Você está na página 1de 10

Icleia Borsa Cattani

As máscaras
e os mitos:
tensões entre
modernidade e
intemporalidade
na pintura
modernista
em São Paulo
REVISTA USP • São Paulo • n. 94 • p. 19-28 • JUNHO/JULHO/AGOSTO 2012 19
ICLEIA BORSA.indd 19 26/07/12 14:46
dossiê Semana de Arte Moderna

RESUMO

O texto aborda a pintura em São Paulo no entorno da Semana de Arte


Moderna de 1922. O que se passou naquele período evidencia uma modali-
dade específica de percepção do moderno. Os artistas modernistas ficaram
divididos entre os modelos europeus do período: o internacionalismo
das vanguardas e o nacionalismo dos movimentos de retorno à ordem. A
procura de uma identidade brasileira, simultaneamente moderna, atual,
intemporal e mítica, gerou dubiedades e contradições, evidenciadas nas
pinturas modernistas pela elaboração de mitos de pertença e de rostos-
máscaras, símbolos e sintomas das tensões constitutivas dessas pinturas,
situadas entre princípios divergentes.

Palavras-chave: Semana de Arte Moderna, pintura modernista, vanguardas


e retorno à ordem, internacionalismo e nacionalismo, mitos e máscaras.

ABSTRACT

This text deals with the painting produced in São Paulo around the 1922
Modern Art Week. What took place in that period clearly shows there was a
singular view of what was modern. The modernist artists were split between
European models of that time: the internationalism of the vanguards and
the nationalism of the return to order movements. The search for a Brazilian
identity – modern, current, timeless and mythical at the same time – raised
doubts and contradictions. That can be clearly seen in modernist paintings,
as they depict myths of belonging and mask faces, symbols and symptoms
of tensions underlying those paintings, poised between conflicting principles.

Keywords: Modern Art Week, modernist painting, vanguards and return to


order, internationalism and nationalism, myths and masks.

ICLEIA BORSA.indd 20 26/07/12 14:46


A
pintura modernis- lização da cidade, estavam surgindo novas ICLEIA BORSA
CATTANI é professora
ta desenvolvida condições propícias à elaboração de uma arte titular do Instituto
em São Paulo na moderna, vinculada às questões do século de Artes da UFRGS
e autora de, entre
década de 1920 XX. O desenvolvimento anterior foi negado outros, Arte Moderna
apresentou ten- pela geração modernista que, como os mo- no Brasil (C/Arte).
sões constitutivas vimentos de vanguarda na Europa, rompeu
entre princípios com o já existente e propugnou sua legitimi-
opostos. Por um lado, os vinculados à mo- dade como pioneira de um novo momento.
dernidade mais radical das vanguardas das A modernidade do século XX já se mos-
primeiras décadas do século XX; por outro, trara timidamente nas artes visuais paulistas
os de um “refluxo” do moderno, agrupados na década de 1910, com as mostras de Lasar
mais tarde sob o nome geral de retorno à Segall (1913) e de Anita Malfatti (1914). Mas
ordem, iniciados antes da Primeira Guerra a segunda exposição realizada por essa ar-
Mundial e predominantes no entreguerras. tista, em 1917, foi o elemento desencadeador
No modernismo, esses princípios se fusio- da Semana e dos anos que se seguiram. O
nariam em certos momentos, permanecen- movimento estendeu-se até o final da déca-
do em tensão em outros. Neste texto, serão da de 1940, comportando diferentes gerações
consideradas algumas obras sintomáticas e com propósitos diversos.
exemplares das articulações vanguarda-re- Este estudo será centrado na pintura da
torno à ordem, internacionalismo-nacionalis- primeira geração, em obras que evidenciam
mo, temporalidade linear-intemporalidade, os avanços e os recuos causados pela quei-
corpos humanos-corpos míticos, nas obras ma de etapas, a atualização e o aprendizado
de 1922-30 de Tarsila do Amaral, Vicente concentrados num curto espaço de tempo.
do Rego Monteiro e Emiliano Di Cavalcanti. Propõe-se analisar a elaboração dos mitos
Será vista também, como contraponto, nas telas através das relações dos corpos nos
a obra icônica que Anita Malfatti elaborou espaços e das representações dos rostos, as-
nos Estados Unidos entre 1915-16, antes do semelhados a máscaras. As máscaras primi-
movimento modernista, iniciado com a Se- tivas, sobretudo as africanas, foram elemento
mana de Arte Moderna de 1922. Essa obra fundamental de constituição de novas formas
foi precursora do movimento e evidenciou nas vanguardas europeias no início do século
um modo distinto de dialogar com a moder- XX, principalmente no cubismo e no expres-
nidade internacional. sionismo. Os movimentos deles derivados,
O movimento paulista, ao se autodeno- pertencentes ao retorno à ordem, como o
minar modernista, criou uma especificidade pós-cubismo na França e a nova objetivida-
dentro do processo artístico existente no Bra- de na Alemanha, afastaram-se das pesquisas
sil desde o século XIX. Havia a moderniza- de formas radicais e reaproximaram-se das
ção na literatura, na ilustração e, mais timi- representações clássicas, resgatando corpos
damente, nas artes visuais, devido ao peso do e rostos anatômicos, mas conservando esti-
modelo acadêmico predominante. Mas ou- lemas modernos.
tros elementos da modernidade mudavam as
condições da visualidade, como a ilustração MODERNIDADE
das revistas e jornais, a fotografia e o cine-
ma. Isso acontecia principalmente no Rio de
E VANGUARDA
Janeiro, capital do país, e no Recife, porto As telas mais próximas dos princípios
importante e lugar de trocas econômicas e das vanguardas foram sem dúvida as que
culturais intensas com a Europa. São Paulo Anita realizou em 1915-16 e expôs no ano
participava mais timidamente do processo de seguinte. Anita foi dos poucos pintores bra-
modernização oitocentista, mas, com a ace- sileiros a ter contato direto com artistas das
leração do crescimento urbano e a industria- primeiras vanguardas europeias, na Ale-

REVISTA USP • São Paulo • n. 94 • p. 19-28 • JUNHO/JULHO/AGOSTO 2012 21


ICLEIA BORSA.indd 21 26/07/12 14:46
dossiê Semana de Arte Moderna

manha e nos Estados Unidos, onde eles se “festa da forma e festa da cor”, contrariamen-
refugiaram naqueles anos de guerra. Estes te ao páthos existencial do expressionismo,
se encontravam em plena produção, como seu clima de revolta, pessimismo e violência.
Marcel Duchamp, que conheceu no ateliê de As figurações do corpo humano pos-
Homer Boss (Batista, 2006). Na Alemanha suem, na sua pintura daqueles anos, certas
(1910-14), Anita havia estudado com artistas características comuns. Podemos constatar,
de importância considerável, como Lovis por exemplo, o uso de cores arbitrárias e de
Corinth, que, apesar de mais conservador tonalidades vivas e chapadas que indicam os
do que os expressionistas, fazia um uso da volumes no lugar da gradação dos tons. As
cor livre e dinâmico, auxiliando a jovem bra- formas são esquematizadas, como se fossem
sileira a ampliar seus horizontes. Também elaboradas de modo rápido e espontâneo,
foi importante o artista Bishoff-Culm, com guardando muitas vezes as linhas de contor-
quem Anita afirmou mais tarde ter aprendi- no justapostas às zonas de cor.
do a linguagem pictórica (Batista, 2006). Ela Ocorre também, e provavelmente tenha
também frequentara mostras seminais, pela sido o elemento mais importante para a de-
amplitude das obras de vanguarda que expu- finição de sua pintura como “expressionista”,
nham, como a IV Sonderbund, que mostrava um descentramento dos corpos no espaço de
artistas modernos franceses, alemães, holan- representação. Na tela A Boba (1915-16), a
deses, etc. Se sua linguagem pictórica conso- cadeira na qual a personagem está sentada
lidou-se nos Estados Unidos, quando Homer adquire uma importância espacial quase
Boss lhe abriu a possibilidade de pintar em equivalente à do corpo, gerando um dese-
total liberdade, não se pode desconsiderar es- quilíbrio entre ele e o espaço. Essa estratégia
sas origens mais distantes de sua formação. compositiva “desierarquiza” os elementos do
Elas, provavelmente, explicam sua opção por quadro, contrariamente à representação clás-
uma linguagem formalmente próxima do sica, aumentando a dramaticidade da tela.
expressionismo, embora regida por princí- Nessa tela emblemática daquele momento, o
pios diametralmente opostos e não isenta de rosto é aparentemente maquiado: as sobran-
ambiguidades. Em suas pinturas coexistem celhas e os olhos marcados por linhas pretas,
elementos do estilo expressivo de Van Gogh, as faces e a boca de um vermelho forte, como
das cores planas e saturadas do fauvismo, uma atriz entre o burlesco e o dramático. A
dos contornos acentuados das formas ini- cabeça baixa, voltada para o lado, mostra um
ciados com Gauguin e, em parte, do páthos olhar de soslaio que reforça a dramaticidade.
do expressionismo. Além dessas diferentes Pela expressão do rosto, A Boba está mergu-
linguagens, relativamente próximas entre si, lhada na atuação, seja de uma cena italiana
seu talento para a caricatura, praticada ha- ou do drama da vida. Mesmo que não seja
via muitos anos e muito expressiva (Batista, exatamente expressionista, essa obra, como
2006, p. 148), pode ter contado para o desen- as outras da artista nesse período, alinha-se
volvimento de sua pintura. É de se perguntar, à modernidade próxima das vanguardas do
todavia, se Anita absorveu realmente os prin- início do século XX. Trata-se de um corpo
cípios do expressionismo, com o qual sempre atual, dentro do tempo linear e cronológico
foi identificada no Brasil, ou se foi uma ade- moderno, e de um rosto expressivo, em opo-
são aparente nas formas, mas distanciada na sição aos que serão elaborados mais tarde
produção de sentidos, como aconteceu com pelos modernistas.
seus desenhos “cubistas”, que, embora de Sua rápida mudança para formas mais
grande qualidade e dinamismo, evidenciam tradicionais após a volta ao Brasil evidencia
sua incompreensão do cubismo. Em relação certas questões, que marcaram mais tarde
ao expressionismo, há uma diferença funda- os outros artistas modernistas abordados
mental: sua pesquisa nos Estados Unidos foi neste estudo: a fragilidade de seu sistema de
regida, segundo Batista (2006, p. 100), pela formas, desenvolvido num período extrema-

22 REVISTA USP • São Paulo • n. 94 • p. 19-28 • JUNHO/JULHO/AGOSTO 2012

ICLEIA BORSA.indd 22 26/07/12 14:46


mente curto de aprendizado e de descoberta

Acervo MAC-USP
de possibilidades; a adesão, evidente antes e
depois da estada nos Estados Unidos, a sis-
temas de formas mais tradicionais; a falta de
condições para o desenvolvimento de uma
arte moderna em São Paulo; e a intensa de-
saprovação às suas pinturas, sobretudo após
o artigo impiedoso de Monteiro Lobato. Na
Semana, entretanto, suas obras representa-
vam um dos conjuntos mais modernos, mais
coerentes e de maior qualidade artística.

MOMENTO
DE VANGUARDA
A Semana de 1922 foi o primeiro e o mais
notório acontecimento coletivo nas artes visu-
ais, evento programático e organizado pelos
jovens artistas e literatos com a intenção de
causar impacto e de anunciar a chegada da
modernidade em São Paulo. Entretanto, foi um
evento ambíguo, apoiado em membros proe- definidos e modernos. Como as outras pin- Anita Malfatti,
minentes da sociedade, como Paulo Prado, e turas expostas, elas eram de uma moderni- A Boba, 1915
da intelectualidade, como Graça Aranha, para dade tímida e evidenciavam multiplicidades
assegurar credibilidade e recursos financei- formais e de sentido, ficando claro que ha-
ros à sua realização. Essa ambiguidade esteve via um terreno de experimentações amplas,
presente no evento e nas suas várias manifes- dentro do leque considerado moderno, e não
tações artísticas, pois os artistas anunciaram linguagens próprias afirmadas.
a modernidade antes de se tornar modernos. Voltando ao Brasil alguns meses após a
Havia grandes diferenças de um pintor ao realização da Semana, Tarsila integrou-se ao
outro e de uma obra à outra, mesmo entre as grupo modernista e começou a aprender a
produções de um único artista, evidenciando modernidade por influência dele. Suas pri-
buscas entre os estilos modernos em 1922, meiras obras constituem ensaios, que se de-
como o pós-cubismo e o art déco, anterio- senvolveriam a partir de 1923.
res, como o fauvismo e o pós-impressionis-
mo, e o simbolismo do final do século XIX. ARTE MODERNA E
O nacionalismo no Brasil à época, exa-
BRASILEIRA – TENSÕES
cerbado pelo Centenário da Independência,
também evidenciou uma ambiguidade na
CONSTITUTIVAS
Semana, pelo desejo de ruptura dos jovens Em 1923, os pintores modernistas se en-
artistas e literatos com os valores vigentes. contravam em Paris, onde começaram a sis-
Mas, durante a Semana, Anita expôs Tro- tematizar seus estudos da modernidade e o
pical (c. 1916), e Rego Monteiro, Lenda desenvolvimento de suas respectivas lingua-
Brasileira e Cabeças de Negras (1920). Ele gens. Eles tiveram contato majoritário com a
realizava pesquisas sobre os indígenas do Escola de Paris, que nos anos 1920 propug-
Brasil e publicou o livro ilustrado Légendes nava um cubismo classicizado, vinculado à
et Croyances des Indiens de l’Amazonie em tradição e submetido a certas “leis”. Picasso
1921, em Paris (Zanini, 1997). Essas obras passava por sua fase “clássica” monumentali-
com temas nacionais não possuíam estilos zada, embora a alternasse com pinturas total-

REVISTA USP • São Paulo • n. 94 • p. 19-28 • JUNHO/JULHO/AGOSTO 2012 23


ICLEIA BORSA.indd 23 26/07/12 14:46
dossiê Semana de Arte Moderna

mente planas que evocavam a invenção extra- sições, alguns não mais acreditando no po-
ordinária das colagens, como Os Três Músicos der transformador da arte e no interesse e
(1921). No entanto, para os brasileiros, foi a finalidade da investigação de novas formas,
primeira que interessou, bem como as figuras outros fazendo uso de críticas extremas. Por
igualmente monumentais de Léger. O primi- um lado, houve a continuação das vanguar-
tivismo também foi importante. Nos anos das com o dadá, em Paris, até 1924, com
1920, se transformara, das pesquisas plásticas contradições e disputas internas; nesse ano,
das vanguardas, numa busca por exotismo. originando-se do dadá mas opondo-se a ele,
Assim, aceitava-se bem os artistas estrangei- surgiu oficialmente o surrealismo com o pri-
ros que trouxessem algo diferente e “típico”. meiro manifesto, redigido por André Breton.
Isso validava o desejo dos brasileiros de rea- A esses, somavam-se as abstrações, em ver-
lizar uma arte moderna, diversa dos modelos tentes diferenciadas. As relações artísticas da
europeus. Simultaneamente, a valorização de França com outros países eram intensas, e
traços nacionais nas obras as distanciava da revistas publicavam textos sobre movimentos
internacionalização das vanguardas, apro- que surgiam; peças teatrais, balés e filmes
ximando-as ainda mais do retorno à ordem. radicais em suas pesquisas estéticas foram
É importante assinalar que havia uma falta lançados. Por outro lado, o retorno à ordem
de clareza à época, mesmo para artistas euro- tinha-se afirmado, reunindo artistas de di-
peus, entre os princípios de vanguarda e os versas tendências e com níveis diferentes de
do retorno à ordem. A primeira tentativa de conservadorismo, mas constituindo um agru-
transformar as pesquisas de Picasso e Braque pamento relativamente coeso, batizado em
em um conjunto de leis e normas ocorreu em 1925 de Escola de Paris. O período de pleno
1912 com o livro de Albert Gleizes e Jean desenvolvimento das tendências conservado-
Metzinger, Du Cubisme et des Moyens de ras seria o entreguerras, com a exacerbação
le Comprendre. Já havia naquele momento, de diferentes posições políticas e artísticas
em termos culturais e artísticos, um certo re- ao longo das duas décadas. Mas, nos anos
fluxo em relação ao espírito investigativo da 1920, os limites entre vanguarda e retorno à
década anterior, causado pelo clima social ordem eram relativamente fluidos.
mais pessimista, de crise política, social e de Os pintores brasileiros se envolveram
valores, que levou os artistas de vanguarda com esse contexto a partir de 1923. As opções
a questionar-se sobre sua responsabilidade. que fizeram não eram totalmente claras e eles
A Primeira Guerra Mundial se aproximava. sentiram-se participando, se não dos movi-
No entanto, se esse clima contagiava alguns mentos, pelo menos do espírito de vanguarda.
artistas que sentiam necessidade de organizar Simultaneamente, a opção pelas tendências
o caos causado pelas rupturas das vanguardas conservadoras tinha sua razão de ser. Era
com os valores estabelecidos pela tradição, foi mais seguro participar de um movimento que
também em 1912 que eventos extraordinários definia princípios norteadores, sobretudo para
ocorreram nas artes: a invenção das colagens artistas que acreditavam que esses eram parte
por Picasso e dos papiers collés por Braque; o legítima da modernidade, que acolhia os es-
surgimento da abstração em vários pontos da trangeiros e do qual vários participantes eram
Europa; o início do dadá na França, com Mar- professores reputados. Outra questão impor-
cel Duchamp e Francis Picabia; a famosa ex- tante é que artistas da primeira vanguarda
posição futurista em Paris e o início da quere- francesa, como Picasso, Brancusi, Gris, Lé-
la entre futurismo e cubismo. Era um contexto ger, vinculavam-se, mesmo que paralelamen-
fervilhante, de novas descobertas e criações, te, à Escola de Paris. O movimento também
de novas associações e eventos, dificultando valorizava as identidades nacionais, requisito
discernir os limites entre tendências opostas. reforçado por Mário e Oswald de Andrade.
Durante e após a Primeira Guerra Mun- Mário era leitor assíduo da revista
dial, muitos artistas radicalizaram suas po- L’Esprit Nouveau, de Ozenfant e Jeanneret

24 REVISTA USP • São Paulo • n. 94 • p. 19-28 • JUNHO/JULHO/AGOSTO 2012

ICLEIA BORSA.indd 24 26/07/12 14:46


(futuro Le Corbusier), pintores que criaram pau-brasil de sua obra, para metamorfosear-se
o purismo e propugnavam os princípios de no Abaporu em 1928; e, símbolo da abertura
ordem, equilíbrio, tradição e respeito às pro- brasileira às mestiçagens, o Mulato, leitmotif
porções ideais da arte clássica, embora não o das telas de Di Cavalcanti a partir da estada
realismo. As ideias da revista apareciam no na Europa. Em algumas pinturas, essas figu-
manifesto do primeiro número de Klaxon, ras humanas atingem status de mitos (Catta-
redigido por Mário. Com esse lastro con- ni, 2008 e 2011); estes não possuem rostos,
servador, era evidente que ele recomendaria mas máscaras. Diferentemente, portanto, das
aos artistas uma modernidade moderada. pinturas de Anita e, até mesmo, das que esses
Sua preocupação com uma arte brasileira artistas haviam realizado na Semana e logo
o levava a insistir também nesse aspecto ao após, não se trata mais do Homem universal
acompanhar as produções dos modernistas. da modernidade, mas de homens locais, trans-
Diferentemente de Mário, Oswald, em postos a uma condição para além do humano.
sua conferência na Sorbonne em 1923, enfa- Essas representações alinham-se, assim, ao
tizou a modernidade da geração modernis- retorno à ordem, embora fossem consideradas
ta, que acertava o passo com as condições modernas na França e, até mesmo, de van-
atuais do país e criava uma arte digna de guarda no Brasil. As tensões entre princípios
ser considerada em Paris (Amaral, 1975). opostos transparecem nas telas dos artistas.
A diferença de posicionamentos denuncia a
tensão, presente também nas pinturas, entre CONSTITUIÇÃO
conservadorismo e vanguarda. O ponto no
DE MITOS DO
qual os dois autores convergem é a elabora-
ção de uma arte semelhante à dos europeus
LUGAR-BRASIL
pela modernidade, e diferente pelos signos A grande questão para os três pintores
característicos do lugar-Brasil, que, para modernistas após 1923 foi tentar conciliar
Mário, eram todos os signos pictóricos que os mitos com a execução de uma pintura
evidenciassem o lugar: formas, cores, temas. moderna. Ela não ocorreu por uma fusão
Oswald enfatizou na conferência a represen- dos componentes, mas por tensões formais
tação de raças não europeias – os índios por e de significado, de temas e formas e destas
Rego Monteiro, os negros por Tarsila. Nota- entre si, que permanecem latentes nas obras.
-se, por parte dos escritores e críticos, como Nesse contexto, suas pinturas evidenciam
na Semana, um desejo programático de cons- uma série de elementos comuns, que permi-
trução de uma modernidade própria, da qual te considerá-las como a construção visual de
os modernistas seriam as referências. mitos, simbólica e icônica simultaneamente.
Os mesmos princípios estavam presen- Esses elementos são, basicamente, a mo-
tes nas obras, embora essas possuíssem, numentalidade, o hieratismo e a centralidade
além de pontos comuns, diferenças marcan- das figuras no espaço de representação; sua
tes. Uniam-se, nas motivações dos artistas, o iconicidade como personagens humanos e
nacionalismo, a ênfase da Escola de Paris às inumanos simultaneamente; e, enfim, as mi-
representações não europeias e o encoraja- grações e metamorfoses que operam de uma
mento dos escritores modernistas; mas, mais tela à outra, de um espaço ao outro, de um
do que esses aspectos, o desejo de atingir na tempo ao outro, evidenciando a permanência
pintura uma igualdade moderna, diferencia- e a atualidade dos mitos. Essas figuras cons-
da pelos signos do lugar-Brasil. tituem e são constituídas por espaços circula-
O aspecto que interessa particularmente res, evocando o périplo mítico ao fim do qual o
a este estudo é a representação das raças não herói volta ao ponto de partida, transformado
europeias. O Índio, tema que Rego Monteiro e encontrando seu lugar também modificado.
estudou aprofundadamente; o Negro, pinta- E, assim como os mitos não possuem um
do por Tarsila em 1923 e ao longo da fase rosto fixo, pois este, tal como o corpo, se trans-

REVISTA USP • São Paulo • n. 94 • p. 19-28 • JUNHO/JULHO/AGOSTO 2012 25


ICLEIA BORSA.indd 25 26/07/12 14:46
dossiê Semana de Arte Moderna

forma, as figuras-personagens dessas telas circular, o tempo dos mitos, oposto à tempo-
possuem rostos-máscaras: estáticos, às vezes ralidade humana ocidental, linear e irrever-
inexpressivos, evidenciando uma inadequa- sível e ao aqui e agora das vanguardas. Nas
ção aos corpos, pelo feitio, tamanho ou posi- duas primeiras, nota-se a presença de não
ção em relação ao corpo, enfim, pelas feições. lugares: segundo plano vazio, não conotado,
O uso das máscaras na pintura das van- em Rego Monteiro; preenchido por figuras
guardas teve papel fundamental pelos novos geométricas opostas formalmente ao corpo,
elementos formais, estéticos e de sentido que em Tarsila. Em Di Cavalcanti, o espaço tem
possibilitavam. As máscaras africanas e as certa volumetria, evidenciando um lugar pre-
estatuetas pré-históricas da Catalunha foram ciso com seus casarios; mas as outras carac-
elementos formais estruturantes nas pesqui- terísticas estão presentes, situando também a
sas de Picasso e Braque, sendo que o primei- sua pintura no universo dos mitos.
ro realizou, em 1907, a icônica As Senhoritas As cores apresentam características co-
de Avignon, na qual o uso das máscaras afri- muns: tons quentes, terrosos, que constituem
canas foi um choque e uma descoberta. Os a pele dos diversos tipos raciais, mas que
expressionistas alemães partiram das mes- invadem também o segundo plano, eviden-
mas máscaras, tornando-as elementos dra- ciando que os mitos não se encontram ape-
máticos ou trágicos em suas telas. Mas, nes- nas nas figuras, mas na totalidade do espaço
ses movimentos de vanguarda, as máscaras de representação. A quase monocromia em
não serviram para criar mitos, pois as figuras tons baixos e neutros evoca a tendência da
evidenciavam questões universais, não espe- pintura moderna na França, desde o cubismo
cíficas, de um local ou de um país. Mesmo na analítico até algumas telas da Escola de Pa-
Escola de Paris, não se constata a criação de ris. Mas a escolha cromática aponta também
mitos nacionais naqueles anos; essa questão para a terra brasileira, simbolizada pelos ti-
apareceria progressivamente na década se- pos raciais não europeus, pelas situações te-
guinte, com a radicalização das posições po- lúricas, populares ou suburbanas sugeridas.
líticas. Os mitos elaborados na arte brasileira Em tudo oposto ao Brasil dos modernistas,
dos anos 1920 parecem, portanto, constituir que era urbano, em desenvolvimento, cul-
uma especificidade do modernismo na sua to, o representado era nostálgico e em vias
tentativa de sintetizar vanguarda, retorno à de desaparecer. Talvez esse fosse o aspecto
ordem e elaboração de uma arte nacional. mais antimoderno dessas obras: ao mesmo
A Negra (1923), de Tarsila, O Atirador tempo em que parecia haver um desejo de
de Arco (1925), de Rego Monteiro, e Cin- atualização na diferença, havia também a
co Moças de Guaratinguetá (1930), de Di construção, não de mitos da modernidade,
Cavalcanti, são todas obras sintomáticas e mas de mitos de origem, de um país em vias
exemplares das representações míticas. Em de transformação irreversível, gerados nes-
todas, as figuras são monumentais, hieráti- sas pinturas pela própria terra. Ao mesmo
cas e imóveis; nas duas primeiras, os perso- tempo, eles seriam não apenas o elemento di-
nagens centrais situam-se frontalmente em ferenciador em relação à modernidade euro-
relação ao espectador; em todas, transparece peia, mas símbolo da modernidade brasileira
um imobilismo, semelhante ao fora do tempo na medida em que eram autogerados, assim
da narrativa mítica. Nas telas de Tarsila e como os artistas afirmavam a autogeração
Rego Monteiro existem cortes circulares do do movimento. Outro importante aspecto da
espaço, que centram as imagens impedindo criação pictórica dos mitos foi sua migração
sua expansão; no óleo de Di Cavalcanti, esse e consequente metamorfose, vinculados à
espaço circular faz-se presente pelo jogo de criação dos rostos-máscaras. Nas obras de
olhares entre as figuras, que induzem o es- Di Cavalcanti, na década de 1920, nota-se
pectador a realizar um movimento de elipse. a migração das figuras dos mulatos de uma
Esses cortes espaciais induzem a um tempo tela à outra, sendo as mulatas o motivo maior

26 REVISTA USP • São Paulo • n. 94 • p. 19-28 • JUNHO/JULHO/AGOSTO 2012

ICLEIA BORSA.indd 26 26/07/12 14:46


de suas obras. Nessa década de aprendiza-

Acervo MAC
do e transformações rápidas em seu sistema
de signos, constata-se a passagem de uma
figuração próxima ao expressionismo, com
personagens beirando a caricatura e espaços
instáveis, para uma figuração mais realista,
como se constata em Samba, de 1925. A
comparação com Cinco Moças evidencia
todas as diferenças no sentido de uma ela-
boração mítica. A opção pelo mulato como
símbolo de nacionalidade surgiu antes da ela-
boração dos mitos, e estes apresentaram-se
como necessidade de um momento, quando
as figuras de várias telas assumiram carac-
terísticas nesse sentido. Ou seja, os mitos
migraram e se transformaram ainda antes
de se constituírem como tais – talvez as mi-
grações não tenham nascido dos mitos, mas,
pelo contrário, elas os tenham criado. Em
Cinco Moças, as figuras tornam-se ícone
e símbolo simultaneamente. Pintando num
estilo que cria tensões entre os princípios do
pós-cubismo, do expressionismo e da nova
objetividade simultaneamente, o artista cria
espaços cúbicos contrastantes com as figuras
pouco volumétricas aglomeradas no primei-
ro plano, tendo como contraponto a quinta fi-
gura ao fundo, mais harmonizada ao espaço. nas qualidades físicas das figuras, nem nas Tarsila do Amaral,
Nos rostos, destaca-se a deformação e o jogo formas gerais das pinturas, mas nos seus A Negra, 1923
de olhares, próximo de uma representação sentidos. Em todos os personagens, dos
teatral. A deformação, mais acentuada na fi- índios ao Cristo, verifica-se o uso de más-
gura do lado direito no primeiro plano, leva caras quadrangulares, enterradas no peito
a perceber todas como máscaras, evocando das figuras, mais rituais do que expressivas.
a abordagem expressionista, com traços exa- Assim acontece na justaposição das telas O
gerados e desproporcionais ao corpo. A bela Atirador e as duas Crucifixão (1922 e 1924),
figura central de Samba migrou, desdobrou- quando se pode constatar as semelhanças
-se, metamorfoseou-se e se mascarou, dentro formais, muito maiores do que as diferen-
da mais característica trajetória mítica. ças; como se todos os mitos se igualassem.
Nas telas de Rego Monteiro, nota-se a Com Tarsila ocorre um processo similar
presença de migrações simultâneas e não de ao de Di Cavalcanti, pois alguns elementos
um tempo a outro. As figuras monumentais característicos dos mitos surgiram antes de
e geometrizadas das telas indígenas estão sua representação. Assim, dois autorretra-
presentes nas que abordam temas cristãos, tos e a tela A Caipirinha (1923) apresentam
bem como os outros aspectos, já mencio- aspectos dignos de atenção. No autorretra-
nados, característicos dos mitos. Os cor- to Manteau Rouge, a artista representa-se
pos permanecem os mesmos, mas mudam numa pose muito próxima à de A Negra, e
de função, cumprindo um périplo horizon- a gola do casaco realiza um corte circular
tal e simultâneo de um mito ao outro. As do espaço, como o corpo da Negra efetuaria
metamorfoses não ocorrem propriamente depois. O outro autorretrato consiste no rosto

REVISTA USP • São Paulo • n. 94 • p. 19-28 • JUNHO/JULHO/AGOSTO 2012 27


ICLEIA BORSA.indd 27 26/07/12 14:46
dossiê Semana de Arte Moderna

da artista pairando no ar, como uma verda- gerados e cabeça minúscula; o lugar se carac-
deira máscara. A Caipirinha traz de novo a teriza; a planta e o corpo humano tornam-se
pose da Negra, embora em seu conjunto seja quase equivalentes. Aos antigos diálogos com
a tela mais moderna da pintora naquele ano; Léger e outros artistas do retorno à ordem,
contrariamente às três outras, ela não possui soma-se agora o surrealismo, revisto dentro
rosto, detalhe significante na sequência da sua da questão mítica. Ao migrar do Abaporu à
obra. Em Manteau Rouge, a pose da artista Antropofagia (1929), ocorre o encontro da
antecipa as de A Caipirinha e A Negra, for- negra com essa nova figura; justaposição sem
mando de certo modo um tríptico: corpos de fusão, convivência de dois tempos e espaços
frente, braço direito dobrado e a mão penden- tornados um só. Não é coincidência que, nas
do solta à frente do corpo, sendo um foco da metamorfoses sofridas na migração, ambos
composição. A pose constitui um elemento de percam literalmente as cabeças: nem rostos,
ligação entre três imagens díspares, levando a nem máscaras, apenas dois volumes ínfimos,
pensar se seriam representações de um único o humano metamorfoseia-se em vegetal e
personagem, ou de uma síntese entre a artista transforma-se noutro mito, da natureza pri-
e sua “mãe-preta”, inspiração da Negra. O ano meva, anterior aos primeiros habitantes e à
de 1923 marcou sua mudança como artista e sua própria elaboração mítica.
como pessoa: ela sofisticou-se, vestiu-se com A tensão entre o que seriam e o que re-
grandes costureiros e adotou o penteado que presentariam esses mitos, entre o moderno
seria sua marca registrada. Criara-se a Tarsila e o antimoderno, entre o próprio e o nacio-
mulher e artista moderna, como uma persona nal, permeou a própria tentativa de repre-
apresentada junto à sua obra e na mesma, tal- sentação da nacionalidade na pintura. Essa
vez não só nos autorretratos, mas por modos tensão foi, em parte, resolvida teoricamente
transversos na Negra e, mais tarde, no antro- pela elaboração do conceito de antropofagia
pófago. Se A Negra possui as características por Oswald de Andrade. Mas ela permanece
já mencionadas dos mitos, inclusive o rosto- latente nas pinturas do modernismo, manten-
-máscara, inexpressivo e com traços faciais do-as múltiplas, ambíguas, instigantes e para
acentuados, ao migrar no tempo e no espaço sempre irresolutas – talvez este seja o princi-
para O Abaporu (1928), ela se transforma; o pal aspecto a manter seu interesse, noventa
corpo torna-se um arabesco, de membros exa- anos após a realização da Semana.

B I B LI O G R AFIA

AMARAL, Aracy. Artes Plásticas na Semana de 22. São Paulo, Perspectiva, 1972
.Tarsila: Sua Obra e Seu Tempo. São Paulo, Perpectiva/Edusp, s.d.
ANDRAL, Jean-Louis; KREBS, Sophie. L’École de Paris 1904-1929, la Part de l’Autre. Paris,
MAM – Paris, 2000.
BATISTA, Marta Rossetti. Anita Malfatti no Tempo e no Espaço. Catálogo da Obra e
Documentação. São Paulo, Ed. 34/Edusp, 2006.
CAT TANI, Icleia. “Antropofagia e Mitos: a Pintura de Tarsila do Amaral”, in Annateresa
Fabris e Luiz Camillo Osorio (orgs.). Atas do Colóquio Internacional História e(m)
Movimento. São Paulo, MAM, 2008.
. Arte Moderna no Brasil. Constituição e Desenvolvimento nas Artes Visuais
(1900-1950). Belo Horizonte, C/Arte, 2011.
ZANINI, Walter. Vicente do Rego Monteiro (1899-1970). Artista e Poeta. São Paulo, Empresa
das Artes/Marigo Editora, 1997.

28 REVISTA USP • São Paulo • n. 94 • p. 19-28 • JUNHO/JULHO/AGOSTO 2012

ICLEIA BORSA.indd 28 26/07/12 14:46

Você também pode gostar