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TRANSLATIO v. 1, n. 1, p. 112-119, jul.-dez.

2015

O tradutor literário ou
O escritor que não precisa publicar seus textos
The Literary Translator or
The Writer who Doesn’t Need To Be Published

Beatriz Viégas-Faria*
Universidade Federal de Pelotas – Pelotas – RS – Brasil

Resumo: Considerando que o que se traduz não é o texto em si, mas sim uma
interpretação dele, o processo tradutório é um processo de Escrita Criativa. Se o
tradutor só pode ser fiel à sua leitura do texto fonte e ao seu projeto de tradução, ele
compartilha com o escritor uma série de competências necessárias, reconhecendo
e emulando processos autorais que permitem a um texto revelar seus subtextos. A
autora ilustra algumas das problemáticas da questão com exemplos de traduções
para textos de Shakespeare.
Palavras-chave: Tradução literária, Escrita criativa, Tradução criativa, Shakespeare.

Abstract: Considering that what is translated is not the text itself, but an interpretation
of the text, the translation process is therefore a process of Creative Writing. If the
translator can only be loyal to his reading of the source text and to the project of
translation, he then shares a series of necessary skills with the writer; recognizing
and emulating authorial processes that allow a text to reveal its overtones. The
author illustrates some of the problematic questions with examples of translations
of Shakespeare’s texts.
Keywords: Literary translation, Creative writing, Translation writing, Shakespeare.

Este texto é dedicado ao


escritor Prof. Dr. Luiz Antonio de Assis Brasil,
meu grande mestre da Oficina de Criação Literária (PUCRS)
e inspiração para minhas Oficinas de Tradução Literária.

* Professora adjunta da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Coordenadora adjunta do Curso de Bacharelado em
Letras – Tradução Espanhol/Português.

Este artigo está licenciado sob forma de uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional,
que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que a publicação
original seja corretamente citada. http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR
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Costumo dizer que o tradutor literário aumentativas da língua portuguesa que não
deve ser um escritor – mesmo que nenhum há na língua inglesa).
texto de seus exercícios de escrita criativa Isso posto, pensemos então no tra-
venha a ser publicado. Mas ele, o tradutor dutor/leitor do texto fonte (TF): é com as
criativo, por trabalhar com a (re)escritura competências acima que ele vai fazer uma
de textos alheios, deve conhecer a fundo leitura, uma interpretação do texto a ser
as técnicas de que se valem aqueles que traduzido. Essa interpretação origina-se
são escritores por ofício; não só para na superfície linguística do texto (léxico-
reconhecê-las, mas também para emular sintática ou léxico-gramatical), que exige
os processos autorais que permitem a um então ser acrescida de alguns (aliás, vários)
texto (re)velar seu(s) subtexto(s). elementos extralinguísticos ou exofóricos,
Básico para o tradutor é o domínio da dêiticos ou anafóricos, inferenciais e assim
língua em que escreve. A língua estrangeira por diante – haja vista as necessidades de
(ou língua do texto fonte) a gente pesquisa, atribuição de referentes, desambiguação e
a gente se vira, a gente aprende o que explicitação de itens elípticos na superfície
ainda não sabe, mas com a língua em que textual.
se escreve... também. Só que na língua Em um exemplo aparentemente sim-
em que se escreve precisamos estar aptos plista, “Meu tio hoje, por volta do meio-
a fazer malabarismos, precisamos sempre dia, abriu a porta e saiu”, é bastante com-
e de novo ter jogo de cintura (saber, por preensível supor que o texto onde se insere
exemplo, que “mais fino” não significa essa oração responde a perguntas do tipo:
necessariamente – por necessidade lógica tio de quem? Que dia é hoje? Por volta de
– ser inerentemente “fino”. Para começo meio-dia é que horário? Que porta? Ela
de conversa). Tradução é trabalho de estava chaveada, só fechada, só encostada,
pesquisa. O tradutor deve ter a compe- semiaberta? Saiu pela porta que abriu? Se
tência linguística (saber trabalhar com um esta é a frase de abertura de um romance
par de línguas, transitando entre elas), de suspense ou policial, o leitor supõe que
a competência investigatória (saber pes- essas perguntas encontrarão suas respostas
quisar palavras e termos, expressões idio- ao longo da narrativa. Ou não, no caso de
máticas, provérbios, procurar soluções um texto caracterizado pelo nonsense. Se
tradutórias, escarafunchar a memória – em uma comédia teatral, o autor pode ter
de seu cérebro, do cérebro dos outros, criado um personagem, o “tio Oge”, para
dos recursos bibliográficos impressos ou propositalmente criar um trocadilho a fim
digitais etc.), a competência digital (saber de confundir a plateia por algum tempo,
utilizar ferramentas de Computer Assisted para depois fazer rir os espectadores
Translation ou softwares de memória de quando estes percebem a homofonia.
tradução, formar bancos de dados a partir Assim começa o trabalho do tradutor
das traduções já realizadas) e a competên- literário: no processo de produção de
cia tradutória propriamente dita (saber leitura do texto a ser traduzido, processo
afastar-se das formas léxico-sintáticas da este que já vem simultaneamente per-
língua fonte para lançar mão de recursos meado de questões do tipo “Como vou
da língua alvo que inexistem naquela – conseguir solucionar uma coisa como hoje/
por exemplo, as formas diminutivas e Oge?” – mesmo que o processo tradutório

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seja intuitivo (não embasado em reflexões típicas da oralidade de algum dialeto da


teórico-acadêmicas sobre tradução) e cultura alvo. Um personagem que, por
a leitura se dê de modo automático e baixa escolaridade, “enfeita” (hipercorrige)
inconsciente. certas palavras mais “difíceis” ou usa de
O que se traduz não é o texto em si, palavras “inventadas” por proximidade a
mas sim a nossa interpretação dele. Assim algum vocábulo que lhe é conhecido, tudo
sendo, quando ainda hoje pessoas falam isso com frequência tem lugar nos diálo-
sobre “traduções fiéis” e “traduções que gos ficcionais. Ora é o paciente que deve
respeitam o autor do original”, por uma passar pela triagem no pronto atendimento
questão lógica sabemos que cada tradutor e relata ao médico que já passou pela
só pode ser fiel à sua leitura do TF e ao seu “trilhagem”, ora é a personagem que, ao
projeto tradutório (esta tradução foi pedida referir que precisou fazer uma curetagem,
por quem? Qual é o seu público alvo? A refere a “corretagem” a que foi submetida,
que linha editorial estou prestando serviço? e em outro caso temos a moça que faz
Se tenho acesso ao autor do TF, devo faxina na casa de uma patroa muito idosa
consultá-lo ou não? Em que medida minha e comenta que “a velhinha tá nítida, níti-
tradução modifica/manipula o TF? Até da”, espantada que ficou com a lucidez
que ponto aceito interferências ou suges- daquela. Ou seja, o tradutor (re)escritor
tões de terceiros na minha tradução? deve observar e guardar anotações para
Até que ponto consigo me distanciar de usos futuros ou para inspiração no mo-
preconceitos que tenho contra certas mento de recriar certos idioletos, pois não
palavras que para mim são tabu?). se pode simplesmente “inventar” uma
Nesta altura, espero que o meu leitor já maneira de falar na língua alvo – há que
tenha percebido que o processo tradutório haver uma ressonância, uma simulação
é um eterno processo de Escrita Criativa: no texto escrito de efeito estético (porque
mais perguntas que respostas, mais dúvidas literário) de como as pessoas realmente
que certezas, mais agonias que alegrias usam a modalidade falada de sua língua
antes do ponto final que nunca é final ou de seu dialeto.
por vocação, pois poderíamos revisar No caso de personagens com deter-
uma tradução ad infinitum não fosse o minadas profissões (arquiteto, radiologista,
prazo de entrega exigido em contrato pela advogado criminal etc.), a terminologia
editora. específica de cada área do conhecimento
Assim como o escritor de ficção, o tende a aparecer no texto, e o tradutor
tradutor literário precisa ter “ouvido” para deve proceder à pesquisa terminológica.
como as pessoas falam – pessoas de todas Essa pesquisa também vai aparecer para
as classes sociais, faixas etárias, regiões do expressões as mais corriqueiras, como
país, níveis de escolaridade etc. Isso porque por exemplo “chinese whispers” no inglês
nas obras literárias diferentes personagens (telefone sem fio).
falam de modos diferentes (cada um tem Se o TF tem um ou mais séculos de
seu idioleto) e também podem receber idade, chances há de que a maior parte do
do autor marcas dialetais em suas falas. vocabulário usado apresente palavras em
Assim sendo, um dialeto da língua fonte acepções que hoje são arcaísmos. Tanto
poderá receber no texto traduzido marcas no inglês (“success”) quanto no português,

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a palavra “sucesso” foi por muito tempo multiétnica se apresentava, os textos eram
usada como sinônima de “acontecimento, falados na língua local.
fato sucedido” – que tanto podia ser Pode-se dizer que o tradutor literário
bom ou ruim. Em seu uso atual, a palavra é aquele escritor que está sempre saindo
“sucesso” carrega necessariamente uma de sua zona de conforto, pois precisa
conotação positiva. diariamente não só ativar seu vocabulário
Por outro lado, se o TF é produção do passivo, mas também ampliá-lo com novas
ano passado, chances há de que alguns aquisições por força do ofício, não só como
vocábulos (ou muitos, como, por exemplo, o fazem os escritores, para acomodar em
no caso de textos carregados de diálogos) seu texto diferentes personagens, diferentes
não estejam ainda dicionarizados. No focos narrativos, diferentes narradores
caso de vários esportes, principalmente ou mesmo um eu lírico, mas também e
os radicais, o jargão usado pelos atletas principalmente para moldar sua escrita à
praticamente define a “tribo” e exclui os escrita do primeiro autor.
não iniciados. Por exemplo, um surfista Na pele do segundo autor, o tradutor
tem que saber dropar. é autor de obra derivada (a tradução).
O tradutor literário, assim como o Então, aqui a pergunta crucial é: como ser
escritor, precisa entender a inserção da obra “segundo” se é “autor”? Seria porque ele é
que ele está (re)escrevendo na sua época, o autor das eventuais notas de rodapé que
no movimento (ou contramovimento) se iniciam pela abreviatura “N.T.”? Será
literário a que ela pertence, na sua geração que hoje já podemos dizer que esta é uma
de escritores, para uma determinada sigla, uma vez que a podemos ler como
geração de leitores, em certa linha edi- uma “enetê”?
torial da editora que vai publicá-la etc. Muito delicada é essa questão autoral
Diferentemente do escritor, o tradutor da tradução literária. A meu ver, é aí mesmo
literário é aquele que se afasta do seu que entra a importância (melhor dizendo,
modo de escrever e de suas preferências Importância, com “i” maiúsculo) de o
lexicais, sintáticas, estilísticas para adotar tradutor literário, porque necessariamente
os (e mais: para apaixonar-se pelos) traços criativo, ser escritor – mesmo que nunca
que consolidam ou consolidaram em publique nada, mesmo que sua própria
outros tempos a estética e a criatividade escrita ficcional permaneça para sempre
do autor traduzido e dentro da forma ou como exercícios de escritura, uma incursão
estrutura do gênero literário a que pertence quieta e privada no mundo de suas vozes
a obra traduzida. Na contemporaneidade, narradoras, suas personagens, seu eu lírico,
são também abundantes os exemplos seus enredos, seus afetos revirados.
de textos híbridos em relação a gêneros E esse exercício da própria Escrita
literários ou tipologia textual – vale lembrar Criativa faz-se seminal na formação do
aqui os inúmeros textos de alta carga tradutor literário e na qualificação de
criativa que vêm sendo produzidos para seu trabalho nem tanto pela óbvia razão
o teatro, o cinema, a internet, a televisão. do aspecto psicológico que existe na
Pina Bausch, sempre vanguarda, colocou construção de sua autoestima como
textos falados em suas coreografias, e, em verdadeiro autor de seu (próprio) texto
cada país que sua companhia de dança traduzido, mas fundamentalmente por

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motivações técnicas. Com um bom domínio Ricardo III em campo de batalha. Depois
de técnicas de Escrita Criativa, a saudável pedi à editora (L&PM, de Porto Alegre) que
autoestima dos tradutores literários será anexasse à publicação do texto traduzido
seu corolário, e dela derivam o apreço e esse diagrama. E foram introduzidas
o respeito pelo que fazem e a valorização notas de rodapé para esclarecer a que
dos textos que produzem. indivíduos certas falas faziam referência;
É parte do ofício do tradutor decidir se e por exemplo, em duas falas da personagem
onde é oportuno abrir uma N.T. Serão notas [rainha] Margaret (4.4), em conversa com a
de rodapé? Ou devem ser notas de fim de personagem Duquesa [de York], temos as
texto? Recorro a um exemplo próprio, de seguintes passagens: “Eu tinha um Eduardo,
quando traduzi a tragédia Ricardo III, de até que um Ricardo o matou; eu tinha um
William Shakespeare. Nunca traduzi um marido, até que um Ricardo o matou; vocês
texto com tantas notas (64 ao todo), haja tinham um Eduardo, até que um Ricardo o
vista que minhas traduções não costumam matou; vocês tinham um Ricardo, até que
ser feitas para edições acadêmicas (estas sim, um Ricardo o matou” e “O teu Eduardo,
necessariamente anotadas e comentadas). que matou o meu Eduardo, esse está
Vejamos então por que, a meu ver, foram morto; o teu outro Eduardo... morto, em
introduzidas notas para um melhor compensação pelo meu Eduardo”.
entendimento do enredo por parte do Além desses malabarismos linguísticos
leitor brasileiro. Em primeiro lugar, porque com nomes históricos, há na peça situações
é uma peça histórica. As personagens são que a meu ver pediam esclarecimentos
indivíduos que transitaram na corte inglesa que não podiam ser dados no corpo do
do século XV, atores políticos cujos destinos texto – mesmo eu não havendo traduzido
entrelaçavam-se por vínculos de sangue ou Shakespeare em verso. Dois exemplos têm
de contratos matrimoniais, por tramarem a ver, um, com uma questão sociocultural
prisões e assassinatos, por se saberem e, outro, com uma questão de significado
inescrupulosos frente às batalhas (nem implícito. Quando, na Cena 4 do Quarto
sempre de confrontos físicos) impulsionadas Ato, temos três ex-rainhas chorando as
por sede de poder. Ora, o leitor de língua perdas de filhos e maridos, duas rubrica nos
inglesa é um leitor que estuda a história da dizem que duas delas sentam-se no chão.
Inglaterra no ensino médio. Não é o caso do Na ocorrência da primeira dessas rubrica,
leitor brasileiro, que então se depara com abro nota de rodapé para esclarecer um
esta peça onde são personagens mais de um costume da realeza daquele tempo: “Gesto
Ricardo, mais de um Eduardo, mais de uma convencional, representativo de dor
Elizabeth, mais de uma Margaret. Quando extrema” – ou seja, não sentaram no chão
notei que eu própria me atrapalhava, ao por falta de onde sentar.
traduzir o texto, para decidir sobre qual Quando, na Cena 1 do Primeiro
Eduardo, por exemplo, estavam falando Ato, Ricardo refere-se à rainha Elizabeth
outros personagens, comecei a montar um como “Madame Shore” (William Shore
diagrama das famílias (casas) de York e de foi seu primeiro marido, de quem ela se
Lancaster, as duas da dinastia Plantageneta divorciara) e menciona “a libré de sua
(1154-1485), sucedida pela dinastia Tudor, casa”, ele está usando de ironia, pois, antes
que se inicia justamente com a morte de de casar-se com o rei, Elizabeth não era

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da nobreza (sua família não constituía uma tradutora/autora trans(a)parece no texto


“casa”) e não tinha criadagem (que usasse como resultado do meu processo tradu-
uma libré). Esses esclarecimentos achei por tório. E o meu processo tradutório é um
bem explicitá-los em uma N.T. É bom frisar processo de Escrita Criativa onde está
que as notas de tradutores em textos de declarado no meu texto, desde sempre
peças teatrais podem vir a funcionar como e de modo escancarado, qual a genética
rubricas para uma eventual montagem da minha escritura. Quais são os autores
cênica da tradução. Neste caso, o diretor que influenciaram a minha (re)escrita?
de Ricardo III e o ator que interpreta o No exemplo acima, Shakespeare e os
personagem-título devem estar a par de shakespearianos, principalmente o editor
que esta fala de Ricardo é carregada de responsável pelo exato volume de Titus
uma ironia agressiva. Minha N.T. explica: Andronicus no qual se baseou minha
“Ricardo está sendo maldoso ao referir tradução. (Também fiquei sabendo, ainda
uma libré inexistente, enfatizando o gosto em criança, que meu nome é Beatriz por
de seu irmão, Eduardo IV, por mulheres de causa da Beatrice de Dante Alighieri – uma
classe social inferior”. escolha de meus pais. Penso agora, no
Um exemplo de N.T. de que gosto momento de escrever este ensaio, se não
particularmente está em Tito Andrônico, estaria aí uma interferência do meu in(sub)
também de Shakespeare. Na Cena 1 do consciente no meu processo criativo.
Terceiro Ato, Marco [Andrônico] diz ao Lembro bem de que, naquele momento
general Tito Andrônico: “Olha as cabeças de escrever a tradução, me era claro,
[decapitadas] dos teus dois filhos, a tua mão muito claro, que a única palavra possível
de guerreiro, aqui a tua filha mutilada, teu naquela construção frástica era “dantesco”
outro filho banido e agora pálido e exangue – mas, e daí, como explicar isto para mim
diante desta cena dantesca e sufocante, e mesma, uma tal interferência no texto
teu irmão, eu, igual estátua de pedra, gelado shakespeariano? O próprio Shakespeare
e dormente”. Para explicar o adjetivo me deu a resposta, não só por causa de
“dantesco” em uma tragédia que se passa “castelo” na mesma peça, mas também
na época do Império Romano, apresen- por ele haver usado “relógio” e “manga [de
ta-se a seguinte nota: “Termo anacrônico uma vestimenta]” na peça histórica Júlio
dentro de uma peça que se passa em época César, que eu traduzira anteriormente.
anterior a Dante; o termo dantesque não Senti-me autorizada; eu poderia ser
consta do original e foi inserido aqui como shakespearianamente criativa/subversiva
solução tradutória”. Esta interferência da na minha tradução.)
tradutora no texto eu me permiti fazer Existem, contudo, passagens que, por
porque na N.T. imediatamente anterior a serem humorísticas, a elas está vetado o
esta, referente à palavra “castelo” (castle recurso a notas de rodapé ou de fim de
no texto fonte), eu já havia colocado a texto. Explicação mata a piada. Piada
seguinte observação: “Um anacronismo tem de ser piada e fazer rir a um público
medieval dentro de uma peça que se passa leitor ou espectador no momento em que
na Roma Antiga”. o texto original nos faz rir (a nós, leitores/
De certo modo, o exemplo acima tradutores). Os efeitos que o texto original
serve para ilustrar como a minha voz teve sobre mim como leitora privilegiada e

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especializada de uma escritura a traduzir, ópera etc. O diálogo, como bem o sabem
eu tenho por obrigação (re)produzir esse os escritores, é texto escrito que apenas
texto de modo a tentar conseguir que o simula a conversação e tem por objetivo ser
leitor (por mim ideado) da minha tradução lido, falado, declamado, cantado para fins
tenha acesso aos mesmos efeitos (horror, de criar a ilusão perante o público leitor
nojo, surpresa, sorriso, gargalhada etc.). ou espectador de que aquela conversa está
Esses efeitos a serem conseguidos (via acontecendo naquele espaço e naquele
interpretação, entendimento do leitor tempo e... de improviso! O autor cria cada
que se dá na sua produção do processo personagem com seu modo de falar – o
de leitura) precisam ser trabalhados na idioleto que o caracteriza. Muitas vezes
superfície textual, de modo que o tradutor uma personagem é o próprio narrador da
deve (re)criar aquilo que ele entende história, nem sempre um narrador com
ser o processo criativo do autor do texto alto nível de escolaridade, nem sempre
fonte. Para tanto, óbvio se faz estudar vida um narrador adulto etc. O tradutor estará
e obra desse autor; óbvio se faz emular sempre atento aos modos de falar de cada
o estilo desse autor. E, no entanto, o personagem, e nenhuma personagem fala
tradutor pode se deparar com questões como ele, tradutor. Assim, a pessoa do
do tipo “inimagináveis” para quem vive de tradutor distancia-se (ossos do ofício) de
Literatura (escritor, crítico ou resenhista) suas preferências linguísticas. Nenhum
sem se debruçar sobre teoria e prática autor escreve como eu, Beatriz, escrevo
da Tradução. O que fazer, por exemplo, (por sinal, não consigo traduzir meus
quando o texto que estou traduzindo próprios contos nem meus poemas, pois
me aponta um intertexto que, em vez de a intimidade visceral que tenho com o
ser anterior à produção ficcional, lhe é processo de criação e com a gênese do
posterior? Foi o que me aconteceu quando, enredo de cada um dos meus textos me
traduzindo A tempestade, deparei com a impede de traduzi-los). Conclusão: o
frase “brave new world”. É muito pouco tradutor é um escritor que não se pode dar
provável que eu a tivesse traduzido como ao luxo nem de optar por itens lexicais de
“admirável mundo novo”, não fosse o título sua preferência nem de rechaçar aqueles
consagrado no sistema literário brasileiro do de que não gosta ou com os quais sente
romance de 1932 de Aldous Huxley. Mas desconforto. Meu vocabulário passivo
optei por dar aos meus leitores a chance precisa ser ativado sempre que estou
de encontrarem em Shakespeare o título traduzindo; meu vocabulário ativo precisa
de Huxley. A mesma questão me acometeu ser fartamente ampliado; palavras ou
quando precisei traduzir “Mirror, mirror expressões que para mim são tabu ou a
on the wall [...]”, do conto de fadas Branca mim machucam psicologicamente, eu as
de Neve e os sete anões – era imperativo tenho de escrever – pois muitas vezes são as
que eu me ativesse à fórmula que conheço palavras exatas de uma dada personagem.
desde criança: “Espelho, espelho meu [...]”. Quantas vezes já não ouvimos escritores
A tradução de diálogos é particu- comentando, quando são entrevistados,
larmente trabalhosa, estejam eles dentro de que a personagem “ganhou vida” ou
um romance, um conto, uma peça teatral, “ganhou força” e dali em diante, sempre
um roteiro de cinema, um libreto de que aquela personagem tinha uma fala,

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não estava mais ele, autor, no controle do a oferecer a disciplina de “Introdução aos
uso da linguagem, no comando da criação Estudos da Tradução”, para que os profes-
ficcional? sores de Literatura em nosso país possam
De qualquer modo, o texto fonte não só indicar a e cobrar de seus alunos
será sempre para o tradutor um objeto leituras de autores estrangeiros, mas que
simultaneamente de fruição pela leitura e possam também falar a seus estudantes
de agonia pela (re)escritura; será sempre sobre o que significa ler um autor traduzido,
um objeto que se apresenta pela superfície de que consiste o processo tradutório de
linguística (vocabulário e gramática, léxico uma obra literária. Todos deveriam saber
e sintaxe) composta gráfica e visualmente que estarão lendo um texto estrangeiro
de modo convencional em parágrafos e através da Leitura que fez daquele autor o
capítulos, versos e estrofes, rubricas e falas seu tradutor.
etc., mas que esconde nessa superfície Todos nós hoje em dia sabemos o que
várias camadas de significação. Quanto é o “making of” de um filme, e também
mais camadas o leitor vier a descobrir, mais sabemos que um romance transposto
rico será o texto literariamente. Quanto para a tela de cinema não é o romance
mais dessas camadas o tradutor conseguir em si, mas sim uma leitura (e um recorte)
embutir no texto (re)criado, mais bem que o cineasta fez da obra. Assistir a um
sucedido terá sido o seu esforço. filme é “entrar” na história e acompanhar
O que o tradutor não deve fazer, e a narrativa fílmica; mas seria ingênuo
posso aqui estar me repetindo, é explicitar acreditar que aquele filme a que estou
o implícito, explicar a piada, pasteurizar assistindo simplesmente apareceu na
os diálogos, fugir ao estilo do autor. Este tela como que por encanto, sem que as
ensaio é apenas uma introdução, um personagens fossem atores seguindo um
breve apanhado sobre questões que vêm roteiro e cercados de câmeras, cenografia,
sendo amplamente debatidas no campo luzes, maquiagem, figurino, cabeleireiros,
acadêmico dos Estudos da Tradução produtores, diretor, diretor de fotografia, e
(Translation Studies). tudo o mais que é necessário para produzir
Cada uma (e muitas mais) das questões um filme que chega às salas de cinema.
que aqui apontei rende cursos de estudos Do mesmo modo, seria fazer uma
ou disciplinas acadêmicas, oficinas, leitura ingênua do texto traduzido alguém
dissertações, teses, projetos de pesquisa, ler Shakespeare ou Cervantes, por exemplo,
eventos acadêmicos: tradução do humor, em língua portuguesa do Brasil do século
tradução de diálogos, tradução teatral, XXI e acreditar que está lendo Shakespeare
versão de letra de música etc. Veja-se ou Cervantes.
que nem mesmo mencionei legendagem
e dublagem (mas dá para imaginar que Referências
esses tipos de tradução impõem ainda SHAKESPEARE, William. Ricardo III. Trad. Beatriz
mais restrições e consequentes desafios ao Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 2007.
processo tradutório). ______. Tito Andrônico. Trad. Beatriz Viégas-Faria.
Acredito que chegará o dia em que, Porto Alegre: L&PM, 2009.
por uma questão de bom senso e de sensi-
Recebido: 10 de agosto de 2014.
bilidade, todo curso de Letras no Brasil virá Aceite: 8 de setembro de 2014.

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