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O Espartilho

Violências Simbólicas II

A vestimenta é um campo semiótico privilegiado. É a sua função significante que


lhe atribui a qualidade de objeto social. Roland Barthes refletiu sobre este assunto em
The Language of Fashion (2013), confirmando-nos como um sistema organizado, formal
e normativo reconhecido pela sociedade, como a moda, adquire um carácter axiológico
(Barthes 2013:7). Foi graças à linguist turn da primeira metade do século XX que
sabemos hoje que as teorias de género passaram a ficar indissociadas do discurso, pela
importância que a linguagem e o seu simbolismo detêm quer na representação da
mulher, quer na formulação enunciatória de domínio/poder masculino sobre o
feminino. Mary Holmes (2007) lembra a importância crucial do estruturalismo
linguístico para o Estudo de Género na criação dos conceitos, dos mitos, das normas
sociais e das identidades, demonstrando como numa leitura estendida à sociedade, o
estruturalismo linguístico de Saussure permite compreender os padrões de significado
entranhados nas forças sociais estruturadas, designadamente no binarismo de género.

A linguagem, quer falada, quer por outra enunciação social, constrói a realidade
que transmite, não representa apenas uma realidade externa; é um instrumento que
constrói poder. A linguagem deixou, pois, de ser entendida apenas como
representativa– passa a ser entendida como performativa (Barret 1992).

É neste sentido que a moda e as peças de vestimenta que nela se inserem são
parte de um texto social que vão ao encontro duma retórica do corpo. Porque, sendo o
corpo o mediador do mundo, é ele o primeiro operador sígnico (Galimberti,1998).

A relação dinâmica entre a roupa, o corpo e a cultura, encontra no século XIX o


seu expoente (Greimas, 2000). O culto da domesticidade pós- revolução francesa que
advogava o pudor e a assexualização feminina, e onde imperava a modéstia, a piedade,
passividade e a fragilidade, disfarçava a mulher reprodutiva e biológica em corpetes,
anquinhas, saiotes e anáguas, imersas em tecido numa construção de rendas, seda,
penas e joias. Através do uso destes materiais artificiais e um conjunto de regras de
moda, “a mulher torna-se numa convenção” (Smith 1981:83), demonstrando como o

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corpo vivido é uma recomposição operada por toda uma vida significativa. Mas a peça
mais importante que lhe moldava o corpo e lhe conferia a forma e a contenção simbólica
era o espartilho.

Peça com origem em séculos anteriores, é em meados do século XIX que atinge
o rigor social mais rígido (Steele 2001), período em que a moda lhe exige que estreite a
cintura feminina até ao limite da “ampulheta”. As alterações nos órgãos internos
provocadas pelo uso sistemático do espartilho apertado causavam danos à saúde
feminina que se estendiam desde a complicações na gravidez pela compressão do útero,
a abortos durante a gravidez, a doenças intestinais, doenças hepáticas e pulmonares
como pneumonia e tuberculose, à distorção das costelas, a dor de cabeça e falta de
apetite, mãos e pés frios, desmaios, incapacidade de respirar ou de andar
confortavelmente (Summers 2001, p.89-90, 116). O espartilho era uma construção de
aço, osso de baleia e seda; foi usado com o objetivo de disciplinar o corpo feminino,
silenciando e punindo o corpo desde a infância até a velhice, exercendo uma violência
social de género que exprime a orientação patriarcal que objetifica a mulher, como
primeiro um símbolo de classe e elegância, e, finalmente, como corpo oprimido. Como
Foucault nos lembra “ainda que não recorram a castigos violentos ou sangrentos,
mesmo quando utilizam métodos suaves de trancar ou corrigir, é sempre do corpo que
se trata — do corpo e de suas forças, da utilidade e da docilidade delas, de sua repartição
e de sua submissão” (Foucault 1987:25-6).

O espartilho colocou as mulheres reféns da dicotomia entre a “ideia de poder”,


por socialmente as inserir no patamar de feminização idealizado, e a repressão
ideologicamente decretada sobre o corpo feminino. É por isso que Valerie Steele (2011)
se refere ao espartilho como o objeto que pende entre a elegância e a repressão, o
empoderamento e a vitimização. As mulheres continuavam a usar o espartilho, porque
como afirma Barthes, (2013:12) na psicologia social a noção de censura é a base para a
aceitação do controle. Mas não só: a sensação de empoderamento que o espartilho lhes
transmitia permitiu-lhes utilizar essa construção mitificada para o seu próprio benefício
social (Summers, 2001, p.5, 126).

Na nova sociedade que emerge pós-revoluções industrial e francesa, a


capacidade produtiva das mulheres desapareceu, passando a ficar centrada apenas na

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capacidade reprodutiva (Smith 1981); as suas funções reprodutivas definem-lhe não só
a identidade sexual, mas a identidade social. O espartilho participa nesse processo,
manietando-lhes os movimentos, diminuindo-lhes a vitalidade e tornando-as
permanentemente incapazes para o trabalho, como Thorstein Veblen argumentou em
seu trabalho The Theory of the Leisure Class (apud Steel 2001). O espartilho vem assim
reforçar a divisão social e económica entre as esferas da vida pública (masculina) e
doméstica (feminina), acentuando a diferenciação física e a incapacidade feminina de
participação no esforço produtivo.

Paradoxalmente, o espartilho tanto hiper-sexualizava a forma feminina


para apelar ao olhar masculino, como continha e restringia o corpo da mulher.
Duplamente oprimia: vitimizava e objetivava. E perdurou, com a cumplicidade das
mulheres, agentes na construção de sua própria subjetividade sexual, imersas na
“imensa máquina simbólica androcêntrica que dispensa justificação” (Bourdieu
1998:13), vítimas de uma lógica de dominação patriarcal a quem, em última instância,
pretendiam agradar.

Ainda recorrendo a Roland Barthes (2013), para o autor a forma de vestir é o


significante de um único significado principal, que é a construção da representação do
eu: respeitabilidade, juventude, virtude ou erotização. Mas a axiologia deste sistema
organizado na sociedade patriarcal oitocentista operou como um aparato coercivo,
onde o espartilho sobressai como um símbolo de controlo e de sexualização feminina,
apenas superado nos primeiros anos do século XX graças aos movimentos feministas do
final do século XIX.

Gabriela Canavilhas, 19 de Maio 2021

Bibliografia:

Greimas, A. J. (2000). La Mode en 1830. Langage et Société: Ecrits de Jeunesses, Paris: Press
Universitaires de France

Barthes, Roland (2013). The Language of Fashion, translated by Andy Stafford, Edited by Andy
Stafford and Michael Carter, Sydney: Bloomsbury Revelations Edition

Steele, Valerie (2001). The Cultural History of the Corset, New York: Yale University Press

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Summers, Leigh (2001). Bound to Please, Oxford: Berg

Galimberti, U. (1998). Les raisons du corps, Paris, Grasset- Mollat

Smith, Bonnie G. (1981). Ladies of the Leisure Class. The Bourgeoises of Northern France in the
Nineteenth Century, Princeton, New Jersey: Princeton University Press

Foucault, Michel (1987). Vigiar e Punir, tradução de Raquel Ramalhete, Petrópolis: Editora Vozes

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