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07/01/2023 18:13 Lei 14.

297/22: falha, tardia e insuficiente

JUÍZO DE VALOR

Lei 14.297/22: falha, tardia e insuficiente


Direitos previstos a trabalhadores de aplicativo ficam muito aquém do necessário

GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO


ANA PAULA MISKULIN

Crédito: Unsplash

Salve, querido leitor.

Dando continuidade à análise da Lei 14.297/22, que “[d]ispõe sobre medidas de proteção
asseguradas ao entregador que presta serviço por intermédio de empresa de aplicativo de
entrega durante a vigência da emergência em saúde pública decorrente do coronavírus
responsável pela covid-19”, passamos à penúltima parte dessa quadrilogia (que deveria ser
uma trilogia, mas o volume de conteúdos não permitiu).

Nesta coluna, começaremos a tratar dos direitos da Lei 14.297/22 em espécie.

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Vale lembrar, à partida, que a Lei 14.297/22 buscou circunscrever severamente o universo
de aplicação dos novos direitos que criou: vincular-se-iam à lei apenas as empresas de
aplicativos de entrega, assim consideradas aquelas “que possu[em] como principal
atividade a intermediação, por meio de plataforma eletrônica, entre o fornecedor de produtos
e serviços de entrega e o seu consumidor”. O viés de exclusão é óbvio: as plataformas
digitais que se ocupam da prestação de serviços (no caso, apenas de serviços de entrega)
fazem parte de um contexto muito mais amplo (Miskulin, 2021). Aliás, Schmidt (2017)
divide as plataformas digitais seis segmentos: i) de bens; ii) serviços (caso do iFood e
outras plataformas de entrega); iii) dinheiro; iv) comunicação; v) entretenimento; e vi)
informação.

Conclui-se, pois, que, num universo em que milhares de empresas utilizam aplicativos para
realizarem a sua atividade principal, o legislador vou a sua atenção apenas ao entregador
on demand, i.e., o “trabalhador que presta serviço de retirada e entrega de produtos e
serviços contratados por meio da plataforma eletrônica de aplicativo de entrega”. Por que
razão? Há pelos menos três prováveis razões – e a exposição de motivos do projeto de lei

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que originou a Lei 14.297/22 parece corroborá-las parcialmente –, que dizem muito com o
hábito brasileiro de legislar nos limiares do trágico. A uma, a quantidade expressiva de
pessoas engajadas nessa atividade (potenciais eleitores, por sinal). A duas, porque a
atividade de entrega de mercadorias por aplicativos – especialmente alimentos – foi
considerada, durante a pandemia, como atividade essencial.[1] E, a três, pelas péssimas
condições de trabalho – não raro degradantes – às quais são submetidos esses obreiros
(o que, aliás, é frequente alvo de notícias[2]).

Ademais, mesmo no pequeno universo oriundo dessa restrição semântica, a lei anda mal:
“insinua” que as empresas de aplicativos são meras empresas de intermediação (quando,
na verdade, são – neste caso – empresas de prestação de serviços). Mas isso é outra
história.

Quais são, afinal, os direitos que devem ser assegurados a esses trabalhadores?

Como já pontuamos nas colunas anteriores, a relação jurídica havida entre os


entregadores por aplicativos e as empresas proprietárias dos mesmos aplicativos não é
geralmente considerada como uma relação de emprego; ao contrário, há a propósito uma
franca resistência, discursiva e judicial, por parte dessas empresas. Dito de outro modo:
apesar de se engajarem na atividade principal dessas empresas, mediante adesão a todas
as condições impostas unilateralmente pelas respectivas plataformas (inclusive por
subordinação algorítmica – vide o art. 6º, par. único, da CLT, na redação da Lei 12.551/11),
tais entregadores são alijados de qualquer tipo de proteção trabalhista. Há que debater
melhor essa condição peculiar – “amorfa”, vulnerável e amiúde inconstitucional –, como
tem sido praticada no Brasil; e já apontamos isso alhures (FELICIANO, PASQUALETO,
2019). E, no particular, a Lei 14.297/17 ao menos não comete o despautério ensaiado pelo
Projeto de Lei n. 3.748/20, da Câmara dos Deputados (da Deputada Tábata do Amaral),
que é o de negar , logo na abertura (art. 1º, par. único), a própria possibilidade do vínculo de
emprego, repetindo o mesmo equívoco histórico da Lei 8.949/94, ao introduzir o
famigerado parágrafo único do art. 442 da CLT (especialmente para as cooperativas de
mão-de-obra).[3]

Mas, a despeito disso – do debate que a doutrina norte-americana identifica com a


expressão “classification litigation” –, a pergunta que fica éꓽ trabalhadores que não
possuem vínculo empregatício devem/podem ter algum tipo de proteção trabalhista?

Pois bem.

Por expresso comando constitucional (CRFB, art. 7º, IV, VI, XIII, XXII, art. 8º, III etc.), todo
trabalhador faz jus à redução dos riscos inerentes ao trabalho (i.e., medidas preventivas
e precaucionais relacionadas à saúde e à segurança do trabalho), à plena informação, à
portabilidade dos dados laborais das plataformas, à proteção sindical e à negociação
coletiva, a um limite de jornada (i.e., à desconexão) e a uma remuneração mínima com
periodicidade mensal, entre outras coisas, independentemente do fato de ser empregado
ou não (FELICIANO, PASQUALETO, 2019; MISKULIN, 2021).

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Aliás, novos arranjos quanto à forma de contratação ou gestão da atividade em nada


alteram a essência do trabalho, que Alonso Olea e Baamonde chamam de trabalho
produtivo (OLEA, BAAMONDE, 2000), a saber, aquele do qual provêm a fonte de
subsistência da pessoa que trabalha. Daí porque estamos convictos de que direitos
mínimos devem ser assegurados a tais trabalhadores, mercê da sua dependência
econômica, independentemente de haver ou não um vínculo de emprego (= subordinação
jurídica), de modo a lhe assegurar a dignidade, o valor social do trabalho (CRFB, art. 1º, III e
IV) e ainda, na linha preconizada pela Organização Internacional do Trabalho, um trabalho
decente. Não há trabalho decente, convenha-se, se um trabalhador que está ativo num
aplicativo de entregas tem que trabalhar doze horas por dia, sem descanso, a ponto de
dormir na rua e não ter água para beber ou local para satisfazer suas necessidades
fisiológicas.

O legislador de 2022, claro, não foi tão longe. Os direitos previstos pela Lei 14.297/22, ali
chamados de “medidas de proteção” estão concentrados nos artigos 3º a 8º da lei e ficam
muito aquém do necessário. Pelo texto em vigor, os entregadores fazem jus ao seguinte:

(a) contratação de seguro-acidente;

(b) assistência financeira de 15 dias, prorrogáveis por mais dois períodos (até 45 dias,
portanto), em caso de contaminação pelo coronavírus;

(c) informação bastante sobre os riscos de contágio da Covid 19;

(d) pagamento das despesas de internet;

(e) expressa menção, nos instrumentos de contrato, de quais serão “as hipóteses de
bloqueio, de suspensão ou de exclusão da conta do entregador da plataforma eletrônica”;

(f) acesso a água potável e às instalações sanitárias.

Ao fornecimento de água potável e de acesso a instalações sanitárias obrigam-se, por


força de lei, as empresas-clientes da plataforma (e.g., restaurantes, bares, lanchonetes,
supermercados etc.). Os demais direitos supra são suportados pelas próprias empresas
de plataformas.

Tudo isso, ademais, favoreceria os entregadores por aplicativos apenas “durante a vigência
da emergência em saúde pública decorrente do coronavírus responsável pela Covid-19”, pela
literalidade do texto; e, logo, já não estaria sequer em vigor, porque o ESPIN foi finalizado
no Brasil. Mas desse equívoco já tratamos nas duas colunas anteriores: entendemos, pelas
razões então expostas, que as regras – e os direitos dela derivados – seguem em vigor no
território nacional (inclusive porque remanesce, no plano internacional, a ESPII).

Vamos falar de cada um daqueles direitos, destacadamente, inclusive para dirimir as


principais dúvidas e trazer o devido esclarecimento à matéria, segundo o nosso ponto de

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vista. A assistência financeira limita-se à Covid 19? As despesas de internet devem ser
comprovadas? O acesso sanitário resolve-se com banheiros químicos externos?

Essas e outras questões serão respondidas. Mas isto na coluna do mês que vem.

Até lá, querido leitor!

Seguimos a aguardar suas sugestões, críticas e ponderações por aqui, nos tradicionais
comentários, ou pelo e-mail dunkel2015@gmail.com. Você é réu do seu juízo.

FELICIANO, Guilherme Guimarães e PASQUALETO, Olívia de Quintana Figueiredo. (Re)descobrindo o


direito do trabalho: Gig economy, uberização do trabalho e outras flexões. Jota. 2019. São Paulo:
Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. Disponível em: https://www.jota.info/paywall?
redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/juizo-de-valor/redescobrindo-o-direito-do-
trabalho-06052019. Acesso em: 31 ago. 2022.

MISKULIN, A.P.S.C. Aplicativos e Direito do Trabalho: a era dos dados controlados por algoritmos.
Salvadorꓽ Juspodivm, 2021.

OLEA, M. A; BAAMONDE, M. E. Derecho del Trabajo. Madrid: Civitas, 2000, passim.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Trabalhar para um futuro melhor. Lisboa:


Organização Internacional do Trabalho, 2019.

SCHMIDT, F. A. Mapping the Political Challenges of Crowd Work and Gig Work. Good Society – Social
Democracy, 2017.

[1] V. Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020.

[2] Celebrizou-se nas redes sociais, p. ex., a fotografia de um trabalhador que dormitava em uma

calçada, deitado ao lado da bicicleta que utilizava para as entregas. V., e.g., “Dormir na rua e pedalar 12
horas por diaꓽ a rotina dos entregadores de aplicativos”. Disponível emꓽ
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-48304340. Acesso em 29 ago. 2022. V. também
“Entregadores de aplicativo pedalam 70 km por dia para ganhar menos de um salário”. Disponível emꓽ
https://averdade.org.br/2022/02/entregadores-de-aplicativo-chegam-a-pedalar-70-km-por-dia-
para-ganhar-menos-de-um-salario-minimo/. Acesso em 29 ago 2022.

[3] In verbis: “Qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo

empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços daquela”.

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GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO – Juiz do Trabalho e professor da Faculdade de Direito da Universidade de


São Paulo. Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho no biênio 2017-2019
ANA PAULA MISKULIN – Juíza do Trabalho do TRT 15. Mestre em Direito do Trabalho pela USP. Especialista em
Direito e Processo do Trabalho pela UFG. É pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão “O trabalho além do
Direito do Trabalho” (USP). Professora de diversos cursos de pós-graduação e escolas judiciais. Autora do livro
“Aplicativos e Direito do Trabalho: a era dos dados controlados por algoritmos”. Coordenadora de diversas obras
sobre Direito do Trabalho e Tecnologia

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