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Filosofia Contemporânea I – Profº Luiz Damon Santos Moutinho

Data: 05/04/2023

Beatriz Beraldo, R.A: 802397

Tema:
“O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto,
simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de
seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do
trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por
isso, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho total
como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos
produtores. É por meio desse quiproquó que os produtos do trabalho se
tornam mercadorias, coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais. A
impressão luminosa de uma coisa sobre o nervo óptico não se apresenta,
pois, como um estímulo subjetivo do próprio nervo óptico, mas como forma
objetiva de uma coisa que está fora do olho. No ato de ver, porém, a luz de
uma coisa, de um objeto externo, é efetivamente lançada sobre outra coisa, o
olho. Trata-se de uma relação física entre coisas físicas. Já a forma-
mercadoria e a relação de valor dos produtos do trabalho em que ela se
representa não tem, ao contrário, absolutamente nada a ver com sua natureza
física e com as relações materiais [dinglichen] que dela resultam. É apenas
uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume,
para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Desse modo,
para encontrarmos uma analogia, temos de nos refugiar na região nebulosa
do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados
de vida própria, como figuras independentes que travam relação 206/1493
umas com as outras e com os homens. Assim se apresentam, no mundo das
mercadorias, os produtos da mão humana. A isso eu chamo de fetichismo,
que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como
mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias.”
O Capital, livro 1, Seção 1, cap.1, pp.147-8 (ed. Boitempo)
A FORMA-MERCADORIA E SUA RELAÇÃO COM O FETICHISMO NO
CAPITAL

Resumo
A partir da publicação do Capital, Marx é responsável pela fundação
de uma nova ciência que não mais separa a história dos homens da história
da natureza, revolucionando o pensamento econômico e político da época
com um novo sistema interconectado. Assim, permitindo que sua teoria
econômica levasse como base não apenas a produção, mas também as
relações sociais que caracterizavam a sociedade capitalista, visa revelar a lei
econômica que movimentava a sociedade moderna. Essa estrutura que
sustenta a sociedade capitalista é caracterizada pelo seu modo de produção
único, o qual busca a valorização do capital através da exploração do
trabalho. Portanto, é necessário entender a maneira por qual esse sistema se
articula, de forma que adquira um caráter abstrato real por qual a relação
entre as mercadorias receba uma autonomia sobre os homens, revestindo a
relação social desses através do fetichismo.

O duplo caráter da mercadoria

O primeiro capítulo do Capital é centrado na análise científico-


histórica da mercadoria, inicialmente reconhecida como um objeto
responsável por satisfazer as necessidades humanas, utilidade a qual
caracteriza o seu próprio valor de uso. Portanto, se algum objeto não possuir
essa aplicação para a atividade humana, ele não é portador do valor de uso.
Entretanto, a mercadoria também terá sua definição como valor de troca, o
qual é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para
produzir a mercadoria, alterando sua finalidade de suprimir necessidades
para a geração de lucro:

"Uma mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa que,


pelas suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de qualquer
espécie. A natureza dessas necessidades, seja qual for, determina
também a diversidade dos objetos que as satisfazem. (...) Cada
mercadoria, como valor de uso, satisfaz uma determinada necessidade,
e é valor de troca em virtude de sua relação com as necessidades de
outras pessoas. (...)” (O Capital.pp.157)

Dessa maneira, torna-se clara a dupla existência da mercadoria: uma como


em um objeto físico pertencente a uma realidade concreta que possibilita sua
utilização, e outra em um mundo das mercadorias, uma realidade abstrata
em que as coisas se relacionam de forma independente devido ao seu valor
de troca.
É evidente que essa dualidade da mercadoria é o resultado da
separação entre o trabalho concreto e o trabalho abstrato. O trabalho
concreto é aquele que produz um objeto físico com uma utilidade específica,
enquanto o trabalho abstrato é aquele que produz um valor de troca abstrato
com a finalidade de ser trocado com outras mercadorias. O principal
objetivo do valor de troca é prever a geração de capitais, dessa maneira, as
mercadorias, passam a ser vistas como portadoras de valor abstrato,
independente do seu valor de uso: “Incapazes de pensar o trabalho abstrato
enquanto substância, os clássicos também não chegam a pensar o capital
como movimento-sujeito[...] e caem numa representação naturalizante e
portanto mistificante do capital”. (FAUSTO, Ruy. pp.100). Assim, o
processo de abstração que se reflete no valor de troca é um fenômeno social
concreto, ou seja, envolve a atribuição de um valor de troca aos objetos
socialmente, o que significa que eles podem ser trocados por outros,
deixando de ser uma matéria abstrata e sendo influenciado por situações
sociais reais. Nesse sentido, o valor de uso dos objetos é desconsiderado, e o
trabalho é voltado para a criação de um valor de troca, através de uma
abstração real que transforma as relações sociais em uma relação entre
coisas.
A autonomia recebida pelas mercadorias é consequência da exclusão
das qualidades sensíveis dos objetos, restando apenas a fixação do trabalho
desprendido nelas. Essa relação se torna uma alienação das relações sociais
sob os valores que representam a mercadoria, isso ocorre porque a relação
social entre os valores que representam a mercadoria é transformada em
uma relação entre as próprias mercadorias, onde elas são vistas como
independentes das relações sociais que as produzem:
É necessário fazer do trabalho abstrato uma coisa-social
substância — porque o valor não é um quantum que os agentes
estabelecem subjetivamente [...] mas algo que se impõe socialmente, e
que é ao mesmo tempo qualidade e quantidade, para chegar a uma
definição do capital em termos de movimento-sujeito. (FAUSTO,
Ruy. pp. 100)

Por meio dessa abstração do trabalho, a mercadoria se torna algo sensível


suprassensível, adquirindo um caráter metafísico, assim surge o termo da
“forma-mercadoria”, a qual o autor define como pura relação social entre os
valores que a representam: “só possuem a forma de mercadorias na medida
em que possuem esta dupla forma: a forma natural e a forma de valor” (O
Capital, pp.172). Essa definição provém devido ao fato de a mercadoria não
ser mais vista apenas como um objeto material, mas como uma
representação de uma quantidade abstrata de trabalho humano. Assim, o
trabalho é objetificado e transformado em uma coisa, o que leva a
consequência de uma dominação das relações sociais pela relação existente
entre as coisas, a qual aqui devemos compreender como uma entidade
fantasmagórica, fruto da mente humana.
A objetificação do trabalho é responsável por efeitos negativos sobre
os trabalhadores, uma vez que os levam à alienação quando perdem o
controle sobre seu próprio trabalho e sua identidade, gerando sentimentos de
despersonalização e refletindo a coisificação. Dessa forma, é possível
observar como o trabalho se torna uma entidade que pode ser separada do
trabalhador que o realizou, assumindo uma existência independente e por
isso denominado com um caráter misterioso que não pode ser
compreendido:

Para apreender esse tipo muito particular de objeto, é


necessário um discurso que se ajuste a ele, isto é, um discurso que
ponha essas abstrações objetivas como elas são efetivamente: como
coisas sociais que reduzem os agentes a suportes. (FAUSTO, Ruy.
pp.101)

A forma-mercadoria cria uma ilusão de que o valor dos produtos é


determinado pelo mercado, e não pelo trabalho humano que foi usado para
produzi-los. Essa perda de consciência sobre o processo de produção leva à
desvalorização do trabalho, considerando os homens como máquinas.
Assim, quando o trabalho abstrato se torna uma categoria social, ocorre a
fragmentação da individualidade do trabalhador, consequência de uma
racionalização crescente que afasta o elemento natural, e os tratam
unicamente como função mecânica.

A autonomia do fetichismo

Fetichismo é o termo utilizado por Marx para descrever o efeito da


forma-mercadoria sobre a sociedade, quando o valor referente a ela perde
seu caráter natural e se torna puramente social. Nesse contexto, a forma-
mercadoria se apresenta como uma entidade autônoma com valor intrínseco,
separada do trabalho humano que a produziu e, portanto, independente dos
trabalhadores. Dessa maneira, o fetichismo oculta a verdadeira relação
social que existe entre os produtores, pois, com a produção de mercadorias
voltada ao lucro, os trabalhos individuais dos produtores tornam-se parte de
um processo social. No entanto, essa relação social entre os trabalhadores e
o processo de produção fica obscurecida quando a necessidade para
encontrar o valor é a abstração do trabalho, portanto, os objetos tornam-se a
personificação do trabalho humano:

A igualdade dos trabalhos humanos assume a forma material da igual


objetividade de valor dos produtos do trabalho; a medida do dispêndio
de força humana de trabalho por meio de sua duração assume a forma
da grandeza de valor dos produtos do trabalho; finalmente, as relações
entre os produtores, nas quais se efetivam aquelas determinações
sociais de seu trabalho, assumem a forma de uma relação social entre
os produtos do trabalho. (O Capital. pp. 206)

Na visão metafísica de Marx, o problema central aparece quando as relações


pessoais perdem sua essência para a forma mercantil, o que pode ser
considerado como uma reificação das relações. Essa reificação é
caracterizada como um fenômeno estrutural onde, o próprio trabalho do
homem se objetifica e se opõe a ele, em que o próprio sistema impõe leis e
opera um modo de dominação impessoal penetrando na consciência do
homem. Logo, a abstração do trabalho humano é objetivada nas mercadorias
e o trabalho humano é transformado em valor de troca abstrato. Essa
abstração do trabalho é tanto objetiva quanto subjetiva: objetiva porque se
reflete nas próprias mercadorias, que são portadoras de valor; e subjetiva
porque os indivíduos envolvidos na produção e troca de mercadorias são
levados a pensar em termos abstratos de valor, deixando de lado as
particularidades concretas do trabalho. Junto a isso, sucede a personificação
dos objetos, a qual ocorre quando os objetos são vistos como se fossem
dotados de vida própria, o que tem como consequência a desumanização das
relações sociais, criando uma falsa consciência em relação aos produtos pela
mente humana.

Em suma, através da objetificação fetichista do trabalho nas


mercadorias, Marx analisa que essas relações sociais entre os trabalhos dos
produtores se tornam relações reificadas entre as coisas. Isso significa que as
relações sociais entre os produtores e seus trabalhos são mediadas pelas
mercadorias, que passam a ser vistas como entidades independentes
desconectadas das relações sociais que as geraram. Essa autonomia atribuída
às mercadorias oculta o fato de que são os próprios produtores que, por
meio de suas relações sociais, atribuem valor às mercadorias e se tornam
inconsciente de sua própria criação. Dessa forma, essa dissimulação oculta a
essência das relações sociais e a exploração do trabalho humano, criando
uma ilusão de que o valor das mercadorias é natural e independente da força
de trabalho que as geraram. O fetichismo da mercadoria é, portanto, uma
forma de alienação que obscurece as relações sociais reais e impede a
compreensão da exploração do trabalho no sistema capitalista.

Diante disso, é possível observar em que meio o fetichismo surge,


quando o valor atribuído aos objetos é considerado intrínseco a ele, como
uma característica natural, quando na verdade, deveria ser compreendido
como uma qualidade que provém da própria mente humana: “O problema,
portanto, não é que um produto imaginário se dote das qualidades da
realidade. O mecanismo da mistificação consiste na transformação brutal de
fatos sociais em fatos naturais.” (GERAS, Norman. pp. 205). Dessa
maneira, fica claro que o valor é determinado na interação social, e quando
se entende que o produto do trabalho é denominado por meio do valor,
ocorre é uma revelação da ilusão que encobre as relações sociais. Assim, O
fetichismo é o responsável por transformar as relações sociais e impedir a
compreensão de que são as próprias pessoas que conferem qualidades
humanas às mercadorias, transformando-as em matéria independente.
Apenas quando as relações sociais se tornarem conscientes e não houver
mais a atribuição imediata de valor às mercadorias, será possível
compreender o grau de poder do fetichismo sobre a consciência humana.

Dessa forma, a mistificação do fetichismo é uma forma de reduzir a


objetividade social das formas de relações capitalistas a uma objetividade
natural, isso faz com que as pessoas não enxerguem as relações sociais que
existem por trás das coisas. É importante relembrar que essa mistificação
não é um erro da consciência, mas sim uma característica estrutural da
sociedade capitalista responsável por uma dominação impessoal, que se
articula por meio de ilusões e aparências. Pois, ao invés de ver as relações
entre os trabalhadores e seus produtos como relações sociais, as pessoas
veem essas relações como algo natural, inerente às próprias coisas. Essa
mistificação é reforçada pelo fato de que o valor das mercadorias é
determinado por um processo social complexo e subjetivo, mas que parece
ser algo intrínseco aos próprios produtos.

Conclusão

Portanto, em meio a doutrina do fetichismo, o movimento social é


desvanecido pelo movimento das coisas que aparentam reger os homens, ao
invés da realidade da situação inversa. Da mesma maneira, os homens não
conseguem controlar as relações de coisas que não compreendem, devido a
mistificação enraizada em suas relações sociais e o caráter falso e mágico
que foi adquirido pelas mercadorias, por meio da abstração econômica. A
abstração faz com que as pessoas enxerguem as mercadorias como entidades
autônomas e dotadas de poder próprio, como seres independentes, se
transformando em algo que é sensível e suprassensível ao mesmo tempo, na
mente de quem as percebe. Assim, o fetichismo das mercadorias cria uma
alienação dos indivíduos em relação ao seu próprio trabalho e relações
sociais, tornando difícil a percepção da realidade e adquirindo um caráter
fantasmagórico, o qual os homens não são capazes de compreender.
Referências Bibliográficas

COHN, Gabriel. Sociologia para ler os clássicos. Rio de Janeiro: Azougue, 2005.
FAUSTO, Ruy. Marx: lógica e política. 2ª edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987
LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe: estudos sobre a dialética
materialista. Trad. Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I. Trad. Reginaldo
Sant’Anna. São Paulo: Boitempo, 2013.

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