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Vícios dos produtos e as três garantias do consumidor:

um cenário de desinformação

VÍCIOS DOS PRODUTOS E AS TRÊS GARANTIAS DO CONSUMIDOR: UM


CENÁRIO DE DESINFORMAÇÃO
Defects of goods and three consumer guarantees: a disinformation scenario
Revista de Direito do Consumidor | vol. 100/2015 | p. 91 - 114 | Jul - Ago / 2015
DTR\2015\13085

Leonardo Roscoe Bessa


Doutor em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Direito Público pela UnB. Professor de
Graduação e do Programa de Mestrado e Doutorado do UNICEUB. Ex-Presidente do
Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor -Brasilcon (2006-2010).
Procurador-Geral de Justiça do Distrito Federal (MPDFT). leoroscoe@globo.com

Área do Direito: Consumidor


Resumo: O presente artigo aborda as três espécies de garantias que a lei e o mercado
disponibilizam ao consumidor brasileiro para situações relativas a vícios dos produtos:
garantias legal, de fábrica e estendida. Explicam-se os contornos e características das
garantias para, num segundo momento, demonstrar que a forma como as garantias
contratuais (do fabricante e estendida) são oferecidas ao consumidor acabam por
induzi-lo a erro sobre a existência e alcance da garantia legal (art. 18 da Lei
8.078/1990), o que exige atenção e providências dos órgãos de defesa do consumidor.

Palavras-chave: Vício do produto - Código de Defesa do Consumidor - Garantia legal -


Garantia de fábrica - Garantia estendida.
Abstract: The article deals with the three types of warranty that the law and the market
make available to the Brazilian consumer in situations of product liability: legal, factory
and extended. The article explains the general contours and the characteristics of each
warranty in order to subsequently demonstrate that the ways in which contractual
warranties (factory and extended) are offered to the consumer end up inducting the
consumer to error about the existence and reach of the legal warranty (article 18 of Law
8.078/1990), which requires attention and measures to be taken by consumer protection
bodies.

Keywords: Product liability - Consumer Protection Code - Legal warranty - Factory


warranty - Extended warranty.
Sumário:

- 1. Introdução - 2. Do vício redibitório à responsabilidade pela qualidade do produto no


CDC - 3. Garantias contratuais - 4. Conclusões - 5. Referências

Recebido em: 19.06.2015

Pareceres em: 10.07.2015, 24.07.2015 e 16.08.2015

1. Introdução

Uma das formas mais graves de ofensa a direito subjetivo ocorre quando o seu titular
sequer percebe que foi lesionado. No Direito do Consumidor, em que pese a existência
da Lei 8.078/1990 há mais de duas décadas, muitas lesões ocorrem sem qualquer
percepção. Os motivos são variados, mas, entre eles, destaca-se o desconhecimento do
consumidor sobre seus direitos.

No caso das garantias contratuais (garantia de fábrica e garantia estendida), observa-se


a existência de fluxo de informações enganosas que acabam por induzir o consumidor a
erro sobre a existência de direitos. A experiência demonstra que o consumidor pouco
conhece seus direitos relativos à garantia legal de produtos (art. 18 da Lei 8.078/1990),
o que enseja ausência de reação a ofensas, bem como a aquisição de serviços (garantia
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estendida) sem necessidade de real.

O presente artigo apresenta os contornos diferenciadores das garantias legal, de fábrica


e estendida e, paralelamente, demonstra como algumas práticas do mercado têm
colaborado para pouca compreensão do significado e conteúdo das referidas garantias,
com constante ofensa a legítimos interesses materiais do consumidor.

Destaca-se que a forma como o mercado tem oferecido a garantia de fábrica induz o
consumidor a erro sobre o conteúdo, extensão e significado da garantia legal (art. 18 da
Lei 8.078/1990), prejudicando, em consequência o exercício de seus direitos. O mesmo
tem ocorrido em relação à denominada garantia estendida. Em que pese o teor da
disciplina decorrente da Res. 96/2013 da Superintendência de Seguros Privados –
Susep, a forma de comercialização da garantia estendida induz o consumidor a erro
sobre a abrangência e tempo da garantia legal. Muitas vezes, adquire a garantia
estendida em ambiente de falta de informações.

Indica-se, ao final do artigo, a necessidade de maior atenção dos órgãos de defesa do


consumidor para o problema.

2. Do vício redibitório à responsabilidade pela qualidade do produto no CDC

Para melhor compreensão do significado da garantia legal relativa a vício dos produtos
(art. 18 do CDC), apresentam-se referências sobre a proteção jurídica que,
historicamente, foi conferida ao comprador em face de defeito que tornava a coisa
imprópria ao uso, que é destinada, ou lhe diminuía o valor econômico: a disciplina dos
1
vícios redibitórios.
2
Embora tênue e bastante criticada a milenar disciplina dos vícios redibitórios, é
preocupação jurídica milenar proteger o comprador em relação a vícios de vício das
coisas.

Em geral se atribui a origem histórica da disciplina dos vícios redibitórios ao direito


romano, provavelmente porque sua estrutura atual, nas mais diversas legislações,
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manteve-se com poucas alterações do modelo romano.

No Código Civil de 1916, os vícios redibitórios eram tratados nos arts. 1.101 a 1.106, na
seção relativa aos contratos. Em resumo, a disciplina aplicava-se aos contratos
comutativos e doações onerosas. O vício, para ensejar legítima reação do comprador,
deveria ser oculto, grave e anterior à tradição. As ações edilícias estavam previstas no
art. 1.105. O adquirente podia rejeitar a coisa, redibindo o contrato ou,
alternativamente, ficar com a coisa e reclamar o abatimento do preço. O prazo
decadencial para exercício do direito em relação aos bens móveis era de 15 dias,
“contados da tradição da coisa” (art. 178, § 2.º), e de seis meses para imóveis (art. 178,
§ 5.º, IV), “contado o prazo da tradição da coisa”.

O art. 1.102 permitia a exoneração contratual da responsabilidade apenas na hipótese


de ignorância dos vícios. Portanto, em caso de conhecimento anterior do vício, não teria
efeito qualquer disposição contratual que objetivasse afastar a responsabilidade do
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vendedor.

A culpa do alienante em relação aos vícios redibitórios não era, no Código Civil de 1916,
pressuposto para possibilitar o exercício das alternativas colocadas à disposição do
comprador (redibição do contrato ou abatimento proporcional do preço). A lei apenas se
referia ao conhecimento ou não do vício, sem qualquer preocupação em perquirir se a
origem do defeito se vinculava à ação ou omissão anterior do alienante. A ciência do
vício – e não a culpa – era relevante apenas para analisar a validade de cláusula
exoneratória (art. 1.102) e definir o cabimento de indenização por perdas e danos, ao
lado da restituição do bem (art. 1.103).

O Código Civil de 2002 preservou a mesma estrutura do Código Civil revogado, salvo no
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tocante aos prazos decadências e relação da garantia legal com eventual garantia
contratual. No que diz respeito ao primeiro ponto, o Código Civil em vigor ampliou os
prazos decadenciais previstos do Código de 1916 de 15 para 30 dias (bens móveis) e de
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seis meses para um ano (bens imóveis), a par de indicar período máximo de
aparecimento do vício oculto: “Quando o vício, por sua natureza, só puder ser conhecido
mais tarde, o prazo contar-se-á do momento em que dele tiver ciência, até o prazo
máximo de 180 (cento e oitenta) dias, em se tratando de bens móveis; e 1 (um) ano,
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para os imóveis” (art. 445, § 1.º).

Assim, para exemplificar, no caso de contrato de compra e venda no qual não incide o
CDC, o comprador de um carro (bem móvel) poderá exigir a redibição do contrato ou
abatimento do preço caso o defeito na injeção eletrônica, que impede o regular
desenvolvimento do motor, se revele até 180 dias da entrega efetiva do automóvel.
Assim que o vício se manifestar (desde que no prazo de 180 dias, repita-se), o
comprador terá o prazo decadencial de 30 dias para exigir judicialmente a devolução do
dinheiro ou, se for o caso, o abatimento proporcional do preço.

Na prática, somando-se os dois prazos, os compradores de bens móveis terão até 210
dias, a contar do dia do recebimento do bem, para reclamar pelos vícios ocultos e exigir
a devolução ou abatimento proporcional do preço. No CC/1916, recorde-se, não havia
prazo de garantia, e o decadencial era apenas de 15 dias, o que gerou muitas críticas,
tanto em sede doutrinária como jurisprudencial.

A segunda mudança relevante refere-se à possibilidade de soma do prazo decadencial


com o prazo de garantia contratual, conforme redação do art. 446 do CC/2002: “Não
correrão os prazos do artigo antecedente na constância de cláusula de garantia; mas o
adquirente deve denunciar o defeito ao alienante nos 30 (trinta) dias seguintes ao seu
descobrimento, sob pena de decadência”.

Destaque-se, no tocante a este ponto, que a redação do art. 446 positivou tese que
alguns tribunais já vinham adotando quanto à relação temporal entre as garantias
contratual e legal. Em razão da exiguidade do prazo de 15 dias previsto no CC/1916,
surgiu o entendimento jurisprudencial no sentido de que o prazo de decadência só fluiria
após o término do prazo da garantia contratual. Alguns julgados do STJ seguem esta
lógica, quando o Código de Defesa do Consumidor aponta para outra solução
hermenêutica, como será demonstrado.

2.1 Garantia legal do produto

Todo produto adquirido no mercado de consumo possui garantia legal em relação a


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vícios de qualidades. Tal garantia independe da vontade do fornecedor e muito menos
de termo específico. Cuida-se de disciplina denominada responsabilidade por vício do
produto (arts. 18, 23 a 26 da Lei 8.078/1990). São normas de ordem pública e interesse
social que, consequentemente, não podem ser afastadas ou mitigadas pelo fornecedor
(arts. 1.º, 24, 25 e 51, I, do CDC).

A garantia legal, que possui contornos normativos bem definidos, convive,


invariavelmente, com duas espécies de garantias contratuais (garantia de fábrica e
garantia estendida), mas com elas não se confundem e – mais importante – jamais pode
ser diminuída ou mitigada pela existência das garantias contratuais, como será mais
bem explicado ao longo do presente artigo.

O Código de Defesa do Consumidor (1990) iniciou sua vigência bem antes do atual
Código Civil (2002). Ao disciplinar a responsabilidade do fornecedor por vícios de
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qualidade dos produtos procurou justamente afastar as insuficiências do Código Civil de
1916.

O CDC estabelece no art. 18 a garantia legal dos produtos por vício de qualidade. A lei
amplia o conceito de vício, impõe obrigação solidária entre todos os fornecedores
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participantes da cadeia de produção e comercialização do produto, impossibilita, em


qualquer hipótese, a exoneração contratual da responsabilidade do fornecedor e oferece
uma terceira alternativa ao comprador em caso de vício: a substituição do produto por
outro da mesma espécie. A disciplina da Lei 8.078/1990 em relação à matéria objetivou
afastar as deficiências da tutela do comprador apontadas pela doutrina e jurisprudência
em relação ao CC/1916, além de considerar as dificuldades inerentes à vulnerabilidade
do consumidor no mercado.

A noção de vício do produto, para atrair a incidência do CDC, é bem mais ampla se
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comparada com o Código Civil. A proteção não se limita ao vício oculto. O art. 18, a
rigor, estabelece três espécies de vícios: 1) vício que torne o produto impróprio ao
consumo: 2) vício que lhe diminua o valor: 3) vício decorrente da disparidade das
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características dos produtos com aquelas veiculadas na oferta e publicidade.

Ademais, o caput do art. 18 estabelece expressa responsabilidade solidária entre todos


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os fornecedores que integram a cadeia de produção e comercialização do produto.
Significa dizer que a pretensão do consumidor em relação à substituição do produto, à
devolução do valor pago ou ao abatimento proporcional do preço, além das perdas e
danos (§ 1.º do art. 18), pode ser dirigida tanto ao comerciante, como ao fabricante ou
a qualquer outro fornecedor intermediário que tenha participado da cadeia de produção
e circulação do bem (importador, distribuidor etc.). Por se tratar de hipótese legal de
solidariedade passiva, o credor (consumidor) possui o direito a exigir de um ou de
alguns dos devedores (comerciante, fabricante, distribuidor etc.), parcial ou totalmente,
a “dívida comum”. Se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores
“continuam obrigados solidariamente pelo resto”, tudo em conformidade com o disposto
no art. 275 e ss. do CC.

A responsabilidade solidária é, sem dúvida, decorrência do direito básico de “efetiva


prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais”, previsto no art. 6.º, VI, do
CDC. De fato, muitas vezes a “efetiva reparação” só é possível em virtude da existência
de pluralidade de responsáveis, pois não é incomum fornecedores simplesmente
desaparecerem da noite para o dia sem deixar qualquer patrimônio para responder pelas
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suas dívidas. Após satisfação do direito do consumidor, podem os fornecedores, entre
si, discutir quem, ao final, irá assumir, de modo individual ou concorrente, o valor
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despendido.

Ao lado da solidariedade, ampliação do conceito de vício, o CDC alarga as opções do


adquirente ou usuário de produto viciado. O § 1.º do art. 18 concede ao consumidor três
alternativas: 1) a substituição do produto por outro da mesma espécie; 2) a restituição
da quantia paga; 3) o abatimento proporcional do preço. As alternativas não afastam
eventual indenização por perdas e danos. Embora a expressão “sem prejuízo de
eventuais perdas e danos” esteja apenas no inc. II do § 1.º do art. 18, e também, de
modo semelhante, no inc. II do art. 20, relativo aos vícios dos serviços, sempre será
possível ao consumidor exigir adicional indenização integral (danos materiais e morais)
nas duas outras hipóteses indicadas nos incs. I e III (substituição do produto,
abatimento proporcional do preço). Este ponto é pacífico na doutrina, em razão do
direito básico do consumidor de efetiva reparação dos danos patrimoniais e morais (art.
6.º, VI).

Ponto fundamental para compreender a dimensão da garantia legal e diferenciá-la das


demais garantias contratuais (de fábrica e estendida) refere-se ao âmbito temporal e
prazos decadenciais. Na verdade, a leitura da lei indica que o tempo da garantia legal é
definido a partir dos prazos decadências para reclamar pelos vícios dos produtos e
serviços, os quais se encontram estabelecidos no art. 26 do CDC: 30 dias para produtos
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e serviços não duráveis e 90 dias para os duráveis.

A contagem do prazo inicia-se com a entrega efetiva do produto ou do término da


execução dos serviços (art. 26, § 1.º). Tratando-se de vício oculto, “o prazo decadencial
inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito” (§ 3.º). Tal dispositivo,
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um cenário de desinformação

embora nem sempre notado, é justamente o fundamento para ampliar o tempo da


garantia legal e, invariavelmente, torna-la mais vantajosa do que a garantia de fábrica e
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afastar a necessidade de contratação da garantia estendida pelo consumidor. A
dimensão temporal da garantia legal é analisada, de modo mais detido, no item
seguinte.

2.1.1 A compreensão do critério doutrinário da vida útil do produto e a adequada


dimensão temporal da garantia legal

Neste item, aborda-se a dimensão temporal da garantia legal de produtos – ponto


essencial para compreensão adequada da proteção conferida pelo Código de Defesa do
Consumidor. Se analisado corretamente o prazo da garantia legal, a proteção conferida
ao consumidor é, invariavelmente, mais ampla do que a garantia de fábrica dos
produtos. Ademais, traz questionamentos sobre a real necessidade de aquisição da
garantia estendida.

Sob a vigência do Código Civil de 1916, incisivas críticas doutrinas foram apresentadas
em relação à exiguidade do prazo decadencial dos vícios redibitórios (15 dias para
móveis e 6 meses para imóveis, contados a partir da tradição do bem). O CDC, como já
era esperado, estabeleceu novos prazos: 30 dias para produtos não duráveis e 90 dias
para os duráveis (art. 26). Uma análise apressada da lei poderia considerá-la
insatisfatória nesse aspecto. Afinal, por que não foi fixado prazo decadencial ainda
maior?

De fato, os prazos poderiam ter sido maiores. Entretanto, a exame mais detido do CDC
evidencia grande diferencial em favor do consumidor: o limite temporal da garantia a
partir do critério da vida útil dos produtos para contagem dos prazos em caso de vícios
ocultos. Realmente, um dos maiores avanços concedidos pelo CDC em relação ao
CC/1916 – nem sempre percebido pela doutrina – foi conferido pelo disposto no § 3.º do
art. 26 da Lei 8.078/1990, ao se estabelecer, sem fixar previamente um limite temporal,
que, “tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar
evidenciado o defeito”.

O dispositivo possibilita que a garantia legal se estenda, conforme o caso, a três, quatro
ou cinco anos após a aquisição. Isso é possível porque não há – propositalmente –
expressa indicação do prazo máximo para aparecimento do vício oculto, a exemplo da
disciplina do Código Civil (§ 1.º do art. 445). Como a lei de proteção ao consumo não
estabelece limite cronológico para aplicação do § 3.º do art. 26, o critério para
delimitação do prazo máximo de aparecimento do vício oculto passa a ser o da vida útil
do bem, o que, além de conferir ampla flexibilidade ao julgador, releva a importância da
análise do caso concreto em que o fator tempo é apenas um dos elementos a ser
apreciado. A doutrina sustenta a aplicação do critério da vida útil como limite temporal
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para o surgimento do vício oculto.

O STJ possui importante julgado sobre o tema. Após a edição de algumas decisões que
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optaram pela soma dos prazos das garantias legal e de fábrica, prestigiou-se o
entendimento doutrinário concernente à vida útil dos produtos.

Em outubro de 2012, o Min. Luis Felipe Salomão, ao julgar o REsp 984.106, apresentou
extenso e bem fundamentado voto, o qual foi acompanhado na íntegra pelos demais
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Ministros que compõem a 4.ª Turma da Corte. Entre os argumentos utilizados,
destaque-se o seguinte trecho: “Cuidando-se de vício aparente, é certo que o
consumidor deve exigir a reparação no prazo de 90 dias, em se tratando de produtos
duráveis, iniciando a contagem a partir da entrega efetiva do bem e não fluindo o citado
prazo durante a garantia contratual. Porém, conforme assevera a doutrina consumerista,
o Código de Defesa do Consumidor, no § 3.º do art. 26, no que concerne à disciplina do
vício oculto, adotou o critério da vida útil do bem, e não o critério da garantia, podendo
o fornecedor se responsabilizar pelo vício em um espaço largo de tempo, mesmo depois
de expirada a garantia contratual. Com efeito, em se tratando de vício oculto não
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decorrente do desgaste natural gerado pela fruição ordinária do produto, mas da própria
fabricação, e relativo a projeto, cálculo estrutural, resistência de materiais, entre outros,
o prazo para reclamar pela reparação se inicia no momento em que ficar evidenciado o
defeito, não obstante tenha isso ocorrido depois de expirado o prazo contratual de
garantia, devendo ter-se sempre em vista o critério da vida útil do bem”.

Na hipótese, a garantia contratual de fábrica do produto (trator agrícola) era de oito


meses ou 1000 horas de uso. O vício oculto se manifestou três anos e quatro meses
após a data de aquisição. Entre os fatores considerados para considerar que se cuidava
de vício de fábrica (e não desgaste natural do bem), argumentou-se que vários tratores
do mesmo modelo apresentaram vício semelhante após determinado período de uso.

O caso que foi objeto do importante precedente (REsp 984.106) é bastante ilustrativo no
sentido da importância de se perceber que, utilizando o critério da vida útil dos produtos,
a garantia legal dos produtos (art. 18 c/c art. 26 da Lei 8.078/1990) acaba por ser mais
ampla e vantajosa do que a garantia de fábrica (garantia contratual). Ademais,
demonstra também a desnecessidade de contratação de garantia estendida (item 3.2).

Ressalte-se que a interpretação do Código de Defesa do Consumidor no sentido de


somar os prazos de garantia legal e contratual – inspirada provavelmente em
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jurisprudência sedimentada quando estava em vigor o Código Civil de 1916 – não mais
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se justifica. Também não é o melhor caminho invocar o disposto no art. 446 do CC – o
qual estabelece que o prazo da garantia legal concernente a vícios redibitórios não corre
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se presente prazo de garantia contratual. Primeiro porque a opção expressa do Código
de Defesa do Consumidor foi outra, ao indicar no art. 26 o termo inicial do prazo de
garantia legal que nenhuma relação possui com o prazo da garantia contratual. Segundo
porque a garantia legal e de fábrica podem diferir substancialmente em relação ao
conteúdo, o que, na prática, pode prejudicar o consumidor que realiza tal forma de
contagem de prazo.

3. Garantias contratuais

Ao lado da garantia legal dos produtos em relação aos vícios de qualidade – garantia
legal – o mercado possui ampla liberdade de iniciativa em oferecer garantias adicionais
para ampliar a venda de seus produtos.

Antes mesmo da edição do Código de Defesa do Consumidor, já era prática do mercado


oferecer a denominada garantia de fábrica por determinado limite temporal.
Independentemente da disciplina do vício redibitório (Código Civil de 1916), o fabricante
oferecia a garantia no sentido de que, no prazo de um ano (em regra), contado da
aquisição do bem, se houvesse aparecimento de algum vício, o fabricante, diretamente
ou por meio de sua rede de assistência técnica, irá providenciar o conserto ou realizar a
troca do produto.

Como o passar do tempo e maior concorrência entre os fornecedores, os prazos de


garantia legais foram ampliados, já que se trata de importante incentivo de compra. No
mercado de veículos automotivos novos, existe positiva competição entre fabricantes:
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algumas marcas têm, atualmente, oferecido garantias de fábrica de seis anos.

Paralelamente, há aproximadamente 10 anos, surge no mercado outra espécie de


garantia contratual: a garantia estendida. No momento de compra de bens duráveis,
principalmente eletrodomésticos e eletroeletrônicos, o consumidor recebe proposta de
aquisição de outra garantia. Pagando-se determinado valor, o estabelecimento comercial
estende o prazo da garantia de fábrica, normalmente de um ano, para dois ou três anos.

Ambas as garantias (de fábrica e estendida) são denominadas contratuais porque, para
existirem, dependem da vontade do fornecedor. Serão mais bem detalhadas na
sequência.

3.1 Garantia de fábrica


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um cenário de desinformação

A garantia de fábrica, ao contrário da legal, não é automática, decorre necessariamente


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de manifestação de vontade do fornecedor, daí ser denominada garantia contratual.
Embora voluntária, a garantia contratual de fábrica é sempre destacada como um dos
fatores de convencimento do consumidor ao adquirir determinado produto. Em algumas
áreas (indústria automobilística, por exemplo), existe uma saudável concorrência entre
fornecedores no que diz respeito à oferta da melhor garantia contratual. Cuida-se, nos
dias de hoje, de exigência do mercado. A maior venda de determinado produto
associa-se, invariavelmente, à existência e extensão da garantia de fábrica.

O conteúdo e tempo da garantia contratual de fábrica dependem da vontade do


fornecedor e devem constar expressamente em documento denominado termo de
garantia. Embora seja de iniciativa voluntária, existem parâmetros legais mínimos: A
propósito, estabelece o art. 50, parágrafo único, do CDC: “O termo de garantia ou
equivalente deve ser padronizado e esclarecer, de maneira adequada em que consiste a
mesma garantia, bem como a forma, o prazo e o lugar em que pode ser exercitada e os
ônus a cargo do consumidor, devendo ser-lhe entregue, devidamente preenchido pelo
fornecedor, no ato do fornecimento, acompanhado de manual de instrução, de instalação
e uso do produto em linguagem didática, com ilustrações”.

O dispositivo apresenta duas importantes indicações. A primeira, já referida, é que a


dimensão da garantia contratual é basicamente delineada pelo fornecedor. Pode,
consequentemente, variar bastante. É notório que as montadores e importadoras de
veículos automotores realizam positiva competição no que concerne ao tempo da
garantia contratual. Em passado, não muito distante, dificilmente se via garantia com
mais de dois anos. Hoje já se anunciam garantias contratuais de seis anos. Em razão da
liberdade em relação ao conteúdo da garantia, também é possível fragmentá-la.
Exemplo: dois anos de garantia para a parte elétrica do carro e três anos para a
suspensão. A segunda indicação é que o fornecedor pode estabelecer condições para que
o consumidor usufrua da garantia contratual de fábrica. A lei deixa claro que o termo de
garantia deve indicar “os ônus a cargo do consumidor”. Portanto, a princípio, é legítimo
exigir que as revisões do veículo sejam realizadas em estabelecimentos credenciados
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pela montadora do veículo.

O consumidor, ao adquirir determinado produto no mercado, possui, em regra, duas


garantias: a legal e a contratual de fábrica. Pode, como indicado, haver diferenças
substanciais entre ambas, seja em relação ao tempo, à cobertura e à exigência de
condições (garantia contratual). Pode ocorrer, que por expressa disposição constante no
termo de garantia, determinada montadora excluiu a pintura do veículo, o que, por
óbvio, não é possível ocorrer na garantia legal. Dificilmente se observa, na garantia
contratual, a possibilidade de o consumidor receber o dinheiro de volta: a ênfase é
sempre no conserto ou troca do produto. Na garantia legal, a devolução do dinheiro é,
necessariamente, uma das alternativas colocadas a favor do consumidor (art. 18, § 1.º,
II). Acrescente-se, para destacar as diferenças, a possibilidade, em tese, de não
implementar a garantia contratual por eventual descumprimento de “ônus” do
consumidor.

O termo de garantia de fábrica é exigência legal (art. 50, parágrafo único). Objetiva
informar o consumidor adequadamente dos seus direitos e deveres para, no momento
adequado, em caso de vício, obter a reparação ou troca do produto. A entrega do termo
de garantia contratual de fábrica é penalmente relevante. O art. 74 do CDC estabelece a
seguinte infração penal: “deixar de entregar ao consumidor o termo de garantia
adequadamente preenchido e com especificação clara de seu conteúdo”. O tipo penal
evidencia a importância de informar o consumidor sobre a abrangência da garantia
contratual para melhor exercício dos seus direitos.

O dever de informar no CDC possui destaque especial. Além de dispositivos específicos


(arts. 6.º, III e 31) é exigência decorrente do princípio da boa-fé objetiva que, em
síntese, significa atuação leal e honesta no mercado de consumo. É sob esta ideia que o
art. 50 do CDC exige esclarecimentos completos e adequados sobre os direitos do
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consumidor decorrentes da garantia de fábrica (garantia contratual).

Todavia, pesquisa recente realizada pelo Núcleo de Estudos de Direito do Consumidor –


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Unicon, vinculado ao UNICEUB, constatou prática, no mínimo, abusiva. Muitos termos
de garantia, ao invés de informar adequadamente os direitos do comprador, têm
induzido o consumidor a erro ao passar a informação de que o prazo de garantia legal se
limita a 90 dias a partir da data de aquisição do produto.

Ilustre-se com três exemplos. No termo de garantia de fábrica da empresa Semp


Toshiba Informática está escrito que: “A Semp Toshiba Informática assegura ao
proprietário-consumidor, garantia balcão contra qualquer defeito material ou de
fabricação que nele apresentar no prazo de 90 (noventa) dias (garantia legal) e mais
270 (duzentos e setenta) dias de garantia contratual, a contar da data da compra (…)”,
além de comunicar ao consumidor que ele tem o direito de reparo gratuito apenas
durante o período de vigência da garantia. A mesma ideia é repassada no termo de
garantia dos computadores da Compaq Brasil, ao informar que “Os prazos da Garantia
Limitada (…) devem ser contados a partir da data de aquisição do Produto indicado na
Nota Fiscal de Compra. Já se encontra incluso nesse prazo o período de garantia legal”.
Ainda, no Termo de Garantia dos produtos Tok&Stok, também é assegurado ao
consumidor a garantia contra defeitos de material e de manufatura pelo período de dois
anos, incluindo o prazo legal de garantia de 90 dias, contados a partir da data de
emissão da Nota Fiscal ao consumidor.

Observa-se que, nos exemplos indicados, o prazo de garantia contratual de fábrica inicia
após 90 dias, com a sugestão ou informação explícita que a garantia legal se limita aos
primeiros 90 dias da data de aquisição do produto. Além de se utilizar critério de soma
de prazos das garantias legal e contratual (de fábrica) – que foi superado pelo STJ ao
julgar o REsp 984.106 – induz o consumidor a erro sobre a extensão da garantia legal.
Este tipo de informação ignora a doutrina e a jurisprudência no sentido de que a garantia
legal, em face de vício oculto, possui dimensão temporal que pode atingir dois ou três
anos a depender da forma de uso e análise da vida útil do bem (art. 18, c/c art. 26 §
3.º).

Em outras palavras, é enganoso transmitir ao consumidor a informação de que a


garantia legal do produto se restringe aos primeiros 90 dias após a data de aquisição ou
entrega do bem. Cuida-se, sem dúvida, de nova prática no mercado que, em evidente
ofensa à boa-fé objetiva e aos deveres de informar (art. 6.º, III e art. 31 do CDC), tem
colaborado para confundir o consumidor sobre seus direitos que decorrem da garantia
legal.

Tal prática ofende direitos coletivos (lato sensu) dos consumidores. Enseja, portanto,
26
necessidade de atuação dos órgãos de defesa do consumidor.

3.2 Garantia estendida

Ao lado das garantias legal e contratual, existe também a garantia estendida. Trata-se,
na verdade, de mais uma modalidade de garantia contratual – já que seus termos e
condições decorrem de contratos celebrados entre o consumidor e fornecedor. No
momento de aquisição de bens duráveis, principalmente eletrodomésticos e
eletroeletrônicos, o consumidor recebe proposta da garantia estendida. Pagando-se
determinado valor, o estabelecimento comercial, por meio de seguradora, estende o
prazo da garantia de fábrica, normalmente de um ano, para dois ou três anos.

A garantia estendida, invariavelmente, constitui-se em contrato de seguro por prazo


27
determinado em relação ao produto adquirido. Tem sido objeto de várias reclamações
perante órgãos de defesa do consumidor, principalmente pela forma de contratação e
28
falta de clareza ao consumidor. Todos esses fatores são relevantes, mas o que se
deseja problematizar neste ponto específico é se, em face do quadro normativo acima
delineado, considerando particularmente a extensão e conteúdo da garantia legal, é
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Vícios dos produtos e as três garantias do consumidor:
um cenário de desinformação

razoável a existência de garantia estendida que, invariavelmente, abrange prazo que


coincide com a vida útil do produto?

Como esclarecido, a Lei 8.078/1990, independentemente de garantia contratual do


fabricante obriga solidariamente todos os fornecedores (tanto o fabricante como o
comerciante), em caso de vícios de qualidade (aparentes ou ocultos), a realizarem o
reparo do bem, promoverem a substituição do produto por outro (em perfeitas condições
de uso) ou darem abatimento proporcional do preço, em razão de eventual diminuição
do valor da coisa decorrente do defeito, além de indenização por perdas e danos (art.
18, § 1.º, do CDC).

Na prática, as reclamações dos consumidores referem-se aos vícios ocultos, ou seja,


aqueles que podem ser percebidos apenas após determinado período de tempo de
aquisição e de uso do produto. Na hipótese, o prazo de 90 dias para reclamar só se inicia
após o surgimento do vício com a limitação temporal decorrente do critério da vida útil,
como demonstrador (item 2.1.1).

Ora, é justamente em razão da ideia de que a garantia legal abrange o período da vida
útil do produto – que pode chegar a dois ou três anos após a data de aquisição do bem –
que se evidencia pouca ou nenhuma vantagem econômica ao consumidor em adquirir a
garantia estendida. Se a contagem do prazo para reclamar dos vícios do produto for
realizada corretamente, é fato que o CDC já oferece proteção adequada e suficiente aos
interesses do consumidor.

Acrescente-se que o comércio crescente da garantia estendida acaba por gerar mais
desinformação ao consumidor em relação aos seus direitos decorrentes da garantia legal
(art. 18 c/c o art. 26, § 3.º, da Lei 8.078/1990). No momento da oferta da garantia
estendida, é ressaltado ao consumidor que depois da garantia contratual de fábrica, se
ocorrer algum vício com o produto, o prejuízo decorrente de reparo ou troca do bem é
de responsabilidade do consumidor. Tal afirmação – necessária para convencer o
consumidor a comprar a garantia estendida – ignora completamente que a garantia legal
abrange o prazo da vida útil do produto.

Em outras palavras, a forma de comercialização da garantia estendida acaba por


disseminar no mercado a informação – falsa – no sentido de que, esgotado o prazo da
garantia contratual, o consumidor não possui mais direitos em face de eventual vício do
produto. A desinformação é evidente, ignorando-se a boa-fé objetiva – agir com lealdade
29
e transparência – e os deveres estabelecidos no art. 6.º, III e art. 31 do CDC.

Na prática, todavia, o consumidor possui dificuldades em fazer valer o critério da vida


útil do produto, seja por desinformação muitas vezes dos próprios órgãos de proteção ao
consumidor, seja por lhe faltar disposição de brigar por seus direitos na Justiça.

4. Conclusões

A garantia legal dos produtos em relação a vício de qualidade (art. 18 c/c o art. 26 da
Lei 8.078/1990) não se confunde com as garantias contratuais existentes no mercado de
consumo brasileiro. Mais importante: as garantias contratuais (de fábrica ou estendida)
não diminuem nem afetam os direitos do consumidor decorrente da garantia legal. Os
contornos da garantia legal decorrem de norma de ordem pública e interesse social. Não
podem ser alterados contratualmente. A sistemática e princípios do Código de Defesa do
Consumidor deixam bastante claros a autonomia e força da garantia legal.

A complementariedade entre garantia legal e contratual (art. 50, caput, do CDC) foi
estabelecida a partir da percepção de que as garantias podem diferir bastante uma da
outra e, principalmente, da ideia de que a garantia legal, por decorrer de norma de
30
ordem pública, não pode ser afetada por qualquer espécie de garantia contratual.
Como consequência lógica, não se deve interpretar o dispositivo no sentido de se
estabelecer somas temporais das garantias, com indicação ou alteração do termo inicial
da contagem do prazo, até porque a lei é bastante explicita ao apontar o termo inicial da
Página 9
Vícios dos produtos e as três garantias do consumidor:
um cenário de desinformação

garantia legal: entrega do produto em caso de vício aparente ou no dia que se manifesta
31
o vício oculto.

Em outros termos, o propósito normativo do art. 50 do CDC foi evidenciar que a


concessão de garantia contratual de fábrica ou estendida não pode, em nenhuma
hipótese, afetar os direitos do consumidor decorrentes diretamente do CDC, cujas
disposições são de “ordem pública e interesse social” (art. 1.º). O art. 50 reforça o
caráter de indisponibilidade das normas de proteção ao consumo em relação à garantia
legal (arts. 24, 25 e 51, I). Não foi objetivo do art. 50 indicar forma de contagem dos
prazos de garantia.

Como destacado, o CDC foi favorável ao consumidor ao possibilitar a contagem do prazo


decadencial com base no critério da vida útil do produto. Ora, tal critério, é suficiente
para tutelar os interesses do consumidor. Para garantir a “efetiva prevenção e reparação
de danos patrimoniais e morais” do consumidor (art. 6.º, VI, do CDC), não se faz
necessário recorrer à soma dos prazos de garantia contratual e legal: basta considerar
que, se o vício oculto surgiu no período de vida útil do produto, é possível, no prazo de
90 dias (produtos duráveis) após a manifestação do defeito, o exercício das alternativas
indicadas nos incisos do § 1.º do art. 18 do CDC.

Apresente-se outro argumento contrário à tese de soma dos prazos das garantias
contratual e legal. Tal procedimento pode acabar por confundir o consumidor e dificultar
ou, até mesmo, impedir o exercício dos seus direitos. Como a garantia contratual de
fábrica decorre da vontade do fornecedor, ela possui condições menos vantajosas, ora
limitadas a algumas partes do produto. Ou seja, em regra, não se oferecem as mesmas
possibilidades do CDC (troca do produto, devolução do dinheiro, abatimento proporcional
do preço): a ênfase é no conserto do bem.

Desse modo, admitindo-se a soma das garantias, o prazo decadencial, por questão
lógica, só não correria em relação a direitos amparados tanto pela garantia contratual
como pela legal. Se a garantia legal não cobre determinada parte do produto (parte
elétrica de um veículo, por exemplo), não há falar em soma de prazos em relação aos
vícios surgidos no sistema elétrico do carro. Tal fato conduzirá o consumidor a ter de
analisar minuciosamente ambas as garantias para verificar em que medida são
coincidentes e, ainda, em quais aspectos poderá se valer de uma ou de outra. A
dificuldade será inevitável e, muitas vezes, irá levar o consumidor a perder o seu direito,
em face de um exame equivocado dos termos, condições e limites da garantia
contratual. Este é um outro fator prático que deve também ser considerado na
interpretação de norma que objetiva justamente o conhecimento dos direitos, a
facilitação de sua defesa e a prevenção de danos ao consumidor (art. 6.º, II, VI e VIII).

A correta compreensão do sentido e alcance das disposições relativas à garantia legal


(art. 18 c/c o art. 26 da Lei 8.078/1990) permite ao consumidor uma análise mais
adequada e escolha amadurecida no tocante à eventual aquisição de garantia estendida.
Permite, também, olhar crítico em relação à informação enganosa que tem sido inserida
nos termos de garantia de fábrica no sentido de que o prazo da garantia legal se limita
aos primeiros 90 dias de aquisição do produto.

A prática do mercado brasileiro, na oferta de garantia de fábrica e estendida, estimula,


como demonstrado, uma incorreta compreensão do significado e dimensão da garantia
legal, induzindo o consumidor a erro. É necessária atenção dos órgãos de defesa do
consumidor para tal conduta, considerando seu grave potencial de enganosidade e
ofensa a direitos difusos e coletivos do consumidor.

5. Referências

BENJAMIN, Antonio Herman et al. Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor.


São Paulo: Saraiva, 1991.

BESSA, Leonardo Roscoe. Relação de consumo e aplicação do Código de Defesa do


Página 10
Vícios dos produtos e as três garantias do consumidor:
um cenário de desinformação

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CARVALHO SANTOS, J. M. Código Civil brasileiro interpretado. 12. ed. Rio de Janeiro:
Freitas Bastos, 1989. vol. 15.

GUIMARÃES, Paulo José Scartezzini. Vícios do produto e do serviço por qualidade,


quantidade e insegurança: cumprimento imperfeito do contrato. São Paulo: Ed. RT,
2004.

MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 5. ed. São


Paulo: Ed. RT, 2006.

______. Direito do consumidor. São Paulo: Ed. RT, 2008.

______; BENJAMIN, Antonio Herman; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de


Defesa do Consumidor. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2005.

MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito romano. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992. vol.
2.

NETTO LÔBO, Paulo Luiz. Responsabilidade por vício do produto ou do serviço. Brasília:
Brasília Jurídica, 1996.

QUEIROZ, Odete Novais Carneiro. Da responsabilidade por vício do produto e do serviço.


São Paulo: Ed. RT, 1998.

SANTANA, Héctor Valverde. Prescrição e decadência nas relações de consumo. São


Paulo: Ed. RT, 2002.

SIMÃO, José Fernando. Vícios do produto no novo Código Civil e no Código de Defesa do
Consumidor. São Paulo: Atlas, 2003.

1 Carvalho Santos assim define o vício redibitório: “É o vício, ou defeito, oculto, que
torna a coisa imprópria ao uso, a que é destinada, ou lhe diminui o valor, de tal sorte
que a parte, se o conhecesse, ou não contrataria, ou lhe daria preço menor” (Código
Civil brasileiro interpretado. 12. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989. vol. 15, p.
335).

2 A disciplina dos vícios redibitórios do Código Civil de 1916 recebeu fortes críticas
doutrinárias, principalmente em relação à exiguidade dos prazos decadenciais, que
acabavam, paradoxalmente, beneficiando o vendedor do bem e não o comprador. A par
das censuras relativas aos prazos decadenciais, a doutrina ressaltava que apenas o
vendedor – e não o fabricante do produto – tinha responsabilidade pelos vícios
redibitórios e, ainda, que o seu próprio conceito seria demasiadamente restrito, por não
abranger defeitos aparentes nem aqueles que não fossem considerados graves. Para
atenuar o rigor do CC/1916, a jurisprudência encontrou diversos caminhos. Apesar da
literalidade dos dispositivos relativos aos prazos decadenciais indicar que sua contagem
se iniciava com a tradição da coisa, admitiu-se, em várias oportunidades, que o termo
inicial deveria coincidir com a data de revelação do vício. A propósito, observa Paulo Luiz
Netto Lôbo: “A rigidez do Código Civil brasileiro levou a jurisprudência dos tribunais a
construir uma tutela jurídica alternativa, sobretudo para tangenciar a limitação do prazo
decadencial, chegando ao ponto de, em alguns casos, tomar como termo inicial a
descoberta do vício e não da tradição da coisa” (Responsabilidade por vício do produto
ou do serviço. Brasília: Brasília Jurídica, 1996. p. 27). É importante registrar que,
embora a jurisprudência tenha firmado a posição de que o prazo de 15 dias não se
iniciava da tradição, nem sempre havia preocupação com o prazo máximo para
revelação do defeito. Outro caminho trilhado pelos tribunais foi, apesar das distinções
conceituais, anular o negócio jurídico por erro, espécie de vício do consentimento,
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Vícios dos produtos e as três garantias do consumidor:
um cenário de desinformação

valendo-se do prazo decadencial de quatro anos, bem mais favorável ao comprador do


que 15 dias. Outra alternativa consistiu em considerar a venda de coisa com vício
redibitório como hipótese de inadimplemento contratual, cujo prazo prescricional era, no
CC/1916, art. 177, de 20 anos.

3 Ensina José Carlos Moreira Alves que houve época em que o vendedor não respondia
pelos vícios da coisa, salvo se entre as partes houvesse sido celebrado acordo em
sentido contrário. Posteriormente, no tempo de Cícero, o comprador podia, quando o
vendedor tinha conhecimento do vício, obter, por ação específica, a devolução do preço
mediante a entrega da coisa ou apenas a redução do preço (Direito romano. 5. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1992. p. 188).

4 O conhecimento do vício por parte do alienante, a par de impedir a estipulação de


cláusula exoneratória de responsabilidade, trazia consequências concernentes à
indenização por perdas e danos. Se o alienante conhecia o vício, além de restituir o que
havia recebido, deveria indenizar os prejuízos decorrentes do ato; se o vício não era
conhecido, deveria apenas restituir o valor recebido mais as despesas do contrato (art.
1.103).

5 O art. 445 estabelece: “O adquirente decai do direito de obter a redibição ou


abatimento no preço no prazo de 30 (trinta) dias se a coisa for móvel, e de 1 (um) ano
se for imóvel, contado da entrega efetiva; se já estava na posse, o prazo conta-se da
alienação, reduzido à metade”.

6 O aumento dos prazos decadenciais – de 15 para 30 dias, nos bens móveis, e de seis
meses para um ano, nos bens imóveis – e a previsão expressa de períodos máximos
para aparecimento do vício oculto – 180 dias para bens móveis e um ano para imóveis –
são importantes inovações trazidas pelo Código Civil de 2002. A disciplina segue a
distinção realizada pela jurisprudência ao interpretar o art. 1.245 do CC/1916 (Súmula
194 do STJ). O prazo de cinco anos seria o limite temporal para surgimento dos vícios
nos imóveis; o prazo para ajuizamento da ação seria outro, com início coincidindo com o
aparecimento do vício.

7 A proteção ao consumidor, no CDC, é ampla. Abrange vícios de qualidade (art. 18) e


de quantidade (art. 19). Paralelamente, existe a responsabilidade civil por acidentes de
consumo em relação aos produtos (art. 12) e serviços oferecidos no mercado de
consumo. O presente artigo possui foco específico: garantia legal por vício de qualidade
nos produtos.

8 Destaque-se que a disciplina dos vícios dos serviços (arts. 20 e 21) é novidade trazida
pelo Código de Defesa do Consumidor sem paralelo direto com o Código Civil, vez que
inexistem vícios redibitórios em relação aos serviços. As soluções, até então, eram
encontradas basicamente no direito contratual, na disciplina do inadimplemento.

9 Ao contrário do Código Civil (arts. 441-446), o CDC não se limita aos vícios ocultos. A
noção de vício é bem mais ampla, alcançando os vícios aparentes e de fácil constatação,
bem como produtos que estejam em desacordo com normas regulamentares de
fabricação, distribuição ou apresentação. A tal conclusão se chega a partir de análise
conjunta de diversos dispositivos (caput e § 6.º do art. 18 e art. 26). Ou seja, restou
estabelecida uma impropriedade normativa que pode, eventualmente, não corresponder
a uma impropriedade real para o consumidor. Há situações em que o produto atende
inteiramente às necessidades do consumidor, mas que, por não seguir norma
regulamentar de apresentação – ausência do número do registro em órgão público –, é
considerado impróprio, ensejando a tríplice alternativa do consumidor (troca, devolução
do dinheiro, abatimento proporcional do preço).

10 A novidade fica por conta do vício decorrente de disparidade das características com
a oferta, vez que, historicamente, a responsabilidade por vício sempre esteve
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Vícios dos produtos e as três garantias do consumidor:
um cenário de desinformação

relacionada à funcionalidade do bem ou diminuição do seu valor. A propósito, observa


Paulo Lôbo: “Nesta espécie de vício, o produto ou o serviço não apresentam defeito
intrínseco. O vício é configurado objetivamente pela desconformidade entre os dados do
rótulo, da embalagem, ou da mensagem publicitária, e os efetivamente existentes. Não
há necessidade de demonstrar a impropriedade ou a inadequação do produto ou do
serviço ao uso a que se destinam ou mesmo a diminuição de valor. Basta a
desconformidade (ou disparidade) entre o anunciado e o existente adquirido ou
utilizado” (op. cit., p. 66).

11 “Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem


solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou
inadequados ao consumo (…)” (grifou-se). A respeito da solidariedade entre os
fornecedores, registre-se o REsp 1.118.302, no qual o STJ destaca: “A responsabilidade
civil nos ilícitos administrativos de consumo tem a mesma natureza ontológica da
responsabilidade civil na relação jurídica base de consumo. Logo, é, por disposição legal,
solidária. 4. O argumento do comerciante de que não fabricou o produto e de que o
fabricante foi identificado não afasta a sua responsabilidade administrativa, pois não
incide, in casu, o § 5.º do art. 18 do CDC” (REsp 1.118.302/SC, 2.ª T., j. 01.10.2009,
rel. Min. Humberto Martins, DJe 14.10.2009). Registre-se, ainda, o seguinte julgado: “1.
A melhor exegese dos arts. 14 e 18 do CDC indica que todos aqueles que participam da
introdução do produto ou serviço no mercado devem responder solidariamente por
eventual defeito ou vício, isto é, imputa-se a toda a cadeia de fornecimento a
responsabilidade pela garantia de qualidade e adequação. (…) 3. No sistema do CDC fica
a critério do consumidor a escolha dos fornecedores solidários que irão integrar o polo
passivo da ação. Poderá exercitar sua pretensão contra todos ou apenas contra alguns
desses fornecedores, conforme sua comodidade e/ou conveniência” (REsp 1.077.911/SP,
j. 04.10.2011, rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 14.10.2011).

12 Discorda-se de recente julgado proferido pelo STJ, o qual, ao examinar o sentido da


responsabilidade solidária prevista no art. 18 do CDC, conclui: “Disponibilizado serviço
de assistência técnica, de forma eficaz, efetiva e eficiente, na mesma localidade do
estabelecimento do comerciante, a intermediação do serviço apenas acarretaria delongas
e acréscimo de custos, não justificando a imposição pretendida na ação coletiva” (REsp
1.411.136, j. 24.02.2015, rel. Min. Marco Aurélio Belizze). Em outras palavras, significa
dizer que, havendo serviço de assistência técnica, o consumidor não pode exercer seus
direitos decorrentes da garantia legal perante o comerciante. A disciplina concernente à
solidariedade passiva é bastante clara no sentido que cabe ao credor – consumidor, no
caso – escolher contra quem deve dirigir o direito de troca, devolução do dinheiro ou
abatimento proporcional do preço.

13 Cabe destacar a impossibilidade de denunciação da lide, nos termos do art. 88 do


CDC, que, embora se refira unicamente à hipótese relativa a fato do produto (art. 13),
deve ser aplicado analogicamente para todos os casos de responsabilidade solidária
previstos no CDC. Assim entende a doutrina majoritária, considerando que a solução da
demanda do consumidor poderia ser injustificadamente adiada.

14 Não se vê muito sentido em estabelecer prazos decadenciais diferentes para produtos


e serviços conforme a respectiva durabilidade. Trata-se, ademais, de nova classificação
legal, desconhecida do direito privado, e que, portanto, merecia algum grau de definição
para evitar divergências e incertezas. Cabe destacar que a lei é bastante clara no sentido
de que os prazos decadenciais de 30 e 90 dias são relativos aos vícios dos produtos e
serviços (art. 26), enquanto o prazo prescricional de cinco anos, estipulado no art. 27,
refere-se à pretensão de indenização pelos danos sofridos de fato do produto e do
serviço (acidentes de consumo). Em virtude da clareza do CDC em diferenciar o prazo
prescricional de cinco anos para pretensões indenizatórias advindas de acidentes de
consumo (art. 27) do prazo decadencial de 30 e 90 dias para reclamar dos vícios dos
produtos e serviços (art. 26), não pode haver dúvidas a respeito da distinção dos
aludidos prazos. De qualquer modo, apenas a título ilustrativo, registre-se julgado do
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Vícios dos produtos e as três garantias do consumidor:
um cenário de desinformação

STJ: “Código de Defesa do Consumidor – Responsabilidade pelo fato do produto –


Prescrição. A ação de indenização por fato do produto prescreve em cinco anos (arts. 12
e 27 do CDC), não se aplicando à hipótese as disposições sobre vício do produto (arts.
18, 20 e 26 do CDC). Recurso conhecido e provido” (STJ, REsp 100.710, j. 25.11.1996,
rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 03.02.1997).

15 Consigne-se, ainda, a possibilidade de a decadência ser obstada em duas hipóteses:


1) quando formulada reclamação perante o fornecedor, até o dia da resposta negativa
correspondente; 2) quando instaurado inquérito civil, até o seu encerramento (art. 26, §
2.º, I e III).

16 A propósito, Claudia Lima Marques observa: “Se o vício é oculto, porque se manifesta
somente com o uso, experimentação do produto ou porque se evidenciará muito tempo
após a tradição, o limite temporal da garantia legal está em aberto, seu termo inicial,
segundo o § 3.º do art. 26, é a descoberta do vício. Somente a partir da descoberta do
vício (talvez meses ou anos após o contrato) é que passarão a correr os 30 ou 90 dias.
Será, então, a nova garantia eterna? Não, os bens de consumo possuem uma
durabilidade determinada. É a chamada vida útil do produto” (Contratos no Código de
Defesa do Consumidor. 5. ed. São Paulo: Ed. RT, 2006. p. 1196-1197). Na mesma linha
é a posição de Herman Benjamin, que sintetiza: “Diante de um vício oculto qualquer juiz
vai sempre atuar casuisticamente. Aliás, como faz em outros sistemas legislativos. A
vida útil do produto ou serviço será um dado relevante na apreciação da garantia” (
Comentários, p. 134-135). Antes de concluir, observa, com propriedade: “O legislador,
na disciplina desta matéria, não tinha, de fato, muitas opções. De um lado, poderia
estabelecer um prazo totalmente arbitrário para a garantia, abrangendo todo e qualquer
produto ou serviço. Por exemplo, seis meses (e por que não dez anos?) a contar da
entrega do bem. De outro lado, poderia deixar – como deixou – que o prazo (trinta ou
noventa dias) passasse a correr somente no momento em que o vício se manifestasse.
Esta última hipótese, a adotada pelo legislador, tem prós e contras. Falta-lhe
objetividade e pode dar ensejo a abusos. E estes podem encarecer desnecessariamente
os produtos e serviços. Mas é ela a única realista, reconhecendo que muito pouco é
uniforme entre os incontáveis produtos e serviços oferecidos no mercado” (idem, p.
134).

17 O STJ, com base no art. 50 do CDC, já se posicionou no sentido de que os prazos das
garantias não correm simultaneamente: o prazo decadencial inicia-se após o término do
prazo de garantia contratual. Do voto do Min. Carlos Alberto Menezes Direito, proferido
no REsp 225.859, extrai-se a seguinte passagem: “Na verdade, se existe uma garantia
contratual de um ano tida como complementar à legal, o prazo de decadência somente
pode começar da data em que encerrada a garantia contratual, sob pena de
submetermos o consumidor a um engodo com o esgotamento do prazo judicial antes do
esgotamento do prazo de garantia. É isso que o art. 50 do Código de Defesa do
Consumidor quis evitar” (STJ, REsp 225.859, j. 15.02.2001, rel. Min. Waldemar Zveiter,
DJ 13.08.2001). Analisando-se o caso, conclui-se que não havia necessidade de somar
os prazos das garantias legal e contratual para amparar adequadamente os interesses
do consumidor: bastava recorrer ao critério da vida útil do produto. A hipótese era de
aquisição de veículo novo diretamente da concessionária, o qual, durante 14 meses após
sua venda, apresentou uma série de vícios ocultos que nunca foram adequadamente
sanados pelos fornecedores (fábrica e concessionária). A ação foi ajuizada após o
término do prazo de garantia contratual, que era de um ano. Ora, é evidente que um
veículo e seus principais componentes – salvo situação de uso exagerado – devem
possuir vida útil superior a um ano. Portanto, evidenciado o vício, o consumidor teria o
prazo de 90 dias, o que significa a possibilidade de ajuizamento da demanda até o 15.º
mês após a entrega do bem ou mais. Tudo isso sem discutir eventual suspensão do
prazo em razão das várias reclamações formuladas. Em julgamento realizado em
28.06.2007 (REsp 579.941), o STJ afirma: “Se ao término do prazo de garantia
contratado o veículo se achava retido pela oficina mecânica para conserto, impõe-se
reconhecer o comprovado período que o automóvel passou nas dependências da oficina
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Vícios dos produtos e as três garantias do consumidor:
um cenário de desinformação

mecânica autorizada, sem solução para o defeito, como de suspensão do curso do prazo
de garantia. Prorroga-se, nessa circunstância, o prazo de garantia inicialmente ofertado,
até a efetiva devolução do veículo ao consumidor, sendo este momento fixado como dies
a quo do prazo decadencial para se reclamar vícios aparentes em produtos duráveis”.
Em outras palavras, além de suspender a contagem do prazo de garantia contratual
(enquanto o veículo estivesse na oficina), indicou que o prazo decadencial de 90 dias
inicia sua contagem após o término da garantia contratual. Em acórdão proferido em
abril de 2009, o STJ reafirma que o início da contagem do prazo de decadência deve se
dar ao final do prazo de garantia contratual: “A garantia legal é obrigatória, dela não
podendo se esquivar o fornecedor. Paralelamente a ela, porém, pode o fornecedor
oferecer uma garantia contratual, alargando o prazo ou o alcance da garantia legal. A lei
não fixa expressamente um prazo de garantia legal. O que há é prazo para reclamar
contra o descumprimento dessa garantia, o qual, em se tratando de vício de adequação,
está previsto no art. 26 do CDC, sendo de 90 (noventa) ou 30 (trinta) dias, conforme
seja produto ou serviço durável ou não. Diferentemente do que ocorre com a garantia
legal contra vícios de adequação, cujos prazos de reclamação estão contidos no art. 26
do CDC, a lei não estabelece prazo de reclamação para a garantia contratual. Nessas
condições, uma interpretação teleológica e sistemática do CDC permite integrar
analogicamente a regra relativa à garantia contratual, estendendo-lhe os prazos de
reclamação atinentes à garantia legal, ou seja, a partir do término da garantia
contratual, o consumidor terá 30 (bens não duráveis) ou 90 (bens duráveis) dias para
reclamar por vícios de adequação surgidos no decorrer do período desta garantia” (REsp
967.623/RJ, j. 16.04.2009, rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 29.06.2009). Na mesma linha,
registre-se: “(…) 2. O prazo de decadência para a reclamação de vícios do produto (art.
26 do CDC) não corre durante o período de garantia contratual, em cujo curso o veículo
foi, desde o primeiro mês da compra, reiteradamente apresentado à concessionária com
defeitos. Precedentes” (REsp 547.794/PR, j. 15.02.2011, rel. Min. Maria Isabel Gallotti,
DJe 22.02.2011).

18 “Direito do consumidor e processual civil. Recurso especial. Ação e reconvenção.


Julgamento realizado por uma única sentença. Recurso de apelação não conhecido em
parte. Exigência de duplo preparo. Legislação local. Incidência da Súmula 280 do STF.
Ação de cobrança ajuizada pelo fornecedor. Vício do produto. Manifestação fora do prazo
de garantia. Vício oculto relativo à fabricação. Constatação pelas instâncias ordinárias.
Responsabilidade do fornecedor. Doutrina e jurisprudência. Exegese do art. 26, § 3.º, do
CDC. (…) 3. No mérito da causa, cuida-se de ação de cobrança ajuizada por vendedor de
máquina agrícola, pleiteando os custos com o reparo do produto vendido. O Tribunal a
quo manteve a sentença de improcedência do pedido deduzido pelo ora recorrente,
porquanto reconheceu sua responsabilidade pelo vício que inquinava o produto adquirido
pelo recorrido, tendo sido comprovado que se tratava de defeito de fabricação e que era
ele oculto. Com efeito, a conclusão a que chegou o acórdão, sobre se tratar de vício
oculto de fabricação, não se desfaz sem a reapreciação do conjunto fático-probatório,
providência vedada pela Súmula 7 do STJ. Não fosse por isso, o ônus da prova quanto à
natureza do vício era mesmo do ora recorrente, seja porque é autor da demanda (art.
333, I, do CPC) seja porque se trata de relação de consumo, militando em benefício do
consumidor eventual déficit em matéria probatória. 4. O prazo de decadência para a
reclamação de defeitos surgidos no produto não se confunde com o prazo de garantia
pela qualidade do produto – a qual pode ser convencional ou, em algumas situações,
legal. O Código de Defesa do Consumidor não traz, exatamente, no art. 26, um prazo de
garantia legal para o fornecedor responder pelos vícios do produto. Há apenas um prazo
para que, tornando-se aparente o defeito, possa o consumidor reclamar a reparação, de
modo que, se este realizar tal providência dentro do prazo legal de decadência, ainda é
preciso saber se o fornecedor é ou não responsável pela reparação do vício. 5. Por óbvio,
o fornecedor não está, ad aeternum, responsável pelos produtos colocados em
circulação, mas sua responsabilidade não se limita pura e simplesmente ao prazo
contratual de garantia, o qual é estipulado unilateralmente por ele próprio. Deve ser
considerada para a aferição da responsabilidade do fornecedor a natureza do vício que
inquinou o produto, mesmo que tenha ele se manifestado somente ao término da
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um cenário de desinformação

garantia. 6. Os prazos de garantia, sejam eles legais ou contratuais, visam a acautelar o


adquirente de produtos contra defeitos relacionados ao desgaste natural da coisa, como
sendo um intervalo mínimo de tempo no qual não se espera que haja deterioração do
objeto. Depois desse prazo, tolera-se que, em virtude do uso ordinário do produto,
algum desgaste possa mesmo surgir. Coisa diversa é o vício intrínseco do produto
existente desde sempre, mas que somente veio a se manifestar depois de expirada a
garantia. Nessa categoria de vício intrínseco certamente se inserem os defeitos de
fabricação relativos a projeto, cálculo estrutural, resistência de materiais, entre outros,
os quais, em não raras vezes, somente se tornam conhecidos depois de algum tempo de
uso, mas que, todavia, não decorrem diretamente da fruição do bem, e sim de uma
característica oculta que esteve latente até então. 7. Cuidando-se de vício aparente, é
certo que o consumidor deve exigir a reparação no prazo de noventa dias, em se
tratando de produtos duráveis, iniciando a contagem a partir da entrega efetiva do bem
e não fluindo o citado prazo durante a garantia contratual. Porém, conforme assevera a
doutrina consumerista, o Código de Defesa do Consumidor, no § 3.º do art. 26, no que
concerne à disciplina do vício oculto, adotou o critério da vida útil do bem, e não o
critério da garantia, podendo o fornecedor se responsabilizar pelo vício em um espaço
largo de tempo, mesmo depois de expirada a garantia contratual. 8. Com efeito, em se
tratando de vício oculto não decorrente do desgaste natural gerado pela fruição ordinária
do produto, mas da própria fabricação, e relativo a projeto, cálculo estrutural, resistência
de materiais, entre outros, o prazo para reclamar pela reparação se inicia no momento
em que ficar evidenciado o defeito, não obstante tenha isso ocorrido depois de expirado
o prazo contratual de garantia, devendo ter-se sempre em vista o critério da vida útil do
bem. 9. Ademais, independentemente de prazo contratual de garantia, a venda de um
bem tido por durável com vida útil inferior àquela que legitimamente se esperava, além
de configurar um defeito de adequação (art. 18 do CDC), evidencia uma quebra da
boa-fé objetiva, que deve nortear as relações contratuais, sejam de consumo, sejam de
direito comum. Constitui, em outras palavras, descumprimento do dever de informação
e a não realização do próprio objeto do contrato, que era a compra de um bem cujo ciclo
vital se esperava, de forma legítima e razoável, fosse mais longo.10. Recurso especial
conhecido em parte e, na extensão, não provido” (REsp 984.106/SC, j. 04.10.2012, rel.
Min. Luis Felipe Salomão, DJe 20.11.2012).

19 A jurisprudência, ao posicionar-se sob a vigência do Código Civil de 1916 no sentido


de que os prazos de garantia de fábrica e legal deveriam ser somados, objetivou
amenizar a rigidez do antigo prazo decadencial de 15 dias e, desse modo, conferir real
proteção ao comprador de bens viciados.

20 Sustenta Claudia Lima Marques que, com a edição do CDC, a interpretação mais
favorável ao consumidor é no sentido de que, “se há garantia contratual (express
warranty) e esta foi estipulada para vigorar a partir da data do contrato (termo de
garantia), as garantias começam a correr juntas, pois a garantia legal nasce
necessariamente com o contrato de consumo, com a entrega do produto, sua colocação
no mercado de consumo. Ao consumidor é que cabe escolher de qual delas fará uso.
Pode usar a garantia contratual, porque lhe é mais vantajosa, no sentido de não ter de
arguir que o vício já existia à época do fornecimento. Mas pode usar a garantia legal,
porque, por exemplo, o vício se localiza no motor do produto (geladeira), que não está
incluído na garantia contratual, ou porque o consumidor se interessa em redibir o
contrato e adquirir outro produto de marca diferente”. Ao final, a autora conclui que a
jurisprudência sedimentada sob a vigência do CC/1916 (no sentido da soma dos prazos
legal e contratual) restou superada com a edição do CDC: “Era uma interpretação
pró-consumidor, baseada na falta de legislação específica, que procurava adaptar
normas superadas à realidade moderna. As novas normas do CDC são, porém,
imperativas, não havendo possibilidade do consumidor ou do fornecedor dispor sobre
elas; os limites temporais são outros” (Contratos no Código de Defesa do Consumidor
cit., p. 1196).

21 O Código Civil de 2002 inovou em relação ao CC/1916 ao dispor, no art. 446, que o
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prazo de garantia legal não corre enquanto estiver valendo a garantia contratual. Assim,
nas relações regidas pelo Código Civil, concedido, por exemplo, prazo de garantia
contratual para bem móvel por um ano, o prazo decadencial de 30 dias (art. 445, caput)
bem como o prazo de 180 dias para surgimento do vício oculto (art. 445, § 1.º)
começam a correr após o termo final da garantia contratual. A redação do art. 446 é a
seguinte: “Não correrão os prazos do artigo antecedente na constância de cláusula de
garantia; mas o adquirente deve denunciar o defeito ao alienante nos 30 (trinta) dias
seguintes ao seu descobrimento, sob pena de decadência”. O artigo antecedente é
justamente o que trata do prazo decadencial de 30 dias e do prazo máximo de 180 dias
para aparecimento do vício oculto.

22 Pesquisa rápida da Internet mostra que as marcas Hyundai e JAC têm oferecido
garantias de fábrica de seis anos. A mesma pesquisa indica que as garantias têm sido
objeto de reclamações por falta de clareza do fornecedor em relação aos deveres do
consumidor.

23 O Código de Defesa do Consumidor é expresso e didático a respeito: “Art. 24. A


garantia legal de adequação do produto ou serviço independe de termo expresso,
vedada a exoneração contratual do fornecedor”.

24 As condições podem ser abusivas e, portanto, inválidas. Tem forte conteúdo abusivo,
por exemplo, estabelecer que a troca do aparelho de som do carro acarreta a perda da
garantia contratual de fábrica. As exigências e condições para exercícios dos direitos da
garantia contratual de fábrica devem ser razoáveis e possuir algum sentido lógico.
Ademais, muitas restrições, conforme o caso, podem caracterizar ofensa aos termos da
oferta e publicidade (art. 30), já que as vantagens e prazo da garantia contratual são
sempre ressaltadas pelo fornecedor.

25 O Unicon – Núcleo de Estudos de Direito do Consumidor decorre de convênio firmado


entre o UNICEUB e Brasilcon – Instituto Brasileiro de Direito do Consumidor
(www.brasilcon.org.br). Objetiva realizar projetos de extensão universitária que aliam
conhecimento com atividades voltadas a benefício da sociedade.

26 A Secretaria Nacional do Consumidor – Senacon (Ministério da Justiça) foi


formalmente provocada pelo Unicon – Núcleo de Estudos de Direito do Consumidor para
análise e providências legais.

27 Com o objetivo de atenuar as reclamações dos consumidores em relação à forma de


contratação da garantia estendida, a Superintendência de Seguros Privados – Susep
editou, em outubro de 2013, a Res. CNSP 296, a qual “Dispõe sobre as regras e os
critérios para operação do seguro de garantia estendida, quando da aquisição de bens ou
durante a vigência da garantia do fornecedor, e dá outras providências”. Embora se faça
referência à garantia legal, não há qualquer preocupação em estabelecer prazo ou
indicar o termo final da garantia. A propósito, destaquem-se os seguintes dispositivos:
“Art. 2.º O seguro de garantia estendida tem como objetivo propiciar ao segurado,
facultativamente e mediante o pagamento de prêmio, a extensão temporal da garantia
do fornecedor de um bem adquirido e, quando prevista, sua complementação. § 1.º O
segurado a que se refere o caput é o consumidor final que adquire um bem ou pessoa
por ele indicada no documento contratual. § 2.º Para os efeitos desta Resolução,
entende-se por garantia do fornecedor a garantia legal e, se houver, a garantia
contratual originalmente oferecida pelo fornecedor, nos termos definidos pela lei. § 3.º O
seguro de garantia estendida deverá admitir, para fins de indenização e mediante acordo
entre as partes, as hipóteses de reparo do bem, sua reposição ou pagamento em
dinheiro. § 4.º No caso de impossibilidade de reparo do bem coberto pelo seguro, a
indenização ao segurado se dará na forma de reposição por bem idêntico”. O art. 8.º da
Resolução faz previsão da complementação da garantia, a qual pode vigorar
paralelamente à garantia do fornecedor (legal ou contratual): “Art. 8.º Os planos de
seguro de garantia estendida poderão, facultativamente, oferecer a cobertura de
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“complementação de garantia”, cuja vigência inicia-se simultaneamente com a garantia


do fornecedor, contemplando coberturas não previstas ou excluídas pela garantia do
fornecedor e desde que não enquadradas em outros ramos específicos de seguro”.

28 Entre as práticas abusivas, cabe destacar a venda casada bem como a


comercialização de garantia estendida sem concordância expressa do consumidor que,
muitas vezes, só mais tarde iria perceber a cobrança de valor adicional em relação ao
preço do produto. Outra prática que foi questionada perante os órgãos de defesa do
consumidor consistia em não oferecer o desconto total permitido pelo estabelecimento
para incluir a venda da garantia estendida sem alteração do preço final que foi informado
ao consumidor. “Art. 13. Fica vedado condicionar a compra do bem à contratação do
seguro de garantia estendida, assim como condicionar a concessão de desconto no seu
preço à aquisição do seguro. § 1.º Os preços de aquisição do bem e do seguro de
garantia estendida deverão ser discriminados na ocasião da oferta. § 2.º Na
apresentação do plano de seguro de garantia estendida ao consumidor por
representante de seguros, deverá constar, obrigatoriamente e de forma clara e
ostensiva, o termo ‘opcional’, bem como a seguinte informação: ‘É proibido condicionar
desconto no preço de bem à aquisição do seguro’. § 3.º A transação financeira
correspondente à aquisição do seguro deverá ser distinta daquela realizada para
pagamento do bem adquirido, inclusive com emissão dos respectivos comprovantes,
bem como a individualização dos respectivos pagamentos, seja com cartão de crédito,
boletos bancários ou outros meios de pagamento admitidos, com exceção daqueles
realizados em espécie”.

29 “Art. 6.º São direitos básicos do consumidor: (…) III – a informação adequada e clara
sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade,
características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os
riscos que apresentem; (…) Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços
devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua
portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço,
garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos
que apresentam à saúde e segurança dos consumidores.”

30 O art. 50, caput, do CDC estabelece que “a garantia contratual é complementar à


legal”. O dispositivo foi imaginado para as situações de garantia contratual de fábrica já
que, quando o CDC, foi promulgado não existira no mercado brasileiro a comercialização
da garantia estendida. Todavia, o dispositivo se aplica também à garantia estendida no
sentido de que ela não diminui nem prejudica os termos da garantia legal (art. 18 da Lei
8.078/1990).

31 “Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca
em: I – trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos não duráveis;
II – noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos duráveis. § 1.º
Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto ou do
término da execução dos serviços. (…) § 3.º Tratando-se de vício oculto, o prazo
decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito” – grifou-se.

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