

Vejam, a seguir, o quadro de Francesco Giamberti (1485)


intitulado Piero di Cosimo. A artéria temporal esquerda, salien-
te no quadro, mostra que Piero di Cosimo, um músico da época,
provavelmente sofreu com a doença. Lembrem de Piero, lembrem
da idade de Piero.

[ 94 ]
Bruno dos Santos Farnetano

[ 95 ]
Vasculite é inverno quente

PERGUNTA 24

Como podemos diferenciar clinicamente a doença


de Kawasaki da púrpura de Henoch-Schönlein?

A primeira é uma vasculite de médios vasos, e a segunda de


pequenos vasos. Começamos por aí.
A doença de Kawasaki e a púrpura de Henoch-Schönlein
são vasculites que acometem principalmente a faixa etária pediá-
trica. Além disso, podem se apresentar com manifestações clíni-
cas parecidas, podendo dificultar o diagnóstico à beira do leito.
A doença de Kawasaki, clinicamente, se manifesta com: febre
alta, queixas dermatológicas, linfadenopatia, acometimento oftal-
mológico e lesões na cavidade oral. A febre alta (maior ou igual a
39ºC) se destaca por ter uma duração longa, maior ou igual a cin-
co dias. Na área dermatológica, demonstra exantema polimórfico
e descamação periungueal, acometendo principalmente as extre-
midades (mãos e pés). Outra manifestação dermatológica típica
é a erupção cutânea eritematosa do tipo maculopapular difusa,
que aparece por volta do quinto dia de febre. Do ponto de vista
oftalmológico, a doença de Kawasaki revela uma conjuntivite não
exsudativa bulbar, bilateral e frequentemente com uveíte anterior.
Na cavidade oral, evidencia: eritema, xerostomia, fissuras e, claro,
a típica língua em framboesa. A linfadenopatia se expressa sendo
maior ou igual a 1,5 centímetro, geralmente unilateral.
Por outro lado, a púrpura de Henoch-Schönlein tem apre-
sentações dermatológicas, ortopédicas, gastrointestinais e renais
como características no seu quadro clínico. Com relação à área
dermatológica, as manifestações mais comuns são erupções cutâ-
neas de caráter simétrico, localizadas principalmente em áreas
com maior pressão, raramente dolorosas, mas pruriginosas, es-
pecialmente nas nádegas e parte posterior das coxas. Dentre as

[ 96 ]
Bruno dos Santos Farnetano

queixas ortopédicas, a mais prevalente é a artrite, que se caracte-


riza por ter um padrão oligoarticular, não deformante, acometen-
do grandes articulações com edema e sensibilidade periarticular,
podendo prejudicar a deambulação, porém, não provoca seque-
las ou danos crônicos. Os sintomas gastrointestinais geralmente
aparecem após oito dias da erupção cutânea e são mais comuns:
náuseas, vômitos, dor abdominal, sendo que a intussuscepção é a
complicação mais comum. Das manifestações renais, as mais do-
minantes são hematúria e proteinúria leve.

[ 97 ]
Vasculite é inverno quente

PERGUNTA 25

Quando suspeitar de poliarterite nodosa


(PAN), uma vasculite de vasos médios,
e quais exames complementares são
necessários para o diagnóstico?

Lembre-se, é uma doença rara, ou seja, ocorre raramente.


Suspeita-se um diagnóstico clínico de poliarterite nodosa
(PAN) com base na presença de sintomas característicos, achados
ao exame físico e resultados de exames laboratoriais compatíveis.

Pacientes com PAN geralmente apresentam sintomas sistê-


micos (fadiga, perda de peso, fraqueza, febre, artralgias) e sinais
de envolvimento multissistêmico (lesões na pele, hipertensão, in-
suficiência renal, disfunção neurológica, dor abdominal).
No entanto, devido à raridade desta doença e aos efeitos ad-
versos potencialmente graves relacionados ao tratamento, o diag-
nóstico deve ser confirmado por biópsia sempre que possível. A
biópsia renal na poliarterite nodosa clássica pode revelar inflama-
ção patognomônica das artérias de tamanho médio. Uma alter-
nativa à biópsia para diagnóstico é a arteriografia mesentérica ou
renal convencional. Esses estudos geralmente serão diagnósticos,
demonstrando múltiplos aneurismas e constrições irregulares nos
vasos maiores, com oclusão de artérias penetrantes menores.
A maioria dos pacientes com PAN apresenta nódulos sub-
cutâneos sensíveis de 0,5 a 2 cm e livedo reticular como manifes-
tações iniciais, e aproximadamente metade desenvolve ulcerações
cutâneas.

[ 98 ]
Bruno dos Santos Farnetano

Praticamente qualquer órgão do corpo pode ser afetado em


pacientes com PAN: orquite com sensibilidade e dor testicular,
anormalidades oculares, incluindo retinopatia isquêmica com he-
morragias e descolamento de retina, bem como neuropatia óptica
isquêmica, envolvimento mamário e uterino, entre outros, mas
tem uma tendência impressionante de poupar os pulmões.
Não há teste laboratorial de diagnóstico para PAN. Testes
laboratoriais básicos ajudam a determinar a extensão dos órgãos
afetados e seu grau de envolvimento.

Sempre descarte uma doença imitadora!

[ 99 ]
Vasculite é inverno quente

A VISÃO DO
ESPECIALISTA
“Que vai ser quando crescer?
Vivem perguntando em redor. Que é ser?
É ter um corpo, um jeito, um nome?
Tenho os três. E sou?
Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo e jeito?
Ou a gente só principia a ser quando cresce?
É terrível, ser? Dói? É bom? É triste?
Ser; pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas?
Repito: Ser, Ser, Ser. Er. R.
Que vou ser quando crescer?
Sou obrigado a? Posso escolher?
Não dá para entender. Não vou ser.
Vou crescer assim mesmo.
Sem ser Esquecer.”

Carlos Drummond de Andrade

[ 100 ]
Bruno dos Santos Farnetano

ITEM 1

O que o médico que suspeita de uma


vasculite deve saber sobre a biópsia de pele?

Ana Luisa Sampaio


Médica Dermatologista
Residência em Dermatologia pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro
Sócio efetivo da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD)
Departamento de Medicina Interna da SBDRJ de 2018-2020
Departamento de Medicina Interna da SBD 2019- 2020
instagram: @analuisasbs
site: analuisasampaio.com.br

Quando nos deparamos com uma lesão purpúrica, deve-


mos sempre fazer nossas hipóteses diagnósticas sobre se a lesão
pode ser mesmo uma vasculite (e sim, se pode ser uma vasculite
de pequenos vasos ou médios vasos da pele, já que a vasculite de
grandes vasos geralmente não leva diretamente a manifestações
cutâneas), ou se pode ser alguma outra doença que se manifesta
com lesões semelhantes, os seus diagnósticos diferenciais, como
as dermatoses purpúricas pigmentares – púrpura de Schamberg,
liquen aureus, púrpura eczematoide de Doucas-Kapetanakis, púr-
pura anular telangectoide de Majocchi – as urticárias, as paniculi-
tes e as úlceras de diversas causas em geral.
As lesões de pele possuem um tempo de vida. Desta for-
ma, lesões muito iniciais podem não ter características suficien-
tes para fechar um diagnóstico e as lesões muito antigas podem
já ter perdido suas características histológicas clássicas. O tempo
de duração da lesão purpúrica é de extrema importância, quando

[ 101 ]
Vasculite é inverno quente

se pensa em realizar uma biópsia para confirmar o diagnóstico.


Idealmente, a lesão deve ser biopsiada nas primeiras 48h a no má-
ximo após 72h de surgimento. As lesões grandes, formadas por
pequenas lesões agrupadas, devem ser biopsiadas preferencial-
mente na periferia, onde é mais provável encontrar lesões mais
jovens. Deve-se fugir das áreas ulceradas e com crostas hemáticas
ou necróticas.
Para as lesões purpúricas sugestivas de vasculite leucoci-
toclástica de pequenos vasos, podemos realizar uma biópsia de
pele com um punch de 4 ou 5mm de diâmetro. Para lesões carac-
terizadas pela presença de nódulos subcutâneos ou já ulceradas,
quando a suspeita é de uma vasculite de um vaso mais calibroso,
a biópsia deve ser mais profunda, para que seja coletada também
amostra de tecido celular subcutâneo (panículo adiposo), onde os
vasos mais calibrosos estão localizados. Para isto, a biópsia deve
ser feita com bisturi, em forma de fuso de pele.
Nas lesões ulceradas, deve-se proceder a retirada de frag-
mento radial a esta, contendo parte do fundo, da borda e de tecido
normal ao redor da lesão.
Para as lesões de livedo reticular, a biópsia deve ser feita da
área pálida (e não da área de eritema), que é o local acometido
pelo possível trombo. O eritema é reacional à falta de vasculariza-
ção e, portanto, não possui processo patológico envolvido visível
no exame histopatológico.
Na suspeita de vasculite de pequenos vasos, é recomenda-
do sempre proceder a análise histopatológica com coloração HE
(hematoxilina e eosina) – para isto, o material retirado deve ser
fixado imediatamente em formol – e a imunofluorescência dire-
ta – cujo fragmento deve ser diferente do anterior e enviado para
análise em meio de Michel ou, na indisponibilidade deste, coloca-
do em soro fisiológico e imediatamente congelado e enviado para
o laboratório de anatomia patológica, mantido congelado.
A biópsia recente (com menos de 72h de evolução) mostra-

[ 102 ]
Bruno dos Santos Farnetano

rá infiltrado inflamatório neutrofílico, além dos outros achados


necessários para o diagnóstico da vasculite leucocitoclástica (ne-
crose fibrinoide na parede dos vasos da pele e a leucocitoclasia).
As lesões mais antigas já terão substituído o infiltrado neutrofílico
por linfócitos.
Em relação à imunofluorescência direta (IFD), quando a le-
são é jovem, a vasculite de pequenos vasos evidenciará depósitos
de padrão granular de C3, IgG, IgM e IgA nas paredes dos vasos.
As lesões antigas vão perdendo os depósitos de imunoglobulinas,
restando ao final apenas positividade de C3.
A exceção são as vasculites ANCA-positivo, que são cha-
madas também de vasculites pauci-imunes, por não apresentarem
positividade, mesmo inicialmente, na IFD.
Então, fazer o exame de IFD tem duas funções: 1) quando
uma lesão de vasculite leucocitoclástica é biopsiada no tempo cor-
reto e tem IFD fraca ou negativa, podemos estar diante de uma
vasculite relacionada ao ANCA; 2) para diferenciar as vasculites
por IgA das vasculites por IgM/IgG.

Atenção:
A lesão deve ser biopsiada nas primeiras 48h após seu sur-
gimento;
As lesões grandes, formadas por pequenas lesões agrupa-
das, devem ser biopsiadas preferencialmente na periferia.

[ 103 ]
Vasculite é inverno quente

ITEM 2

Quando um pediatra pensa numa vasculite?

Ronaldo Afonso Torres


Médico Pediatra
Professor de Pediatria da Universidade Federal de Viçosa
Professor de Pediatria do UNIFAGOC

Vasculites são raras na população pediátrica, mas também


um desafio diagnóstico. Sua ocorrência é estimada em 23 casos
para 100.000 crianças e adolescentes ao ano. De todos os casos de
vasculites, 49% estão relacionados à púrpura de Henoch-Schön-
lein e 23% relacionados à doença de Kawasaki.
Resumidamente, o pediatra deve considerar sua existência
diante de paciente com evidência de inflamação sistêmica e doen-
ça multissistêmica não explicada por outros diagnósticos. Muitos
pacientes terão vasculite como hipótese diagnóstica por apresen-
tarem febre ou outros sintomas constitucionais (fadiga, adinamia,
emagrecimento), acompanhados por lesões de pele e alterações
laboratoriais com evidência de inflamação. Em pacientes com
sintomas sistêmicos inespecíficos, vasculite deve ser pensada se
o processo não se resolve em dias ou semanas, como deveria ser
esperado em doença infecciosa. Por atingir vasos de diversos ca-
libres, a manifestação clínica e laboratorial é variada. Esta possi-
bilidade diagnóstica deve ser pensada em pacientes que apresen-
tem sinais e sintomas como febre, emagrecimento, fadiga; lesões
cutâneas como petéquias, púrpuras palpáveis, livedo reticular,
urticária fixa, nódulos; sinais neurológicos como cefaleia, lesões
focais ou neurite periférica; manifestações osteoarticulares como
artrite, artralgia, mialgia, miosite; manifestações renais como hi-
pertensão arterial, hematúria, insuficiência renal; manifestações

[ 104 ]
Bruno dos Santos Farnetano

vasculares como diminuição e/ou diferença de pulsos; infiltrados


ou hemorragias pulmonares; isquemia miocárdica ou arritmias;
enterorragia.
Dentro das anormalidades laboratoriais, as alterações têm
relação com sistemas acometidos. Assim, hemograma completo
pode evidenciar anemia normocrômica e normocítica, leucocito-
se, eosinofilia, trombocitose; elevação de provas de atividade infla-
matória como proteína C-reativa e velocidade de hemossedimen-
tação; fator antinuclear positivo; crioglobulinas elevadas; ANCA
positivo nas vasculites granulomatosas ou poliangiíte microscópi-
ca; elevação das escórias nitrogenadas, hematúria, cilindrúria em
casos de comprometimento renal; elevação de transaminases ou
fosfatase alcalina em caso de comprometimento hepático.
Diante da diversidade de sinais e sintomas, anamnese de-
talhada e exame físico completo são fundamentais para suspeita
clínica. Questionar uso de drogas e infecções recentes e atentar
para história familiar é fundamental. No exame físico, avaliar com
cautela pulsos nas quatro extremidades e, inclusive, aferir pressão
arterial em todos os membros. Examinar com atenção a pele, ob-
servando presença de nódulos, livedo reticular, púrpuras.
Como citado anteriormente, as vasculites mais frequentes
em pediatria são a púrpura de Henoch-Schönlein e a doença de
Kawasaki. O pediatra deve estar familiarizado com estas doenças
para não haver atraso diagnóstico.
A púrpura de Henoch-Schönlein, também conhecida como
púrpura anafilactoide, é uma vasculite de hipersensibilidade me-
diada pela deposição de IgA e caracterizada pela tríade púrpura
não trombocitopênica-artrite-dor abdominal, embora não ne-
cessariamente todas as alterações estejam presentes. Geralmente,
precedida por infecção normalmente do trato respiratório supe-
rior, mas também podendo ser desencadeada após exposição a
alimentos, vacinas, medicamentos ou picadas de inseto. Habitu-
almente, autolimitado e de evolução benigna. As lesões purpú-
ricas, obrigatoriamente presentes, têm distribuição simétrica e

[ 105 ]
Vasculite é inverno quente

predominam em membros inferiores, desde região glútea até ex-


tremidades, podendo variar de petequial até extensas equimoses
e ulcerações. Pode acometer outras áreas como região extensora
de membros superiores e face. Artralgia ou artrite de grandes ar-
ticulações como joelhos e tornozelos são comuns e podem pre-
ceder o rash em um ou dois dias, durando no máximo uma se-
mana, sem deixar sequelas. Manifestações gastrointestinais são
frequentes, incluindo dor abdominal (que pode simular abdome
agudo), vômitos, hematêmese, enterorragia ou melena. Tais ma-
nifestações podem ocorrer por até 30 dias após início das lesões
de pele. Doença renal pode estar presente na fase inicial, variando
de hematúria e leve proteinúria até síndrome nefrótica, síndro-
me nefrítica, hipertensão arterial ou insuficiência renal. Embora
possa ser recorrente nos primeiros dois anos, é autolimitada e a
maioria das crianças necessita de medicação apenas sintomática.
Anti-inflamatório não hormonal pode ser utilizado nos quadros
articulares, e corticoide em casos de dor abdominal severa e nas
glomerulonefrites.
A doença de Kawasaki é a principal causa de cardiopatia
adquirida na infância em países desenvolvidos, caracterizada por
lesão de pequenos e médios vasos, podendo associar à lesão das
coronárias. Acomete principalmente meninos abaixo dos 5 anos.
O diagnóstico é clínico, baseado em quadro febril que se prolon-
ga além de cinco dias, associado a pelo menos quatro dos sinais/
sintomas associados: alterações cutâneas das extremidades (eri-
tema ou edema palmar e plantar, descamação subungueal na fase
subaguda) e área perineal; exantema polimorfo; alterações labiais
e orais (hiperemia da mucosa oral e faríngea); conjuntivite bilate-
ral não purulenta; linfadenomegalia cervical (maior que 1,5cm)
geralmente unilateral. O achado de aneurisma em coronária pela
ecocardiografia permite diagnóstico mesmo com menor número
de critérios. Este exame deve ser feito na fase aguda da doença e
repetido após duas a seis semanas. Dos quadros não tratados, de
10 a 40% apresentam arterite coronariana manifestada por dilata-
ção ou formação aneurismática das artérias coronárias. O quadro

[ 106 ]
Bruno dos Santos Farnetano

febril pode se arrastar por até duas semanas, mas cede rapidamen-
te quando a terapia com gamaglobulina é iniciada. Quadros in-
completos, ou seja, os que não preenchem todos os critérios, não
são raros, podendo corresponder a até metade dos casos. Ocorrem
com mais frequência em lactentes jovens com menos de um ano,
que apresentam maior risco de desenvolver lesão coronariana. A
fase aguda da doença corresponde aos primeiros 10 dias. Na fase
subaguda (entre duas e quatro semanas), ocorre a descamação de
mãos e pés. Corresponde ao período de formação de aneurismas,
que podem complicar com trombose e obstrução das coronárias.
Tais complicações podem ocorrer semanas a anos após a fase agu-
da. Na fase subaguda, a trombocitose é característica.

O tratamento da doença de Kawasaki envolve uso de gama-


globulina 2g/kg em dose única, e uso de ácido acetilsalicílico em
dose inicial de 50 a 100 mg/kg/dia até desaparecimento do quadro
febril; reduzindo para dose de 3 a 5 mg/kg/dia, para manter efei-
to antitrombótico até normalização da trombocitose. Se existirem
lesões coronarianas, dipiridamol ou clopidrogel devem ser manti-
dos até resolução das lesões coronarianas.
Lembrar que a doença de Kawasaki apresenta ciclo único
e a maioria dos pacientes recupera-se sem sequelas. Entretanto,
aqueles com lesão coronariana apresentam risco de doença co-
ronariana crônica e devem ser acompanhados pelo resto da vida.
Então, ter conhecimento das duas vasculites mais frequentes
na faixa etária pediátrica e ter alto grau de suspeição diante de do-
enças sistêmicas é fundamental para encaminhamento diagnóstico.

[ 107 ]
Vasculite é inverno quente

ITEM 3

O que precisamos saber sobre procedimentos


estéticos em pacientes imunossuprimidos?

Livia Moreira de Mendonça


Médica Dermatologista
Residência em Dermatologia pela Universidade
Estadual do Rio de Janeiro
Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Dermatologia

A realização de procedimentos estéticos, sejam cirúrgicos


ou minimamente invasivos, deve respeitar a integridade da saú-
de das pessoas. O paciente portador de doença autoimune ou
imunossuprimido em razão do tratamento utilizado, que deseje
tratamento estético, deve receber atendimento especializado por
profissional capacitado para reconhecer restrições e complicações
inerentes à doença em questão. Ao receber um paciente portador
de doenças imunologicamente mediadas, o dermatologista deve
refletir sobre essa possibilidade juntamente com o clínico assis-
tente e considerar, principalmente, dois aspectos: o agravamen-
to da doença em questão; e a maior incidência de complicações
infecciosas, provocadas pelos tratamentos imunossupressores e
imunobiológicos.
Deve-se considerar não realizar o procedimento em pacien-
tes com sinais de atividade da doença, sejam clínicos ou labora-
toriais, nos últimos 12 meses, principalmente no caso das cola-
genoses. Pacientes com doença estável no último ano, mas que
apresentaram, em qualquer período, doença de difícil controle ou
grave desfecho clínico, também deveriam evitar procedimentos
estéticos de maior grau de invasão, sob risco do estímulo imu-

[ 108 ]
Bruno dos Santos Farnetano

nológico desencadear um agravamento das condições clínicas.


Pacientes com doença autoimune estável por período mínimo de
um ano e que tenham apresentado manifestações consideradas le-
ves podem ser submetidos aos tratamentos em questão, com par-
cimônia, evitando-se associação de técnicas e excesso de produtos
numa mesma sessão, sempre reavaliando o paciente, buscando
ativamente por sinais de recrudescimento do quadro clínico.
Nesse grupo de pacientes, há maior risco de complicações
infecciosas, relacionadas aos tratamentos imunossupressores fre-
quentemente necessários. Realização de eficaz assepsia, em am-
biente limpo, utilizando materiais estéreis, novamente evitando
associação de técnicas ou volume excessivo, são maneiras de re-
duzir esse risco. Na presença de quadros infecciosos no sítio a ser
tratado, como infecções dentárias ou de vias aéreas, lesões de acne
inflamatória ou herpes labial, deve-se aguardar a resolução do
quadro para submissão do paciente ao tratamento desejado. Ape-
sar de não haver consenso a esse respeito, considera-se razoável a
prescrição de antibioticoterapia profilática, iniciada com 24 horas
de antecedência e mantida de 3 a 7 dias dependendo da técnica a
ser utilizada.
Outras questões importantes relacionam a doença de base à
técnica utilizada. Como exemplo, pacientes portadores de vitiligo
devem evitar procedimentos que escarifiquem as camadas mais
superficiais da pele, como laser de CO2 ou peelings, pelo risco de
surgimento de novas áreas acrômicas desencadeadas pelo trauma
(fenômeno de Koebner). Todavia, não deveriam ser privados de
determinados procedimentos injetáveis, como a toxina botulíni-
ca. Pacientes lúpicos também não deveriam utilizar procedimen-
tos que incluam exposição a fontes luminosas, como os inúme-
ros tipos de Laser e LED, por ser doença sabidamente agravada
pela radiação ultravioleta. Outras condições imunologicamente
mediadas, como psoríase leve à moderada, doença celíaca e ti-
reoidite de Hashimoto são consideradas de baixo risco em rela-
ção a complicações relacionadas a procedimentos estéticos, não
havendo restrições, de maneira geral, para a sua realização. O uso

[ 109 ]
Vasculite é inverno quente

de substâncias conhecidas como bioestimuladores do colágeno,


como ácido poli-l-láctico e hidroxiapatita de cálcio, deve ser evi-
tada nos pacientes imunossuprimidos, já que não serão capazes
de produzir adequada resposta imunológica necessária ao estímu-
lo dos fibroblastos e ao sucesso da técnica.

[ 110 ]
Bruno dos Santos Farnetano

ITEM 4

O que um oftalmologista
nos diz sobre as vasculites?

João Paulo Lomelino


Médico Oftalmologista
Residência em Oftalmologia pela Universidade Federal Fluminense
Fellowship em Retina Clínica e Cirúrgica pela
Universidade Federal Fluminense
Cirurgião de Retina
www.joaopaulolomelino.com.br

Em oftalmologia algumas alterações nos reaproximam da


Medicina de verdade. Uma delas é a vasculite.
Raramente estão relacionadas à doença puramente retinia-
na, como a doença de Eales (que é um diagnóstico de exclusão
após grande investigação). As uveítes posteriores que podem
apresentar vasculites, por exemplo, podem se apresentar sem ou-
tros sintomas sistêmicos, mas comumente estão relacionadas a in-
fecções sistêmicas como a toxoplasmose, tuberculose, citomegalo-
virus, HIV, sífilis; e também em doenças inflamatórias sistêmicas
não infecciosas, como lúpus eritematoso sistêmico e sarcoidose.
Os olhos têm uma particularidade interessante na abordagem das
vasculites: a retina é o único tecido em que conseguimos
ver diretamente e com grandes detalhes os vasos. Por
isso ouso dizer que as vasculites formam lindas imagens,
apreciáveis ao exame de fundoscopia. Um exemplo são as
apresentações em ramos congelados ou frosted branch, muito
raras, porém de uma beleza ímpar. Lembro da primeira vasculite
que vi, na residência, de um paciente chamado Giovane, nome
que não me deixa esquecer a relação entre a doença de Behçet e a

[ 111 ]
Vasculite é inverno quente

Itália (a doença é mais prevalente no sul da Europa, na “Rota da


seda”), cuja primeira manifestação da doença foi ocular, o que nos
rendeu um belo relato de caso do serviço. Por ser especialista em
retina, me julgo suspeito para falar das vasculites retinianas. Sei
que a maioria dos oftalmologistas foge de doenças sistêmicas, mas
sem dúvida me gera uma satisfação pessoal muito grande condu-
zir um caso difícil e que desafia meu conhecimento. A cada rara
vasculite ocular sem dúvida saio mais médico do que era antes.

[ 112 ]
Bruno dos Santos Farnetano

ITEM 5

Quando o hematologista
pensa em uma vasculite?

Angelo Atalla
Médico Hematologista
Professor de Hematologia da Universidade Federal de Juiz de Fora
Professor de Hematologia do UNIFAGOC

As manifestações hematológicas de doenças sistêmicas são


sempre mais frequentes que as doenças hematológicas primárias,
e cabe ao clínico reconhecer os diferentes sinais semiológicos para
elaborar as hipóteses prováveis e chegar ao diagnóstico final. No
amplo espectro de doenças que agridem os vasos sanguíneos, o
sistema imune, os mecanismos de hemostasia e a medula óssea,
a mimetização dos diferentes quadros clínicos nos desafia a reco-
nhecer qual entidade estamos enfrentando e atuar com rapidez e
segurança.
Uma manifestação hemorrágica ou tromboembólica, um
processo febril associado a neutropenia ou leucocitose, petéquias
e equimoses, trombocitopenia ou trombocitose, anemia por fa-
lência medular, inflamatória ou hemolítica, necrose cutânea, dis-
funções orgânicas progressivas, entre outros sinais e sintomas iso-
lados ou associados, irão testar nosso conhecimento e interferir
na conduta a ser tomada.
As vasculites são a expressão maior das múltiplas comor-
bidades citadas acima. “O vaso deve ser pensado sempre como
a vítima, raramente o culpado”, como dizia meu saudoso mestre
Henrique Portugal.
Por exemplo, pacientes que apresentam equimoses ou pe-
téquias sem causa aparente devem ser investigados através de sua

[ 113 ]
Vasculite é inverno quente

história, detalhamento das manifestações purpúricas, história fa-


miliar e medicamentosa e sintomas associados. Esta simples quei-
xa pode significar causas simples como púrpura senil, púrpura
simplex ou traumas acidentais, uso de medicamentos, ou serem
a expressão de graves enfermidades representadas por distúrbios
hemostáticos (trombocitopenia e coagulopatias) ou doenças vas-
culares (colagenoses, uremia, disproteinemia ou mesmo uma vas-
culite).
Exames simples e de baixo custo, como velocidade de he-
mossedimentação (VHS), podem nos fornecer pistas importantes
para nosso raciocínio. É um teste importante, clinicamente útil
para monitorar resposta de fase aguda. Embora altamente inespe-
cífico (pode se elevar na gestação, em idade avançada, infecções
agudas ou crônicas, neoplasias e paraproteinemias), permanece
como uma ferramenta propedêutica valiosa desde que tenha mar-
cadas elevações, na avaliação das colagenoses e/ou vasculites (in-
clusive arterite temporal) e no controle da eficácia do tratamento.
Também a observação do esfregaço sanguíneo através de
hematoscopia pode revelar em um paciente com doença renal e
anemia hemolítica presença de esquizócitos ou hemácias frag-
mentadas, sugerindo vasculite com microangiopatia (Wegener,
poliarterite nodosa ou lúpus sistêmico) ou as clássicas vasculopa-
tias trombóticas (púrpura trombocitopênica trombótica ou sín-
drome hemolítica urêmica).
Portanto, o hemograma com contagem de plaquetas, VHS,
eletroforese de proteínas, dosagem das imunoglobulinas, a soro-
logia para HIV e hepatites, provas inflamatórias e de doenças do
colágeno são exames de triagem que devem ser solicitados à pri-
meira visita e que podem dar pistas importantes.
As vasculites podem se apresentar como evento inicial de
neoplasias malignas e toda atenção na busca de doença maligna
oculta deve estar presente. As doenças malignas linfoproliferati-
vas (linfomas) são os principais tumores envolvidos. A tricoleuce-
mia e sua variante, que frequentemente apresentam pancitopenia

[ 114 ]
Bruno dos Santos Farnetano

e esplenomegalia, pode abrir o quadro com poliartrite e envolvi-


mento visceral similar à Poliarterite Nodosa, por exemplo.
Pacientes que apresentam quadro de artralgia, púrpura,
úlceras cutâneas, glomerulonefrite e neuropatia periférica estão
em forte suspeita de serem portadores de síndrome crioglobu-
linêmica, principalmente no contexto de hepatite viral crônica,
mais frequentemente hepatite C, doenças linfoproliferativas que
cursam com gamopatia monoclonal (mieloma múltiplo, doença
de Waldenstrom e outras neoplasias de células B) ou colagenoses.
São descritos três tipos de crioglobulinas, mas ao hematologista a
atenção se concentra na crioglobulinemias Tipo I. Ocorrem em
10-15% dos casos e expressam imunoglobulinas IgG monoclonais
(IgM e IgG e ocasionalmente IgA ou cadeias leves). Estas imuno-
globulinas formam precipitados, que dependem de condições es-
pecíficas de pH, temperatura e concentração da imunoglobulina.
Induzidas pelo frio, fisicamente podem obstruir vasos sanguíneos
e mais raramente mediar vasculite inflamatória via depósitos de
complexos imunes.
As crioglobulinemias Tipos II e III raramente ocorrem con-
comitantemente a hemopatias primárias e já foram abordadas an-
teriormente.
Pacientes que apresentam síndromes purpúricas com lesões
elevadas sobre a pele são um desafio clínico e devem levar a uma
variedade de diagnósticos diferenciais. Ao médico cabe reconhe-
cer os diferentes sinais e sintomas que acompanham estas lesões
para estabelecer a etiologia. Ao lado de quadros óbvios como a
púrpura senil e a púrpura do esteroide, cujas lesões são predomi-
nantemente nos membros superiores, outras entidades nosológi-
cas mais complexas também ocorrem, como a púrpura hiperga-
maglobulinêmica, dermatose aguda febril neutrofílica (síndrome
de Sweet), doenças autoimunes e infecciosas e reações de hiper-
sensibilidade, uso de medicamentos, e devem ser distinguidas da
vasculite por IgA (Henoch-Schönlein) ou vasculites primárias.
Assim, a visão do hematologista é a mesma do clínico que,

[ 115 ]
Vasculite é inverno quente

com sólido conhecimento científico, conseguirá distinguir entre


as diferentes patologias que se manifestam, como manifestações
vasculares de doenças sistêmicas das vasculopatias primárias.

[ 116 ]
Bruno dos Santos Farnetano

ITEM 6

O papel do dermatologista no
diagnóstico das vasculites

Paulo Benevenuti Junior


Médico Dermatologista
Residência em Dermatologia pela Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro
Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Dermatologia

“A pele é o que há de mais profundo”


Paul Valéry

A pele, com sua grande extensão em área e facilmente pers-


crutável à simples – mas técnica – ectoscopia, tem papel de valor
nas vasculites, sendo alvo frequente de acometimento, ao mesmo
tempo que fornece amiúde dados semiológicos complementares
à diagnose.
Apesar de inúmeras vezes constituir uma doença limitada à
pele, a vasculite cutânea pode ser precursora de um grave envol-
vimento sistêmico. Desta maneira, frequentemente é o dermato-
logista quem diagnostica o doente, identifica o envolvimento de
outros órgãos e inicia o tratamento.
O exame do tegumento pode ser útil para determinar o ta-
manho predominante dos vasos acometidos. Púrpura palpável,
pápulas urticariformes, pústulas, vesículas, petéquias e lesões “em
alvo” são geralmente indicativos de acometimento de pequenos
vasos. Nódulos subcutâneos, livedo reticular, ulcerações e infartos
digitais são manifestações comuns de vasculites de vasos de mé-
dio calibre. As vasculites de grandes vasos, como regra, não aco-

[ 117 ]
Vasculite é inverno quente

metem primariamente a pele. A tortuosidade da artéria temporal


vista com ou sem eritema na pele suprajacente, contudo, pode ser
um sinal semiológico encontrado na arterite temporal.
Toda lesão suspeita de vasculite cutânea deve passar por
uma biópsia. A análise histopatológica, apesar de raramente con-
clusiva quanto à sua etiologia, vai fornecer subsídios importantes
para o raciocínio clínico. Uma característica histopatológica co-
mum, mas de forma alguma patognomônica, é a presença de leu-
cocitoclasia, definida como a fragmentação dos núcleos dos leu-
cócitos. Tal atributo também recebe o nome de cariorrexis (poeira
nuclear).
Outros achados, como granulomas invadindo a parede dos
vasos cutâneos, podem ser indicativos de uma vasculite associada
ao ANCA.
Infiltrado inflamatório linfocítico, quando não se encon-
tram evidências de colagenoses, ou o local biopsiado não foi o
mais adequado ou a biópsia flagrou lesão muito recente ou tardia.
A imunofluorescência direta, quando disponível, pode apontar,
em cerca de 80% dos casos, deposição de C3, IgG, IgM e/ou IgA
na parede dos vasos.
A análise dos dados aponta que cerca de 50% das vasculites
cutâneas não chegam a uma conclusão etiológica. Algo, sem dú-
vida, frustrante.
Em suma: a maioria das doenças cutâneas é diagnosticada a
partir do binômio dados clínicos – histopatologia. Passam longe
disso as vasculites. A necessidade de uma estreita relação interdis-
ciplinar com outras especialidades e a correlação com uma histo-
patologia raramente conclusiva, achados laboratoriais múltiplos,
superpostos e nem sempre específicos, faz com que o diagnóstico
etiopatogênico, na maioria das vezes, seja também um grande de-
safio para o dermatologista.

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Bruno dos Santos Farnetano

Bibliografia
De bibliografias o mundo está cheio. Este livro é um papo
entre amigos e não uma tese de doutorado.

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Vasculite é inverno quente

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