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um cenário de desinformação
1. Introdução
Uma das formas mais graves de ofensa a direito subjetivo ocorre quando o seu titular
sequer percebe que foi lesionado. No Direito do Consumidor, em que pese a existência
da Lei 8.078/1990 há mais de duas décadas, muitas lesões ocorrem sem qualquer
percepção. Os motivos são variados, mas, entre eles, destaca-se o desconhecimento do
consumidor sobre seus direitos.
Destaca-se que a forma como o mercado tem oferecido a garantia de fábrica induz o
consumidor a erro sobre o conteúdo, extensão e significado da garantia legal (art. 18 da
Lei 8.078/1990), prejudicando, em consequência o exercício de seus direitos. O mesmo
tem ocorrido em relação à denominada garantia estendida. Em que pese o teor da
disciplina decorrente da Res. 96/2013 da Superintendência de Seguros Privados –
Susep, a forma de comercialização da garantia estendida induz o consumidor a erro
sobre a abrangência e tempo da garantia legal. Muitas vezes, adquire a garantia
estendida em ambiente de falta de informações.
Para melhor compreensão do significado da garantia legal relativa a vício dos produtos
(art. 18 do CDC), apresentam-se referências sobre a proteção jurídica que,
historicamente, foi conferida ao comprador em face de defeito que tornava a coisa
imprópria ao uso, que é destinada, ou lhe diminuía o valor econômico: a disciplina dos
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vícios redibitórios.
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Embora tênue e bastante criticada a milenar disciplina dos vícios redibitórios, é
preocupação jurídica milenar proteger o comprador em relação a vícios de vício das
coisas.
No Código Civil de 1916, os vícios redibitórios eram tratados nos arts. 1.101 a 1.106, na
seção relativa aos contratos. Em resumo, a disciplina aplicava-se aos contratos
comutativos e doações onerosas. O vício, para ensejar legítima reação do comprador,
deveria ser oculto, grave e anterior à tradição. As ações edilícias estavam previstas no
art. 1.105. O adquirente podia rejeitar a coisa, redibindo o contrato ou,
alternativamente, ficar com a coisa e reclamar o abatimento do preço. O prazo
decadencial para exercício do direito em relação aos bens móveis era de 15 dias,
“contados da tradição da coisa” (art. 178, § 2.º), e de seis meses para imóveis (art. 178,
§ 5.º, IV), “contado o prazo da tradição da coisa”.
A culpa do alienante em relação aos vícios redibitórios não era, no Código Civil de 1916,
pressuposto para possibilitar o exercício das alternativas colocadas à disposição do
comprador (redibição do contrato ou abatimento proporcional do preço). A lei apenas se
referia ao conhecimento ou não do vício, sem qualquer preocupação em perquirir se a
origem do defeito se vinculava à ação ou omissão anterior do alienante. A ciência do
vício – e não a culpa – era relevante apenas para analisar a validade de cláusula
exoneratória (art. 1.102) e definir o cabimento de indenização por perdas e danos, ao
lado da restituição do bem (art. 1.103).
O Código Civil de 2002 preservou a mesma estrutura do Código Civil revogado, salvo no
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Vícios dos produtos e as três garantias do consumidor:
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tocante aos prazos decadências e relação da garantia legal com eventual garantia
contratual. No que diz respeito ao primeiro ponto, o Código Civil em vigor ampliou os
prazos decadenciais previstos do Código de 1916 de 15 para 30 dias (bens móveis) e de
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seis meses para um ano (bens imóveis), a par de indicar período máximo de
aparecimento do vício oculto: “Quando o vício, por sua natureza, só puder ser conhecido
mais tarde, o prazo contar-se-á do momento em que dele tiver ciência, até o prazo
máximo de 180 (cento e oitenta) dias, em se tratando de bens móveis; e 1 (um) ano,
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para os imóveis” (art. 445, § 1.º).
Assim, para exemplificar, no caso de contrato de compra e venda no qual não incide o
CDC, o comprador de um carro (bem móvel) poderá exigir a redibição do contrato ou
abatimento do preço caso o defeito na injeção eletrônica, que impede o regular
desenvolvimento do motor, se revele até 180 dias da entrega efetiva do automóvel.
Assim que o vício se manifestar (desde que no prazo de 180 dias, repita-se), o
comprador terá o prazo decadencial de 30 dias para exigir judicialmente a devolução do
dinheiro ou, se for o caso, o abatimento proporcional do preço.
Na prática, somando-se os dois prazos, os compradores de bens móveis terão até 210
dias, a contar do dia do recebimento do bem, para reclamar pelos vícios ocultos e exigir
a devolução ou abatimento proporcional do preço. No CC/1916, recorde-se, não havia
prazo de garantia, e o decadencial era apenas de 15 dias, o que gerou muitas críticas,
tanto em sede doutrinária como jurisprudencial.
Destaque-se, no tocante a este ponto, que a redação do art. 446 positivou tese que
alguns tribunais já vinham adotando quanto à relação temporal entre as garantias
contratual e legal. Em razão da exiguidade do prazo de 15 dias previsto no CC/1916,
surgiu o entendimento jurisprudencial no sentido de que o prazo de decadência só fluiria
após o término do prazo da garantia contratual. Alguns julgados do STJ seguem esta
lógica, quando o Código de Defesa do Consumidor aponta para outra solução
hermenêutica, como será demonstrado.
O Código de Defesa do Consumidor (1990) iniciou sua vigência bem antes do atual
Código Civil (2002). Ao disciplinar a responsabilidade do fornecedor por vícios de
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qualidade dos produtos procurou justamente afastar as insuficiências do Código Civil de
1916.
O CDC estabelece no art. 18 a garantia legal dos produtos por vício de qualidade. A lei
amplia o conceito de vício, impõe obrigação solidária entre todos os fornecedores
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Vícios dos produtos e as três garantias do consumidor:
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A noção de vício do produto, para atrair a incidência do CDC, é bem mais ampla se
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comparada com o Código Civil. A proteção não se limita ao vício oculto. O art. 18, a
rigor, estabelece três espécies de vícios: 1) vício que torne o produto impróprio ao
consumo: 2) vício que lhe diminua o valor: 3) vício decorrente da disparidade das
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características dos produtos com aquelas veiculadas na oferta e publicidade.
Sob a vigência do Código Civil de 1916, incisivas críticas doutrinas foram apresentadas
em relação à exiguidade do prazo decadencial dos vícios redibitórios (15 dias para
móveis e 6 meses para imóveis, contados a partir da tradição do bem). O CDC, como já
era esperado, estabeleceu novos prazos: 30 dias para produtos não duráveis e 90 dias
para os duráveis (art. 26). Uma análise apressada da lei poderia considerá-la
insatisfatória nesse aspecto. Afinal, por que não foi fixado prazo decadencial ainda
maior?
De fato, os prazos poderiam ter sido maiores. Entretanto, a exame mais detido do CDC
evidencia grande diferencial em favor do consumidor: o limite temporal da garantia a
partir do critério da vida útil dos produtos para contagem dos prazos em caso de vícios
ocultos. Realmente, um dos maiores avanços concedidos pelo CDC em relação ao
CC/1916 – nem sempre percebido pela doutrina – foi conferido pelo disposto no § 3.º do
art. 26 da Lei 8.078/1990, ao se estabelecer, sem fixar previamente um limite temporal,
que, “tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar
evidenciado o defeito”.
O dispositivo possibilita que a garantia legal se estenda, conforme o caso, a três, quatro
ou cinco anos após a aquisição. Isso é possível porque não há – propositalmente –
expressa indicação do prazo máximo para aparecimento do vício oculto, a exemplo da
disciplina do Código Civil (§ 1.º do art. 445). Como a lei de proteção ao consumo não
estabelece limite cronológico para aplicação do § 3.º do art. 26, o critério para
delimitação do prazo máximo de aparecimento do vício oculto passa a ser o da vida útil
do bem, o que, além de conferir ampla flexibilidade ao julgador, releva a importância da
análise do caso concreto em que o fator tempo é apenas um dos elementos a ser
apreciado. A doutrina sustenta a aplicação do critério da vida útil como limite temporal
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para o surgimento do vício oculto.
O STJ possui importante julgado sobre o tema. Após a edição de algumas decisões que
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optaram pela soma dos prazos das garantias legal e de fábrica, prestigiou-se o
entendimento doutrinário concernente à vida útil dos produtos.
Em outubro de 2012, o Min. Luis Felipe Salomão, ao julgar o REsp 984.106, apresentou
extenso e bem fundamentado voto, o qual foi acompanhado na íntegra pelos demais
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Ministros que compõem a 4.ª Turma da Corte. Entre os argumentos utilizados,
destaque-se o seguinte trecho: “Cuidando-se de vício aparente, é certo que o
consumidor deve exigir a reparação no prazo de 90 dias, em se tratando de produtos
duráveis, iniciando a contagem a partir da entrega efetiva do bem e não fluindo o citado
prazo durante a garantia contratual. Porém, conforme assevera a doutrina consumerista,
o Código de Defesa do Consumidor, no § 3.º do art. 26, no que concerne à disciplina do
vício oculto, adotou o critério da vida útil do bem, e não o critério da garantia, podendo
o fornecedor se responsabilizar pelo vício em um espaço largo de tempo, mesmo depois
de expirada a garantia contratual. Com efeito, em se tratando de vício oculto não
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um cenário de desinformação
decorrente do desgaste natural gerado pela fruição ordinária do produto, mas da própria
fabricação, e relativo a projeto, cálculo estrutural, resistência de materiais, entre outros,
o prazo para reclamar pela reparação se inicia no momento em que ficar evidenciado o
defeito, não obstante tenha isso ocorrido depois de expirado o prazo contratual de
garantia, devendo ter-se sempre em vista o critério da vida útil do bem”.
O caso que foi objeto do importante precedente (REsp 984.106) é bastante ilustrativo no
sentido da importância de se perceber que, utilizando o critério da vida útil dos produtos,
a garantia legal dos produtos (art. 18 c/c art. 26 da Lei 8.078/1990) acaba por ser mais
ampla e vantajosa do que a garantia de fábrica (garantia contratual). Ademais,
demonstra também a desnecessidade de contratação de garantia estendida (item 3.2).
3. Garantias contratuais
Ao lado da garantia legal dos produtos em relação aos vícios de qualidade – garantia
legal – o mercado possui ampla liberdade de iniciativa em oferecer garantias adicionais
para ampliar a venda de seus produtos.
Ambas as garantias (de fábrica e estendida) são denominadas contratuais porque, para
existirem, dependem da vontade do fornecedor. Serão mais bem detalhadas na
sequência.
O termo de garantia de fábrica é exigência legal (art. 50, parágrafo único). Objetiva
informar o consumidor adequadamente dos seus direitos e deveres para, no momento
adequado, em caso de vício, obter a reparação ou troca do produto. A entrega do termo
de garantia contratual de fábrica é penalmente relevante. O art. 74 do CDC estabelece a
seguinte infração penal: “deixar de entregar ao consumidor o termo de garantia
adequadamente preenchido e com especificação clara de seu conteúdo”. O tipo penal
evidencia a importância de informar o consumidor sobre a abrangência da garantia
contratual para melhor exercício dos seus direitos.
Observa-se que, nos exemplos indicados, o prazo de garantia contratual de fábrica inicia
após 90 dias, com a sugestão ou informação explícita que a garantia legal se limita aos
primeiros 90 dias da data de aquisição do produto. Além de se utilizar critério de soma
de prazos das garantias legal e contratual (de fábrica) – que foi superado pelo STJ ao
julgar o REsp 984.106 – induz o consumidor a erro sobre a extensão da garantia legal.
Este tipo de informação ignora a doutrina e a jurisprudência no sentido de que a garantia
legal, em face de vício oculto, possui dimensão temporal que pode atingir dois ou três
anos a depender da forma de uso e análise da vida útil do bem (art. 18, c/c art. 26 §
3.º).
Tal prática ofende direitos coletivos (lato sensu) dos consumidores. Enseja, portanto,
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necessidade de atuação dos órgãos de defesa do consumidor.
Ao lado das garantias legal e contratual, existe também a garantia estendida. Trata-se,
na verdade, de mais uma modalidade de garantia contratual – já que seus termos e
condições decorrem de contratos celebrados entre o consumidor e fornecedor. No
momento de aquisição de bens duráveis, principalmente eletrodomésticos e
eletroeletrônicos, o consumidor recebe proposta da garantia estendida. Pagando-se
determinado valor, o estabelecimento comercial, por meio de seguradora, estende o
prazo da garantia de fábrica, normalmente de um ano, para dois ou três anos.
Ora, é justamente em razão da ideia de que a garantia legal abrange o período da vida
útil do produto – que pode chegar a dois ou três anos após a data de aquisição do bem –
que se evidencia pouca ou nenhuma vantagem econômica ao consumidor em adquirir a
garantia estendida. Se a contagem do prazo para reclamar dos vícios do produto for
realizada corretamente, é fato que o CDC já oferece proteção adequada e suficiente aos
interesses do consumidor.
Acrescente-se que o comércio crescente da garantia estendida acaba por gerar mais
desinformação ao consumidor em relação aos seus direitos decorrentes da garantia legal
(art. 18 c/c o art. 26, § 3.º, da Lei 8.078/1990). No momento da oferta da garantia
estendida, é ressaltado ao consumidor que depois da garantia contratual de fábrica, se
ocorrer algum vício com o produto, o prejuízo decorrente de reparo ou troca do bem é
de responsabilidade do consumidor. Tal afirmação – necessária para convencer o
consumidor a comprar a garantia estendida – ignora completamente que a garantia legal
abrange o prazo da vida útil do produto.
4. Conclusões
A garantia legal dos produtos em relação a vício de qualidade (art. 18 c/c o art. 26 da
Lei 8.078/1990) não se confunde com as garantias contratuais existentes no mercado de
consumo brasileiro. Mais importante: as garantias contratuais (de fábrica ou estendida)
não diminuem nem afetam os direitos do consumidor decorrente da garantia legal. Os
contornos da garantia legal decorrem de norma de ordem pública e interesse social. Não
podem ser alterados contratualmente. A sistemática e princípios do Código de Defesa do
Consumidor deixam bastante claros a autonomia e força da garantia legal.
A complementariedade entre garantia legal e contratual (art. 50, caput, do CDC) foi
estabelecida a partir da percepção de que as garantias podem diferir bastante uma da
outra e, principalmente, da ideia de que a garantia legal, por decorrer de norma de
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ordem pública, não pode ser afetada por qualquer espécie de garantia contratual.
Como consequência lógica, não se deve interpretar o dispositivo no sentido de se
estabelecer somas temporais das garantias, com indicação ou alteração do termo inicial
da contagem do prazo, até porque a lei é bastante explicita ao apontar o termo inicial da
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garantia legal: entrega do produto em caso de vício aparente ou no dia que se manifesta
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o vício oculto.
Apresente-se outro argumento contrário à tese de soma dos prazos das garantias
contratual e legal. Tal procedimento pode acabar por confundir o consumidor e dificultar
ou, até mesmo, impedir o exercício dos seus direitos. Como a garantia contratual de
fábrica decorre da vontade do fornecedor, ela possui condições menos vantajosas, ora
limitadas a algumas partes do produto. Ou seja, em regra, não se oferecem as mesmas
possibilidades do CDC (troca do produto, devolução do dinheiro, abatimento proporcional
do preço): a ênfase é no conserto do bem.
Desse modo, admitindo-se a soma das garantias, o prazo decadencial, por questão
lógica, só não correria em relação a direitos amparados tanto pela garantia contratual
como pela legal. Se a garantia legal não cobre determinada parte do produto (parte
elétrica de um veículo, por exemplo), não há falar em soma de prazos em relação aos
vícios surgidos no sistema elétrico do carro. Tal fato conduzirá o consumidor a ter de
analisar minuciosamente ambas as garantias para verificar em que medida são
coincidentes e, ainda, em quais aspectos poderá se valer de uma ou de outra. A
dificuldade será inevitável e, muitas vezes, irá levar o consumidor a perder o seu direito,
em face de um exame equivocado dos termos, condições e limites da garantia
contratual. Este é um outro fator prático que deve também ser considerado na
interpretação de norma que objetiva justamente o conhecimento dos direitos, a
facilitação de sua defesa e a prevenção de danos ao consumidor (art. 6.º, II, VI e VIII).
5. Referências
CARVALHO SANTOS, J. M. Código Civil brasileiro interpretado. 12. ed. Rio de Janeiro:
Freitas Bastos, 1989. vol. 15.
MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito romano. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992. vol.
2.
NETTO LÔBO, Paulo Luiz. Responsabilidade por vício do produto ou do serviço. Brasília:
Brasília Jurídica, 1996.
SIMÃO, José Fernando. Vícios do produto no novo Código Civil e no Código de Defesa do
Consumidor. São Paulo: Atlas, 2003.
1 Carvalho Santos assim define o vício redibitório: “É o vício, ou defeito, oculto, que
torna a coisa imprópria ao uso, a que é destinada, ou lhe diminui o valor, de tal sorte
que a parte, se o conhecesse, ou não contrataria, ou lhe daria preço menor” (Código
Civil brasileiro interpretado. 12. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989. vol. 15, p.
335).
2 A disciplina dos vícios redibitórios do Código Civil de 1916 recebeu fortes críticas
doutrinárias, principalmente em relação à exiguidade dos prazos decadenciais, que
acabavam, paradoxalmente, beneficiando o vendedor do bem e não o comprador. A par
das censuras relativas aos prazos decadenciais, a doutrina ressaltava que apenas o
vendedor – e não o fabricante do produto – tinha responsabilidade pelos vícios
redibitórios e, ainda, que o seu próprio conceito seria demasiadamente restrito, por não
abranger defeitos aparentes nem aqueles que não fossem considerados graves. Para
atenuar o rigor do CC/1916, a jurisprudência encontrou diversos caminhos. Apesar da
literalidade dos dispositivos relativos aos prazos decadenciais indicar que sua contagem
se iniciava com a tradição da coisa, admitiu-se, em várias oportunidades, que o termo
inicial deveria coincidir com a data de revelação do vício. A propósito, observa Paulo Luiz
Netto Lôbo: “A rigidez do Código Civil brasileiro levou a jurisprudência dos tribunais a
construir uma tutela jurídica alternativa, sobretudo para tangenciar a limitação do prazo
decadencial, chegando ao ponto de, em alguns casos, tomar como termo inicial a
descoberta do vício e não da tradição da coisa” (Responsabilidade por vício do produto
ou do serviço. Brasília: Brasília Jurídica, 1996. p. 27). É importante registrar que,
embora a jurisprudência tenha firmado a posição de que o prazo de 15 dias não se
iniciava da tradição, nem sempre havia preocupação com o prazo máximo para
revelação do defeito. Outro caminho trilhado pelos tribunais foi, apesar das distinções
conceituais, anular o negócio jurídico por erro, espécie de vício do consentimento,
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Vícios dos produtos e as três garantias do consumidor:
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3 Ensina José Carlos Moreira Alves que houve época em que o vendedor não respondia
pelos vícios da coisa, salvo se entre as partes houvesse sido celebrado acordo em
sentido contrário. Posteriormente, no tempo de Cícero, o comprador podia, quando o
vendedor tinha conhecimento do vício, obter, por ação específica, a devolução do preço
mediante a entrega da coisa ou apenas a redução do preço (Direito romano. 5. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1992. p. 188).
6 O aumento dos prazos decadenciais – de 15 para 30 dias, nos bens móveis, e de seis
meses para um ano, nos bens imóveis – e a previsão expressa de períodos máximos
para aparecimento do vício oculto – 180 dias para bens móveis e um ano para imóveis –
são importantes inovações trazidas pelo Código Civil de 2002. A disciplina segue a
distinção realizada pela jurisprudência ao interpretar o art. 1.245 do CC/1916 (Súmula
194 do STJ). O prazo de cinco anos seria o limite temporal para surgimento dos vícios
nos imóveis; o prazo para ajuizamento da ação seria outro, com início coincidindo com o
aparecimento do vício.
8 Destaque-se que a disciplina dos vícios dos serviços (arts. 20 e 21) é novidade trazida
pelo Código de Defesa do Consumidor sem paralelo direto com o Código Civil, vez que
inexistem vícios redibitórios em relação aos serviços. As soluções, até então, eram
encontradas basicamente no direito contratual, na disciplina do inadimplemento.
9 Ao contrário do Código Civil (arts. 441-446), o CDC não se limita aos vícios ocultos. A
noção de vício é bem mais ampla, alcançando os vícios aparentes e de fácil constatação,
bem como produtos que estejam em desacordo com normas regulamentares de
fabricação, distribuição ou apresentação. A tal conclusão se chega a partir de análise
conjunta de diversos dispositivos (caput e § 6.º do art. 18 e art. 26). Ou seja, restou
estabelecida uma impropriedade normativa que pode, eventualmente, não corresponder
a uma impropriedade real para o consumidor. Há situações em que o produto atende
inteiramente às necessidades do consumidor, mas que, por não seguir norma
regulamentar de apresentação – ausência do número do registro em órgão público –, é
considerado impróprio, ensejando a tríplice alternativa do consumidor (troca, devolução
do dinheiro, abatimento proporcional do preço).
10 A novidade fica por conta do vício decorrente de disparidade das características com
a oferta, vez que, historicamente, a responsabilidade por vício sempre esteve
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Vícios dos produtos e as três garantias do consumidor:
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16 A propósito, Claudia Lima Marques observa: “Se o vício é oculto, porque se manifesta
somente com o uso, experimentação do produto ou porque se evidenciará muito tempo
após a tradição, o limite temporal da garantia legal está em aberto, seu termo inicial,
segundo o § 3.º do art. 26, é a descoberta do vício. Somente a partir da descoberta do
vício (talvez meses ou anos após o contrato) é que passarão a correr os 30 ou 90 dias.
Será, então, a nova garantia eterna? Não, os bens de consumo possuem uma
durabilidade determinada. É a chamada vida útil do produto” (Contratos no Código de
Defesa do Consumidor. 5. ed. São Paulo: Ed. RT, 2006. p. 1196-1197). Na mesma linha
é a posição de Herman Benjamin, que sintetiza: “Diante de um vício oculto qualquer juiz
vai sempre atuar casuisticamente. Aliás, como faz em outros sistemas legislativos. A
vida útil do produto ou serviço será um dado relevante na apreciação da garantia” (
Comentários, p. 134-135). Antes de concluir, observa, com propriedade: “O legislador,
na disciplina desta matéria, não tinha, de fato, muitas opções. De um lado, poderia
estabelecer um prazo totalmente arbitrário para a garantia, abrangendo todo e qualquer
produto ou serviço. Por exemplo, seis meses (e por que não dez anos?) a contar da
entrega do bem. De outro lado, poderia deixar – como deixou – que o prazo (trinta ou
noventa dias) passasse a correr somente no momento em que o vício se manifestasse.
Esta última hipótese, a adotada pelo legislador, tem prós e contras. Falta-lhe
objetividade e pode dar ensejo a abusos. E estes podem encarecer desnecessariamente
os produtos e serviços. Mas é ela a única realista, reconhecendo que muito pouco é
uniforme entre os incontáveis produtos e serviços oferecidos no mercado” (idem, p.
134).
17 O STJ, com base no art. 50 do CDC, já se posicionou no sentido de que os prazos das
garantias não correm simultaneamente: o prazo decadencial inicia-se após o término do
prazo de garantia contratual. Do voto do Min. Carlos Alberto Menezes Direito, proferido
no REsp 225.859, extrai-se a seguinte passagem: “Na verdade, se existe uma garantia
contratual de um ano tida como complementar à legal, o prazo de decadência somente
pode começar da data em que encerrada a garantia contratual, sob pena de
submetermos o consumidor a um engodo com o esgotamento do prazo judicial antes do
esgotamento do prazo de garantia. É isso que o art. 50 do Código de Defesa do
Consumidor quis evitar” (STJ, REsp 225.859, j. 15.02.2001, rel. Min. Waldemar Zveiter,
DJ 13.08.2001). Analisando-se o caso, conclui-se que não havia necessidade de somar
os prazos das garantias legal e contratual para amparar adequadamente os interesses
do consumidor: bastava recorrer ao critério da vida útil do produto. A hipótese era de
aquisição de veículo novo diretamente da concessionária, o qual, durante 14 meses após
sua venda, apresentou uma série de vícios ocultos que nunca foram adequadamente
sanados pelos fornecedores (fábrica e concessionária). A ação foi ajuizada após o
término do prazo de garantia contratual, que era de um ano. Ora, é evidente que um
veículo e seus principais componentes – salvo situação de uso exagerado – devem
possuir vida útil superior a um ano. Portanto, evidenciado o vício, o consumidor teria o
prazo de 90 dias, o que significa a possibilidade de ajuizamento da demanda até o 15.º
mês após a entrega do bem ou mais. Tudo isso sem discutir eventual suspensão do
prazo em razão das várias reclamações formuladas. Em julgamento realizado em
28.06.2007 (REsp 579.941), o STJ afirma: “Se ao término do prazo de garantia
contratado o veículo se achava retido pela oficina mecânica para conserto, impõe-se
reconhecer o comprovado período que o automóvel passou nas dependências da oficina
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Vícios dos produtos e as três garantias do consumidor:
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mecânica autorizada, sem solução para o defeito, como de suspensão do curso do prazo
de garantia. Prorroga-se, nessa circunstância, o prazo de garantia inicialmente ofertado,
até a efetiva devolução do veículo ao consumidor, sendo este momento fixado como dies
a quo do prazo decadencial para se reclamar vícios aparentes em produtos duráveis”.
Em outras palavras, além de suspender a contagem do prazo de garantia contratual
(enquanto o veículo estivesse na oficina), indicou que o prazo decadencial de 90 dias
inicia sua contagem após o término da garantia contratual. Em acórdão proferido em
abril de 2009, o STJ reafirma que o início da contagem do prazo de decadência deve se
dar ao final do prazo de garantia contratual: “A garantia legal é obrigatória, dela não
podendo se esquivar o fornecedor. Paralelamente a ela, porém, pode o fornecedor
oferecer uma garantia contratual, alargando o prazo ou o alcance da garantia legal. A lei
não fixa expressamente um prazo de garantia legal. O que há é prazo para reclamar
contra o descumprimento dessa garantia, o qual, em se tratando de vício de adequação,
está previsto no art. 26 do CDC, sendo de 90 (noventa) ou 30 (trinta) dias, conforme
seja produto ou serviço durável ou não. Diferentemente do que ocorre com a garantia
legal contra vícios de adequação, cujos prazos de reclamação estão contidos no art. 26
do CDC, a lei não estabelece prazo de reclamação para a garantia contratual. Nessas
condições, uma interpretação teleológica e sistemática do CDC permite integrar
analogicamente a regra relativa à garantia contratual, estendendo-lhe os prazos de
reclamação atinentes à garantia legal, ou seja, a partir do término da garantia
contratual, o consumidor terá 30 (bens não duráveis) ou 90 (bens duráveis) dias para
reclamar por vícios de adequação surgidos no decorrer do período desta garantia” (REsp
967.623/RJ, j. 16.04.2009, rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 29.06.2009). Na mesma linha,
registre-se: “(…) 2. O prazo de decadência para a reclamação de vícios do produto (art.
26 do CDC) não corre durante o período de garantia contratual, em cujo curso o veículo
foi, desde o primeiro mês da compra, reiteradamente apresentado à concessionária com
defeitos. Precedentes” (REsp 547.794/PR, j. 15.02.2011, rel. Min. Maria Isabel Gallotti,
DJe 22.02.2011).
20 Sustenta Claudia Lima Marques que, com a edição do CDC, a interpretação mais
favorável ao consumidor é no sentido de que, “se há garantia contratual (express
warranty) e esta foi estipulada para vigorar a partir da data do contrato (termo de
garantia), as garantias começam a correr juntas, pois a garantia legal nasce
necessariamente com o contrato de consumo, com a entrega do produto, sua colocação
no mercado de consumo. Ao consumidor é que cabe escolher de qual delas fará uso.
Pode usar a garantia contratual, porque lhe é mais vantajosa, no sentido de não ter de
arguir que o vício já existia à época do fornecimento. Mas pode usar a garantia legal,
porque, por exemplo, o vício se localiza no motor do produto (geladeira), que não está
incluído na garantia contratual, ou porque o consumidor se interessa em redibir o
contrato e adquirir outro produto de marca diferente”. Ao final, a autora conclui que a
jurisprudência sedimentada sob a vigência do CC/1916 (no sentido da soma dos prazos
legal e contratual) restou superada com a edição do CDC: “Era uma interpretação
pró-consumidor, baseada na falta de legislação específica, que procurava adaptar
normas superadas à realidade moderna. As novas normas do CDC são, porém,
imperativas, não havendo possibilidade do consumidor ou do fornecedor dispor sobre
elas; os limites temporais são outros” (Contratos no Código de Defesa do Consumidor
cit., p. 1196).
21 O Código Civil de 2002 inovou em relação ao CC/1916 ao dispor, no art. 446, que o
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Vícios dos produtos e as três garantias do consumidor:
um cenário de desinformação
prazo de garantia legal não corre enquanto estiver valendo a garantia contratual. Assim,
nas relações regidas pelo Código Civil, concedido, por exemplo, prazo de garantia
contratual para bem móvel por um ano, o prazo decadencial de 30 dias (art. 445, caput)
bem como o prazo de 180 dias para surgimento do vício oculto (art. 445, § 1.º)
começam a correr após o termo final da garantia contratual. A redação do art. 446 é a
seguinte: “Não correrão os prazos do artigo antecedente na constância de cláusula de
garantia; mas o adquirente deve denunciar o defeito ao alienante nos 30 (trinta) dias
seguintes ao seu descobrimento, sob pena de decadência”. O artigo antecedente é
justamente o que trata do prazo decadencial de 30 dias e do prazo máximo de 180 dias
para aparecimento do vício oculto.
22 Pesquisa rápida da Internet mostra que as marcas Hyundai e JAC têm oferecido
garantias de fábrica de seis anos. A mesma pesquisa indica que as garantias têm sido
objeto de reclamações por falta de clareza do fornecedor em relação aos deveres do
consumidor.
24 As condições podem ser abusivas e, portanto, inválidas. Tem forte conteúdo abusivo,
por exemplo, estabelecer que a troca do aparelho de som do carro acarreta a perda da
garantia contratual de fábrica. As exigências e condições para exercícios dos direitos da
garantia contratual de fábrica devem ser razoáveis e possuir algum sentido lógico.
Ademais, muitas restrições, conforme o caso, podem caracterizar ofensa aos termos da
oferta e publicidade (art. 30), já que as vantagens e prazo da garantia contratual são
sempre ressaltadas pelo fornecedor.
29 “Art. 6.º São direitos básicos do consumidor: (…) III – a informação adequada e clara
sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade,
características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os
riscos que apresentem; (…) Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços
devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua
portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço,
garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos
que apresentam à saúde e segurança dos consumidores.”
31 “Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca
em: I – trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos não duráveis;
II – noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos duráveis. § 1.º
Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto ou do
término da execução dos serviços. (…) § 3.º Tratando-se de vício oculto, o prazo
decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito” – grifou-se.
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