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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES

KARL MARX -MANUSCRITOS ECONÔMICO-FILOSÓFICOS

TRABALHO ESTRANHADO E PROPRIEDADE PRIVADA

Breno Araújo1

Neste breve trabalho será apresentado minimamente a concepção de trabalho


estranhado em Karl Marx, bem como a relação deste conceito com a propriedade
privada. A partir da análise da atividade produtiva do ser humano e seu caráter
social, a construção deste trabalho terá como núcleo a seguinte questão: como o
duplo aspecto do trabalho, isto é, o aspecto fundante da sociabilidade humana e
como categoria sociohistórica, permite a compreensão do caráter negativo e, ao
mesmo tempo, historicamente transitório da alienação?

A produção da concepção de trabalho estranhado nos Manuscritos de 1844 de


Marx é desenvolvida com base em sua crítica ao idealismo alemão, considerando
que tanto em Hegel, quanto em Feuerbach, o conteúdo da alienação não se
relacionavam diretamente com a realidade política e econômica da sociedade, por
mais que em Feuerbach, além do aspecto antropológico, tenha denominado a
alienação como categoria negativa, ao depositar a consciência do sujeito a um ente
fora do sujeito, como Deus para as religiões, gerando a alienação da consciência
do indivíduo perante a realidade.

Em Hegel, a alienação apresenta-se sob a relação entre o positivo e o negativo,


a tese e antítese, gerando o encontro de síntese dialética deste movimento. Este
método dialético seria fruto do sistema lógico e ontológico que resolveria o
problema da alienação da consciência humana da tradição filosófica, mas para
Marx, não era suficiente para resolver o problema da alienação do homem como
ser social.

1
Graduando em Filosofia-Licenciatura. UECE, 2022.
Marx, portanto, utiliza-se da concepção de alienação filosófica do idealismo
alemão, mas não como mera alienação da consciência, como problema
exclusivamente filosófico, mas trabalha através do método dialético trazendo o
conteúdo da alienação para a realidade objetiva, para a análise das relações sociais,
e não apenas da consciência ou de uma noção antropológica.

Assim, Marx parte da análise da tradição filosófica para uma análise que
fundamentará sua concepção de trabalho estranhado: a Economia Política
Clássica. Por conseguinte, sua compreensão e crítica social se direcionam á crítica
dos modos de produção capitalista, e das teorias abstratas da filosofia clássica
alemã que desviavam o caminho da compreensão histórica e social concreta da
alienação, limitando-se na análise da consciência reduzida em si mesma, sem
vínculo direto com seu caráter histórico e social.

O motivo pela qual Marx se utiliza do método dialético hegeliano para aplicá-
lo nas relações de produção, consiste no fato da alienação, isto é, o estranhamento
do sujeito no ato da produção, em suas relações de trabalho, ocorrer também em
sua consciência. Contudo, trazendo este raciocínio para a relação que o
trabalhador adquire na produção de uma mercadoria, o processo de estranhamento
de si, intensifica na medida em que intensifica sua produção:

O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto
mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma
mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização
do mundo das coisas (Sachenwelt) aumenta em proporção direta a
desvalorização do mundo dos homens (Menschenwelt). O trabalho não produz
somente mercadoria; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma
mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral. 2

O trabalhador, ou seja, o homem, quanto mais produz, menos obtém; da mesma


forma, quanto mais cria fora de si atributos a um ente superior, como nas religiões,
menos obtém em si mesmo. Por isso, Marx percebe que o fundamento de sua
crítica a alienação da consciência, se dá a partir da crítica aos modos de produção
em que está inserido, a Economia Política responsável.

2
MARX, Karl, Manuscritos econômico-filosóficos – Trabalho estranho e propriedade privada, p 80.
Supervalorizando o mundo das coisas materiais, desvaloriza sua própria vida,
seus meios de sobrevivência e consequentemente, sua percepção de si mesmo e
do mundo. Assim, o produtor se torna o produto, o sujeito se torna objeto de sua
produção e não se reconhece nem em seu trabalho, nem no objeto produzido. Este
é o processo que Marx denomina de exteriorização:

(...) A exteriorização (Entäusserung) do trabalhador em seu produto tem o


significado não somente de que seu trabalho se torna objeto, uma existência
externa (äussern), mas, bem além disso, [que se torna uma existência] que
existe fora dele (ausser ihm), independente dele e estranha a ele, tornando-se
uma potência (Macht) autônoma diante dele, que a vida que ele concedeu ao
objeto se lhe defronta hostil e estranha. (MARX, Karl, 2010, p 81)

O processo de estranhamento ao mesmo tempo se torna hostil, pois o


trabalhador reduz sua potencialidade humana, isto é, reduz sua capacidade
autônoma tanto do ponto de vista material, de sua sobrevivência, quanto do ponto
de vista social e intelectual, pois sua consciência também se encontra estranhada
de si mesma enquanto deposita suas capacidades num objeto que lhe é estranho e
não lhe pertence. Sua vida torna-se limitada e confusa.

Por esta razão, Marx aponta que o mundo exterior, a natureza, deixam cada vez
mais de serem um meio de vida imediato para o trabalhador, na medida em que
este se apropria, com o processo de produção estranhado, do mundo externo e da
natureza. Considerando que para manter-se vivo é preciso trabalhar, e para
trabalhar, é preciso ceder ao processo de produção que se apropria de sua vida,
para existir como ser humano, é preciso que subsista como trabalhador alienado.

Por conseguinte, Marx demonstra que há dois aspectos do processo de


estranhamento do trabalho: o primeiro se dá, como já foi demonstrado, com o
estranhamento do trabalhador em seu produto, que se apresenta de forma hostil,
autônoma e independente dele, assim como a natureza e o mundo externo. O
segundo aspecto seria o estranhamento do trabalhador no processo de produção,
em sua própria atividade como algo fora e independente dele.3

A partir dessa investigação, Marx desenvolve a noção do ser humano como ser
genérico, isto é, o homem como ser que tem como objeto sua própria vida, obtém

3
Ibidem, p 83.
sua atividade e sua própria concepção de mundo e seu gênero como objeto. Marx
afirma que quanto mais universal o ser, maior o seu domínio da natureza, maior a
posse do seu corpo inorgânico.

(...) a universalidade do homem aparece precisamente na universalidade que


faz da natureza inteira seu corpo inorgânico, tanto na medida em que ela é 1)
um meio de vida imediato, quanto na medida em que ela é o objeto/matéria e
o instrumento de sua atividade vital. (...) (MARX, Karl, 2010, p 84)

Portanto, o trabalho estranhado, provoca esse estranhamento em todo os


aspectos humanos, onde estranha a si mesmo em sua atividade vital, em seu
produto, em sua relação com a natureza e com outros homens, estranha a si mesmo
enquanto gênero humano.

Neste sentido, o trabalho estranhado usurparia a força vital do ser humano por
meio do domínio de sua atividade e da alienação de si sob sua vida orgânica e
social. Por isso, Marx afirma que o trabalho estranhado inverte a relação entre o
homem e o objeto, entre o pensamento e o ser, e faz ''da sua essência, apenas um
meio para sua existência'' 4

Assim, a essência humana é trabalhada aqui, ainda que em um certo tom


especulativo, como vinculada a atividade vital do ser humano: o trabalho. E a
inversão da relação entre o homem e sua atividade produtiva, suas relações com a
natureza e com outros homens, o ser consciente, isto é, que se relaciona com seu
próprio gênero e seus atributos, são estranhados de si, e sua atividade essencial e
vital, torna-se mero um meio para atingir um objeto estranho, o produto final de
suas relações de produção.

(...) na elaboração do mundo objetivo [é que] o homem se confirma, em


primeiro lugar e efetivamente, como ser genérico. Esta produção é a sua vida
genérica operativa. Através dela a natureza aparece como sua obra e sua
efetividade (Wirklichkeit). O objeto do trabalho é portanto a objetivação da
vida genérica do homem: quando o homem se duplica não apenas na
consciência, intelectual[mente], mas operativa, efetiva[mente], contemplando-
se, por isso, a si mesmo num mundo criado por ele. (...) quando arranca
(entreisst) do homem o objeto de sua produção, o trabalho estranhado arranca-
lhe sua vida genérica, sua objetividade genérica (wirkliche

4
Ibidem, p 85.
Gattungsgegentändlichkeit) e transforma a sua vantagem com relação ao
animal na desvantagem de lhe ser tirado o seu corpo inorgânico, a natureza.
(MARX, Karl, 2010, p 85)

Neste momento, Marx parte para uma análise especulativa do homem a partir
da concepção de gênero humano na objetivação da consciência. O mundo criado
pelo homem, isto é, sua atividade criadora é considerada como uma objetivação
da consciência. A atividade criadora do mundo objetivo é o engendrar do próprio
gênero humano, sua essência e sua relação consigo enquanto ser genérico.

O caráter especulativo apresenta-se na tentativa de fundamentar a noção


essencial do trabalho a partir da concepção de gênero humano, isto é, do caráter
universal da alienação do homem tanto em sua atividade produtiva quanto de sua
consciência, o estranhamento de sua essência, isto é, de seu gênero enquanto ser
criador e efetivo.

Contudo, o estranhamento dentro do processo de objetivação do homem, de sua


vida genérica, é o estranhamento do homem de si mesmo, ou seja, com outros
homens, e de sua essência humana. No entanto, a partir dessa relação estranhada,
Marx investiga a quem pertence esse produto do trabalho, assim como seus meios
de produção, tendo em vista que o trabalhador não tem posse ou domínio de seus
produtos, e conclui que estes produtos e seus meios pertencem a quem detém os
meios de produção: o capitalista.

Por isso, como afirma Marx, na medida em que o trabalhador engendra um


produto que não lhe pertence, engendra o domínio de um outro, ou seja, produz
''o próprio produto para a perda'', assim como engendra o domínio do capitalista
de sua própria atividade, do proprietário dos meios de produção. ‘’A propriedade
privada é, portanto, o produto, resultado, a consequência necessária do trabalho
exteriorizado, da relação externa (äusserlichen) do trabalhador com a natureza
e consigo mesmo.’’ 5

Portanto, é importante destacar o trabalho como a base da formação da


sociabilidade humana, e ao mesmo tempo como uma categoria sociohistórica,

5
Ibidem, p 87.
tendo em vista que engendrou os modos de produção da burguesia, e estes mesmos
modos são, por sua natureza históricos, aptos a modificação.

Por conseguinte, a alienação do homem de sua essência, isto é, o trabalho


estranhado é um fenômeno transformável, considerando sua relação com as
condições materiais da sociedade burguesa, que engendram o processo de
estranhamento do homem.

Assim, Marx desenvolve a noção de necessidade de libertação das formas de


exploração da sociedade burguesa, por meio da emancipação dos trabalhadores,
pois, só em liberdade enquanto trabalhador, é que se torna livre como ser humano,
pois a propriedade privada detém o domínio dos meios de produção da sociedade,
e só com a supressão deste domínio a sociedade pode se emancipar.

(...) a emancipação da sociedade da propriedade privada etc., da servidão, se


manifesta na forma política da emancipação dos trabalhadores, não como se
dissesse respeito somente á emancipação deles, mas porque na sua
emancipação está encerrada a [emancipação] humana universal. Mas esta
[última] está aí encerrada porque a opressão humana inteira está envolvida na
relação do trabalhador com a produção, e todas as relações de servidão são
apenas modificações e consequências dessa relação. (MARX, Karl, 2010, p
88-89)

Por conseguinte, os modos de produção da sociedade capitalista, impossibilitam


o trabalho criativo do homem enquanto gênero humano, como foi trabalhado
anteriormente, pelo fato da propriedade privada deter a objetivação da consciência
e sua atividade efetiva, objetivando apenas de forma imediata, e dificultando a
emancipação da classe trabalhadora.

A concepção de trabalho estranhado em Marx assume um aspecto social e


material pela primeira vez na história, contribuindo para problematizar não apenas
a relação do homem com sua consciência, com o mundo de forma geral ou sua
essência, mas para a concepção material da sociedade, do homem enquanto ser
ativo e criador, e quais suas condições sociais que o aprisionam em sua
consciência e em sua atividade produtiva.

Contudo, vale ressaltar que estas considerações históricas, bem como o caráter
desenvolvido da crítica da Economia Política serão desenvolvidos em suas obras
posteriores, mais precisamente, nas Teses sobre Feuerbach, A Ideologia Alemã, e
chegando em sua máxima em O Capital. Por mais que Marx tenha superado o
idealismo alemão, suas bases conceituais são trabalhadas a partir da concepção
antropológica de Feuerbach, e na dialética hegeliana.

''Em geral, a questão de que o homem está estranhado de seu ser genérico quer
dizer que um homem está estranhado do outro, assim como cada um deles [está
6
estranhado] da essência humana.'' Isto é, a essência humana, é considerada
como algo estranho pelo fato do ser humano encontrar-se em uma relação estranha
com sua atividade vital: o trabalho. Neste sentido, a essência ainda não estaria
presente enquanto predominasse a alienação humana.

Esta concepção seria um exemplo para sua concepção social ainda em processo,
tendo em vista que o trabalho e sua sociabilidade, a história como um produto e
produtora das condições materiais do homem, seriam essenciais para a existência
e para compreender a ‘’essência humana’’, ainda que sob os modos de produção
estranhado do capitalismo.

Entretanto, sua obra sobre a alienação do ponto de vista material e social nos
Manuscritos de 1844, supera a concepção idealista, e pressupõe novos conceitos
e categorias desenvolvidos nas obras citadas anteriormente, mas ainda permite um
caráter minimamente especulativo na sua compreensão de essência humana ou
gênero humano; da alienação do trabalho não expandindo para o aspecto histórico
e dialético, que ainda não havia sido desenvolvido.

Contudo, sua concepção de trabalho estranhado, sua análise da propriedade


privada e a relação estranhada e antagônica com proprietário dos meios de
produção, isto é, o capitalista, ensejou novas formas de compreender a relação
entre o ser humano e seu pensamento, a relação que estabelece com a natureza e
consigo mesmo, com o seu trabalho e a sociedade a partir de uma visão concreta
desta totalidade.

6
Ibidem, p 86.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

-MARX, Karl, Manuscritos Econômico-Filosóficos, Trabalho Estranho e


Propriedade Privada. Edição: Boitempo, São Paulo, 2010.

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