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Excelentíssimo Senhor Ministro LUIS ROBERTO BARROSO

Relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.222

CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA SAÚDE, HOSPITAIS E


ESTABELECIMENTOS E SERVIÇOS (CNSaúde), qualificada nos autos do processo em
referência em que figura como autora, vem à presença de VOSSA EXCELÊNCIA
requerer a juntada do parecer anexo – da lavra dos Ilustres Professores LUCIANO TIMM
e THOMAS CONTI – e expor o que segue.

I. PERDA MACIÇA DE EMPREGOS E QUEDA NA OFERTA/QUALIDADE DOS


SERVIÇOS DE SAÚDE: CONSEQUÊNCIAS MAIS SENTIDAS EM REGIÕES MAIS POBRES

No estudo ora apresentado, os supramencionados professores (notórios


especialistas na área da Análise Econômica do Direito) realizaram – com base em
elementos empíricos – percurso investigativo sobre os efeitos concretos derivados da
Lei 14.434/2022 e, igualmente, sobre o processo de introdução das obrigações
endereçadas da norma no ordenamento jurídico brasileiro.

As conclusões extraíveis das análises econômicas estão em linha com os


riscos sistêmicos que VOSSA EXCELÊNCIA vislumbrou – ainda que em caráter
perfunctório – ao conceder a medida acautelatória (DJe 08/09/2022). Da mesma forma,
coincidem com o conteúdo da quase totalidade das manifestações apresentadas pelos
órgãos/entidades convocados, em tal decisão, para prestarem esclarecimentos sobre
as ameaças (i) à empregabilidade no setor de saúde, (ii) à queda na oferta/qualidade
dos serviços ofertados à população e (iii) à solvabilidade dos entes subnacionais
constritos ao cumprimento dos encargos impostos pelo Poder Legislativo Federal1.

Nesse sentido, todos os cenários projecionais testados2 apontam para


um aumento em massa do desemprego das categorias profissionais abrangidas pela
Lei 14.434/2022 (conjuntura sempre mais danosa nas regiões mais pobres do país: o
Norte e o Nordeste). Para se ter uma ideia, mesmo o modelo de simulação otimista
prevê uma redução de um terço dos vínculos formais em Roraima (fl. 58)!

Já na estimativa pessimista, seriam perdidos quase 300 mil vínculos


empregatícios em todo o país (fl. 13) – novamente penalizando mais os trabalhadores
de estados com economia menos pujante e de cidades menores (vide figura 15 à fl. 57).

1
Com caráter meramente ilustrativo, confira-se as manifestações apresentadas pela Federação Brasileira de
Hospitais (vol. 727), pelo CONASEMS (vol. 741) e pelo estado do Rio Grande do Sul (vol. 872 a vol. 877).
2
Otimista (que, como destacado à fl. 12 do parecer, é “fora da realidade do setor”), moderada e pessimista.
1
E qual, exatamente, é a “ordem de gravidade” que esses números
exprimem? A título ilustrativo: em 2019 (último ano em que os dados do CAGED não foram
afetados pelas variações anômalas oriundas da pandemia e cujos resultados foram os
melhores em seis anos), foram criados 76.561 vagas em todos os segmentos no Nordeste3.

A mera implementação dos pisos salariais sub judice, a seu turno, poderia
significar (per se) um número superior de postos fechados na região (acima de 78 mil)!
Tudo isso, ressalta-se, considerando somente as três categorias profissionais em tela (fl. 61).
No ponto e como destacado no parecer, “[a]s taxas de redução de vínculos formais [no
Norte e Nordeste] chegam a ser dez vezes maiores que as taxas estimadas para as
regiões Sul e Sudeste, dentro dos mesmos pressupostos” (fl. 63).

A consequência indissociável – exaustivamente delineada nos autos – é a


de que tais localidades (que já ostentem piores indicadores na área) serão mais afetadas
pela “redução de oferta de serviços de saúde” e pelo “transbordamento das demandas
não atendidas no setor de saúde suplementar para o SUS, dificultando e encarecendo
também a oferta pública de serviços de saúde” (fls. 40 e 59).

Dito isso, a reiteração dos territorialmente assimétricos efeitos danosos


advindos da lei impugnada parece dispensável ante a fartura de dados carreados ao
processo que dão tal tônica. Essa discrepância, além de tudo, é diretamente relacionada
a falha principiológica basilar de impor – através de determinação estatal federal e sem
a devida intermediação sindical em cada realidade mercadológica local – um único piso
salarial em país marcado por diferenças regionais (inclusive no custo de vida) gritantes.

Sobre o tema, é elucidativa nota técnica elaborada pelo Ministério do


Trabalho e Previdência quando da tramitação do PL 2.564/2022 (SEI 474/2022/MTP –
disponivel no vol. 392 dos autos eletrônicos). Verbis para trecho ilustrativo:

“Nesse contexto, a fixação de piso salarial nos valores propostos


impacta o mercado de trabalho, reduzindo a oferta de empregos para
os profissionais, principalmente em locais onde se praticam
salários mais baixos. Impedir os profissionais de entrarem em
acordo, por meio de negociação coletiva e representação sindical, com
relação à remuneração inferior ao piso proposto, pode inviabilizar o
contrato de trabalho e o exercício da profissão”. (fl. 7 – grifou-se)

3
https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/01/24/brasil-cria-empregos-644-mil-empregos-formais-em-
2019-melhor-resultado-em-6-anos.ghtml. Acesso em 26/01/2023.
2
Na linha do que destacado na exordial e no parecer, pois, tem-se que a Lei
14.434/2022 foi gestada mediante vícios de origem incorrigíveis (notadamente, com o
perdão das expressões, pelo caráter “eleitoreiro”/apressado em que construída). Além
de inconstitucionalidades formais ligadas à reserva de iniciativa (v.g., vol. 1 [fls. 9-14] e
vol. 388 [fls. 7-9]), há problemas de “premissa” cujas inúmeras normas supervenientes
intentadas pelo Congresso Nacional não têm a aptidão para sanar.

II. VÍCIOS INSANÁVEIS E PRÉVIOS À APROVAÇÃO DA LEI: A FALTA DE ANÁLISE DE


IMPACTO LEGISLATIVO (AIL), A QUALIFICAR A DESPROPORCIONALIDADE DA MEDIDA

Talvez a faceta mais clara que a problemática da desconsideração das


realidades regionais revele seja a falta de uma substantiva/suficiente Análise de Impacto
Regulatório/Legislativo (AIR ou AIL) que tenha precedido a norma. Ao apurarem a gama
de gravosas decorrências concretas da lei controvertida, os pareceristas vaticinam que
“a matéria do piso salarial da enfermagem, sem nenhuma dúvida, seria inclusa no
rol de propostas legislativas obrigadas a apresentarem análise de impacto antes de
sua votação, aprovação e vigência” (fl. 16).

LUCIANO TIMM e THOMAS CONTI destacam, nessa linha, que existem


diretrizes em praticamente todos os países da OCDE para orientar a metodologia
adequada a ser utilizada nesses casos, havendo até um livro publicado pelo Senado
Federal sobre a aplicação das análises de impacto no país. Citam, também, paradigmas
legais que determinam a precedência de uma avaliação substantiva de impacto ao se
editar normas congêneres4 – não tendo, ao contrário, sido apresentada “nenhuma
análise prévia rigorosa (...) antes da aprovação do projeto de lei” (fl. 17).

Como se sabe, o dever dos legisladores também deriva dos primados


constitucionais do devido processo legislativo – qualificados, in casu, pelo art. 113 do
ADCT. A jurisprudência da Suprema Corte, por igual, tem dado concretude ao paradigma.
No Tema 725 da RG (RE 958.252 – relatado pelo Ministro LUIZ FUX), restou consignado
que a demonstração empírica da adequação de tais medidas que ensejam custos
“compete ao proponente da limitação, exigindo-se maior rigor na apuração da certeza
sobre essas premissas empíricas quanto mais intensa for a restrição proposta”5.

Não é crível cogitar, nessa perspectiva, que uma lei que – apenas nas
categoriais abrangidas – pode gerar mais perdas de postos de trabalho em uma
determinada região do país do que todas as vagas criadas na mesma localidade (ao longo
de um dos melhores anos da última década, repita-se) pudesse dispensar tal espécie de
percurso investigativo prévio.

4
Menciona-se a Lei de Liberdade Econômica (vide art. 1º c/c o art. 5º da Lei 13.874/2019) e, por analogia, o art.
4º da LINDB – que determina a necessidade de se avaliar as consequências de decisões jurídicas (vide fl. 16).
5
STF, Tribunal Pleno, RE 958.252 (Tema 725 da RG), Ministro LUIZ FUX, DJe 13/09/2019.
3
Pois bem: nunca é demais repetir que tal dever (constitucional) prévio não
foi nem de longe cumprido. Com o devido respeito, pois, os “remendos” legislativos que
são conjecturados para se tentar sanar parte dos problemas derivados da Lei 14.434/2022
jamais terão aptidão para corrigir toda a gama de impactos danosos decorrentes.
Exatamente por não corrigirem defeitos axiomáticos insanáveis (e salvo se realizado novo
desenho legal com a respectiva AIL), tais medidas sempre serão meramente paliativas.

Para ilustrar como o desenho de uma política pública deve ser construído,
os pareceristas recorrem a exemplo prático do Direito Comparado em matéria similar.
Em 2014, o Congressional Bugdet Office dos Estados Unidos esmiuçou – a partir de
primados básicos de análise de impacto – os méritos de proposta legislativa para
aumentar o salário mínimo no país. Para começar, se punham em detida avaliação dois
valores alternativos em estudo (o que não ocorreu quando da apreciação do PL 2.564).

Mesmo que os valores propostos significassem um acréscimo


remuneratório até “tímido” no comparativo com o status quo vigente (aumento entre
24 e 39% do mínimo nacional americano – contra incremento de até 186% (!) da média
salarial da enfermagem em alguns estados brasileiros6), eles foram escrutinados a
partir de testes econômicos rígidos. São os chamados “cenários projecionais” – como os
calculados, ex post, pela LCA Consultoria (vol. 730) e no parecer aqui apresentado.

Além disso, foram testados prazos de transição diversos para a plena


implementação do balizador salarial mínimo (dois e três anos). O objetivo, como
lembram LUCIANO TIMM e THOMAS CONTI, se confunde com a própria função de um
AIL: diminuir eventuais efeitos adversos de uma política pública que se visa benéfica.

No caso ora sub judice, a seu turno, os pareceristas lembram que “não se
considerou incorporar cláusula de adoção gradual do novo piso para minimizar
impactos negativos sobre o emprego e interrupção do fluxo de prestação de serviços
de saúde” (fl. 19). A circunstância, como já dito, viola o primado da confiança
legítima/segurança jurídica e o regime de transição aludido no art. 23 da LINDB.

A AIL feita pelo Parlamento norte-americano, ademais, foi lastreada pela


chamada “cost-benefit analysis” (CBA) entre o incremento de renda dos empregados
(objetivo central) e, na outra ponta, a potencial redução de postos de trabalho (efeito
colateral inerente). Novamente, na tramitação do PL 2.564/2020 nada disso foi feito.

É sintomático, nessa ordem de ideias, que a palavra “desemprego” (ou


quaisquer de suas derivadas) sequer tenha sido citada no relatório do grupo de
trabalho na Câmara dos Deputados que, supostamente, avaliou os custos da medida.

6
Confira-se, nesse sentido, a tabela à fl. 31 do vol. 01 dos autos eletrônicos.
4
A menção ao fechamento de postos de trabalho, a seu turno, é mera transcrição da
preocupação exposta por representantes de órgãos setoriais – não tendo sido
apresentado nenhum cálculo ou estudo empírico para avaliar a decorrência adversa.

Ou seja: a política pública – sem processo legislativo substantivo na sua


gestação – é intrinsecamente deficiente. A consequência indissociável, como alertam
os Professores LUCIANO TIMM e THOMAS CONTI à fl. 19 do parecer, é a seguinte:

“Este tipo de análise é determinante para a sociedade ter a capacidade


de deliberar racionalmente se entende como atrativos os custos e
benefícios de cada proposta e qual teria prioridade. Na medida que o
Legislativo brasileiro não apresentou estudo similar, decidiu pelo novo
piso sem saber se os valores definidos são ou não são desejáveis ante
outros valores possíveis para o piso”. (grifou-se)

Sem que, portanto, sejam previamente sopesadas (ou mesmo


apresentadas) as variáveis necessárias para se avaliar (i) a adequação, (ii) a necessidade
e (iii) a proporcionalidade em sentido estrito da determinação estatal, resta patente a
irrazoabilidade da Lei 14.434/2022.

III. NOVAMENTE A EC 127/2022 E A SUA INAPTIDÃO PARA RESOLVER OS RISCOS


SISTÊMICOS QUE LEVARAM À SUSPENSÃO DOS EFEITOS DA LEI PELO PLENÁRIO DO STF

Por fim, e ante a oportunistica “insistência” de alguns parlamentares em


qualificar a EC 127/2022 como suficiente para solucionar os principais riscos sistêmicos
que foram apurados quando da concessão da medida acautelatória (i.e., [i] demissões em
massa, [ii] queda da oferta/qualidade dos serviços de saúde à disposição da população e
[iii] solvabilidade dos estados/municípios), convém a seguinte complementação.

Como bem demonstrado no parecer ora juntado, os salários mais altos das
categoriais em questão são encontrados nas administrações estaduais e federais – de
modo que o piso já teria efeito menor no incremento remuneratório e no desemprego
nesse âmbito. O maior empregador de enfermeiros, técnicos e auxiliares de
enfermagem, por outro lado, é o setor privado (confiram-se as tabelas às fls. 35-39).

É nessa seara, como destaca a Análise Econômica aqui apresentada, que


haverá maior impacto negativo na empregabilidade – sobretudo porque é na saúde
privada que as maiores discrepâncias entre os salários praticados e os pisos são
encontradas. Conforme ventilado acima, nas regiões Norte e Nordeste “entre 85% e
90% de vínculos [recebem] abaixo do novo piso proposto” (fl. 23) – o que demanda um
incremento global de folha salarial de até 77% no setor privado (vide RR à fl. 31).

5
São, portanto, os estabelecimentos privados (com e sem fins lucrativos)
localizados nas partes mais pobres do país que terão mais dificuldade para se adaptar
financeiramente à lei e, ao mesmo tempo, que precisarão dispensar mais trabalhadores
e/ou reduzir mais a oferta de procedimentos de saúde ofertados à população local.

Ou seja: sem entrar no mérito de outras fragilidades da EC em questão,


parece por demais evidente que qualquer norma superveniente que sequer considere
a situação da saúde privada não tem aptidão minima para amenizar (quem dirá
resolver adequadamente) os adversos efeitos sistêmicos advindos da lei.

Não é demais lembrar que dados do CNAE dão conta de que apenas o setor
hospitalar privado acumula dívidas tributárias na casa dos 70 bilhões de reais – somente
com a União, diga-se (vide vol. 729). A situação já é de extrema dificuldade e, sem
contrapartidas, não é exagerado atestar a completa infactibilidade da Lei 14.434/2022.
Daí porque, data venia, reitera-se que não foram criadas condições minimamente
suficientes para se cogitar da reversão da liminar suspensiva que fora concedida.

Brasília, 01º de fevereiro de 2023.

Carlos Eduardo Caputo Bastos Alexandre Pacheco Bastos


OAB/DF 2.462 OAB/DF 52.682

Ana Carolina A. Caputo Bastos


OAB/DF 26.891

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