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Traduçao:Luís A.

De Boni
GUlLHERMRDE OCKHAM
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO
GRANDE DO SUL

Chanceler: Dom Altamiro Rossato


Reitor: Ir. Norberto Francisco Rauch
Conselho Editorial:
Antoninho Muza Naime
Antonio Mário Pascual Bianchi
Délcia Enricone
Jayme Paviani
Jorge Alberto Franzoni
Luiz Antônio de Assis Brasil e Silva
Regina Zilbennan
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Urbano Zilles (presidente)
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Fone/Fax: (051)339-1511 r: 3323
ALESSANDRO GHISALBERTI

GUILHERME
DE OCKHAM
TRADUÇAO: LursA. DE BONI

COLEÇÃO:
FILOSOFIA - 56

EDIPUCRS

PORTO ALEGRE
1997
© Vita e Pensiero, 1972 - 4'' ed. 1992
Direitos da edição portuguesa: Eclipucrs
Título do original italiano: Guglielmo di Ockham

FICHA CATALOGRÁ}'ICA

016G Ghisalberti, Alessandro


Guilherme de Ockham / Alessandro Ghi-
salberti; trad. Luis A. De Boni. - Porto A-
legre : EDIPUCRS, 1997
314p - (Coleção Filosofia; 56)

1. Filosofia medieval 2. Ockham, Guilher-


me-Crítica e mterpretação I. De Boni, Luis
Alberto II. Título. III. Série.

CDD 189

Capa: José Fernando de Fagundes de Azevedo


Digitação: Denise Maria de Oliveira Tonietto
Diagramação: Kátia Ribeiro da Rocha
Revisão: Luis Alberto De Boni
Impressão: Evangraf - Fone (051 )336-2466
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO DA EDIÇÃO ITALIANA ...............................................•... 7


APRESENTAÇÃO DA EDIÇÃO BRASILEIRA ....................................••.....••.. 9
CAPÍTULO - I / A VIDA E A OBRA.............................................................. 15
1. Notícia biográfica ...................................................................................... 15
2. As obras ..................................................................................................... 23
CAPÍTULO - II/ A LÓGICA ......................................................................... 37
1. Características gerais da lógica ................................................................ 37
2. Os termos ................................................................................................... 39
3. A teoria da suposição ................................................................................. 44
4. A verdade ................................................................................................... 48
5. A ciência .................................................................................................... 53
6. A teoria das conseqüências e o ponto de vista formal da lógica
de Ockham ................................................................................................. 58
CAPÍTULO - III/ A GNOSIOLOGIA ............................................................ 67
1. Conhecimento intuitivo e conhecimento abstrativo .................................. 67
2. Origem e natureza dos conceitos universais ............................................. 73
3. O conceito como signo ............................................................................... 79
4. O êxito do anti-realismo ............................................................................ 84
CAPÍTULO - IV/ A METAFÍSICA ............................................................... 97
1. O objeto primeiro do intelecto .................................................................. 97
2. A univocidade .......................................................................................... 105
3. O ente ....................................................................................................... 114
4. Ser, essência, existência ........................................................................... 119
5. A relação .................................................................................................. 124
CAPÍTULO - V/ A TEOLOGIA RACIONAL ............................................... 131
1. Fé e razão ................................................................................................. 132
2. A cognoscibilidade humana de Deus ....................................................... 137
3. A demonstração da existência de Deus ................................................... 141
4. O Deus dos filósofos não é o Deus dos cristãos ........................................ 151
CAPÍTULO - VI/ A FILOSOFIA DA NATUREZA ..................................... 161
1. A quantidade ........................................................................................... 161
2. O movimento e o espaço .......................................................................... 166
3. O tempo ................................................................................................... 173
4. O instante ................................................................................................ 182
5. A duração eviterna .................................................................................. 187
6. A eternidade do mundo ........................................................................... 191
7. A natureza e a unidade do universo ........................................................ 196
8. O infinito .................................................................................................. 202
CAPÍTULO - Vil/ A PSICOLOGIA ............................................................ 211
1. A natureza do homem .............................................................................. 211
2. Impossibilidade de demonstrar a espiritualidade e a imortalidade
da alma ..................................................................................................... 215
3. Intelecto e vontade ................................................................................... 222
4. O processo cognitivo ................................................................................ 226
5. Intelecto possível e intelecto agente. Significado histórico da
psicologia ockhamista .............................................................................. 232
CAPÍTULO - VIII/ A ÉTICA ...................................................................... 237
1. A liberdade .............................................................................................. 237
2. O problema do finalismo ......................................................................... 243
3. A norma objetiva da moralidade ............................................................. 248
4. O ódio a Deus ........................................................................................... 250
5. A norma subjetiva ................................................................................... 254
6. O voluntarismo de Ockham ..................................................................... 260
CAPÍTULO - IX/ O PENSAMENTO POLÍTICO ........................................ 265
1. Os fatos históricos precedentes ............................................................... 265
2. A crítica da tese hierocrática sobre a plenitude do poder ...................... 273
3. Poder e propriedade ................................................................................ 278
4. Origem e legitimidade do poder civil ...................................................... 286
5. As relações entre Estado e Igreja ............................................................ 294
BIBUOGRAFIA BÁSICA SOBRE OCKHAM ............................................. 307
ÍNDICE ONOMÁSTICO .............................................................................. 309
APRESENTAÇÃO DA EDIÇÃO ITALIANA

A literatura sobre a filosofia de Ockham começa a tornar-se res­


peitável. Basta percorrer a bibliografia de Heyneck, publicada em Fran­
ziskanische Studien, 1950 e complementada por Ghisalberti para os anos
1950-1970 1 , para ter-se uma idéia do interesse suscitado pelos estudos
ockhamistas. Mas então, por que esta nova monografia?
O principal objetivo proposto pelo Prof. Ghisalberti é o de reler a
obra filosófica do Venerabilis lnceptor, esforçando-se para não cair em
preconceitos históricos, isto é, com a preocupação de não exaltar a resí­
dua continuidade da tradição escolástica e de não insistir demais na
ruptura especulativa ante os mestres do século XIII.
Aliás, com relação a Ockham, é muito fácil exagerar tanto nos as­
pectos de antecipação da idade moderna, como nos aspectos de abandono
de posições veneráveis. Para atingir seu objetivo, Ghisalberti procura su­
perar as interpretações comumente aceitas e, ao mesmo tempo, evita fa­
zer de Ockham uma vítima de incompreensões enormes.
A este respeito, pode-se observar que, se os progressos sigmficati­
vos, obtidos por estudiosos na área de pesquisa da lógica, principalmente
em filosofia da linguagem, obtiveram grande ressonância, não podemos
contudo esquecer que onde mais se alcançaram progressos nos estudos
ockhamistas foi a nível gnos1ológico. Neste sentido, é valiosa a contn­
buição de Gh1salherti, ao colocar em destaque a posição fundamental de
Ockham, pela qual abandona toda veleidade de tirar proveito da tradici­
onal aliança entre filosofia e teologia. Em verdade, a incidência teológica
sobre o plano da filosofia, em Ockham, opera sempre somente em Vlftude
da ompotência d1v111a e, de modo especial, quando ele insiste em dizer
que não há alguma razão para excluir a plausibilidade das verdades de
fé, e quando observa que os preambula fidei dos escolásticos, embora não
sejam suscetíveis de um demonstração verdadeira e própria, contudo,
nem por isso, podem ser obJeto de demonstração negativa.

1
A b1bhog1afia em questão faz parte da edição tW.hana, p 285-304 Deixa de sei anexada à pre­
sente edição potque p1ec1sana ser atualizada com ;is contnbutções dos ülttmos anos [N T]

7
A consequência mais importante é, sem dúvida, a de haver aban-
donado ou reduzido ao mínimo a teologia especulativa, em favor de uma
teologia positiva bíblica e, sobretudo, de haver deixado velhas teorias
cosmológicas em favor de pesquisas sobre o mundo natural e humano,
conduzidas com método indutivo. Compreende-se assim como Ockham
tenha dado encaminhamento ao estudo científico dos fenômenos naturais
e dos fenômenos sociais. Se é verdade que não se adentrou muitos pelos
estudos da natureza, também é verdade que a ele se devem progressos
inúmeros na análise das estruturas humanas, tanto políticas, como soci-
ais e jurídicas.
Concluindo, sou de parecer que este trabalho de pesquisa histón-
co-filosófica, conduzido com eqmlíbrio de quem não faz pré-
Julgamentos, oferece uma nova visão global do pensamento de Ockham
e, por isso mesmo, será suscetível de desenvolvimentos ulteriores.

Efrem Bettoni

8
APRESENTAÇÃO DA EDIÇÃO BRASILEIRA

Alessandro Ghisalberti, um jovem professor italiano, lançava, em


1972, o livro Guglielmo di Ockham, que na língua original voltaria a ser
impresso outras três vezes. Entre a data da publicação e a da tradução
para o português, a conclusão da edição crítica da obra filosófica e teoló­
gica de Ockham, em 17 volumes (Guillelmi de Ockham. Opera philoso­
phica et theologica. St. Bonaventure, 1967-1988), levou o autor a refon­
tizar as notas. Contudo, o texto de 1972 permaneceu inalterado: a edição
crítica não trouxe consigo novos elementos, que exigissem uma revisão
das posições anteriormente assumidas.
A. Gh1salberti situa-se na confluência de pesquisas que desde as
primeiras décadas do século vmham sendo feitas, e que, aos poucos, por
vezes com pequenas ou mesmo com grandes deformações, permitiram
que se vislumbrasse uma nova imagem de Ockham. Valendo-se, por um
lado, dos trabalhos precedentes e, por outro, partindo para um confronto
direto e contínuo com as obras do Venerabilis lnceptor, analisando
punctualmente os textos e situando-os no contexto dos debates acadêmi­
co-eclesiásticos da primeira metade do século XIV, o autor acabou por
separar-se das leituras anteriores, as quais eram, seguidamente, o fruto
de uma pré-compreensão hermenêutica claramente a favor ou contra
Ockham. Como resultado, surgiu um texto escorreito, no qual a profun­
didade faz-se acompanhar pela clareza, e através do qual as teses ockha­
mistas, por vezes revolucionárias em seu denso conteúdo especulativo e
em suas análises lógico-lmgüísticas, são situadas tanto no interior da
cultura medieval, de onde brotam, como no míc10 dos tempos modernos,
que prenunciam.
O Ockham que emerge da presente obra é um filósofo de primeira
plana, do nível de Tomás de Aquino e Duns Scotus, um homem de intui­
ções geniais, mas também de aporias inesperadas no interior do próprio
sistema. Defrontando-se com uma tradição filosóf1ca já solidamente
constituída, parte para a verificação de seus pressupostos. Esgrimindo,
com rigor e rara habilidade, a célebre navalha, aplicando imperdoável as
leis da lógica, apelando por vezes para a intenção de Aristóteles a fim de
criticar até o própno Aristóteles, o Venerabilis /nceptor não é um demo-

9
lidor do passado, mas alguém que procura medir-lhe a consistência. Rei-
vindicando o pnmado do indivíduo e considerando o cosmos através da
liberdade derivante da soberana potência do criador - a qual exclm todo
vínculo naturalístico e toda hipostização de entidades abstratas - ele está
abrindo novas perspectivas no campo da ontologia, da filosofia da natu-
reza e da política.
A. Ghisalberti mostra também como o "nominalismo" de Ockham
não pode ser entendido como uma teoria sobre a insignificância do uni-
versal, que não é reduzido a um simples flatus voeis, a uma pura vocali-
dade convenc10nal, vazia de qualquer carga semântica. Mais que de no-
minalismo, deve-se falar, no caso, de um conceptualismo realístico, de
um "termimsmo", ou seja, de uma teoria do uso rigoroso dos termos
(mentais, orais e escritos), sustentada por regras precisas de lógica e de
filosofia da linguagem.
Ao longo de toda a monografia, enfim, percebe-se como o pensa-
mento de Ockham se constrói na tensão entre d01s absolutos heterogê-
neos entre si. De um lado, o absoluto divino, criador onipotente de todo
elemento do cosmos, totalidade perfeita acima de todo vir-a-ser, trans-
cendência que não pode ser sondada pelo pensamento do teólogo a não
ser naquilo que ela livremente se dá a conhecer. De outro lado, o indiví-
duo finito, t0talmente singular, colocado por ato da liberdade criadora
divina em meio a múltiplos outros indivíduos sujeitos ao vir-a-ser espa-
ço-temporal. O ente individual tira a força de "colocar-se" exatamente de
sua irrepet1bilidade, de sua singularidade característica, a qual o impede
de ser embrulhado na indistinção que, negando o caráter da individuali-
dade, acabaria por aniquilá-lo. Sem indivíduos, a contingência não pode-
ria destacar-se da não-existência, que lhe compete originariamente en-
quanto contingência.

Porto Alegre, 30 de janeiro de 1997.

Luis Alberto De Boni

10
ABREVIAÇÕES

CAO = Ph. Boehner, Collected Articles on Ockham, St. Bonaven-


ture, New York 1958.
OPW = Ph. Boehner, Ockham Philosophical Writings, London
1967.
ADHLMA = Archives d'histoire doctrinale et littéraire du Moyen
Âge.
Arch. Franc. Hist. =Archivum Franciscanum Historicum.
Et. Francis. = Études franciscaines.
Franc. St. = Franciscan Studies.
Franz. St. = Franziskanische Studien.
Rev. Hist. Eccl. = Revue d'Histoire Ecclésiastique.
Riv. Crit. St. Fil. = Ri vista critica di Storia della Filosofia.
St. Franc. = Studi Francescam.

l1
ELENCO DAS EDIÇÕES DAS OBRAS DE OCKHAM
ÀS QUAIS SE REFEREM AS CITAÇÕES

l. Opera philosophica. Vol. l (St. Bonaventure, N. Y. 1974),


compreende: Summa logicae. Vol. II (St. Bonaventure, N. Y. 1978),
compreende: Expositiones in libros artis logicae prooemium et Expositw
in librum Porphyrii de praedicamentts; Expositio in librum praedica-
mentorum Aristotelis; Expositio m librum perihermeneias Aristotelis;
Tractatus de praedestinatione et de praescientia Dei respectu futurorum
contingentium. Vol. III (St. Bonaventure, N. Y. 1979), compreende: Ex-
positio super libros elenchorum. Vol. IV (St. Bonaventure, N. Y. 1985),
compreende: Expositio in libros physicorum Aristotelis (prologus et libri
/-Ili). Vol. V (St. Bonaventure, N. Y. 1985), compreende: Expositio in
libros physicorum Aristotelis (libri IV-Vl/1). Vol. VI (St. Bonaventure, N.
Y. 1984), compreende: Brevis summa libri physicorum; Summula phi/o-
sophiae naturalis et Quaestiones in libros physicorum Aristotelis. Vol.
VII (St. Bonaventure, N. Y. 1988), compreende: Dubia et spuria
(Tractatus minor et Elementarium logicae; Tractatus de praedicamentis;
Quaestio de relatione; Centiloquium; Tractatus de principiis theologi-
ae).
2. Opera theologica. Vol. I (St. Bonaventure, N. Y. 1967), com-
preende: Scriptum in librum primum Sententiarum - Ordinatio (prologus
et dist. ]). Vol. II (St. Bonaventure, N. Y. 1970), compreende: Scriptum
in librum primum Sententiarum - Ordinatio (dist. Il-1/1).Vol. III (St. Bo-
naventure, N. Y. 1977), compreende: Scriptum in librum primum Sen-
tentiarum - Ordinatio (dist. IV-XVI/I). Vol. IV (St. Bonaventure, N. Y.
1979), compreende: Scriptum in librum primum Sententiarum - Ordina-
tio (dist. X/X-XLVIII). Vol. V (St. Bonaventure, N. Y. 1981), compreen-
de: Quaestiones in librum secundum Sententiarum - Reportatio. Vol. VI
(St. Bonaventure, N. Y. 1982), compreende: Quaestiones in librum ter-
tium Sententiarum - Reportatio. Vol. VII (St. Bonaventure, N. Y. 1984),
compreende: Quaestiones in librum quartum Sentenflarum - Reportatio.
Vol. VIII (St. Bonaventure, N. Y. 1984), compreende: Quaestiones vari-
ae. Vol. IX (St. Bonaventure, N. Y. 1980), compreende: Quodlibeta

13
septem. Vol. X (St. Bonaventure, N. Y. 1985), compreende: Tractatus de
quantitate; Tractatus de corpore Christi
3. Tractatus de successivis, ed. Boehner, St. Bonaventure, N. Y
1944.
2
4. Opera política. Vol. I (Manchester 1974 ), compreende: Octo
quaestiones de potestate papae; An princeps pro suo soccursu; Consul-
tatio de causa matrimomali; Opus nonaginta dierum (c. 1-6). Vol. II
(Manchester 1963), compreende: Opus nonaginta dierum (c. 7-124).
Vol. III (Manchester 1956), compreende: Epistula ad fratres minores;
Tractatus contra Benedictum.
5. Dialogus; De dogmatibus papae Johannis XXII; Compendium
errorum, ed. Goldast, Frankfurt 1614.
6. Allegationes religiosorum virorum, ed. Eubel, Roma 1898.
7. Breviloquium de potestate papae, ed. Baudry, Paris 1937.
8. De lmperatorum et Pontificum potestate, ed. Brampton, Oxford
1927; cap. 27: ed. Mulder, «Arch. Franc. Hist.», 17 (1924), 72-97.

N.B. - Scholz, in Unbekannte ktrchenpolitische Streitschriften,


Roma 1914, publica trechos das Allegationes de potestate imperiali.

14
I

A VIDA E A OBRA

1. Notícia biográfica

Guilherme de Ockham 2 nasceu muito provavelmente no pe-


queno vilarejo de Ockham, condado de Surrey, a vinte milhas de
Londres. A primeira data certa que temos dele é o dia 26de feverei-.
ro de 1306: o nome de Ockham aparece em um documento que
contém o elenco dos frades menores que foram ordenados subdiáco-
nos na igreja de St. Mary em Southward, na diocese de Winchester.
Segundo as leis canônicas daqueles tempos, para tomar-se subdiá-
cono o indivíduo devia contar com pelo menos 22 anos. E como os
estudiosos excluem a hipótese de que se trate de um homônimo, po-
demos fixar a data de nascimento de Ockham por volta de 12803 •
Em 1306 Ockham ainda não se encontrava em Oxford, pois
esta cidade pertencia à jurisdição da diocese de Lincoln e, como vi-
mos, ele foi ordenado subdiácono na diocese de Winchester. Por
isso, podemos tomar o ano de 1307 como início dos estudos de
Ockham no convento franciscano de Oxford. Segundo os regula-
mentos então em vigor, deveria ele cumprir 8 anos de estudos filosó-
ficos e teológicos, antes de ser admitido a comentar as Sentenças.

2 Entle os muitos modos de esc1evcr o nome do 'Venerab1hs Inceptor' (Occam, Ockham,


Ockam, Oham, Hokan. ecc) escolhemos a fo11naO, !..ham,por ser aquela que p1evalece a nível
mtemacmnal
' São desta op1mão L Bauchy, G111/laumed'OC'cam Sa l'le, ,es oeuvres, .•e.,·tdée.• ,\lJUale.1et
po/1t1ques, Paus 1950, p 260, C K Brampton, The Pwbable Date of Ockham'.• «Lea11ra
Se11te11tla111111»,
«Arch Franc H1st », .'i5 (1962)

15
Seu nome aparece no elenco dos frade menores que, em 19 de
junho de 1318, foram apresentados ao bispo de Lincoln para rece-
ber autorização de ouvir confissões. É fundada, pois, a hipótese de
que em junho de 1318 Ockham tenha concluído os estudos, incluin-
do os dois anos de comentários às Sentenças, e que tivesse intenção
de permanecer em Oxford: em caso contrário, não haveria motivo
para solicitar autorização para confessar na diocese de Lincoln.
Não se sabe quem foram seus mestres nos estudos. A opinião
devida a muitos historiadores, segundo a qual Ockham teria estuda-
do no Merton College, sendo discípulo de Duns Scotus, não possui
fundamento algum.
Através das poucas referências biográficas, que se encontram
em uma ou outra de suas obras, sabemos que, na juventude, dedi-
cou-se com empenho ao estudo da lógica, e que por ela se apaixo-
nou, convencido como estava de que a falta de uma sólida formação
lógica sempre expõe ao perigo de levar a um emaranhado de difi-
culdades insuperáveis4 • Outra referência encontra-se na primeira
parte do Dialogus: Ockham diz aí que realizou seus estudos em
uma época em que estava ainda viva nos ambientes intelectuais da
Inglaterra a emoção provocada pelas condenações de Estêvão Tem-
pier e Roberto de Kilwarbdi. Enquanto alguns afirmavam que estas
condenações ainda tinham valor, outros observavam que se tratava
de condenações feitas por bispos e que, portanto, não continuavam
em vigor após a morte deles5 .
Tomando-se baccalaureus formatus em I 3 I 8, Ockham per-
maneceu na universidade de Oxford durante os anos que se segui-
ram.
A alcunha tradicional de Ockham como Venerabilis lnceptor
faz supor que ele não tenha chegado a Magister actu regens. Isto se
explica se levarmos em consideração o fato de que em 1324
Ockham abandonou a carreira universitária para dirigir-se a Avi-
nhão, para onde fora chamado pelo papa: a legislação acadêmica

4 Baud1y, Gwllaume d'Olll/111 , p 22


'G Ockham, Dwlol{us. I, hb II, cap 24, ed Goldast, Monl/rchw Roml/111 lmpem,
Sl111c11 vol
II, Ftankfurt 1614, pp 431-432

16
não lhe permitiu tornar-se mestre em teologia antes de 1324. Por
isso, permaneceu sempre como lnceptor, isto é, como alguém
pronto a iniciar suas atividades como professor ou mestre. Bramp-
ton observa o fato de que no Compendium errorum Ockham desi-
gna a si mesmo como mestre em teologia. Além disso, para confir-
mar que Ockham não se atribuía títulos que não possuía, constata-
se que, em um documento de abril de 1328, contendo o apelo lança-
do por Miguel de Cesena ao papa João XXII, Ockham é designado
como magister in sacra pagina, título que a cúria papal Jamais teria
aceito, se não lhe fosse devido.
Acrescente-se amda que existem 7 Quodlibeta provenientes
de Ockham: ora, sabemos que a disceptatio quodlibetalis era reser-
vada aos mestres. Brampton afirma que estes Quodlibeta não repre-
sentam tão somente exercícios literários, mas constituem a ressiste-
matização lógica de questões realmente debatidas.
A melhor hipótese seria então a de supor que Ockham residiu
em uma escola da custódia da ordem franciscana por um certo perí-
odo de tempo, entre 1320 e 1324: em tal caso, podemos compreen-
der a provemência dos Quodlibeta e a reivmd1cação do título desa-
crae theologiae professor.
Em defesa desta hipótese, Brampton refere-se a dois dados: a
importância que a custódia de Cambridge teve na organização dos
estudos umversitários desde 1250 até 1325; e os dois incipit da Ex-
positio super physicam, que atestam que, entre a redação destes
dois incipü, Ockham deve ter lecionado em dms lugares diversos: se
Oxford é um destes lugares, deveria haver então amda um outro 6.
Pode-se, porém, pensar em outras razões, que explicam o fato
de que Ockham, embora tendo todos os título exigidos, contudo Ja-
mais chegou a uma cátedra de teologia. Pode ter acontecido que foi
impedido a tanto pelo chanceler Lutterell, o mesmo que, em 1324, o
denunciou ante o papa João XXII, com fautor de doutrinas perigo-
sas. De fato, sabemos que João Lutterell, zelantíssimo defensor do

'' C K Btampton, G111/lau111e ,l'Ockharn, fut-1/ 11ut1/1eel! tlzéolol{re?. «Et Franc1sc », 13


(1963). 53-59 A respeno desta lupótese de Brampton são levantadas 1ese1vas p01 J M1ethke,
OLklwrns Wel{ ;111 Sozra/ph1/o.1oph1e, Bethn 1969, pp 33-34

17
tomismo, comportou-se como um acérnmo adversáno de Ockham,
quando foi deposto do cargo de chanceler da universidade de
Oxford.
A deposição de Lutterell deu-se por decisão do bispo de Lm-
coln, Hennque Burwasch, a pedido dos própnos professores da uni-
versidade. Mas Lutterell não se deu por vencido: de uma carta envi-
ada pelo rei Eduardo II a Lutterell, sabemos que este, após sua de-
posição do posto, havia dec1d1doapelar ao papa e que, com esta fi-
nalidade, havia solicitado ao rei autonzação para dmgir-se a Avi-
nhão. A resposta negativa do monarca, temeroso de que a divulga-
ção destas querelas manchasse o bom nome de todos, docentes e
alunos do reino, não desarmou a Lutterell, que tornou a insistir
Junto ao rei.
A autonzação foi-lhe concedida em carta datada de 20 de
agosto de 1323 e tmha validade de dois anos 7 •
O ex-chanceler dingm-se a Avinhão não apenas para fazer
valer suas razões, mas também para acusar Ockham de difusor de
doutrinas heréticas. De fato, conhecemos os documentos que Lutte-
rell apresentou ao papa para demonstrar que Ockham ensinava
doutrinas perigosas 8, e que provocaram a convocação deste a Avi-
nhão, aonde chegou provavelmente no início de 1324. O papa no-
meou uma comtssão de teólogos para examinar as doutrinas conti-
das no Comentário ockhamista às Sentenças.
A comissão estava formada por seis membros qualificados:
João Lutterell; Raimundo Bequmi, domimcano, patriarca de Jeru-
salém; Durando de São Porciano, domimcano, bispo de Meaux;
Dommgos Grima, domimcano, bispo eleito de Pamiers; Gregório,
agostiniano, bispo de Belluno-Feltre; João Paynhota, agostiniano,
mestre de teologia 9 •

7 Baudry, G111/laume d'O( w111 , pp 86-95


8 F Hoffmann, D,e Schuften eles 01fo1der Kwden L11tte1el/, Le1pz1g 1959, Dte
J11/w1111e1
e1ste Kuttk des Oikhw1111mus d111ih den 01fo1de1 Kanzle1 Johannes Lutte1ell, Bleslau
1941
9C K Biampton, Pe1.1mwltt1e1 at the Pl(Jce.11 Ai:am\f Oll.lwm at Av1i:11011,1324-1326,
«Franc St », 26 ( l 966), 4-25

18
Uma dupla missão lhes foi confiada: em primeiro lugar, deve-
riam verificar se os 51 artigos doutrinais, contidos na lista prepara-
da por Lutterell, encontravam-se realmente nos escritos de Ockham;
em segundo lugar, devenam formular um parecer sobre as doutrinas
ockhamistas.
Não possuímos documentos para saber como se desenvolve-
ram os trabalhos da comissão. Sabemos, porém, que ela apresentou
suas conclusões após 3 anos: um espaço de tempo tão amplo expli-
ca-se pelo fato de que as doutrinas ockhamistas contestadas possuí-
am muitos pontos de contato com aquelas de Durando de São Por-
ciano, um dos membros da comissão, e com aquelas de Pedro Auré-
ola, que havia sido nomeado bispo de Aix pelo própno João XXII.
Apresentou ao pontífice um primeiro relatório que, porém, não foi
julgado suficientemente severo 10•
A seguir a comissão elaborou um segundo documento, no
qual sete artigos extraídos dos escritos ockhamistas foram explici-
tamente reconhecidos como heréticos; 37 foram declarados falsos;
quatro foram tidos como ridículos ou temerários, ou pelo menos
ambíguos; três não foram censurados 11.
Ockham teve a chance de defender-se ante a comissão e ante
o própno pontífice, durante um consistóno. Qual foi o sucesso?
Em carta enviada por João XXII ao rei da Boêmia, em 1330,
aquele informa o monarca que muitos artigos extraídos das obras de
Ockham, e examinados por uma comissão especial de teólogos, fo-
ram julgados heréticos, e o papa deixava entrever sua intenção de
condenar o frade, mas parece que a condenação Jamais foi pronun-
ciada12. Talvez contribuiu para tanto o precipitar-se dos aconteci-
mentos. Durante sua permanência em Avinhão, Ockham, que residia

ICl Cfr J Koch, Neue Akte/1\tuLke Zll dem gegen Wrlhe/111Ockham 111Av1g11on gefuh,ten Pro-
zess, «Reche1ches de Théologte anc1enne et méd1évale», 7 (1935), 353-380, 8 (1936), 79-93,
168-197 Koch pubhca aqm as notas da pnme1ra I elação da comissão pontifícia
11 Cfr A Pelze1, le.1 51 wt1de,1 de Gtullaume Ouam len.,uré.v e11Av1g11011, en 1326, «Rev
H1st Eccl », 18 (1922), 24-270 Pelzer publica aqm o segundo 1elató110 Ambos os 1elató11os
consistem em 51 mt1gos, tomados do Come11târw às Sentença.,· de Ockham Contudo, é d1fícd
encontlm, com precisão, nos artigos os passos co11espondentes das obtas de Ockham, pmque as
citações encontram-se mmto fma de contexto
12 Cfr Baudry, G111/lau111e
d'Olwm , p 100

19
no convento dos frades menores, livre para mover-se e para encon-
trar-se com quem quisesse (somente lhe era proibido afastar-se da
cidade), f01 colocado ao par da gravíssima questão a respeito da po-
breza, questão essa que colocava em campos opostos a ordem fran-
ciscana e o papa.
O geral da ordem, Miguel de Cesena, chegado a Avinhão em
°
1 de dezembro de 1327, em obediência a um convite explícito do
papa, e pressentindo a tempestade que estava prestes a abater-se so-
bre a ordem, procurou cercar-se de homens dispostos a abraçar sua
causa e a sustentar as razões favoráveis não só a sua concepção a
respeito da pobreza evangélica, mas também à causa de Luís da
Baviera, que se proclamara imperador e agia como tal, embora não
tivesse obtido a investidura do papa. Ockham, decepc10nado pelo
espetáculo oferecido pela corte pontifícia e influenciado pelo procu-
rador da ordem, Bonagrazia de Bergamo, colocou-se logo à disposi-
ção de seu geral e por solicitação deste examinou as constituições
pontifícias Ad conditorem canonum (8 de dezembro de 1322), Cum
inter nonnullos ( 12 de novembro de 1323), Quia quorundam men-
tes (10 de novembro de 1324), nas quais o pontífice contestava,
ponto por ponto, as idéias de Miguel de Cesena e da parte da ordem
que o seguia, a respeito da pobreza.
Guilherme constatou, como haverá de exprimir-se mais tarde,
em carta ao capítulo geral de Assis 11, que nas constituições havia
quamplura hereticalia, erronea, stulta, ridiculosa, fantastica, in-
sania et dif.famatoria fidei orthodoxe, boms moribus, rationi natu-
rali, experientie certe et caritati frateme contraria pariter et ad-
versa patenter 14• A partir daquele momento enfileirou-se decidida-
mente ao lado de Miguel de Cesena, pronto a condividir com ele a
sorte. De fato quando, em 26 de maio de 1328, o geral da ordem
com um grupo de outros frades decidrn fug1r de A vinhão, onde não
se sentia seguro, para dirigir-se à Itália e colocar-se sob a proteção
de Luís da Baviera, Ockham não hesitou em segui-lo.

11 L Baudry, la lelf1 e de G111/la11111e


d'Ocwm au Clwp111e d'A w1e (1334), «Revue d'h1stoue
franc1scmne», 3 (1926), [185-215], p 202
14 Ib1, 202

20
A fuga significa uma guinada não só na vida, mas também na
atividade literária de Ockham: a partir daquele momento, abando-
nando o ensino e as tranqüilas meditações filosófico-teológicas, ha-
verá de empregar todos os recursos mtelectuais na composição de
obras de polêmica eclesiológica e política. Os fugitivos chegaram a
Pisa no dia 9 de junho, sendo acolhidos pelos funcionários do impe-
rador e pelo povo em festa, e de imediato iniciaram a luta contra o
papa.
Reconduzido ao cargo de geral da ordem no capítulo entre-
mentes celebrado em Bolonha, Miguel de Cesena redigiu uma série
de cartas aos frades e à universidade de Paris, nas quais reassumia
seu ponto de vista nos confrontos com o papa, expondo-o ampla-
mente e com muita erudição em um documento conhecido como
"apelo de A vinhão".
O documento continha um elenco de heresias tiradas das
constituições apostólicas Ad conditorem canonum, Cum inter non-
nullos, Quia quorundam mentes. A seguir tratava da origem da
propriedade, da comunidade dos bens e de suas diversas formas, da
pobreza e das relações desta com a perfeição cristã, da separação
entre uso de fato e propriedade, da falibilidade do papa e das conse-
qüências que derivam do fato de o pontífice cair em heresia.
O encontro entre o grupo de franciscanos rebeldes e Luís da
Baviera aconteceu em Pisa, onde o imperador chegou no dia 21 de
setembro de 1328, após ser obrigado pelo povo a abandonar Roma.
Miguel de Cesena induziu-o a publicar uma nova constitui-
ção, intitulada Cunctos populos, na qual declarava a deposição de
João XXII, não mais por haver lesado os direitos imperais, como
constava na constituição Gloriosus Deus, inspirada por Marsílio de
Pádua, mas porque havia deposto a si mesmo ao cair em heresia.
Tornados conselheiros de Luís da Baviera, sustentados pelo
favor de reis e príncipes, seguidos por grande parte da ordem, os re-
beldes sentiram-se fortes. Mas logo encontraram-se em dificuldades.
Obrigados a defender-se de sérias acusações de incoerências, rene-
gados pelo capítulo geral reunido em Pans em 11 de junho de 1329,
que elegeu o novo geral, Guiral Ot, compatriota e amigo de João
XXII, sentlfam-se coagidos a redigir um novo documento, intitulado

21
Allegationes virorum religiosorum, vibrante protesto contra a legi-
timidade da eleição pans1ense e retomada da discussão a respeito
dos limites da autoridade pontifícia, quebrando assim todas as pon-
tes com a igreja oficial e ligando-se defimtivamente à sorte do impe-
rador. Quando este, em 1330, foi constrangido a deixar a Itália e a
retornar para a Alemanha, eles o seguiram, estabelecendo-se no
convento franciscano de Mumque, baluarte do partido imperial.
Foi deste último reduto que Ockham, por cerca de 20 anos,
conduziu uma luta implacável contra os papas João XXII, Bento
XII e Clemente VI, agitando as consciências com seus tratados e li-
belos, até o fim da vida.
A respeito de seus últimos dias, pergunta-se se ele, antes de
morrer, se reconciliou com a ordem franciscana e com a Igreja. Es-
tudiosos respeitáveis como Baudry e Boehner 15 afirmam que
Ockham solicitou a reconciliação com a Igreja: não há contudo do-
cumentos históricos que atestem tal acontecimento, e por isso parece
que se deve excluir que a reconciliação se tenha realizado. Bramp-
ton nega mesmo a autenticidade dos documentos sobre os quais os
estudiosos mencionados se fundamentam para falar de um encami-
nhamento de práticas que deveriam levar à reconciliação de Ockham
com a Igreja: ele julga que tais documentos são falsos ou, pelo me-
nos, fruto de interpolações tardias 16•
Também as notícias históncas da data e do local da morte
são pelo menos confusas. Em 1802, quando os franciscanos foram
expulsos de seu convento de Munique e o convento fm destruído, o
diretor da polícia, de nome Baumgartner, redigiu um pró-memória,
no qual diz o segumte a respeito de Ockham: "Este célebre homem
morreu em 9 de abril de 1347 e foi sepultado à frente do altar-mor,
onde também uma lápide quadrangular indicava o local da sepultu-
ra. Ao ser destruída a igreJa, ordenei que se fizesse escavação nesse
lugar e encontrei ainda uns poucos restos de ossos, que colocados

"Baudry, Gu1/laume d'O«,l/111 , p 247, Ph Boehne1, OPW, p XV


1° C K Brampton, Trad,110111Relat111!iro the Death of W11/wnz of OLkham, «Arch Franc

H1st », 53 ( 1960), 442-449

22
em uma caixa provida da necessária indicação, foram confiados à
Academia de Ciências" 17•
Do fato de que na igreja do convento de Munique existisse
realmente um túmulo e não uma simples lápide, encontramos con-
firmação da morte de Ockham em Munique. A data da lápide con-
tudo não é aceita como verdadeira por muitos estudiosos, que ten-
dem a fixar a morte entre 1349 e 1350: Ockham teria morrido víti-
ma da peste negra que, naqueles anos, abateu tanta gente na Alema-
nha 18; foi sepultado na Igreja do convento, ante o altar, ao lado de
Miguel de Cesena e Bonagrazia de Bergamo.

2. As obras

Convencionou-se dividir os escritos de Ockham em duas séri-


es: a primeira compreende as obras filosóficas e teológicas, com-
postas prevalentemente no primeiro período de sua vida, com intui-
tos didáticos e não polêmicos. À segunda pertencem todos os escri-
tos polêmicos, saídos de sua pena a partir de 1328, produzidos em
defesa de teses que foi levado a assumir pelas circunstâncias da luta
contra a autoridade e o poder do pontífice.
Também nós nos ateremos a esta divisão do patrimônio
ockhamista em duas séries, tendo porém presente que dois escritos
de lógica (o Compendium logicae e o Elementarium logicae), atri-
buídos a Ockham, teriam sidos compostos durante a permanência
em Munique; o que significa dizer que naquela cidade bávara

17 A Baumgmten, M1111lh11e1 Po/1zey Ube1S1lht 1805, Stuck XII, Stadtarch1vb1bl, Munchen,


citado por R Hohn, W1/he/111 Olklwm m Mu11che11,«F1m1z St », 32 (1950), 153
'"Esta é a tese de Hohn, que se interroga, como pü<jete1 surgido a data de 1347, como ano da
morte de Ockham Quando, pm volta de 1380, esc1eve Hohn, ultimou-se a reconstrução da
lgreJa franciscana desttuída pm um 111cênd10. e fizetam-,e as lápides sepulcrais para Guilherme,
Miguel e Bonagtaz1a, não se consegum estabelecer com fac1hdade o ano da morte de cada um,
enquanto foi fácil fixar o dia da morte. à base dos anllgos necrológms Pata Miguel de Cesena o
ano era conhecido, mas não para Bonagrazia e pata Ockham escolheu-se então uma data ap10-
x1mada e as 1elações de fmtuna de ambos com Luís da Baviera propunham uma data v1z111haa
1347, ano da morte do 1mpe1ad01 Cfr lb1, 151-152 A 1celaboração h1stónco-c1íttca de Hohn
foi colocada em dtscução po1 Brampton, no artigo citado, e sucessivamente por J M1ethke, Zu
W,lhe/111Ockhani, Tod, «A1ch Franc H1st ». 61 (1968), 79-98

23
Ockham teria reservado um pouco de seu tempo para retomada de
estudos que o haviam apaixonado na juventude.

A) Obras filosóficas e teológicas

Ao compilar o elenco das obras não polênucas de Ockham,


seguiremos a ordem cronológica, tal como foi fixada pelos críticos.
Quanto à questão se Ockham iniciou a sua atividade de escritor com
o Comentário às Sentenças, como quer Boehner 19, ou com a Expo-
sitio aurea, como quer Baudry2°, preferimos ater-nos ao parecer de
Baudry. Parece que as justificações apresentadas por este último
são suficientemente equilibradas e deixam todo o espaço para o
prosseguimento de pesquisa a esse respeito 21.

I. Quaestio super Bibliam - Trata-se de uma obra perdida.


Sua existência é atestada por uma nota marginal ao Comentário às
Sentenças de Walter Chatton: "Okam, vide in questione super Bi-
bliam"22.

2. Expositio in librum Porphyrii de praedicamentis, in li-


brum praedicamentorum Aristotelis, in librum perihermeneias
Aristotelis, super libras elenchorum - Ocupam parte dos volumes II
e III da edição St. Bonaventure das obras filosóficas (1978-1979).
As primeiras três destas Expositiones foram editadas em Bolonha,
em 1496, por Marcos de Benevento, sob o título comum de Exposi-
tio aurea super artem veterem.

19 Cfi Ph Boehner. T/ze Re!aflve Date of Olkham', Commentary on the Sentenle<, «Franc
St », 11 (1951), 305-316, repubhcado em CAO, pp 96-LI0
2°Cfr Baudry, Gwl/aume d'Ocwm , pp 262-270
21A discussão contmua aberta VeJa-se por exemplo o artigo de C K Brampton, The Probable

Orde, of Olkahm's Non-Polenuw/ Wo,h, «Trad1t10», 19 (1963), 469-483 Uma apresenta-


ção do conjunto da ordem c10nológ1ca das obras não polênncas de Ockham, segundo Boehner,
'é fornecida po1 V Heynck, D,e wzpole11usche11Slhnften Olkhwns Abfassungzetl, Elhthell,
handsc/znft!tche Beze11gwzg une/ Ausgaben na, /z Ph Boehner O F M, «Franz St », 32
(1950), 156-163
22 Cfr Baudry, G111//aumed'Ollam , p 273

24
Acerca da tradição manuscrita da Expositio aurea recorde-se
a polêmica entre Ph. Boehner e A. Maier, quanto à interpretação do
ms. Borghese 151, que contém uma redação mais breve da Exposi-
tio aurea. Annelise Maier afirma que nesse manuscrito se deve ver
um primeiro esboço da obra, feito pelo próprio Ockham 23;Boehner,
pelo contrário, é de parecer que o manuscrito em questão representa
uma sucessiva redução dos escritos precedentes 24 . A favor da tese
de Maier pronunciou-se V. Richter 25 .

3. Expositio in libros physicorum Aristotelis - Está contida


nos volumes IV e V da edição St. Bonaventure das obras filosóficas
(1985).

4. Sl!,mmulaphilosophiae natura/is - Está contida no volume


VI da edição St. Bonaventure das obras filosóficas (1984). A res-
peito do programa da obra que Ockham tinha em mente, este texto
representa somente uma pequena parte. De fato assim se exprime o
Venerabilis Inceptor no início da obra: "Iuxta praedictam distincti-
onem accipiendae sunt partes istius tractatus: Prima pars erit de
condicionibus communibus et magis notis omnium naturalium (só
essa parte foi realmente escrita, e mesmo ela incompleta); secunda
erit de corporibus coelestibus et eorum proprietatibus; tertia erit
de corporibus inanimatis et eorum passionibus; quarta docebit de
corpore animato anima rationali et actibus eius; quinta erit de
cetéris animalibus et eorum proprietatibus; sexta erit de plantis".
Da obra existem três edições antigas: Bolonha 1495; Veneza
1506; Roma 163726.

2~Cfr A. Mater, E11111eues Otkham Ma1111.w 11pt (D1e Ong111alfo1m der E"Kpos1twawea 1),
«Gregonanum», 28 (1947), 1O1-133, ld, 211 e1111ge11 P1obleme11 der Otkhamfor.w hung,
«Arch Franc. H1st», 46 (1953), 161-194, ld, Ha11dsch11ftl1ches,u Wilhelm Otkhllm 11nd
Walter Burley, «Arch Franc Hist.», 48 ( 1955), 225-251
24 Cfr Ph Boehner, The Hypothet1wl F,rst Red11c1to11 11/ Otkham's E"Kp,wtw Awea, «Fianc
St », 14 (1954), 374-386 Reproduzido m CAO. pp 50-65
25 V R1chte1,Zu Otkhllm's Hand.11.h11ft Vai Bo1ghese 6fi, «Gregonanum», 46 (1965), 766-
816
26 Brampton expressou muitas rese1vas a respeito da autenticidade desta obia A seu modo de

entle as obras autênti-


ver, três argumentos obstaculizam sobretudo a colocação das S1111111111/lle
cas de Ockham A dúvida quanto a pertence1em a obra os últimos tlês capítulos, a d1fic1Icolo-

25
5. Scriptum in librum primum Sententiarum - Ordinatio -
Ocupa os volumes I, II, ill e N da edição St. Bonaventure das
obras teológicas (1967-1970-1977-1979). Trata-se do Comentário
ao primeiro livro das Sentenças, composto pessoalmente por
Ockham e destinado à publicação (daí o nome de Ordinatio).
Possuímos duas edições antigas: Estrasburgo 1483; Lião
1495.

6. Quaestiones in librum secundum, tertium et quartum


Sententiarum - Reportatio - Ocupam os volumes V, VI e VII da
edição St. Bonaventure das obras teológicas (1981-1982-1984).
Com o nome Reportatio indicam-se os comentários ao segundo, ter-
ceiro e quarto livro das Sentenças. Tais comentários são muito mais
breves que aqueles ao primeiro livro, e são apo~tamentos tomados
por algum aluno durante as aulas de Ockham.
Edição antiga: Lião 1495.
A obra foi composta antes de 1323, e antes da redação defi-
nitiva da Ordinatio, o que podemos estabelecer em base a critérios
internos. De fato, Ockham mostra aceitar acríticamente a teoria do
conceito universal como fictum, pela qual o universal tem somente
um esse objectivum, na alma, enquanto na Ordinatio nós encontra-
mos sempre, ao lado da teoria do universal como fictum, a exposi-
ção de uma segunda teoria, julgada igualmente provável, que é
aquela do universal como qualitas mentis e ipsamet intellectio. 27

cação das S1111111111/aena cronologia dos esc11tos ockhanustas, o anstotehsmo conl!dos nas
Summulae contradiz, ao menos em um passo, a exposição do pensamento anstotéhco conl!do
em outras ob1as de Ockham Cfr C K Biampton, Ocklwm alld Jus Authorsh1p of the
«Summulae 111 /,bl{),\ Phv,Hw1um», «Is1s»,55 (1964), 416-426 Uma confutação punctual das
teses de Brampton foi feita p01 M1ethke, que pelo contráno 1etém as Summulae como uma
obra autêntica de Ockham J Mrethke, Ockham'.1 «Summulae '" l,bro,1· Phy,Hcorum» e/l!e
111chtauthellt1sche Sch11ft', «Arch Franc H1st », 60 (1967), 55-78
27 Cfr Boehner, The Relahve Date , m CAO, pp 102-104 Boehner, com base neste mesmo
argumento, é de op1mão que a Repo1 tatw foi a pnme1ra obia de Ockham em senl!do absoluto,
e resolve neste sentido todas as dificuldades apresentadas pelos outros crítJcos, como Baud1y
Cfr /b1,pp 105-110

26
7. Summa logicae - Está contida no volume I da edição St.
Bonaventure das obras filosóficas (1974). A obra é dividida em três
partes, que tratam respectivamente dos conceitos, dos juízos e das
proposições.
Dela existem numerosas edições antigas: Paris 1488; Bolonha
1498; Veneza 1508, 1522, 1591; Oxford 1675.
A obra foi escrita entre 1324 e 1327, certamente depois do
Comentário às Sentenças e depois de 1324, visto que Francisco de
Meyronnes, que se tornou Mestre em 1324, é chamado de 'Magister
Abstractionum 28 '.

8. Quodlibeta septem - Estão contidos no volume IX da edi-


ção St. Bonaventure das obras teológicas (1980). Trata-se talvez de
Reportationes, porque as questões chegaram até nós incompletas e
em resumo. Contudo, é obra importantíssima para estabelecer o
pensamento exato de Ockham a respeito de muitas questões teológi-
cas e filosóficas.
Possuímos diversas edições antigas: Paris 1487 e 1488; Lião
148 8; Estrasburgo 1491.
Os Quodlibeta foram escritos provavelmente antes de 1324 e
são seguramente posteriores ao Comentário às Sentenças.

9. Tractatus de quantitate; Tractatus de corpore Christi -


Estão contidos no volume X da edição St. Bonaventure das obras
teológicas (1985). São dois tratados distintos, separados pelo prólo-
go ao segundo, mas unindo-se um ao outro pela identidade de idéias,
a ponto de serem conhecidos como obra única, sob o título De sa-
cramento altaris. Ockham expões aqui sua interpretação do milagre
eucarístico.
Possuímos muitas edições antigas: Paris 1490; Estrasburgo
1491; Veneza 1504 e 1516.
A data de composição é fixada pelos críticos por volta de
] 325: a obra teria sido escrita em Avinhão, onde Ockham teria po-
dido t9mar conhecimento das atitudes de seus inquisidores e, por

2M Cfr Jb,d, PP l 09-11 O

27
isso, teria retornado seu ponto de vista a respeito da transubstancia-
ção em termos menos vulneráveis29 •

1O. Quaestiones in libras physicorum Aristotelis - Ocupa


parte do volume VI da edição St. Bonaventure das obras filosóficas
(1984). Compreende 151 questões sobre a Física de Aristóteles.
Trata-se geralmente de questões breves que se sucedem segundo a
ordem lógica da Expositio in libras physicorum Aristotelis.
A respeito da data de composição, a obra é seguramente
posterior aos Quodlibeta, que são seguidamente citados30 •

11. Tractatus de praedestinatione et de praescientia Dei


respectu futurorum contingentium - Ocupa parte do volume II da
edição St. Bonaventure das obras filosóficas (1978). É urna obra te-
ológica que estuda o problema se Deus conhece os fatos ou os
eventos que dependem da ação de um agente livre.
Marcos de Benevento a editou em Bolonha, em 1496, junta-
mente com a Expositio aurea.
Acerca da data de composição, faltam pontos seguros de re-
ferência. Provavelmente foi composta depois do Comentário às
Sentenças.

B) Obras duvidosas

1. Quaestio de relatione - Está contida no volume VII da


edição St. Bonaventure das obras filosóficas (1988). Doncoeur,
Hochstetter e Baudry consideram-na corno obra autêntica de
Ockham; Boehner a tem como de autenticidade duvidosa. Na apre-
sentação da edição crítica, Mohan prefere não tornar urna posição
definitiva. Julga que se pode pensar em um compilador diferente de

29Cfr C K Brampton, G111/lt111me d'Oikht1111et la date 111obablede ses opusrnlev sur /'E11-
chartst1e, «Et Fianc1s », 14 (1964), 77-88, H Junghans, Oikham 1111 Lnhte der 11eue1e11
Forschung, Berhn-Hamburg 1968, pp 82-85
'°Cfr F Corvmo, le «Q11ae.111011e.1·111l1b10.1
phyv1w111m» nella formazume dei pe11s1erodt
Gugl1elmo d'Ouam, «R1v C11t St FII », 12 (1957).385-411

28
Ockham, mas que faz uso do pensamento e da linguagem ockha-
mista.

2. Tractatus minar - Está contido no volume VII da edição


St. Bonaventure das obras filosóficas ( 1988). Trata-se de uma apre-
sentação muito sucinta da lógica, seguindo a impostação geral da
bem mais conhecida Summa logicae. Boehner foi o primeiro a
constatar que se trata dê duas obras distintas 31 .
A obra foi composta entre 1330 e 1345, durante a estadia em
Munique 32 .

3. Elementarium logicae - Está contido no volume VII da


edição St. Bonaventure das obras filosóficas (1988). Trata-se de
outra obra sistemática sobre lógica mais breve que a Summa logi-
cae, porém mais extensa que o Compendium logicae, e escrita com
estilo muito mais pessoal.
A data de composição é fixada entre 1345 e 1348.

4. Tractatus de principiis theologiae - Está contido no volu-


me VII da edição St. Bonaventure das obras filosóficas (1988).

5. Centiloquium theologicum - Nos dois manuscritos conser-


vados, a obra é apresentada como um tratado anônimo, enquanto na
edição de Lião, de 1495, é reproduzida após o Comentário às Sen-
tenças. A edição crítica foi preparada por Boehner in "Franciscan
Studies", 1 (1941), n. 1, 65-72; n. 2, 35-54; n. 3, 62-70; 2 (1942),
49-60, 146-157, 251-301 33

6. Tractatus de successivis - Editado por Boehner, sob o tí-


tulo: The Tractatus de successivis attributed to William Ockham,
St. Bonaventure (1944). Baudry e Boehner consideram esta obra

" Ph Boehne1, Three Sums of Log1c Attnbuted to W1/lw111Ockha111, m CAO, pp 70-96


"Baudry, Gwllaume d'Occam , p 287 Obse1ve-se que a sigla C/1111060 não se refere ao
número do manuscnto, e sim ao núme10 que este ocupa no catálogo de manuscritos da bibliote-
ca O número p1ópno do manuscnto é C/1114379
"Para mfo1maçõcs ultenmes, cf1 Junghans, Ockha1111111L1chte , pp 67-74

29
como autêntica, no sentido de que cada palavra nela contida foi es-
crita por Ockham: de fato percebe-se que o tratado é fruto de uma
compilação, feita por um anônimo, de trechos inteiros, e segundo
um critério sistemático da Expositio super libras physicorum.

7. De puncto, de negatione - Baudry coloca entre as obras


duvidosas este escrito contido no manuscrito Basiléia F II, 2434 .

8. De indivisilibus - Baudry coloca entre as obras autênticas


de Ockham uma obra conhecida sob este título e atribuída ao mestre
inglês por Leland e Wadding. Boehner, pelo contrário, a considera
uma obra de autenticidade duvidosa, podendo ser talvez identificada
. . parte d o D e sacramento a l tans-
com a pnme1ra . "-.
Desta obra não possuímos nem manuscritos, nem edições.

9. De quantitate in se - Baudry aceita como obra autêntica de


Ockham o escrito contido no ms. '276, foi. 104, da biblioteca de
Munique 36 , enquanto Boehner37 e Giacon 38 afirmam que o conteúdo
do manuscrito em questão é extraído da Summa logicae, reprodu-
zindo, precisamente, os capítulos 44 e 45 da primeira parte.

10. Quaestiones disputatae - Sob este título Boehner coloca


algumas questões atribuídas a Ockham e que não pertencem segu-
ramente às obras conhecidas até hoJe39 . Entre estas Quaestiones de
atribuição incerta, coloca-se uma questão, Propositio an sit conce-
denda: essentia divina est quaternitas, contida no ms. Basiléia, A,
VII, 13, que Baudry coloca entre as obras autênticas de Ockham
sem dar maiores explicações 40.

14 Baudry, Gwl/aume d'Ocwm , p 287


15 Cfi Baudry, Gutllaume d'Ouam , pp 49 e 274, Bochner, The 1elat1ve date , p 107
16 Baudry, Gwl/a11111ed'Ocwm , p 285
17 Boehner, The Re!at,ve Date , pp 97-98
18 C G1acon, Una «Nota mag1,1111 f1a1111·
Oua111de q11a11t1tate» nel Cod Lat 276 delta B,-
blwteca d1 Stato eh M,maco d, Bav1e1a, tn La filo,\{Jfw dei/a 11atuli1nel Medw Evo, M1lano
1966,pp 625-633
19 çch11ng,tn CAO, p 12
Ph Boehnet, De, Stand de, O, k/w111-Fo1
40 Baudry, Gwl/aume d'Ocwm , p 285

30
C) Obras polêmico-políticas

1. Allegationes religiosorum virorum - Documento compila-


do em 1329, em colaboração com Francisco de Ascoli, Henrique de
Talheim e Bonagrazia de Bergamo. Editado por Baluze-Mansi in
"Miscellanea", 3, Luca, 1762, 315 l-323b, e por Eubel in
"Bullarium Franciscanum", 5, Roma, 1898, 388-396.

2. Opus nonaginta dierum - A obra possui este título porque


escrita por Ockham entre 1333 e 1334 em 90 dias. É a primeira
obra polêmica contra João XXII e trata do problema da pobreza
franciscana.
Edições antigas: Lovaina, 1481; Lião, 1495. Edição impres-
sa: Melquior Goldast, Monarchia Sancti Romani Imperii, Frankfurt
1614, vol. II, p. 993-1236. A edição crítica foi providenciada por R.
F. Bennett - J. G. Sikes, in Guillelmi de Ockham Opera politica: os
primeiros seis capítulos da obra constituem o volume I, Manchester
1940, pp. 293-374; o restante do texto (cap. 6-124) foi publicado
no volume II, por R. F. Bennett - H. S. Offler, Manchester 1963.

3. Dialogus, prima pars - A obra deveria compreender três


partes, mas possuímos integralmente só a primeira, enquanto a se-
gunda parte até hoje não foi encontrada; da terceira parte, dividida
em nove tratados, conhecemos somente os dois pnmeiros, o segundo
dos quais de maneira incompleta.
A primeira parte do Dialogus foi composta entre o verão de
1333 e a primavera de 1334. Está dividida em sete livros e Ockham
discute nela os seguintes problemas: a) a quem compete julgar da
ortodoxia ou não de uma doutrina, ao canonista ou ao teólogo?; b) o
que é uma heresia? e em base a qual princípio, à Escritura, a uma
definição papal, a uma decisão conciliar, ou à fé da IgreJa universal
se decide da ortodoxia ou não de uma proposição?; c) quando um
homem se torna herético?; d) quando existe obstinação no erro?; e)
quem pode cair em heresia na Igreja?; f) a quem compete julgar um

31
papa que caiu em heresia?; g) de que penas são passíveis os hereges
e seus segmdores?
Possuímos a obra em edições antigas, de Paris (1476) e de
Lião (1494) e de Goldast, Monarchia Sancti Romani lmperii, II,
pp. 398-739.

4. Epistola ad fratres minores in capitulo apud Assisium


congregatos - Nesta obra, escrita em fins de março ou nos primei-
ros dias de abril de 1334, Ockham retoma a polêmica com João
XXII a respeito da pobreza.
Há três edições críticas: a cargo de Baudry, La lettre de Gui-
llaume d'Occam au chapitre d'Assise, "Revue d'histoire francis-
caine" 3 (1926), 201-215; de Brampton, Gulielmi de Ockham
Epistola ad Fratres Minores, Oxford 1929, e de R. F. Bennett -
H.S. Offler, in Guillelmi de Ockham Opera politica, III, Manches-
ter 1956, pp. 6-17.

5. De dogmatibus papae Johannis XXII - Obra polêmica


contra o pontífice, escrita em 1334, por ocasião da convocação de
um concílio por parte de Luís da Baviera, a fim de julgar o pontífi-
ce, que era tido como deposto devido às suas tomadas de posição
heréticas.
Edições da obra: Paris 1476, Lião 1495 e em Goldast, Mo-
narchia Sancti Romani /mperii, II, 740-770. Goldast publica o es-
crito como segunda parte do Dialogus, mantendo-se fiel a uma anti-
ga tradição, sucessivamente desmentida.

6. Tractatus contra Johannem XXII - Ockham contesta aqui ?,


a validade da profissão de fé feita por João XXII ante os cardeais,
na véspera da morte, ocorrida em 4 de dezembro de 1334.
A obra foi composta nos primeiros meses de 1335 e foi edita-
da por H. S. Offler: Guillelmi de Ockham Opera politica, III, pp.
29-156.

32
7. Tractatus contra Benedictum XII - Ockham ataca Bento
XII e o acusa de continuar a ensinar quase todas as doutrinas de seu
predecessor.
A obra foi composta entre agosto de 1337 e maio de 1338. A
edição crítica foi providenciada por H. S. Offler: Guillelmi de
Ockham Opera política, III, p. 157-322.

8. Compendium errorum papae Johannis XXII - Nesta obra


Ockham defende suas posições de rebelde, fazendo mais uma vez o
inventário das heresias de João XXII.
O libelo foi produzido em 1338. Possuímos edições antigas:
Paris 1476, Lovaina 1481, Lião 1495, e em Goldast, Monarchia
Sancti Romani Imperii, II, pp. 957-976.

9. Allegationes de potestate papae - A tradição manuscrita


desta obra é um pouco confusa. Baudry tem como certo que o es-
crito provém do grupo de pessoas que se constituiu em torno de Mi-
guel de Cesena e que, por isso, também Ockham dele tenha partici-
pado. É fundada, se não certa, a opinião que atribui a Ockham a re-
dação final do documento, que foi composto entre 5 de agosto e 5 de
setembro de 1338. A obra é inédita; Scholz realizou uma ampla
análise do manuscrito da Biblioteca Vaticana e publicou alguns ex-
tratos41.

10. An princeps - Nesta obra, Ockham dá uma resposta am-


plamente fundamentada á pergunta: o rei da Inglaterra, Eduardo III,
para fazer frente às despesas de guerra, está autorizado a pedir sub-
sídios ao clero e a impor taxas sobre as propriedades eclesiásticas
do reino? Ockham responde afirmativamente e justifica sua opinião
voltando-se aos princípios: os bens eclesiásticos não são de origem
divina, mas são concedidos à Igreja pelos reis e os príncipes.
A data de composição da obra situa-se entre 26 de agosto de
1337 e o outono de 1340. A edição crítica foi realizada por H. S.

41R Scholz. Unbekannte k11chenpoht1sche Streitslhl 1/tel! aus der Ze1t Ludw1gs de, Bayem,
vol 11,Roma 1914,pp 417-431

33
Offler e R. H. Snape, Guillellmi de Ockham Opera politica, I,
Manchester 1940, pp. 230-271.

11. Dialogus, pars tertia - A terceira parte do Dialogus


compreende dois tratados: o primeiro, dividido em quatro livros,
discute "de potestate papae et cleri"; o segundo trata "de potestate
et juribus romani imperii".
Esta parte foi composta entre 1339 e 1341. Edições: Paris
1476; Lião 1494; e in Goldast, Monarchia Sancti Romani lmperii,
II, p. 771-957.
Scholz, in Unbekannte Kirchenpolitische Streitschriften aus
der Zeit Ludwigs des Bayern, II, pp. 392-395, publica a parte final,
que falta na edição de Goldast.

12. Breviloquium de potestate Papae - A obra, incompleta,


queria ser uma exposição sucinta mas completa das concepções
ockhamistas a respeito do poder espiritual e temporal do papa.
Foi composta entre 1341 e 1342. Duas edições críticas: L.
Baudry, Guillelmi de Occam Breviloquium de potestate Papae.
Edition critique. Paris 1937; R. Scholz, Wilhelm von Ockham ais
politischer Denker und sein Breviloquium de principatu tyrannico,
Leipzig 1944.

13. Octo quaestiones - As questões tratam da distinção entre


o poder espiritual e o poder civil, e de outros problemas políticos.
A data de composição deve colocar-se por volta de 1342.
Além das edições de L1ão 1496 e de Goldast, Monarchia Sancti
Romani Imperii, II, pp. 314-391, existe aquela a cargo de J. G.
Sikes, Guillelmi de Ockham Opera politica, I, pp. 13-221.

14. Tractatus de jurisdictione imperatoris in causis matri-


monialibus - Nesta obra Ockham sustenta que compete ao papa,
normalmente, a declaração de nulidade de um matrimônio. No caso
de Luís da Baviera, porém, como o imperador não podia esperar um
exame equânime por parte do pontífice, poderia o próprio imperador
decidir sobre a nulidade de um matrimônio.

, 34
A obra foi composta entre o final de 134 l e l O de fevereiro
de 1342. Edições: M. Frescher, lmperatoris Ludovici quarti. ..
Sententia dispensationis, Heidelberg 1598, pp. 33-44; Goldast,
Monarchia Sancti Romani lmperii, I, pp. 21-24. Edição crítica por
H. S. Offler, Guillelmi de Ockham Opera politica, I pp. 278-286.

15. De lmperatorum et Pontificum potestate - A obra com-


preende duas partes: na primeira Ockham volta-se contra a ingerên-
cia da Igreja de A vinhão no domínio temporal e na administração do
império; na segunda, apresenta um elenco de erros contidos nas
constituições de João XXII sobre a pobreza e na bula Redemptor
noster de Bento XII.
Data de composição: verão de 1347. Temos duas edições re-
centes: R. Scholz, Unbekannte kirchenpolitische Streitschriften aus
der Zeit Ludwigs des Bayern, II, pp. 453-480; C. K. Brampton, De
lmperatorum et Pontificum Potestate of William of Ockham,
Oxford 1927. Mulder observa que Scholz fez a edição crítica so-
mente do conteúdo do manuscrito de Londres (Brit. Mus. Royal 10
A xv). Depois de haver confrontado este manuscrito com aquele de
Deventer (Deventer Atheneum Bibl., inc. 10, XI, XV s.) Mulder
publicou o capítulo XXVII da obra, ausente nas duas edições críti-
cas: W. Mulder, Guillelmi Ockham Tractatus de lmperatorum et
Pontificum potestate, in "Archivum Franciscanum Historicum", 16
(1923, 469-492; 17 (1924), 72-97.

16. De electione Caro li quarti - Desta obra não existe ne-


nhum manuscrito: são conhecidas as partes reproduzidas nos pri-
meiros cinco capítulos do Tractatus contra Wilhelmum Ockham de
Conrado de Megenberg, composto em 1354. A autenticidade do es-
crito não é de todo segura, embora haja bons argumentos para se
supor que o texto tenha saído da pena de Ockham nos primeiros me-
ses de 1348. Com isso, o franciscano rebelde procurava dissuadir os
sustentadores do partido bávaro de praticaram o ato de submissão
ao pontífice Clemente VI e ao imperador Carlos da Morávia; os
convidava a não subscreverem a fórmula de conciliação proposta
pela Santa Sé em 29 de novembro de 1347, dois meses depois da

35
trágica morte de Luís da Baviera, atmg1do de aploplexia durante
uma caçada de ursos, em 11 de outubro de 1347. Como se depreen-
de de tópicos transcritos por Conrado de Megenberg, o autor do es-
crito professa as mesmas idéias que Ockham, usa a mesma termi-
nologia e está animado pela mesma hostilidade e pelos mesmos ran-
cores com relação ao papa João XXII.
Edições do Tractatus de Conrado: C. Müller, Traktat gegen
Unterwe,fungsfonnel Clemens VI, G1essen 1888; R. Scholz,
Unbekannte Kirchenpolitische Streitschriften aus der Zeit Ludwigs
des Bayern, II, pp. 347-363.
Como foi observado, há dúvidas quanto à autenticidade desta
obra, muitas delas levantadas exatamente por Brampton, que em um
artigo recusa a atribuição da obra a Ockham42 .

42C K Brnmpton, Ocklwm mui lm Alleged Aurlwrslup of rlze T,au «Quw .lllepe 1un.1»,
«Arch Franc H1st », 53 ( 1960), 30-38

36
II

A LÓGICA

Os estudiosos contemporâneos concordam em atribuir a


Ockham a qualificação tradicional de grande mestre nos estudos ló-
gicos, na medida em que não se limitou a afirmar a importância da
ciência lógica, mas aprofundou e desenvolveu a lógica aristotélica,
abrindo novas perspectivas, que foram depois retomadas pela mo-
derna lógica formal.
O patrimônio lógico ockhamista compreende a Expositio au-
rea, a Expositio super duos libros elenchorum, a Summa logicae, o
Compendium logicae e o Elementarium logicae.
Examinamos a seguir as teses fundamentais contidas nestas
obras, remetendo aos estudos monográficos específicos43 para uma
análise sistemática de seus conteúdos.

1. Características gerais da lógica

Ockham não oferece uma definição punctual da lógica, mas


traça-lhe amplamente os caracteres e sublinha-lhe a necessidade.

41Cfr E A Moody, The Lt,g,, of W1//111111


of O,kham, London 1935, E Hochstetter, St11d1en
zur Metaphys1k und Erkennt111sleh1eWilhel11L1
vm1 Ockham, Berhn 1937, Ph Boehner, CAO,
pp 137-267, J Salamucha, D1eAu.m1ge11log1kbe, W1lhel111Ockham, «Franz St », 32 (1950),
97-134, N Abbagnano. G11g/,el1110
d, O,kham, Lanciano 1931, Ph Boehne1, Medieval ltJglL,
Manchester 1952, E A Moody, Tmth and Co11.1equence,n Medieval Lt,g,c, Amsterdam
1953

37
A lógica é uma ciência resultante de um conjunto de hábitos
mentais e que, por isso, possm uma unidade de composição 44. Não é "
uma ciência real, que tem por obJeto seres dotados de uma existên-
cia extra-mental; ela é antes uma ciência racional, tendo por objeto ~
somente os entes de razão, como os termos, as proposições e os si-
logismos. Sem dúvida, também os termos, as proposições e os silo-
gismos são fatos reais, mas o lógico não os considera enquanto re-
ais, e sim do ponto de vista de seu significado, enquanto têm um
valor simbólico, enquanto indicam alguma coisa 45•
O termo é o constitutivo mais elementar da lógica, a qual es-
tuda-lhe a natureza e o valor, e dita as leis sobre cujo fundamento os
termos devem ser organizados em um sistema veritativo. Embora
tratando-se de operações da mente, a lógica não é uma ciência espe-
culativa, e sim uma ciência prática de tipo ostensivo, isto é, uma ci-
ência que indica como é que uma c01sa pode ser feita, uma vez que
se decidiu que ela será feita 46.
É múltipla a utilidade da lógica: ajuda a distinguir a verdade
do erro, ensina a construir argumentos rigorosos, desmarcara os er-
ros de forma, permite distinguir o sentido metafórico do sentido lite-
ral47_
Não é ofício da lógica avaliar especificamente as argumenta-
ções, coisa que compete aos cultivadores das ciências singulares; a
lógica trata das regras das conseqüências e, portanto, é um instru-
mento universal, sem o qual nmguém está em condições de elevar-se

41 «Log1ca non est unus hab1tus numero, nec unum md1v1duum s1cut Sortes et Plato, vel 1ste
asmus vel 1ste bos vel 1sta albedo vel 1sta mg1edo, sed est una collecuo multorum»
(Expos1tw111ç111/1bros wfl.1 loK1we prooenuum, Opera Ph,lo,\'IJph,w 11,pp 3-4)
45 «Log1ca est de mtenuombus supponenllbus pro mtenuombus Est tamen sc1endum quod lo-
gtca non negatur esse sc1enua 1eahs, quas1 non s11ve1ares - nam 1ta vera res est log1ca s1cut sei- •
enua naturahs - sed 1deo negatm esse sc1en!la reahs, qma 11011 est de mtentmmbus supponent1-
bus pro rebus» (ProloK11,1111Etp11s1t11me1111upe1 VIII /1b10.1phys1wru111,Opera Plulo.\'1Jph1w
IV, p 12)
46 «D1ce11dumest, quod s1cut d1c1t A v 1 e e n n a m punc1p10 suae Metaphys1cae, quod
d1stmct10 est mte1 piacucas et speculat1vas sc1enuas, qma sc1entme pracucae sunt de openbus
11ostns, sc1e11tmeautem speculauvae no11sunt de openbus 11ostns Ex quo patet quod logtca
pracuca est d1cenda, qum cum sc1entm log1cae uactet de syllog1sm1s, propos1t1ombus et hums-
mod1 quae non ms1 a 11ob1sfien possunt, seqmtu1 quod est de opeubus nostns» (Exp,mtwnis m
l,bros art,,ç l11K1u1e
pro11em1u111,
Opera P/11/11\()phua11,p 7)
47 Cfr lb,d, Ope1a Ph1/o.wp/11wII, pp 6-7

38
ao saber 48 . Ockham divida a lógica em três partes: os termos, a
proposição, e o raciocínio. Trata-se de uma divisão que não se
funda na natureza da própria lógica, e sim na repartição feita pelos
escritos que compõem o Organon aristotélico.

2. Os termos

Em sentido amplo, entende-se por termo aquele elemento que


entra na constituição de uma proposição sob a forma de sujeito, de
predicado ou de verbo. Segundo esta acepção, até mesmo uma pro-
posição inteira pode ser chamada de um termo. Num sentido mais
restrito, por termos entendem-se aqueles elementos da proposição
que não são por sua vez proposição: são termos o sujeito, o predi-
cado, os verbos, as preposições, os advérbios etc. Em uma terceira
acepção, aquela mais rigorosa, entende-se por termo tudo aquilo que
pode ser sujeito ou atributo em uma proposição, mesmo quando é
tomado no sentido de uma suposição pessoal 49 ; assim exclui-se que
sejam termos as preposições, os verbos, as conjunções e os vários
sincategoremáticos. Quando tais elementos fungem como sujeito ou
predicado de uma proposição, nunca são tomados significativa-
mente, isto é, segundo a sua suposição pessoal, e sim em uma supo-
sição simples ou suposição material. Esta última delimitação é im-
portante porque faz compreender a função essencial, a razão de ser
própria do termo, que é aquela de ser um sinal que torna presente ou
chama à mente os objetos. O termo é, pois, essencialmente signifi-
cativo; por exemplo, os nomes instituídos para indicar as coisas co-
nhecidas no dia-a-dia são termos: entram no discurso como substi-
tutos das próprias coisas, das quais se fala. Segundo Ockham, são
termos não somente os sinais lingüísticos, orais ou escritos, por sua
natureza convencional, mas são chamados termos também os con-
ceitos ou sinais mentais: à diferença do termo oral, que é resultado
de uma convenção, o conceito, ou termo mental, não deve sua ori-

48 Summa /111;nae,Prol , Opelll Plu/11.111plu«1 1, pp 3-5


49 Ib1d, I, 1 e 2, Opeu1 Ph1/11\0p/11wI, pp 7-1 O

39
gem a uma livre imciativa dos homens, mas é produzido natural-
mente pelo encontro do intelecto com as coisas. Ockham acrescenta
que o termo oral não só é precedido pelo termo mental, ou conceito,
mas que depende deste, no sentido que não pode dar-se signo oral
que não esteja associado a um conceito. Deve-se, porém, ter pre-
sente que tanto a palavra como o conceito significam ambos direta-
mente o objeto; isto é, a palavra não evoca à mente a coisa conheci-
da, evocando antes o conceito correspondente, como se este exerces-
se uma função de intermediário. Contudo permanece claro que o
termo oral sigmfica as c01sas somente na dependência ou em con-
comitância do sinal mental, enquanto este as significa por si, de
modo anterior ao termo oral e independentemente deste. Prova disto
é a constatação de que se o conceito deixasse de existir, também a
palavra o deixaria, e se o conceito tomasse um outro significado,
também o significado da palavra mudaria concomitantemente, en-
quanto, por outro lado, com a mudança dos termos orais nas diver-
sas línguas não se modifica o sigmficado do conceito. Todas as ob-
servaçôes relativas ao termo oral valem também para o termo es-
cnto, que também é resultado de uma instituição convencionai50 .
Palavras e conceitos são, portanto, sinais de coisas; alguns
termos, porém, possuem um significado preciso, definido de uma
vez por todas e são chamados termos categoremáticos. Já os termos
que não significam nada de definido, que não evocam à mente nada
de determinado, são chamados sincategoremáticos51• Ockham apre-

' 0 Os te1mos convencionais, mms ou i:sc11tos,n:io designam pnmanamente os conceitos e, me-


diatamente, através dos conceitos. as cmsas mas sigmficam duetamente as cmsas, mesmo se tal
capacidade se lhes deuva dos conceitos De And1és define 1&tocomo um caso de imedmtez su-
bmdmada (mmedmc1ón submdmada) "O signo lmguístico mbitiáno &igmfica a mesma cmsa
que o smal mental correspondente, de tal modo todavia que não a s1gmficana se não lhe fosse
imposta convenc1onalmente uma polanzação &1gmfica11va na dneção da cmsa em s1 Por sua
vez tal polanzação sigmficatlva à cm~a em 51 não sena nnposta ao signo mbltláuo se o signo
mental coirespondente não a possuísse Já estmtmalmente em M própuo" Deste modo De An-
drés dive1ge da mterpretação dada por Boehnet (Ocklwm'.< Theory of Stgnificatwn, m CAO,
pp 219-221), pma o qual a nnedmtez submdmada dos signos arbitrános se resolve em uma
simb10se de s1gmficação 1epresentat1va e hnguística Pma o estud10so espanhol, pelo contráno,
não é necessáno 1econer à s1gmficação representativa para exphcar a 1medmtez subordmada,
mas torna-se necessáuo subhnhm a sua nnedmtez e&&encmlmentehnguístlca (T De Andrés, E/
11om111a/1.mw de G1111/e11110
de Ockham wmo filo"'fía dei l111i:1w1e,
Madnd 1969, p 146)
' 1 Summa loi:1we. I, 4, Opern P/11/owplurn I, pp 15-16

40
senta estes exemplos de termos sincategoremáticos: todo, nenhum,
algum, tudo, além disso, somente, enquanto. Trata-se de termos que
representam os constitutivos formais de uma proposição, no sentido
que não lhe definem o conteúdo, e sim a estrutura formal. Tomados
em si mesmos, possuem um certo sentido, mas não possuem um si-
gnificado verdadeiro e próprio; adquirem uma função significativa
quando são inseridos em um contexto e são unidos a um categore-
ma. Quanto aos termos categoremáticos, Ockham coloca muitas
distinções, como aquelas entre termos concretos e abstratos, abso-
lutos e conotativos, de primeira e de segunda imposição etc.52 • É ne-
cessário examinar as mais importantes destas distinções, devido ao
auxílio que podem oferecer na compreensão da fundamentação da
lógica ockhamista e de seu vocabulário. Em primeiro lugar, a dis-
tinção entre termos absolutos e conotativos. Diz-se absoluto um
termo que significa pelo mesmo título e do mesmo modo tudo aquilo
que significa; isto é, exprime seu objeto diretamente, sem significar
ao mesmo tempo, direta ou indiretamente, qualquer outra coisa.
Diz-se conotativo o termo que significa uma coisa primeira e dire-
tamente, mas significa uma outra indiretamente. O termo branco,
por exemplo, é conotativo, a partir do momento em que ele significa
diretamente o objeto que é branco, isto é, o sujeito que possui a
brancura, enquanto indiretamente designa a brancura que é possuída
pelo sujeito. O termo animal, pelo contrário, é exemplo de termo
absoluto; significa, de fato, diretamente o homem, o cão, o asno, o
cavalo etc., tudo na mesma proporção. A importância dos termos
absolutos é evidenciada pelo fato de que eles são o resultado de um
contato direto e imediato do intelecto com as coisas, fruto de um ato
de abstração operada sobre a própria realidade. Já o termo conotati-
vo implica sempre uma combinação de conceitos e tem um signifi-
cado composto. Desta diferença surge uma outra: enquanto o termo
absoluto responde à pergunta: que é esta coisa aqui?, e oferece logo
uma definição real, que exprime a essência da coisa (quid rei), o
termo conotativo responde à pergunta: que coisa é significada com
este termo? e comporta uma definição nominal. A definição real diz

52 /bid, I, 5-9. Ope,a Ph1/o.\/}p/11w1, pp 16-35

41
como são as cmsas, a nominal diz que coisas eu penso a respeito de
uma determinada coisa 53 .
Estas distinções aplicam-se tanto aos conceitos, como aos
termos orais e escritos, devido à natureza convencional deles.
Ockham coloca ainda outras distinções com relação aos termos
convencionais, isto é, a linguagem oral ou escrita. Inicialmente, a
distinção entre termos de primeira e de segunda imposição. Por im-
posição entende-se o ato com o qual vem imposto um nome a um
suJeito ou a um termo. São chamados de segunda imposição os
termos inventados para indicar outros sinais convencionais e as suas
propriedades, mas só quando estes sinais são sinais; isto é, trata-se
de nomes de nomes, resultantes de uma reconsideração dos termos
já impostos ás coisas. Assim, por exemplo, os termos: substantivo,
adjetivo, conjunção, declinação, caso nominativo etc., não sigmfi-
cam coisas, mas indicam a que título e em que parte do discurso
entra uma palavra. É, pois, o caso de todos os termos gramaticais,
concernentes a signos orais ou escritos e, portanto, convencionais.
Ockham chama ao invés de termos de primeira imposição todos
aqueles que não são de segunda imposição, isto é, aqueles que refe-
rem-se a objetos e não a outras palavras ou signos54 . Os termos de
primeira imposição, por sua vez, dividem-se em termos de primeira
e de segunda intenção; por intenção é precisado que Ockham enten-
de o conceito ou termo mental. São ditos de primeira intenção os
termos que são signos naturais de objetos ou de coisas, como ho-
mem, cavalo, árvore, branco etc.; são de segunda intenção, pelo
contrário, aqueles termos que significam conceitos ou intenções da
mente e que, portanto, são signos de signos naturais, como, por
exemplo, os termos universal, gênero, espécie55 . Enquanto são sig-
nos de signos naturais, os termos de segunda intenção distinguem-se
dos termos de segunda imposição, que significam somente signos
convencionais, isto é, aqueles do discurso gramatical.

"Cfr !b,d, 1, 10, Opera Plulosopluw I. pp 35-38


,-1 Cfr lbrd, I, 11, Opera Ph,losop/11w 1, pp 38-41
' 5 Cfr Ibidem Cfr também Boehne1,Olkham',1 Theo,y , m CAO, pp 201-232

42
Depois de haver apresentado as distinções individuadas com
relação aos termos, Ockham sublinha como seja tarefa do cultor da
lógica o dar-se conta dos diversos níveis ou planos que costumeira-
mente são tomados em consideração ao longo do discurso. Tais ní-
veis fundantes são três: no primeiro plano ou nível entram os obje-
tos que são significados, mas não significam; a este nível se sobre-
põe o plano dos signos naturais, isto é, dos termos que significam os
objetos; segue-se um terceiro plano, aquele dos signos de signos,
isto é, dos termos que significam outros termos. Com isto Guilher-
me reassume seu pensamento a respeito: há termos que significam
exclusivamente sinais convencionais e somente quando atuam como
signos; trata-se dos termos de segunda imposição, na acepção res-
trita do termo 56 . Outros termos sigmficam sempre sinais convencio-
nais, não somente quando estão em função de signo, mas também
quando são nomes comuns também para intenções da alma, isto é,
para os conceitos: é o caso dos termos sempre de segunda imposi-
ção, mas no sentido amplo da palavra; por exemplo, os termos: pro-
nome, nome, verbo, tempo, modo, no sentido que os gramáticos
conferem a estes vocábulos. Além disso, há os termos significativos
das coisas que não entram na proposição e os termos que podem in-
dicar simultaneamente tanto coisas que não entram na proposição,
como signos que entram como elementos da proposição ou do dis-
curso; este último é o caso dos termos: cmsa, ente, alguma coisa,
uno. As duas últimas distinções compreendem os termos de primeira
intenção 57 .

"' Assim, pm exemplo, o termo wn1ugaç.üo é um tenno de segunda 1mpos1ção no sentido es-
tnto, pmque não há conjugações no d1scu1somental
" «Ex qu1bus ommbus colhg1 potest quod quaedam nomma s1gmficant praec1se s1gna ad pla-
cttum 111st1tuta,et 11011111s1
dum sunt s1gna, quaedam autem praec1se s1g111ficants1gna tam ad
plac1tum mstJtuta quam s1gna natmaha Quaedam ve10 s1g111ficantpraec1se 1es quae non sunt
s1gna taha, quae sunt paites p10pos1l!onis, quaedam 111d1fferente1
s1gmficant tale, 1es quae non
sunt paltes p1opos1t1m11snec matloms et etiam s1gna talm, cumsmod1 ~uni talm nomma '1es',
'ens', 'ahqmd', 'unum' et humsmod1» (lb1dem, Opero Phdosoph1ca I, p 41)

43
3. A teoria da suposição

Para podermos distinguir o tipo de discurso que estamos fa-


zendo, se gramatical, científico ou lógico, é preciso considerar o
tipo de suposição dos termos que compõem a proposição. A teoria
da suposição era recorrente na lógica medieval, e Pedro Hispano, na
última parte de suas Summulae logicales, havia feito um tratado
sistemático a respeito. Ockham o retoma em suas obras lógicas, fi-
losóficas e teológicas, sem oferecer uma definição punctual. Além
disso, suposição é um termo difícil de defimr; etimologicamente que
dizer: 'estar no lugar de', indica, p01s, que se coloca uma coisa no
lugar de uma outra, referir-se a alguma c01sa58 • A suposição é a

58 «D1c1tur autem suppos1t10 quas1 pro aho pos1t10,Jta quod quando termmus m p10pos1t10ne

stat pro ahquo, suppomt pro dlo Et hoc saltem verum est quando termmus supponens s1gm-
ficat1ve acc1p1tur»(lbul, I, 63, Opera Ph1/o.wph1ca I, p 193) Na lmguagem moderna, o verbo
sup01 e o substantivo supos,~ão assumnam respectivamente o s1gmficado de 'fazei uma hipó-
tese' e 'hipótese' ,Já os esc.olástlcos usavam esta, palavras em sentido diverso, mais p1óx1mo de
seu sentido hteral, para o qual rnp-pono s1gmfica etmolog1cainente colocar uma coISa debaixo
de alguma outra c01sa, substituí-la Quanto à documentação completa sob o argumento, vep-se
Boehner, Medieval Logtc, p 27, D P Hemy, The Ear/y Hwo,y of Suppo.Htwn, «Flanc St »,
23 (1963), 205-212, L M De R1Jk, Log1w modernorum, vol II, pnme1ra parte The Ongm
and Ear/y Development of the Theory of Supprmtwn, Assen 1967 Deste volume veJam-se
sobretudo os capítulos 15-17
A 1espe1toda ongem do termo e do conceito de suposição, De R1Jk, depois de uma longa e do-
cumentada pesqmsa, chega às segumtes conclusões é necessáno d1stmgmr três estágios no de-
senvolvimento h1stónco O pnme1ro estág10 chega até à pnme1ra metade do século XII, e é as-
sim cmactenzado 1) em Pnsciano o teimo suppos1tu111tem um sentido gramatical e está no lu-
gar de 'sujeito gramatical de um verbo', substant,a suppos1ta é o eqmvalente de persona
agens e está no lugar da coISa md1v1dualque pratica uma ação 2) Em Pedro Helyas (cerca de
l 140-1150) ,upprmere eqmvale a 'colocar como suJe1to gramatical de um verbo', .1uppos1tw
eqmvale ao ato de colocar como sujeito g1ainat1cal' 3) Para os medievais em gernl, o sub1ec-
tu111ou ,uppos1tum é tanto o tenno que faz de sujeito em uma proposição, como a maléna que
faz de suJe1to, ou ,eJa, de mgumento de discurso 4) Aqmlo de que se fala (1d de quo sermo fit)
é designado como substantw, no sentido no qual Pnsciano usou esta palavra em sua famosa de-
fimção do n!,>mep1op11u111est ,wnums s1gmfiwre substa11t1a111 et qua/1tatem (/nst Grai11111,
II, 18, p 55 , ed Hertz) Pma a ma101pmte dos gramáticos do século XII .,ub,tant,a ou ex:1s-
tent1a é o eqmvalente de 'c01sa md1v1dual' Qual,tas, ao contráno, eqmvale a 'natureza umver-
sal' ('forma'), part1c1pada em mais c01sas md1v1dums 5) As Quaestume, V1cto11anae (Viena,
VPL 2499, da pnme1ra metade do século XII) usam supponere como eqmvalente de "lilllf1w-
re .mb.1tai1t1a111 O comentáno a Pnsciano de Viena (VPL 2486, sempre da pnme1ra metade do
século XII) diz que a p10pndade de quase todos os nomes é aquela de s1gmficar a .1·11bstantw,
ou seJa, aqmlo de que se fala (ui.de quo ,·ermo habetur), Juntamente com a quahtas, ou. seJa, a

44
propriedade dos termos, quando passam a constituir uma proposi-
ção na qualidade de sujeito ou de predicado, e é distinta do signifi-
cado que os termos possuem natural ou convencionalmente. Nas
proposições: 'o homem corre', 'o homem é uma espécie', o termo
homem mantém sua função significativa, embora estando no lugar
(isto é, supondo) de coisas muito diversas; no primeiro caso, a pala-
vra homem indica indivíduos concretos (Tício, Caio etc.), no segun-
do caso, designa um conceito. Sem dúvida, o significado próprio do
termo homem é o do primeiro caso; contudo, em virtude da suposi-
ção, o termo pode ser usado também de uma maneira que prescinde
de seu significado próprio, mas que não o altera, e passa então a de-
signar qualquer outra coisa (em nosso caso, um conceito).

nattneza umve1sal comum ou própna (de quo gene1e rerum a/rqurd .nt vel de qua materra)
As gloms Prommmus (Oxfo1d, Bodle1an L1brary, Laud Lat 67, da segunda metade do século
XII) declaram que a expressão srgnrficare substantram LUm qualrtate eqmvale plenamente a
s1gmficai supposrta locutwru (= aquilo que está sob a expressão verbal) - O segundo estág10
do desenvolvimento h1stónco da supprrntw, md1v1duado sempre por De R1Jk, 1efere-se à se-
gunda metade do século XII e é caiacte11zado pelos segumtes dados 1) nos tratados de lógica
de Adão de Balsham Pmv1pontanus (Fallauae Pa, vrpontwwe) e em outros esc11tosanômmos
(Tractatuç de u111vocatwne MonaLensrs, Falia( rae mag1.1·t1 r Wrllelmr, Ars Burana, todos edi-
tados por De R1Jk, no volume de apêndice a seus estudos) a discussão volta-se mais para os
nomes apelativos, para a appel/atw, que pai a a supposit10 A supposrtw mantém o s1gmficado
de subrectw ou ato de colocar como suJeilo, ou de ser SUJe1tode um verbo, no mtenor de uma
proposição 2) Na d1stmção de três gêne10s de umvoc1dade que se encontra nas Fallauae Par-
v1pontanae Já se acha, porém, em embnão toda a doutnna sucessiva da supposrtw, tal como
sera tratada em Pedro Hispano e Ockham, por exemplo 3) Com o terceuo dos Tralfatus Ag-
nanrn1 (Mumque, CLM 4652, datado a partu da segunda metade do século XII), mteuamente
dedicado à supposrtro, o estudo não se volta mais p11nc1palmentepara a appellatw, mas para
s1gmficação e suposição Esta mudança é devida ao fato de que todos os usos de um nome em
uma proposição são reconduzidos ao ponto de vista da sub1elfw (supposrtw) Mesmo que am-
da não apareçam os nomes técnicos precisos dos diversos tipos de suposição, encontramos Já
aqm os pnmeuos passos da te1mmologm sucessiva 4) Em todos os tlatados recordados, a cm1-
grurta.1·ou ventas de uma proposição se fundamenta sobre uma suposição ou s1gmficação cor-
reta 5) A teona da suppos,tw se desenvolve em direção a uma teona (parcial) dos tennos e de
uma lógica dos predicados, antes que de uma lógica das classes - O terceiro estágio do desen-
volvimento da doutrma da mppo.,·rtw 1efe1e-seaos anos mais p1óxunos a 1200 Fontes Jutro-
ductumes Pairsrenses (esc11tas entre 1170-1200), Lógica Ut drut (cerca de 1200), Lógica
Cum srt nostra (cerca de 1200), Dwlelfrw Monacensrs (últimas décadas do século XII), todas
editadas por De R1Jk Nesses l!atados a teo11ada p1op11edadedos termos é focaJizada sob a no-
ção de supprwtro, enquanto todas as noções conexas (amplratw, wpulatw, appellatw, res-
trrlfro) são subordmas à suposição Nesses ti atados enconl!am-se semp1e todas as dilmções su-
cessivas, com os nomes técmcos para os d1ve1soslipos de suposição Doravante todos os usos de
um tenno em uma proposição são cobertos por tal teona, o que acontece sob o 1mpuso da técm-
ca da disputa dialética (cfr De R1Jk,Logrw modernorum, pp 527-554)

45
Afastando-se da linha mais comum, representada por Pedro
Hispano 59, Ockham enuclea três tipos fundamentais de suposição:
pessoal, simples e material. Existe uma suposição pessoal quando
um termo conserva na proposição a função significativa que lhe é
própria por natureza ou por convenção. Por exemplo, nas seguintes
proposições: 'o homem corre', 'o homem é um animal', o termo
homem é tomado no sentido da suposição pessoal, porque está no
lugar de indivíduos concretos (Sócrates, Tício, Caio), para designa-
ção dos quais os homens inventaram tal termo. Também na propo-
sição: 'a espécie é um universal', o termo espécie supõe pessoal-
mente, desde o momento em que exerce a função significativa que
lhe é própria, conatural 60 • Na proposição seguinte: 'o homem é uma
espécie', o termo homem designa não mais os homens concretos,
isto é, as coisas que é destinado a significar por convenção, e sim
um conceito; neste caso temos a ver com a suposição simples, que
acontece quando um termo designa ou significa alguma coisa diver-
sa daquilo que, segundo sua primeira imposição, deveria significar,
e está no lugar de um conceito61• O terceiro caso é o da suposição
material, que acontece quando o termo não designa nem uma reali-
dade física, nem um conceito, mas designa somente a si mesmo, em
sua materialidade de som e de figura gráfica. Assim, por exemplo,
nas proposições; 'o homem é um nome', 'homem se escreve com
cinco letras', o termo homem não é valorizado na função significa-
tiva que lhe é própria, e nem sequer está no lugar de um conceito,
mas está, por assim dizer, no lugar de si mesmo62. Entre as outras
distitições colocadas por Ockham no interior da teoria da suposição,
é importante a que se refere á suposição pessoal. De fato, obser-
vando as relações que se estabelecem entre os predicados e os res-
pectivos sujeitos, ou, mais precisamente, entre os predicados e as

'" Petms Htspanus, S11mmulae lowca/es, T1actat11f VI, De suppo.11tiombus, ed Bochensk1,


Tonno 1947, pp 57-64
00 «Suppos1t10 personahs, umversahte1, e&t ilia quando te1mmus suppomt pro suo s1gmficato»

(Summa log,we, I, 64, Opera Ph1/osopl11w I, p 195)


61 «Suppos1tm simplex est quando tennmus suppomt pto mtenllone ammae, sed non tenetur s1-

gmficat1ve» (Ib1de111,Opera Plulosoph,w 1, p 196)


62 «Suppos1t10 mate1iahs est quando te1mmus non suppomt s1gmficallve, sed suppomt pro voce

vel pro scnpto» (Ib,dem, Ope,a P/11/o,l()p/11w1, p 196)

46
realidade individuais significadas pelos sujeitos, Ockham distingue a
suposição pessoal em discreta e comum. Esta última, por sua vez, é
dividida em confusa e determinada. A suposição pessoal é chamada
discreta, quando o termo designa um só indivíduo, e isto acontece
quando o termo suponente é um nome próprio ou um pronome de-
monstrativo, como nos exemplos: 'Sócrates é um homem', ou 'este
é um homem63 '. A suposição pessoal é chamada comum quando o
termo suponente é representado por um nome comum, como na pro-
posição: 'o homem corre'. E a suposição comum é determinada
quando torna legítima a passagem por disjunção para proposições
singulares. No exemplo: 'o homem corre', é lícito inferir: 'logo, este
ou aquele homem, Pedro ou Paulo etc. corre'.
A qualificação de determinada atribuída a tal suposição deve-
se ao fato de que a verdade de tais proposições implica sempre a
verdade das proposições singulares inferidas e, vice-versa, a verda-
de de qualquer uma de tais proposições mferidas é suficiente para
garantir a verdade da proposição que possui suposição determinada.
Quando não é determmada, a suposição pessoal comum é
chamada confusa; das proposições que possuem uma tal suposição
chega-se a proposições singulares, valendo-se da capacidade supo-
sitiva do termo comum que atua como predicado, tal como acontece
na proposição: 'todo homem é um animal'; neste caso o termo ani-
mal permite inferências deste tipo: 'todo o homem é este animal ou
aquele anima1'64 •

61 «Suppos1t10 d 1 s e 1 e t a est 111qua suppomt nomen p10pnum ahcmus vel pronomen


demonstratlvum s1gmficat1ve sumptum. et tahs suppos1t10 redd1t propos1t10nem s111gularem,s1-
cut h1c 'Sortes est homo', '1ste homo est homo' et s1c de alus» (/bt, 1, 70 Opera Ph1/owp/11w
!, p 209)
64 «Suppos1t10 personahs e o 111111u n I s est quando term111uscommums suppomt, s1cut
luc 'homo curr1t', 'omms homo est ammal' Suppos1t10 pe1sonahs commums d1v1d1tur111su-
ppos1t1onem e o n f u s a 111 et d e t e 1 m I n a t a m Suppos1t10 dete1m111ata est
quando cont111g1tdescendere per ahquam d1s1unct1vam ad s111gulana, s1cut bene seqmtur
'homo cumt, 1g1tur1ste homo cumt, vel 11le', et s1c de s111guhs Suppos1t10 pe1sonahs confusa
tantum est quando te1111111uscommums ,uppomt pe1sonahte1 et 11011 contmg1t descendere ad sm-
gulana per d1s1unct1vam, nulla vanatlone facta a parte altenus extre1111,sed per proposit10nem
de d1smncto piaed1cato, et contmg1t eam mfen I ex quocumque smgulan» (Ibidem, Opera Ph1-
lo.wp/11ca I, pp 210-211) Para ui tenores d1stmções, cf1 R Pnce, W1/lwm of Ockham and
suppos,tw per.wna!ts, «Franc St », 30 ( 1970), 131-140, J J Swmrnrsk1, A New Presentaff(lll

47
Para além das sutis distinções relativas à supos1çao, cabe
sublinhar a importância do conjunto da teoria no interior do pensa-
mento ockhamista. Para Ockham, todo o valor dos termos resume-
se em sua capacidade de supor, de estar no lugar dos objetos extra-
mentais que· eles evocam à mente. Portanto, as diversas ciências,
sendo compostas de proposições, garantem o contato direto com a
realidade pelo fato que os termos das proposições são usados se-
gundo a suposição pessoal. A própria lógica, principalmente aquela
parte que se conhece como 'lógica da predicação', funda-se sobre a
suposição, como se pode ver pelas distinções propostas por Ockham
a respeito da suposição pessoal. Além disso, é à suposição pessoal,
isto é, à função significativa dos termos, que Ockham atribui o ofí-
cio de garantir e de qualificar a abertura do pensamento a respeito
da realidade. Embora afirmando que o discurso científico é uma
trama de termos e de proposições e que, portanto, se desenvolve no
interior do pensamento, Guilherme demonstra-se contudo convenci-
do de que a ciência não realiza um discurso subjetivo, mas um dis-
curso verdadeiro e próprio sobre as coisas, devido ao fato de que os
termos estão no lugar das coisas que significam naturalmente. Sobre
a suposição fundamenta-se a própria concepção ockhamista de ver-
dade.

4. A verdade

O alcance da teoria da suposição no interior do pensamento


ockhamista aparece muito claramente em sua concepção de verdade
a nível lógico. A verdade e a falsidade de uma proposição não são
realidades distintas dela, mas confundem-se com a própria proposi-
ção, o que quer dizer que a verdade de uma proposição só existe
quando sujeito e predicado supõem pela mesma coisa. Ockham não
compartilha da definição clássica de verdade, entendida como
"adequação do objeto conhecido ao sujeito cognoscente"; para es-

of Olklwm's Theory of S11po11tw111v1than Eva/uatwn of Some Contempmary Cn/lc1sms,


«Franc. St », 30 (1970), 181-217

48
clarecer sua concepção, recorre invés à teoria da suposição, a qual
não é a verdade, mas entra na definição de verdade 65 .
Que a verdade e a falsidade de uma proposição não sejam re-
alidades distintas dela é algo que resulta claro dos muitos absurdos
com que se defrontaria a hipótese contrária. Em primeiro lugar, se
fossem realidades distintas, verdade e falsidade haveriam de inerir à
proposição tal como a brancura inere aos corpos, o que é contra a
afirmação de Aristóteles, segundo a qual, a capacidade de receber
determinações contrárias é uma propriedade exclusiva da substân-
cia. Além disso, dever-se-ia admitir que, toda a vez que um sujeito
se movimenta e depois se detém, gera-se uma qualidade nova e, ao
mesmo tempo, desaparece uma qualidade antiga. Seguir-se-ia ainda
que as proposições escritas sofrem modificações após o movimento
dos objetos. Estes e outros inconvenientes66 demonstram que verda-
de ou falsidade não podem ser realidades distintas das proposições;
trata-se antes de termos de segunda intenção, isto é, que se predicam
de proposições e não de realidades extra-mentais. Verdade e falsi-
dade são termos abstratos, enquanto verdadeiro e falso são os ter-
mos correspondentes concretos e são termos conotativos, isto é, que
significam diretamente as proposições e indiretamente designam al-
guma outra coisa, precisamente a relação existente entre a proposi-
ção e o estado das coisas reais 67• Cabe, porém, a pergunta: quando

65Cfr L Baudry, Le:uque p/11/osop/11quede G111/laumed'Ocklwm Étude des notwns fo11da-


menta/es, Pans 1958, p 290
"" «Qmd 1g1turest ventas et fals1tas? D1co quod A 1 1 s t o t e I e s d1ceret quod ventas et
fals1tas non sunt res d1stmctae realtter a p10pos1t1onevera et falsa Et 1deo OIS! 1sta abstracta
'ventas' et 'falsltas' mcludant altqua syncateg01emata vel altquas d1ct1onesaeqmvalentes, haec
est concedenda 'ventas est p1opos1110veia' et 'fals1tas est p10pos1t10falsa'» (Summa log,cae,
I, 43, Opera P/11/0.rnph,w l, p 131) «ldeo concordando cum Anstotele d1co quod ventas et
falsltas propos1t1001snon sunt d1stmctae res a propos1t1onevera et falsa Unde OIS! 1sta abstracta
'veritas' et 'fals1tas' mcludant altqua syncateg01emata, haec est s1mpltc1terconcedenda 'ventas
est propos1110vera', 'fals!tas est proposit10 falsa'» (Quod/ V, q 24, Opera Theolog,w IX, p
578)
67 «Sed verum et falsum sunt quaedam praed1cab1ha de orauone connotanlla altqu1d a parte rei

Unde orallo d1c1turvera, qum s1g01ficats1cesse a parte rei s1cut est, et 1deo sme om01 mutatlone
a parte orat10nis, ex hoc 1pso quod pnmo s1gmficat s1cut est a parte rei, et postea, propter muta-
tionem rei, s1g01ficat s1cut non est a parte rei, d1c1tur orat10 pnmo vera et postea falsa»
(Exposrtw ,n l,brum praed,came/ltorum A, 1storel,s, cap 9, § I O, ad Sed et s1 qms , Opera
P/11/osoph,w II, p 201)

49
uma proposição significa ou não o estado das coisas como ele é?
Guilherme insiste em dizer que isto acontece quando sujeito e predi-
cado supõem ou não supõem pela mesma coisa. O termo verdadeiro,
que diretamente designa uma proposição, sendo um termo conotati-
vo, indiretamente designa qualquer c01sa de outro, e isto é a coinci-
dência da suposição do sujeito e do predicado. O termo falso, por
sua vez, que significa diretamente uma proposição, indiretamente
conota ou designa a falta de coincidência da suposição entre o su-
jeito e o predicado da proposição. A verdade de uma proposição
existe quando e somente quando o sujeito e o predicado supõem pela
mesma coisa. Para que uma proposição seja verdadeira é suficiente,
portanto, mas não necessário, que SUJeitoe predicado sejam consti-
tuídos pelos mesmos termos e tenham o mesmo significado, como
acontece nas proposições de identidade. O caso, porém, é raro; o
mais comum, com relação às proposições verdadeiras, tanto afir-
mativas como negativas, é aquele no qual dois termos diferentes
fungem como sujeito e predicado; a verdade de tais proposições
apóia-se, portanto, sobre a suposição dos termos, enquanto sujeito e
predicado significam a mesma c01sa68 . Certamente acontece uma
identidade, que não é a identidade dos termos significantes, e sim
aquela da coisa significada pelo sujeito e o predicado 69 .
Os termos verdadeiro e falso, sendo de segunda intenção e
sendo, por isso, predicados de proposições, não podem tornar-se
predicados de si mesmos, ou sep, não podem tornar-se predicados
de uma proposição da qual fazem parte. Por esta via Ockham resol-

68 Estas punctuahzações são tiradas dos exemplos que Ockham aptesenta, referentes ao proble-
ma da verdade das p10pos1ções «D 1 e e n d u m quod per tstam propos1t1011em'Sortes est
albus', 110ndenotatu1 quod sub1ectum s1t p1aed1catum, sed de11otatu1m tah propos1t1011e
quod tllud pro quo subtectum suppomt s1t 1llud p10 quo ptaedtcatum suppomt Et praeter hoc,
m tah propos1110neub1 ptaedtcatur conc1etum tale, qual e est hoc co11cretum 'albus', denotatur
quod ahqua tahs 1es s1cut albedo competll tlh pro quo suppo111tsubtectum, et 1deo, qma m tsta
'Sortes est albus' sub1ectum et praed1catum suppo11unt pro eodem, et Sortes est tllud pro quo
suppomt praed1catum quamv1s 110ns1t ptaed1catum 1psum, 1deo haec est vera ln tsta propos1-
l1011eprolata 'Homo est ammal', sub1ectum et praed1catum 11011 su11tidem, qma s1 essent tdem,
praed1caretur idem de se, quod nullus d1c1t,et tamcn haec est vera. qma sub1ectum et praedtca-
tum suppo11unt pio eodem» (Expos1tw 111 lib, 11111Pmphy111 de p1aed1wb,l1bu.,, cap Il, ~ 6, ad
Eorum emm quae praed1catur, Opelll P/11/mop/uw li, pp 25-26)
69 Cfr Ph Boehne1, Ockham'., Theory of S11ppo.11twnand the Notwn of Truth, m CAO, pp

260-263

50
ve alguns sofismas de difícil confutação, recorrentes na lógica es-
colástica sob o nome de insolubilia, e que são recorrentes também
na lógica formal moderna, sob o nome de paradoxos ou antinomias.
Ele mostra como, na base da distinção entre signo e significado, o
termo verdadeiro ou o termo falso significam somente uma proposi-
ção inteira pela qual podem supor; por isso, não podem entrar como
constitutivos da mesma proposição, sem que se introduza uma mo-
dificação no nível de significado70 • De modo mais genérico, verda-
deiro e falso não podem ser predicados de nenhum incomplexo, ou
seja de um termo que é parte da proposição; só uma proposição ou
os seus equivalentes possuidores de suposição pessoal podem ser
chamados de verdadeiros ou falsos. Na segunda parte da Logica,
Ockham trata dos diversos tipos de proposições e dos requisitos
para sua verdade ou falsidade. Assim é rebatida a opinião segundo a
qual, para uma proposição singular ser verdadeira, não se requer
uma identidade real do sujeito e do predicado, requerendo-se porém
que o sujeito e o predicado suponham pela mesma coisa 71 • E isto
acontece, repete continuamente nosso autor, pelo fato de que em ló-
gica os nomes são substitutivos de coisas, e os termos possuem va-

70 O exemplo de insolúvel tomado para exame por Ockham é o cláss1co, conhecido também
como 'antinorma do mentiroso' «Sortes d1c1t Sortes d1c1tfalsum» Tal proposição é verdadeira
ou não é? Se a p10pos1çãoé verdadeira, então Sócrates diz alguma coisa de verdadeira Ora,
Sócrates somente afirma que 'Sócrates diz o falso', segue-se, pois, que 'Sócrates diz o falso' é
verdadeiro, e por isso Sócrates diz o verdadeiro Portanto, quando Sócrates diz algo de verda-
deiro, ele diz algo de falso Se a proposição em questão é falsa, chegamos à mesma conclusão
contrad1tóna, de fato, se é falso que 'Sócrates diz Sócrates diz o falso', segue-se que é verda-
deiro que 'Sócrates diz o falso', Sócrates, porém, diz somente que 'Sócrates diz o falso', e por
isso diz algo de ve1dade1ro Ockham 1esolve a antinomia mosttando exatamente que se trata de
um uso incorreto dos termos verdadeuo e falso Cfr Summa log1we, 111-3,c 46 «De insolub1-
hbus» (Opera Plulosopluca l, pp 744-746), Expos1t10super /1bros elenchorum, II, 10, §§ 4-
5 (Opern Pht!osopluw III, pp 267-268) Vepm-se a 1espe1to Boehner, Ockham'., Theory of
Suppost/1011 , pp 257-260, E R1verso, li pa1adosso dei melltttore, «Rassegna d1 sc1enze fi-
losofiche», 3 (1960), [296-325], 308-309, Moody, Truth anel Col!sequence , pp 103-110
(«The Paradoxe of the L1ar»)
71 Em sentido estnto é chamada singular aquela proposição na qual o suJe1toé um nome pró-

pno ou um pronome demonstrativo empregado no singular «Ad ventatem tahs propos1t10ms


singulans quae non aeqmvalet multls propos1t10mbusnon requmtm quod sub1ectum et praed1-
catum sint idem realiter , sed sufficlt et 1equmtur quod sub1ectum et praed1catum supponant
pro eodem» (Summa log1we, II, 2, Opern Plulosoplurn 1, pp 249-250)

51
lor não por si mesmos, mas em relação à realidade que significam 72 .
E o mesmo vale para os outros tipos de proposições: categóricas,
particulares, indefinidas, universais etc. 73 • De uma tal concepção da
verdade e da falsidade lógicas, que não são realidades distintas das
proposições, deriva que não faz sentido falar de proposições afir-
mativas necessánas e de proposições afirmativas contingentes. De
fato, aqueles termos conotativos que são verdadeiro e falso signifi-
cam as proposições e ao mesmo tempo a realidade à qual os termos
das proposições remetem. Mas a realidade é constituída de seres que
são criados por Deus mediante um ato soberanamente livre, que tem
como limite tão somente o princípio de não-contradição. Por conse-
guinte, todo juízo afirmativo que se refere a tal realidade criada e à
sua presença atual é um juízo contingente, até mesmo porque essên-
cia e existência são uma única coisa. Tudo o que não é Deus é con-
tingente: portanto, o ser criado é intrinsecamente contingente e, por
conseqüência, tudo o que se afirma positivamente a respeito do que
não é Deus é dito de maneira contmgente. As próprias proposições
afirmativas de identidade: 'o homem é o homem', 'o anjo é o anjo'
são contingentes da mesma forma das proposições afirmativas do
tipo: 'o homem existe', 'o anjo existe'. De fato, se não existisse ne-
nhum homem ou nenhum ªIlJº, também as proposições de identidade
senam falsas, a partir do momento em que, sendo afirmativas, im-
plicam a existência de uma realidade correspondente a eles, en-
quanto na hipótese esta realidade é excluída 74 . Pode-se falar de ne-
cessidade só com referência a certas proposições negativas, as
quais, exatamente porque são negativas, não implicam correspon-
dência alguma com a realtdade; e pelo fato de que seu contraditório

72 «Qma utnnur voc1bus et al11stenmms, non pro se ,ed pro re, quam s1gmficant» (Quodl 111,
q 12, Ope,a Theolog1w IX, p 250)
71 VeJam-se as anáhses contidas no estudos de Moody, The Log1c , pp 180-21 O, e de
Boehner, Otk/wm'.1 Theory of Suppo.11/1/lll , pp 263-267
74 «Nulla propos1t10 affümatlva mc1e de me:,se et me1e de p1aesent1 quae compomtur ex defim-

t10ne et defimto est necessana sed s11nphc1te1contmgens Et 1deo tam 1sta 'homo est ammal ra-
t10nalc' est contmgens, quam 1sta 'homo est sub,tantJa compos1ta ex cmpore et amma mtellec-
tlva, et hoc qma s1 nullus homo esset, quaehbet tahs e:,set falsa propter falsam 1mphcat1onem»
(Quodl V, q 15, Opera Theologua IX, pp 540-541) Cf1 Summa log1we, III-3, 9, Opem
Phdosophrw /, pp 623-630)

52
é falso, segue-se que são necessariamente verdadeiras. Nos exem-
plos: 'o homem não é um asno', 'o homem não é uma planta', as
duas proposições são verdadeiras quer o homem exista, quer não
exista. Podem ser necessárias também as proposições condicionais
ou as hipotéticas a elas equivalentes, do tipo desta: 'se o homem
existe, o homem é um ammal racional'; ou também: 'todo o homem
pode ser um ammal racional'. São necessárias, enfim, as proposi-
ções que se referem ao passado, porque Deus não pode fazer com
que uma coisa acontecida no passado tome-se não acontecida 75 .

5. A ciência

Não só a verdade lógica, mas a ciência encontra-se ligada à


suposição. Ockham define a ciência como uma qualidade existente
na mente, um hábito mental resultante da repetição de muitos atos
de saber. O ato de saber é seguramente uma qualidade; em verdade,
com tal ato a alma adquire alguma coisa que anteriormente não pos-
suía, vindo a conhecer alguma coisa que antes não conhecia. Esta
alguma coisa que é adquirida pela alma deve ser ou um ato de inte-
lecção ou um ato de vontade, isto é, deve tratar-se de uma qualida-
de. À mesma conclusão se chega também refletindo sobre o fato de
que um hábito, originado da repetição de determinado ato, coloca
aquele que o possui em condição de maior disposição para o próprio
ato; isto é, passa-se a ter alguma coisa que antes estava ausente, e
est'll alguma coisa não pode residir senão num sujeito. No caso do
conhecimento, o sujeito é a razão ou a alma, e, por isso, o hábito
que confere algo de novo não pode ser senão uma qualidade. Com
esta definição de ciência, Ockham entende fornecer simplesmente
uma colocação do saber científico em relação àquela catalogação da
lógica-ontologia aristotélica dada pelas dez categorias; segundo

75 Cfr lbule111(Opel{/ Theolol{1w IX, pp 538-542) VeJam-se também De pn11up11.1 theolo-

g,ae (Opera P/11/mopluw VII, pp 610-61 l), Baudry, lex1que , p 293

53
Ockham, a c1encia pertence à categoria da qualidade, não sendo,
pois, substância, quantidade, relação etc.76 .
Observando o conteúdo daquela qualidade que é a ciencia,
podem-se obter diversas acepções, expostas no prólogo ao comentá-
rio da Física aristotélica.
Por ciência pode-se entender o conhecimento certo de urna
verdade. Neste sentido, também a crença ou a fé é ciência, como
quando afirmo que este é meu pai e esta é minha mãe não porque
me seja evidente, mas porque mo disseram pessoas para as quais foi
evidente77 • Em um segundo sentido, entende-se por ciência um co-
nhecimento evidente, derivado mediata ou imediatamente do conhe-
cimento dos termos: por exemplo, eu sei que um muro é branco
quando vejo a brancura unida ao muro. De uma terceira maneira,
chama-se ciência o conhecimento evidente de uma verdade necessá-
ria. Enquanto, permanecendo na segunda acepção, a ciência abarca
tanto as verdades necessárias como as contingentes, na terceira ex-
cluem-se do âmbito científico as verdades contingentes e são incluí-
dos os primeiros princípios com as conclusões que deles derivam78 .
Há uma quarta acepção de ciência, quando ela é tomada como o co-
nhecimento evidente de uma verdade necessária, gerada de premis-
sas por sua vez necessárias e evidentes, dispostas em forma silogís-
tica. A ciência assim entendida está ligada à demonstração por meio
do silogismo, e se distingue tanto_da posse dos primeiros princípios
como da sabedoria. Mas Ockham observa que não é a estas defini-
ções de rigorosidade progressiva que a gente se refere quando fala
comumente de ciência. Segundo o uso comum dos termos, por ciên-
cia se entende um conjunto de conhecimentos dispostos segundo
uma ordem estabelecida, entrando nessa, como partes integrantes, a
posse dos primeiros princípios e das conclusões, a confutação dos

76 «Sc1ent1a vel est quaedam quahtas ex1stens sub1ect1ve m amma vel est collect10 ahquarum

tahum quahtatum ammam mfonnantmm» (Pwlol{ll.l' m Exposltlonem supe, VIII /1bros phys1-
w1 um,§ 2, Opera P/11/osoph1ca IV, pp 4-5) CfI ln I Se11t, p1ol, q 2 (Ope1a Theolol{JCll I,
pp 87-89)
77 «Sc1ent1a uno modo est ceita notIUa ahcums ven, et s1c scmntur ahqua per fidem tantum»

(Jb1, ~ 2, Ope/(/ Pl11/o.1oph1w IV, p 5)


78 «Tert10 modo d1c1tur sc1entm notitm ev1dens ahcmus necessarn Et isto modo non scumtur

contmgenua, sed pnnc1p1a et conclus10nes seguentes» (Ib,, ~ 2, Opera Ph,lo.wph1w IV, p 6)

54
erros e dos argumentos incorretos, o conhecimento dos termos, as
definições e as divisões. É neste sentido que se fala de ciência com
referência à metafísica, à filosofia da natureza, à teologia ou à lógi-
ca, pelo fato de cada uma delas resultar de numerosas proposições
dispostás em uma certa ordem79 . Desta afirmação de Ockham deri-
vam importantes conseqüências quanto ao modo de compreender a
unidade, as causas, o sujeito e o objeto da ciência; de fato, perma-
necendo a definição acima, nenhuma ciência possui uma unidade
intrínseca, sendo cada uma delas, antes, um conjunto de hábitos.
Ockham procura demonstrar isto apelando para o fato de que al-
guém pode possuir o hábito científico da demonstração de uma con-
clusão, e ao mesmo tempo pode ignorar outros hábitos ou encon-
trar-se em erro a respeito deles; portanto, o hábito com o qual esta-
mos capacitados a demonstrar a primeira conclusão deve ser nume-
ricamente distinto dos outros. E como na definição de ciência em
questão diz-se que cada ciência é resultado de numerosas conclu-
sões, e como vimos que a cada conclusão demonstrada na ciência
corresponde um hábito numericamente distinto no intelecto, então
cada ciência não é um hábito numericamente uno, mas é uma cole-
ção ordenada de hábitos. Sua unidade não é numérica, mas coletiva,
idêntica àquela de um exército ou de um povo, e nesse sentido é
"quase um nome coletivo", como se exprimirá Gabriel Biel80 . Ares-
peito das causas das ciências, visto esta ter sido definida como uma
qualidade existente na alma e sendo a qualidade um acidente, não há
sentido em falar de causa material e formal; rigorosamente se pode
falar só de duas causas para uma ciência, a causa eficiente e a cau-
sa final. Da mesma forma, só de maneira imprópria se fala do su-
jeito da ciência: havendo uma unidade de composição, é claro que
cada ciência terá diversos sujeitos. Querendo ser rigorosos, precisa

79«Ahquando acc1p1tur pro collect10ne multmum hab1tuum mdmem deterrrunatum et certum


habentmm Et isto secundo modo acc1p1tursc1entm frequenter a Ph1losopho» (Ibidem) Cfr ln 1
Sent, Prol , 1 (Opera P/11/11s11p/11wI, pp 8-11)
°
8 Cfr A Maurer, Olkham', of the U111tyof Suenle, «Medmeval Stud1es», 20
C1111iept11111
(1958), 101 Já vimos antenmmente como a lógica é uma ciência denvante de um conJunto de
hábitos mentais, e que, por isso, não tem uma umdade de s11nphc1dade,e sim uma umdade de
agregação e de composição

55
Ockham, o sujeito da ciência é representado por quem a possui, isto
é, pela mente. Aqui a palavra sujeito é tomada em sentido lato,
como aquilo do qual se sabe alguma c01sa. Ora, quando os autores
indicam um sujeito em sentido lato para a lógica, a metafísica, a fi-
losofia da natureza, a matemática, etc., pretendem dizer que, entre
os muitos sujeitos das diversas partes de cada uma de tais ciências,
um deles emerge em força de alguma prioridade. Pode acontecer
pois que haja diversos planos de prioridade ou de emergência, como
acontece com a metafísica, na qual o ente é o primeiro sujeito com
relação à prioridade de predicação, enquanto do ponto de vista da
perfeição a prioridade cabe a Deus. Do mesmo modo, na filosofia
da natureza, o sujeito primeiro por predicação é a substância natu-
ral ou algo deste gênero, enquanto na ordem da perfeição a priori-
dade concerne ao homem, ou ao corpo celeste, ou algo de análogo81
Ockham fala de sujeito em sentido lato para indicar exatamente
aquilo que nós chamamos objeto ou conteúdo de uma ciência, a
qual, a seu modo de ver, pode ter mmtos objeto_s.De fato sua uni-
dade não se fundamenta na unidade do objeto. A, este propósito,
Ockham critica a concepção escotista de unidade de ciência; para
Scotus cada ciência possui um objeto primário que lhe dá unidade,
pelo fato de que tal sujeito contém virtualmente todas as verdades
pertencentes ao âmbito daquela ciência. O objeto primeiro da teolo-
gia, por exemplú, é Deus, no qual estão contidas virtualmente todas
as verdades teológicas82• Confutando a tese escotista, Guilherme
afirma inicialmente que não é verdade que uma ciência tenha so-
mente um objeto, pois cada parte dela possui o próprio objeto. Per-
guntar-se portanto, por exemplo, qual é o objeto da filosofia da na-
tureza~ eqüivale a perguntar-se quem é o rei do mundo: não há um
homem que seja o rei do mundo, mas cada país possui o seu83 • Em

81 Cfr Pmlogus III Expos1tllmem supe, VIII /1/Jro.1phys1w111m (Opera Ph,lo.wp/11w IV, pp
7-9)
82 Cfl Duns Scotus, Ordmatw, Pwl, pms 3, qq 1-3, ed Vattcana, 1, pp 96-101 Quanto à

críttca ockham1sta ln l Se/li, Prol, 9 (Opew Theolog,ca I, pp 227-230)


81 «Ideo d1cendum est quod metaphys1ca non est una sc1entia numero, nec s1m1hter ph1losoph1a

naturahs, sed phllosophm naturahs est collectm multornm hab1tuum, s1cut d1ctum est N~ est
ahter una, ms1 s1cut c1v1tasd1c1turuna vel populus <l1c1tmunus vel exercllus comprehendens
hommes et equos et caetern necessana d1c1turunus vel s1cut regnum d1c1turunum vel s1cut um-

56
segundo lugar, contesta a Scotus que o objeto primário de uma ci-
ência possa conter virtualmente todas as conclusões que se podem
demonstrar sobre essa ciência: para tanto deveria conter todos os
hábitos que entram na formação de uma ciência; mas um objeto, da
mesma maneira que uma conclusão, não pode conte mais que um
único hábito.
Analisando a assertiva aristotélica, segundo a qual não pode
haver ciência do singular, pois esta não é das coisas mas do univer-
sal, Guilherme explica qual é o modo correto de entender a afirma-
ção de Aristóteles. Se quando se fala de 'ciência das coisas', enten-
de-se dizer que são as coisas mesmas a serem conhecidas, é neces- .
sário reconhecer que nenhuma ciência pode ter as coisas por objeto,
devido ao fato de que se pode ter conhecimento só de proposições,
as quais não são substâncias ou coisas extra-mentais. Mas se com a
frase 'ciência das coisas' ou 'ciência real', queremos dizer que os
termos que compõem as proposições significam as coisas extra-
mentais, então pode-se afirmar que a ciência é ou pode ser das coi-
sas. Isto é claro no caso das ciências naturais que resultam da com-
posição de proposições, cujos termos supõem pela coisa, isto é, pos-
suem suposição pessoal e estão no lugar das realidades concretas e
individuais 84 • Quando Aristóteles exclui que haja ciência do singu-
lar, quer dizer simplesmente que os termos das proposições científi-
cas não são realidades extra-mentais, mas remetem a estas, signifi-
cam-nas. A distinção entre ciências reais e ciências racionais não se
funda sobre a presunção de que nas primeiras as coisas sejam parte
da proposição científica, enquanto o mesmo não aconteceria nas se-
gundas. A verdadeira distinção é esta: nas ciências reais os termos
estão no lugar das coisas, enquanto nas racionais estão no lugar de

vers1tas d1c1tur una vel s1cut mundus d1c1tm unus» (Prologu1 111 Expos,twnem supe, VIII lt-
b,os phys1u11um, §3, Opera P/11/0,wph,ca IV, p 7) Maurer observa como seJa s1gnificattvo o
exemplo entre a ciência e o mundo, pelo fato que, segundo Ockham, ambos possuem o mesmo
gênero de unidade, que é precisamente a unidade de 01dem (Oc,kham',1 Conc,eptwn , 101-
102)
84 Cfr Prologu.• 111 fücpo.•ttumem super VIII ltbro.1 phys1u11um (Opera Phtlosophtca IV, pp

10-14)

57
outros termos, visto que as primeiras fazem uso da suposição pes-
soal, e as segundas, da suposição simples.
Também sob este ângulo percebe-se a importância fundamental
da teoria da suposição, devido ao fato de que a ciência constitui-se
só de proposições e no interior destas o valor significativo dos ter-
mos só pode ser estabelecido através do tipo de suposição deles.

6. A teoria das conseqüências e o ponto de vista


formal da lógica de Ockham

Mantendo firme a distinção, desde sempre adquirida pela ló-


gica, entre verdade e correção de uma proposição, podemos facil-
mente reduzir a teoria ockhamista da suposição ao ponto de vista da
verdade, enquanto a teoria das conseqüências é referida ao ponto de
vista da correção lógica. De fato, se a suposição permite decidir em
que medida as proposições exprimem adequadamente as relações
subsistentes entre os objetos designados pelos termos e entra assim
na semântica proposicional, a teoria das conseqüências considera os
nexos das proposições, isto é, as implicações de uma proposição a
partir de certas outras, colocando-se no âmbito que os lógicos defi-
nem como sintático.
Analisemos agora o modo como Ockham trata as conseqüên-
cias, para ver até que ponto nosso autor distinguiu entre semântica e
sintaxe lógica. Para Ockham, uma conseqüência é uma proposição
hipotética condicional, composta por ao menos duas proposições
categóricas conjugadas entre elas por conotativos 'se, então', ou por
outros termos sincategoremáticos equivalentes a estes. Os termos
conseqüência e proposição condicional são equivalentes e por isso
intercambiáveis. Ora, para que uma tal proposição condicional ou
uma conseqüência seja verdadeira, não é necessário que o antece-
dente seja verdadeiro; e não é necessário nem mesmo que o conse-
qüente seja verdadeiro. Há uma só condição positivamente requerida
para que possamos falar de conseqüência verdadeira ou de proposi-

58
ção condicional verdadeira: que o antecedente implique o conse-
qüente85. Ockham faz algumas distinções a respeito. Inicialmente,
uma conseqüência pode ser absoluta ou factual. Característica das
conseqüências factuais (ut nunc) é que são válidas em um detenru-
nado lapso de tempo, enquanto podem ser inválidas em um ou!ro.
Assim, a conseqüência: 'Todo animal corre, logo Sócrates corre'· é
válida se Sócrates existe e, por isso, somente para o tempo da exis-
tência de Sócrates; se Sócrates não existisse, o conseqüente é falso,
enquanto o antecedente pode ser verdadeiro. Uma conseqüência ab-
soluta (simplex), pelo contrário, é sempre válida: tem-se este tipo de
conseqüência quando o antecedente não pode jamais ser verdadeiro,
sem que seja verdadeiro o conseqüente. Neste exemplo de conse-
qüência absoluta: 'Nenhum animal corre, por isso nenhum homem
corre', é impossível que o antecedente seja verdadeiro sem que seja
verdadeiro o conseqüente86. A segunda distinção, a mais importante,
é aquela entre conseqüência material e conseqüência formal.
Ockham chama formal aquela conseqüência que é válida em virtude
de uma regra lógica que não concerne ao conteúdo ou aos termos
mas somente à estrutura das proposições. Uma conseqüência formal
pode ser válida em virtude de um meio extrínseco, isto é, em virtude
de uma regra geral concernente às formas das proposições. A pro-
posição: 'Somente o homem é um asno, logo todo asno é um ho-
mem' é válida em virtude de regras concernentes à conversão das
proposições universais exclusivas e afirmativas. Ou então: uma
conseqüência formal pode ser válida imediatamente em virtude de
um meio intrínseco e mediatamente em virtude de um meio extrínse-
co. Assim no exemplo: ' Sócrates não corre, logo um homem não
corre', a conseqüência é válida imediatamente em virtude de um
meio intrínseco deste teor: 'Sócrates é um homem', que transforma

85 «Sed qma cond111onahs aeqmvalet um consequentme, 1ta quod tunc cond1t1onahs est vera

quando antecedens mfert consequens et non ahter, 1deo d1fferatur ad tractatum d e e o n -


s e q u e n t 1 1 s » (Summa /01;1we, II, 31, Opera Ph,lo,\()ph1ca 1, p 347) Cfr também
Boehner, Medieval Log1l, p 55.
86 «Consequentm 'ut nunc' est quando antecedens pro ahquo tempore potest esse verum sme

consequente sed non pro isto tempore Consequentm simplex est quando pro nullo tempore
potent antecedens esse verum sme consequente» (Summa /01;1we, III, 3, 1, Opera Ph,lo,rnph1-
ca 1, pp 587-588)

59
a consequencia formal em um silogismo verdadeiro e próprio:
'Sócrates não corre, Sócrates é um homem, logo um homem não
corre'. Este tipo de conseqüência formal porém é válido mediata-
mente, em virtude de um meio extrínseco, que é governado pelas re-
gras concernentes às condições gerais das proposições; só em virtu-
de desta validade 'mediata tais proposições são consideradas de con-
seqüências forrnais87 • Uma conseqüência é chamada material quan-
do mantém-se exclusivamente em razão dos termos que a constitu-
em. Diversamente da conseqüência formal, que subsiste em força
das regras gerais das proposições, a material é caracterizada pela
verdade ou falsidade das proposições elementares, tendo presente
que tal verdade ou falsidade é decidida exclusivamente pelos termos
ou matéria das _proposições que formam a conseqüência. Ockham
apresenta dois exemplos bem claros de conseqüência material: 'se o
homem corre, Deus existe'; 'o homem é um asno, logo Deus não
existe' 88 . Estes exemplos permitem afirmar que ele tinha um conhe-
cimento substancial exato daquilo que é definido como 'a implica-
ção material' ou 'o condicional' na moderna lógica das proposições.
Com o termo 'implicação matenal' entende-se a implicação condi-
cional, expressa pelo implicador (::::)
), que podemos exprimir deste
modo: dadas duas proposições, respectivamente p e q, o condicional

p::::)q

se lê do seguinte modo: p implica q; ou: se p então q. A quali-


ficação de 'material' dada à implicação condicional está a indicar o
fato de que se trata de u~a espécie de implicação ligada à conside-

87 «Consequentm formahs est duplex qma quaedam tenet per medmm extnnsecum, quod resp1-

c1t formam propos1t10ms S1cut sunt tales regulae 'ab exclusiva ad umversalem de termm1s
transpos1t1s est bona consequentm', 'ex mmore de necessa110' et mmore de messe seqmtur con-
clus10 de necessano et hmusmod1 Quaedam tenet per medmm mtnnsecum 1mmed1ate, et medi-
ate pe1 medmm extnnsecum 1esp1c1ensgeneiales cond1t1ones piopos1t1onum» (lbtdem, Opera
Ph,losoph,ca 1, p 589)
88 «Consequentla matenahs est quando tenet praec1se rauone termmorum et non rat10ne ah-

cums medu extnnsec1 resp1c1ent1s praec1se generales cond1c1ones propos1tlonum, cumsmod1


sunt tales 's1 homo cumt, Deus est', 'homo est asmus, 1g1tur Deus non est', et humsmod1»
(lbtdem, Opera Ph1lo.wph1w 1, p 589)

60
ração material dos valores de verdade, prescindindo dos nexos liga-
dos aos significados. Enquanto, pois, com o termo implicação se
entende comumente uma conseqüência logicamente ligadora de q a
p, a implicação material própria do cálculo condicional indica uni-
camente a presença de valores de verdade estabelecidos na tabela de
implicação condicional 89 .
Já vimos como Ockham colocou uma premissa importante
com relação às proposições condicionais, válida pois para todo tipo
de conseqüência: para que uma tal proposição seja verdadeira, não
devem ser necessariamente verdadeiros nem o antecedente nem o
conseqüente; o que conta é a implicação determinada somente pelas
leis da lógica das proposições. A leitura de algumas regras das con-
seqüências, contidas na terceira parte da lógica, permite confirmar a
tese de que Ockham possuía uma concepção exata da implicação
material em sentido modemo 90 :

89Cfr Ph Boehner, Does Oclclwm Know of Mate, ,a/ !111p/1wt1011?,


m CAO, pp 319-531, E
Agazz1, La log1w ,\1/nbo/,w, Brescia 1964, pp 207-214 Reproduz11nos a tabela de verdade
das proposições cond1c1onmsno moderno cálculo lógico

p q p:::, q
1 1 1
1 o o
o 1
o o

Leitura com a c1fia • l' md1ca-se o valor de verdade 've1dade1ro', com a cifra 'O' md1ca-se o
valor de ve1dade 'falso' Da tabela obtém-se a segu111temterpretação «O cond1c1onal de duas
proposições é ve1dade110no complexo, ,e e ,omente se a conclusão é verdadeira ou as premis-
sas são falsas» Ace1ca das dificuldades que su1gem para saber quando se deve admltu se o
cond1c10nalé verdadeiro quando o antecedente é falso e o consequente é verdade110,observe-se
que "na lógica propos1c10nalnão se afirma o consequente sob a condição de venficar-se o ante-
cedente, mas se afüma em bloco a p10pos1çãocomposta de mnbos, como acontece com qual-
quer proposição composta mediante conectivos, devendo-se, pms, exammar quais valores de
verdade cabem ao composto em função dos valores de verdade dos componentes" (Agazz1, La
log,ca s,mbo/,ca, pp 211,213)
90 Boehner apresenta, no artigo Já citado (Does Ock/111111
Know ), o texto crítico dos passos
relativos à 1mphcação matenal tuados das t1ês S11111111aede lógica de Ockhmn (cfr pp 346-
349) O fato de que nas três obras não h.ya contiad1ções ace1ca da 11nphcaçãomatenal constI-
tm, no modo de ver de Bohne1, uma p1ova de que elas p1ovêm de uma mesma mão Para a
apresentação das regras em símbolos, atenho-me ao estudo de Boehne1, Medweval Log,c, pp
58-70 Ele, de sua parte, atém-se pmcialmente aos estudos de Salamucha, que expõe uma s1m-
bohzação de toda a lógica das p1opos1ções·Salamucha, D,e Aussagenlogrk , [97-134], 111-
116

61
A) a primeira destas regras diretoras das conseqüências é a
seguinte: do verdadeiro nunca se segue o falso, assim que quando o
antecedente é verdadeiro e o conseqüente é falso a conseqüência não
é válida 91 . Se retomamos a simbolização anterior: p, q, r são propo-
sições; com::::, indicamos o condicional (se - então); uma linha aci-
ma dos símbolos (por ex.: p) significa a negação do símbolo; o
ponto significa a conjugação (p . q, se lê: p e q); podemos dar a se-
guinte simbolização da primeira regra:

(p::::,q) ::::,( p . ij);

e inversamente:

(p . q) ::::,(p::::,q).

B) Outra regra é que do falso pode seguir-se o verdadeiro 92 .


Regra fundamental da implicação material pela qual uma proposi-
ção verdadeira segue a cada proposição, seja verdadeira ou falsa:

p::::,(q::::,p).

Podemos exprimir a mesma coisa, afirmando que de uma


proposição falsa pode seguir tanto uma proposição verdadeira como
uma proposição falsa:

p::::,(p::::,q).

91 «Regulae generales sunt multae Una est quod ex ve10 numquam seqmtur falsum, et 1deo

quandocumque antecedens est vemm et conseguens falsum, consequentm 11011 valei» (Summa
log,we, Ill-3, 38, Opera Ph,losoph" li 1, p 727)
'' 2 «Aha regula est quod ex fals1s potest seqm vemm Et 1deo 1sta consequentla non valet
'antecedens est falsum, 1g1turconseguens est falsum'» (Ibidem, Ope,a Plulosoph1w 1, p 728)

62
C) Em uma conseqüência correta, do oposto do conseqüente
segue-se o oposto de todo o antecedente 93:

D) Qualquer coisa que segue o conseqüente segue também o


antecedente94. Em símbolos:

(p :::>q) :::>[(q :::>r) :::>(p :::>r)].

E) Da regra precedente segue-se imediatamente esta outra:


qualquer coisa que precede o antecedente precede também o conse-
qüente95:

(p:::>q) :::>[(r :::>p) :::>(r :::>q)].

Destas regras Ockham deduz outras:

F) Qualquer coisa que está com o antecedente, está com o


conseqüente. Aqui estar com deve ser entendido no sentido de con-
sistir, isto é, que a conjugação das duas proposições é verdadeira.
Simbolizando:

q) :::>[(p. r) :::>(q .r)].


(p :::>

G) Além disso, qualquer coisa que repugna ao conseqüente,


repugna ao antecedente:

(p :::>q) :::>[(q. r) :::>(p. r)].

91 «Aha regula est s1 ahqua consequentta s1t bona, ex oppos1to consequentts seqmtur oppos1-
tum antecedent1s» (Ibidem)
94 "Qmdqutd seqmtur ad consequens, seqmtur ad antecedens" (Ibidem)
95 «Qmdqmd antecedtt ad antecedens, antecedtt ad consequens» (lb,dem) Para a JUsttficação

que Ockham dá a"esta regra, veja-se a exegese de Boehne1 (Medieval Log1c, pp 64-65)

63
Ockham sublinha como ao invés é falso o oposto destas duas
últimas regras: não é verdadeiro que qualquer coisa que está com o
conseqüente está também com o antecedente, como também não é
verdadeiro que qualquer coisa que repugna ao antecedente repugna
também ao conseqüente 96.
A apresentação de algumas das regras que regem as conse-
qüências da lógica de Ockham permite afirmar que ele não apenas
conhece a implicação material, mas que dela faz uso, entendendo a
implicação de função de verdade. Ademais, para Boehner, a conclu-
são que se deve tirar do estudo da conseqüência em Ockham é que a
conseqüência material e a implicação material possuem muito em
comum e que uma conseqüência material factual (ut nunc) é sempre
uma implicação material. A conseqüência material absoluta
(simplex), pelo contrário, é geralmente só uma implicação materi-
al97. O critério ockhamiano da verdade lógica é formal no sentido
moderno, determinado pelo modo em que se apresentam os consti-
tutivos da proposição e não pelo significado ou conteúdo dos ter-
mos.
Sabemos que, para Guilherme, a lógica é constituída pelos
termos que supõem pelos conceitos (suposição simples). Conside-
rando a natureza dos termos, aqueles que entram na lógica são os
termos de segunda intenção. A linguagem da lógica ockhamista é
constituída de termos sincategoremáticos, que compreendem todos
aqueles signos e expressões que os lógicos modernos chamam de
constantes lógicas ou operadores, e de termos de segunda intenção,
que são os constitutivos materiais verdadeiros e próprios, ou a ma-
téria das proposições. Em terminologia moderna, tal linguagem da
lógica é chamada de metalinguagem. A diferença fundamental, po-
rém, entre a metalinguagem ockhamista e aquela da lógica contem-

96 «Ex 1st1ssequuntur ahae regulae Una est qu1dqu1d stat cum antecedente, stat cum conse-
quente Aha 1egula est qmdqu1d 1epugnat consequenu, 1epugnat antecedent1» (lb1dem, Ope-
ra P/11/0.mpluca 1, p 729)Um mte1essante confionto entre as regras ockham1stas e as regras
das consequências em Walter Bu1le1gh fm feito por I Boh. Bwle11{h 011Co11d1/l()J1a! Hypo-
tl,et1cal Propo.u/1011,«Franc St », 23 (1963), 4-67
97 Boehner, Does Ockham K,ww , p 345

64
porânea encontra-se no fato de que a primeira resulta de termos
(aqueles de segunda intenção) que pertencem à linguagem comum,
enquanto a lógica contemporânea faz uso de uma linguagem arte-
fato, sem algo mais dúctil para a formulação da estrutura lógica de
maneira completa98 • Nas regras lógicas de Ockham, como em quase
todos os outros lógicos medievais, além dos termos de segunda in-
tenção unidos aos signos sincategoremáticos, entram também ter-
mos como 'coisa', 'um', 'mesmo' e semelhantes. Estes são conside-
rados termos transcendentais devido ao fato de que transcendem as
distinções gerais pelas quais os termos de primeira intenção diferem
daqueles de segunda intenção com relação ao modo de designar os
objetos. O apelativo 'transcendental' não se refere ao fato de que
eles designam um domínio especial de entidade, mas porque estão
no lugar de alguma coisa que pode ser siguificada ou posta em
qualquer modo; por esta razão não possuem um significado autô-
nomo como os termos categoremáticos. "Poder-se-ia dizer que eles
possuem suposição sem significado, ou extensão sem intenção. Do
modo pelo qual vêm utilizados na enunciação medieval dos princí-
pios lógicos, não parece que sejam mais 'metafísicos' de quanto o é
a variável individual ('x') da lógica contemporânea" 99 •

98 Esta diferença encontra-se na base da clÍtica que Matthews faz à tese de Boehner acerca da
prox1m1dadeentre a lógica ockhmmsta e a moderna a tese de Boehner estana errada porque
não leva em consideração o fato de que Ockham quantifica termos, enquanto o~ modernos
quantificam vanáve1s Cfr G B Matthews, OLkham's Suppo.\'ltwn Theory and Modem Lo-
g1c, «The Philosoph1cal Rev1ew», 73 (1964), 91-99
99 Cfr Moody, Truth and Consequena , p 28

65
III

A GNOSIOLOGIA

1. Conhecimento intuitivo e conhecimento abstrati-


vo

Em cada sistema filosófico é decisiva e qualificante a res-


posta ao problema sobre a origem, a natureza e o valor dos conhe-
cimentos de que o homem é dotado. Ockham dá sua resposta ao
problema com a doutrina do conhecimento intuitivo e abstrativo.
Para ele, o conhecimento não se inicia pela apreensão de da-
dos necessários, e sim de eventos contingentes, isto é, de alguma
coisa que não é deduzível ou inferível de alguma outra coisa que
seja mais conhecida. Assim o conhecimento humano é condicionado
ao contato direto ou indireto com algum objeto ou dado da experi-
ência.
Desde Aristóteles, todos os filósofos mais importantes con-
cordam em reconhecer que a realidade é constituída só de indivídu-
os; é destes pois, de coisas ou de eventos particulares, que parte
todo o nosso conhecimento tanto sensível como intelectual. O ato
primordial e imediato de conhecimento intelectual, mediante o qual
tomamos contato com a realidade e percebemos que existem seres e
vemos que há esta ou aquela coisa para conhecer, é qualificado por
Ockham como uma intuição, como uma notícia intuitiva 100 •

' 00 «Notltta mtmtlva rei est tahs notltm vntute cums potest sem utrum res s1t vel non, 1ta quod
st res stt, statnn mtellectus md1cat eam esse et ev1denter cognosc1t eam esse» (ln I Sent , Prol q
1, Ope,a Theologrw 1, p 31 - Cf1 ln li Sent, q 13, Opera Theologrca V, pp 256-ssgg)

67
Também quando se trata de objetos apreendidos pelos senti-
dos, estamos defronte a uma verdadeira e própria intuição intelecti-
va e não somente a uma mtuição sensível. Mais ainda, na atual or-
dem cognoscitiva, a intuição intelectiva dos objetos sensíveis está
sempre acompanhada pela intuição sensitiva. Isso não impede que o
intelecto esteja em contato direto e imediato com a coisa, tal como
acontece no conhecimento sensível.
Além desta forma de conhecimento, que apreende os objetos
em sua atualidade existencial, Gmlherme coloca uma outra, a do
conhecimento abstrativo, que apanha o objeto considerado simples-
mente como objeto, prescindindo de sua existência ou não-existên-
cia.
Por exemplo: há alguns momentos, havia uma pena sobre mi-
nha mesinha; eu a vi, tive o conhecimento intuitivo dela e exprimi
meu assenso com um juízo assim formulado: há uma pena sobre
minha mesinha. Agora que a pena foi retirada, eu não a vejo mais;
continuo, -todavia, a pensar nela, a tê-la em minha mente. Mas pelo
só fato de tê-la em minha mente, não estou autorizado mais a dar
assentimento à afirmação: existe uma pena em minha mesmha, e
isto porque a notícia atual que tenho da pena não imphca que ela
exista ainda e se encontre hic et nunc sobre a mesinha. Uma tal no-
tícia, que prescinde (abstrahit) da existência ou da não-existência
do objeto, é chamada notícia abstrativa 101•
O conhecimento mtuitivo e o abstrativo não modificam sua
distinção nem devido ao objeto conhecido, que é o mesmo em am-
bos, nem devido às causas de que dependem, nem devido à perfeição
própria de cada um deles. Nem mesmo se pode dizer que a distinção
entre os dois seja fornecida pela natureza diversa, ou pela causa
formal, a qual permanece desconhecida.
Toda sua diversidade é reconduzível a esta diferença: en-
quanto o conhecimento intuitivo dá a possibilidade de enunciar juí-

'º' «Ahter acc1pltm cogmuo abstJactlva secu11dumquod abst1ah1tab ex1ste11tmet 11011ex1ste11tm


et ab alns co11d1c10111bus
quae co11tmge11te1 acc1du11t1e1 vel ptaed1cantur de re» (/11 I Sent,
Prol, 1, Opera Theolog,w 1, p 31)

68
zos evidentes em matéria contingente, o abstrativo não oferece esta
possibilidade 102.
Para precisar melhor seu pensamento ante Duns Scotus, que
já havia teorizado tal distinção, Ockham introduz distinções ulterio-
res. O conhecimento intuitivo pode ser pe,feito ou impe,feito: per-
feito é aquele conhecimento intuitivo que faz conhecer a existência
ou a inexistência atual de alguma coisa; impe,feito, pelo contrário,
é o conhecimento intuitivo que fornece a evidência de proposições
ou juízos existenciais referentes ao passado. A notícia intuitiva im-
perfeita coloca em posição de reconhecer os fatos como realmente
existidos no passado 103; ela não exige portanto a presença do objeto
e nisso é semelhante ao conhecimento abstrativo, tanto que poderia
ser designada como um tipo de conhecimento abstrativo 104• O co-
nhecimento intuitivo imperfeito não é produzido diretamente pelo
objeto, mas é gerado pelo conhecimento abstrativo e pelo intelecto,
que são causas parciais concorrentes na formação de um hábito, isto
é, de uma disposição do intelecto para reproduzir o ato cognocitivo
original.
Também o conhecimento abstrativo, segundo Ockham, é de
dois tipos: o primeiro é aquele que tomamos em consideração até
agora, representado pelo conhecimento abstrativo que sempre e
imediatamente vem acompanhado do conhecimento intuitivo; o se-

w 2 «Non quod ahqmd cognoscatu1 per notttlam mtmtlvam quod non cognoscttur per nottt1am
abstracttvam, sed idem totahter et sub omm eadem iat10ne cognosc1tur per utramque nottttam
Sed dtstmguuntur per 1stum modum quta nolltta mtu1ttva ret est tahs notttta v1rtute cmus potest
sem utrum tes stt vel non, tta quod st res stt, statun mtellectus tudtcat eam esse et evtdenter
cognosctt eam esse, mst forte tmpedtatur ptopter 11npe1fect1onemtlltus nottttae Notitta autem
abstractJva est ilia v1rtute cmus de re contmgente non potest sem evtdenter utrum stt vel non stt
Et per tstum modum no!Jtla abstract1va abstrahtt ab exs1stentta et non exs1stentta, qma nec per
1psam potes! ev1denter sem de te exs1stente quod exs1sttt, nec de non exs1stente quod non exs1s-
llt, per opposttum ad nollttam mtu1t1vam» (lb1dem, Ope,a Theoloi1ca I, pp 31-32)
'º' «Cogmtto autem mtmttva 11nperfecta est Ilia per quam 1ud1camus rem ahquando fu1sse vel
non fiusse Et haec d1c1tu1 cogmtlo recordat1va» (ln li Sem, q 13, Ope,a Theo/ogtw V, p
261)
1114De Andtés fala da notícia mtmttva 1mperfe1ta como da cogmtw abstralltva «simplesmente

tal o cogmtto abstracuva quae habetu1 post c01rupt10nem mtmttvae» (E/ nomma!tsmo , p
117) Julgo mais oportuno manter a denommação de notícia mtmttva 11nperfe1ta,para subhnhar
sua comumdade com aquela perfeita em relação ao fato de que ambas referem-se à poss1b1hda-
de de em1t11Juízos ex1stenc1ms, po~s1b1hdade que 1epresenta a diferença específica entre a notí-
cia mtmttva e a abstrattva

69
gundo tipo, pelo contrário, é dado pelo conhecimento conceitua}
verdadeiro e próprio, ou conhecimento do universal 105. Este conhe-
cimento é fruto de um processo interior, sobre o qual nos deteremos,
ao falarmos da gênese do universal.
Feitas estas importantes distinções acerca dos tipos de conhe-
cimento, Ockham detém-se a analisar a notícia intuitiva. Nossas
intuições, em primeiro lugar, não se referem somente à realidade
sensível, mas também às realidades espirituais, como no caso de
nossa atividade interior. Sem nenhum temor pronunciamos juízos
como esses: eu penso, eu quero, estou contente, estou triste. Ora,
is~o não seria possível se não conhecêssemos intuitivamente nossos
atos interiores, nossos estados de ânimo 106.
O conhecimento intuitivo, portanto, enquanto apreensão ime-
diata do existente individual, tem no objeto sua causa e leva em si
mesmo sua garantia; ele precede a todo outro conhecimento, sendo-
lhe a fonte e o princípio. Como é naturalmente impossível que um
cego de nascimento adquira qualquer conhecimento de cores que
não pode apreender intuitivamente, assim também a nenhum homem
é dado conhecer abstrativamente um objeto sem ter tido uma prece-
dente intuição dele107. Esta intuição distingue-se realmente também
do juízo existencial, ao qual por sua natureza dá lugar: enquanto o
objeto da intuição intelectiva é incomplexo, isto é, uma apreensão
ou conceito simples, o objeto do juízo é constituído de um comple-
xo, ou seja, de uma proposição. Portanto, não é absurdo que à in-
tuição do objeto não se siga o juízo existencial que normalmente
dela procede, sendo sempre possível a Deus fazer com que o primei-
ro ato não seja seguido pelo segundo. Em concreto isso significa que

105 «Sc1endum tamen guod notllia ab,ttacllva potes! acc1p1 duphc1ter uno modo guia est res-

pectu ahcurns abstract1 a mult1s s111gula11bus,ct s1c cogmllo abstracl!va non est ahud guam
cogmllo ahcurns umversahs ab~t1ah1b1hsa multls Ahter acc1p1tur cogmt10 abstracllva secun-
dum guod abstrah1t ab exs1stentia et no11exs1stcnt1a et ab alas co11d1c10mbusguae co11tmgenter
acc1du11t1e1vel praed1cantur de 1e» (/11 l Se111, P1ol , 1, Ope, a Theolo!{1ca I, pp 30-31)
106 «Intellcctus noster pro statu isto 11011ta11tum cognosc1t 1sta sens1b1ha, sed m part1cula11 et
mtmtlve cognosc1t ahgua mtelhg1b1ha guae 11ullo modo cadu11t sub sensu, non plus guam
substa11t1aseparata cad1t sub sc11su.cumsmod1 sunt mtellect1ones, actus voluntalls, delcctat10
conseguens et tnslllla et hu1usmod1» (lh,dem, Ope," TheoloKH a I, pp 39-40)
107 ln l Sent, 2, 9, Opera TheoloKH a II. p 314

70
não é impossível que um intelecto, embora conhecendo intuitivamnte
alguma coisa, continue contudo convencido de que a coisa não
existe 108• Esta é certamente uma hipótese arriscada da gnosiologia
ockhamista, muito semelhante, aliás, àquela mais famosa a respeito
do poder de Deus de causar o conhecimento intuitivo de um objeto
não existente.
Esta possibilidade é mantida porque Deus conhece intuitiva-
mente o presente, o passado e o futuro, os seres atuais e os pura-
mente possíveis. Deus possui, portanto, a intuição daquilo que não
existe mais, daquilo que· ainda não existe, e daquilo que jamais
existirá, e por isso pode conceder também ao homem a intuição in-
telectiva de um objeto ausente ou inexistente109• As razões aduzidas
para justificar esta concepção são as seguintes: Deus pode fazer
tudo que não é contraditório; Deus pode também produzir direta-
mente aquilo que produz mediante as causas segundas e realizar se-
paradamente dois atos realmente distintos entre si 11°.
Ockham acrescenta porém um esclarecimento: se Deus pro-
duzisse em nós a intuição de um objeto ausente, por exemplo, de um
evento que acontece em outra cidade, nós teríamos a evidência de
sua existência, mas não a evidência de sua presença. Se Deus nos
fizesse crer presente aquilo que é ausente, nos induziria ao erro e
provocaria em nós um juízo contraditório; ora, sabemos que nem
mesmo Deus pode fazer o contraditório' 11• Também para o conhe-
cimento intuitivo causado por Deus, e não pelo objeto, vale a afir-
mação de que a intuição jamais leva o intelecto ao erro' 12. A Deus é
certamente possível fazer que nós tenhamos presente uma coisa au-

108 «Potest d1c1probab1hter quod notllia mcomplexa tem1morum et apprehens10 complex1 et 1U-

d1c1Umseguens d1stmguuntur 1eahter et quod quodhbet 1storum per potentiam d1vmam est a
quohbet separab1le» (/bt, P10l, 1, Opera Theolo!(tlll i, pp 58-59)
109 «Deus habet nolltiam mtu111vamommum, s1ve s111t s1ve non smt, quia 1ta ev1denter cognoscit
c1eaturas non esse quando non sunt, s1cut cognosc1t eas esse quando sunt» (Ibidem, Opera
Theologrca I, p 39)
110 «Cogmt10 mtmllva potes! esse per potenllam d1vmam de ob1ecto non existente» (Quod! VI,

q 6, Opera Theologna IX, p 604) Cfr ln l Sent, Prol , 1, Opera Theolo!(tca 1, pp 38-39
111 «Deus non potest causare m nob1s cogmt1onem talem per quam ev1dente1 apparet nob1s rem

esse praesentem quando est absens, qma hoc mclud1t contrad1cuonem» (Quodl V, q 5, Opera
Theolo!(IW IX, p 498)
112 ln li Sent, 13, Ope,a Theologrw V, p 287

71
sente, mas não através de um juízo de evidência, ligado à intuição, e
sim através de um ato de fé, ligado a um ato de conhecimento me-
ramente abstrativo 113
.
Isto é tudo que Ockham nos diz. De um ponto de vista histó-
rico, devemos notar que a teoria do conhecimento intuitivo do não-
existente era já conhecida por outros autores; encontram-se esboços
em Mateus de Acquasparta, em Henrique de Harclay e até mesmo
no tomista Herveus de Nédellec. Ela podia assomar à mente de
quantos estavam convencidos de que os possíveis não tem outra re-
alidade que aquela de poder existir, e que desejavam esclarecer a
extensão da onipotência divina.
Do ponto de vista teórico perguntou-se se essa teoria abre ou
não o caminho para o ceticismo, um interrogativo que é lícito colo-
car-se não obstante a afirmação ockhamista de que o conhecimento
intuitivo jamais faz o intelecto cair em erro. Os estudiosos deram
respostas diferentes à questão: para Boehner, o ceticismo está ex-
cluído114;para Michalski, Hochstetter e Pegis, não se pode excluir
uma saída cética da hipótese ockhamista 115.
Certamente, o modo como Ockham trata esta teoria suscita
alguma perplexidade; todavia, deve se recordar que ele se coloca do
ponto de vista da onipotência teológica, ou seja, do ponto de vista
da possibilidade pura, e não fala da intuição do não-existente como
de um evento que pertence ao curso natural das coisas. O sentido
exato da doutrina ockhamista parece ser o seguinte: não é contradi-
tório que Deus cause em nós a intuição de um objeto que não está
realmente presente, mas é contraditório que Deus produza em nós a
evidência da proposição: 'As estrelas estão presentes', quando estas
estão ausentes. Deus pode causar a intuição de uma realidade, sem
fazer surgir a evidência de que esta realidade esteja presente. Em

111 Quod/ V, q 5, Ope,a Theo/og,w IX, p 498


114 Ph Boehner, The Notlf,a lntu1t1va of No11-ExHte11sAcco,dmg to W Ockham, m CAO, pp
268-292
x,ve
I 15 K Michalsk1, le ll1l/l/S/lle et /e .1ceptlc1.,·/lleda,H la p/11/o.1opl11edu s1ecle, «Bulletm
de l'Académ1e Polonmse des Sc1ences et des Leltles Classe d'h1st01reet de ph1losoph1e», anno
1925, Cracov1e 1926, pp 41-122 Hochstette1, St11d1e11zu1 Metaphys,k , A C Peg1s, Con-
cernmg W OLkham, «Trad1t10», 2 ( 1944), 465-480

72
última análise, a hipótese de Guilherme acerca da intuição do não-
existente se reduziria à hipótese de uma intuição que não coincide
com a evidência. Mas como se compreende semelhante possibilida-
de? A explicação mais convincente parece ser aquela de Copleston,
o qual escreve: "A opinião de Ockham parece, pois, ser a seguinte:
que Deus poderia causar em nós a intuição de um objeto que não
está realmente presente, no sentido de que ele poderia causar em nós
as condições fisiológicas e psicológicas que conduziriam normal-
mente a dar assentimento à proposição: 'a coisa está presente'. Por
exemplo, Deus poderia produzir instantaneamente nos órgãos da
vista todos aqueles efeitos que são naturalmente produzidos pela luz
das estrelas. Poder-se-ia também exprimir a questão nos seguintes
termos: Deus não poderia produzir em mim a visão atual de uma
mancha branca presente, quando a mancha branca não está presen-
te, porque isto implicaria contradição; mas ele poderia produzir em
mim todas as condições psicofísicas que o ver uma mancha com-
porta, mesmo se a mancha em realidade não existe 116".

2. Origem e natureza dos conceitos universais

Para Ockham, o conceito universal coincide com o conheci-


mento abstrativo de segundo tipo, que se refere a mais coisas sin-
gulares, enquanto o conhecimento abstrativo de primeiro tipo é pró-
prio de uma só coisa.
Embora, segundo nosso autor, também o conhecimento intui-
tivo po~sa ser chamado conceito, todavia o termo conceito é reser-
vado de maneira mais apropriada ao universal que Ockham, de
acordo com os escolásticos, define como "aquilo que pode ser pre-
dicado de muitas realidades" 117• As características dos universais
são conexas com sua função e com sua natureza: se em relação à
sua função o conceito que se predica de mais coisas é chamado uni-
versal, deve-se contudo observar que por sua natureza o conceito

116 F. Copleston, Stona dei/a filosofia, III, trad 1tal Brescm 1966, p 87
117 Summa /og1we, l, 14, Opera P/11/osopluw 1, pp 47-49

73
universal é uma realidade particular, smgular, uma realidade indivi-
dual 118 . A tese da unidade numénca do conceito universal é aceita
por todos; Ockham contudo a insere em um contexto de pensamento
que é novo em relação àquele dos escolásticos do século XIII. Antes
de Ockham partia-se da convicção de que não há ciência senão do
universal e que, por conseguinte, o conhecimento humano tem um
valor objetivo somente sob a condição de que o universal tenha al-
gum fundamento na realidade. E exatamente porque a realidade era
concebida como de algum modo universal é que se colocava o pro-
blema do princípio de individuação, ou seja, o problema de saber
como e em virtude de qual elemento a natureza ou essência univer-
sal se contrai, dando lugar à multiplicidade numérica dos indivíduos
da mesma espécie. Na verdade, Avicena, Tomás de Aquino e Duns
Scotus afirmavam que as coisas em sua natureza não são nem indi-
viduais nem universais, mas são 'indiferentes' a um modo de ser in-
dividual ou universal. Smgularidade ou universalidade são portanto
modos de ser de que as coisas se revestem, quando se realizam res-
pectivamente na realidade ou na mente do sujeito cognoscente.
Ockham, ao contrário, está convencido de que só o indivíduo existe
e de que a realidade é por si mesma smgular e como tal é inteligível,
ou seja, é inteligível na sua singularidade.
Segue-se que, de seu ponto de vista, por um lado, o problema
do princípio de individuação perde todo significado, configura-se
como um pseudo-problema; de outro lado, o problema dos univer-
sais perde todo o valor metafísico: quanto aos universais resta ape-
nas estabelecer como se formam em nossa mente e qual realidade ou
natureza eles possuem. Uma tal impostação do problema é revoluci-
onária se comparada com a tradicional, porque não se pergunta
mais como do universal se chega ao particular, mas como do sin-
gular se consegue chegar ao universal. Veremos em seguida, tratan-
do da crítica ao realismo, como Ockham se esforça para fazer ver
que só seu modo de colocar o problema é correto, demonstrando que
quem quer que atribua qualquer grau de realidade ao universal e o
distinga de qualquer modo do individual, envolve-se em absurdos ir-

118 Ibidem

74
reparáveis. O universal não existe a não ser no pensamento, o que
não significa - dizia-se - que o conceito em si seja universal, pois
também os conceitos, tais como as coisas, são singulares. De fato,
todo conceito é aquele conceito enquanto é ens rationis, um ens ra-
tionis particular, do qual se diz que é universal com relação à capa-
cidade significativa, pelo fato que se predica de muitos indivíduos.
Guilherme distingue dois tipos de universais, o universal naturali-
ter, e o universal convencional: enquanto os termos orais ou escri-
tos são por sua natureza convencionais, isto é, são fruto de uma
instituição voluntária e, portanto, são passíveis de mudar seu signi-
ficado em força de uma nova convenção, os conceitos (ou intentio-
nes animae) são naturalmente significativos, significam natural-
mente tudo aquilo que significam e não podem trocar de significa-
do 119. E x1ste
. uma b ase comum tanto para os conceitos. como para os
termos orais ou escritos, que é aquela de serem sinais e de serem si-
nais que supõem. Enquanto, porém, os conceitos significam e su-
põem naturalmente, os outros significam e supõem convencional-
mente120.Ockham declara que usa o termo universal sempre em re-
ferência aos conceitos, ou seja, sempre em referência aos sinais na-
turais das coisas. Mas como se formam na mente estes conceitos? O
problema é relevante se tivermos presentes as afirmações que vimos
acima e a partir das quais sabemos que todo objeto individual está
apto a suscitar diretamente um conhecimento intuitivo sensível e
intelectual, um conhecimento próprio portanto, .o qual é sempre
acompanhado de um conhecimento abstrativo, também esse próprio
e individual. Fica claro, portanto, que todo conhecimento, que não
seja próprio de uma coisa singular, deverá ser justificado, e a me-
lhor justificação para Ockham é, como sempre, aquela do dado de

119 Umversale duplex est Quoddam est umve1sale naturahter, quod sc1hcet naturahter est s1-

gnum praed1cab1lede plunbus Et tale umversale non est ms1 mtentlo ammae, 1ta quod nulla
substantla extra ammam nec ahquod acc1dens extra ammam est tale umversale Et de tah um-
versah loquar m sequentlbus cap1tuhs Almd est umversale per voluntariam mst1tut10nem Et
s1c vox prolata, quae est vere una quahtas numero, est umversahs, qu1a sc1hcet est s1gnum vo-
luntarie mstltutum ad s1g111f1candum plura» (/btdem, Opera P/11/o.wph1ca1, p 49)
120 Também os conceitos ou termos mentais podem supm, naturalmente no mtenor de uma pro-

posição mental, pois a suposição é uma prop11edadedos termos no mtenor de uma proposição
Cfr lbt, I, 1, Opew Plulowpluw I, p 8

75
fato: eu conheço as coisas singulares, mas juntamente tenho também
conhecimentos universais. Neste último caso, porém, Ockham reco-
nhece que o dado de fato não é de todo compreensível, possui as-
pectos que fogem de nós e que se devem atribuir à natureza, a qual
produz os universais de uma maneira oculta 121• Nas Quaestiones in
libros physicorum, a origem dos universais vem assim explicadas: o
conhecimento intuitivo do objeto causa de maneira direta e imediata
o conceito próprio daquele objeto e o conceito da espécie a que per-
tence. O conceito de gênero é causado, porém, pelo conhecimento
intuitivo, mas não pela intuição de um único objeto, e sim por mui-
tas intuições de objetos de espécie diversa 122• Enquanto pois os con-
ceitos específicos são fruto da intuição direta e imediata da realida-
de singular, para a qual um só indivíduo é suficiente para fazer sur-
gir na mente o conceito da espécie à qual pertence, para explicar o
surgimento dos conceitos genéricos deve-se recorrer a uma multipli-
cidade de conhecimentos próprios, relativos a indivíduos de espécie
diversa.
Quanto à natureza própria do conceito universal, isto é, a
respeito do ser que se possui na mente, o pensamento de Guilherme
sofreu uma evolução que foi estudada em seus particulares nestes
últimos decênios 123. Num prime1ro momento ele defende que o uni-
versal é algo de distinto do ato intelectivo e que está dotado de um
ser mental, de uma existência ideal que em linguagem escolástica se
define como esse obiectivum. Deste modo, o universal não é uma
realidade, nem espiritual, nem material, mas é a representação
mental, ou fictum, de uma coisa que existe ou pode existir; como
tal, distingue-se da representação mental de uma coisa que é impos-

121«Natura occulte opeiatu1 m umversahbus, non quod producat 1psa umversaha extra ammam
tamquam ahqua 1eaha, sed qma p1oducendo cogmt1onem suam m amma, quas1 occulte produ-
c1t dia umversaha, dlo modo quo nata sunt p1oduc1»(/11/ Se11t, 2, 7, Opera Theolog,w II, p
261)
122«Cogmtto propna smgulans et cogmtto spec1fica aeque mtmttve et aeque pnmo causantur
s1mul ab ob1ecto. et cogmuo gene11scausatur m mente ab md1v1dmsaltenus et altenus spec1ei
et hoc smml cum cogmuombus p1oprns eornrn» (Quae,111m11bu,1111hbws phys1unum, q 7,
Opera Ph1/osoph1ca VI, pp 411-412)
121 Boehner, The Relallve Date , m CAO, pp 96-110, De Andrés, E/ 1wm111a/1smo , pp
120-136, Junghans, Ockham 1111 L1thte . pp 191-196

76
sível que exista realmente, a qual é chamada de figmentum, ou re-
presentação quimérica 124. "Como um arquiteto, vendo uma casa ou
um edifício qualquer, forma na mente a representação de uma casa
semelhante, e depois constrói uma casa semelhante no exterior, casa
esta que se distingue só numericamente da primeira; do mesmo
modo, no caso dos universais, a representação mental formada na
mente à vista de alguma coisa exterior é um modelo [... ] e se refere
indiferentemente a todas as coisas singulares extra-mentais, e na
base de tal semelhança no ser ideal (in esse obiectivo) pode estar no
lugar das coisas externas que possuem um ser semelhante fora do
intelecto 125". Talfictum reproduz a realidade, é uma imagem mental
dos objetos singulares extra-mentais e, pela semelhança que possui
como imagem com tais objetos, pode estar no lugar deles.
Esta teoria havia sido proposta, alguns anos antes, por Hen-
rique de Harclay, em suas Quaestiones ordinariae 126, quase com as
mesmas palavras usadas por Ockham, e não há dúvida que Gui-
lherme leu o texto de Henrique de Harclay, pois, algumas páginas
antes de sua exposição da teoria do fictum, critica um passo de
Henrique, no qual este afirma que a mesma coisa, quando é conhe-
cida de maneira distinta, é singular, e quando é conhecida de manei-
ra confusa, é universal 127. A teoria do esse obiectivum era sustenta-
da também por um outro pensador de seu tempo, Pedro Auréolo,
que havia feito dela um dos pontos básicos de sua explicação a res-
peito da natureza do conhecimento128. O primeiro filósofo a opor-se
a este modo de entender os universais foi Walter Chatton, durante
as lições sobre as Sentenças de Pedro Lombardo, que ministrou em
Oxford em 1322-1323. Atacando explicitamente a posição de

124 «Umversale 11011 esl figme111umtale cm 11011correspondei ahqmd consmule 111esse sub1ecttvo
quale 11ludfingllur 111 esse ob1ect1vo,s1cut est de clmnera Tale umversale est figmenlum cm
correspondei ahqmd consm11le m rerum 11att11a» (/11/ Se11t, 2, 8, Opern Theolog1w II, p 284)
125 lbt, p 272
126 Henrque De Harclay Quaest1011esd1sputatlle, q 3 (Cod Vat Borgh 171, f l lrb-11 va)
127 ln I Sent, 2, 7, Opelll Theolog1w II, pp 241-248
128 Pedro Auréolo, ln I Sent, d. 9, q 1, ed Roma 1956, pp 316 ss A mlerpretação mats con-

vmcenle da leona do 'esse ob1ecttvum' de Auréolo parece-me ser aquela dada por S Vanm Ro-
v1gh1,L'mten:uonahtà dei/li Lo11osa11w seumdo P Aureolo, 111 L'homme et .wm destm (Atas
do pnmetro Congresso de filosofia medieval), Louvam 1960, pp 673-680, Una fonte ,emota
dei/a teorw husu1/w11a dell'mtenz1011aht11,111Omllggw a Hus.1erl, Mtlano 1960, pp. 49-65

77
Ockham, Chatton refutou como inútil o recurso ao fictum, e sus-
tenta que para salvaguardar tudo o que se deseja salvar com aquela
teoria, é suficiente admitir que o universal coincide com o ato de
entender129 . Premido pelas críticas de Chatton, Ockham começa a
demonstrar-se sempre menos convencido quanto à teoria do fictum:
inicialmente a cita apenas como provável, na Expositio in periher-
meneias e na redação definitiva da Ordinatio; por fim, a abandona
como falsa nos Quodlibeta e nas Quaestiones in libras physico-
rum130,e na Summa logicae abraça uma teoria semelhante àquela
de Chatton, para o qual o conceito, por sua própria natureza, é uma
qualidade da mente, dotada de um esse subiectivum. A tal propósi-
to, na Ordinatio, Guilherme declara possível uma dupla interpreta-
ção: tal qualidade pode ser identificada com o ato intelectivo, ou
pode ser tida como distinta dele131 • Em suas obras, porém, jamais
sustenta explicitamente a teoria do conceito como qualidade mental,
distinta do ato de conhecer, jamais a apresenta como sua, limitando-
se a mencioná-la, quase que de passagem 132 . Aceita, porém, definiti-
vamente a teoria que identifica o universal com o próprio ato de co-
nhecer, com o ato da intelecção abstrativa de segundo tipo, com a
,
ipsamet · llectw
mte · 133
·· .

129 Walter de Chatton, Rep()/ tatw, I, 3, 2 A edição c1Ítlca deste artigo fm feita por G Gàl,
Gualt1en de Chatton et Gu,l/e/1111de Ockham co11/Jover.1·,ade natura conteptus u111ve1sal,s,
«Franc St », 27 (1967), 199-212 W Chatton cntlcou também outras doutnnas importantes da
gnos10logm ockhanusta, como aquela da notícia mtu1t1va Cfi a edição crítlca da segunda
questão do Prólogo, feita por J O'Callaghan, The Sewnd Questum of the Prologue to the
Walter Chatton's Commentary 011 tlze Se11te11ce,111the lntultlve and Abstractlve Knowledge,
m AA VV , N111eMedweval t/1111ke1 s, Toronto 1955, pp 233-269
" 0 Quaestumes 111 1,bros plzymorum Anstote/1s, q 1 (Opera Pht!osop/z1ca VI, pp 397-398)
Para outras citações ponnenonzadas, env10 ao estudo de G Gàl, Gualtlen , 196-198
111 «Cm non placet 1sta op1mo de tahbus fictls messe ob1ect1vopotest tenere quod conceptus et

quodhbet umversale est ahqua quahtas exs1stens sub1ecuve m mente, quae ex natura sua 1ta est
stgnum rei extra s1cut vox est s1gnum ie1 ad plac1tum mslltuentls Verumtamen 1sta op1mo
posset d1versunode pom uno modo quod 1sta quahtas exs1stens sub1ect1ve m amma esset 1psa-
met mtellectlo Ahte1 posset pom quod 1sta quahtas esset ahqmd almd ab mtellectione et
postenus 1psa mtellect10ne» (111l Se11t, 2, 8, Opera Theolog1w II, pp 289, 291)
112 Expo.Mw super 1,b, um pen/ze1111ene1as,prooenuum, § 4, Opera Pht!o.wph1w II, pp 349-

350, Summa log1cae, l, 12, Ope1a Ph1/osop/11ca I, p 42


111 Quodl IV, q 35, Opera Theolog1ca IX, p 469-474, Summa /og1we, I, 12, Opera Pht!o-

sopluw i, pp 41-44

78
Um tal ato de intelecção faz conhecer as realidades singula-
res, evoca-as à mente enquanto é o signo natural delas. Nesta pers-
pectiva chega-se a afirmar que nosso conhecimento é um conheci-
mento de certo modo infinito: o conceito de homem que eu possuo
permite-me evocar à mente todos os homens, inclusive aqueles que
jamais vi, aqueles que existiram no passado e os que existirão no
futuro. E Ockham não vê nisto nenhum inconveniente: é um fato que
com um mesmo ato podemos amar todas as partes de um contínuo,
que são infinitas, e podemos amá-las todas do mesmo modo. Ora,
não se vê porque não podemos, de igual modo, conhecer, através de
um único ato de intelecção, uma infinidade de indivíduos e conhecê-
los todos na mesma medida 134 .

3. O conceito como signo

Com sua doutrina dos universais Ockham assume uma posi-


ção nova, se comparado com os grandes mestres da Escolástica do
século XIII. Guilherme concorda com eles ao afirmar que o univer-
sal em ato só existe no intelecto. Enquanto, porém, para os escolás-
ticos precedentes, existia em potência nas coisas, das quais era reti-
rado mediante o processo abstrativo, para nosso autor o universal é
gerado diretamente das coisas na mente do sujeito cognoscente.
Com isso, leva às conseqüências extremas as críticas à espécie inte-
ligível como obiectum quo do conhecer, críticas que haviam sido le-
vantadas por toda uma série de mestres da escolástica pós-tomista,
tais como Henrique de Gand, Godofredo de Fontaines, Durando de
São Porciano e Pedro Auréola.
Na recusa da espécie inteligível exprime-se a preocupação de
não admitir entidades intermediárias ou diafragmas entre o intelecto
e as coisas, e assegura-se ao máximo a objetividade do conhecer
mediante o contato direto entre o pensamento e a realidade.

114 Exp,wtw supet hb, um pe11hermenews, prooemium, ~ 6, Opera Phdosopluca II, pp 351-
ss

79
Mas a distância entre Ockham e seus predecessores é ainda
mais ampla e profunda: para os escolásticos do século XIII, o con-
ceito - exatamente porque obtido transferindo o objeto do plano sen-
sível para o inteligível mediante a ação inteligibilizante do intelecto
agente - revela a natureza íntima da realidade, separando-a das con-
dições espaço-temporais e de todas as condições materiais que con-
tradistinguem a situação na qual as coisas se encontram in rerum
natura. No conceito, então, a realidade se revela em sua estrutura
mais profunda. Não é o que acontece para Ockham, que afirma que
a realidade é ex se singularis e que o singular, enquanto tal, é inteli-
gível: o conceito não faz conhecer a natureza das coisas, mas a si-
gnifica para cognoscente, remete-o a ela. A recusa da teoria da es-
pécie inteligível, portanto, está fundada sobre uma precedente recu-
sa de admitir qualquer consistência metafísica da natureza, que é
vista como portadora de uma necessidade, que por si mesma repug-
na à afümação da soberana liberdade de Deus e de sua onipotência.
Tendo rejeitado a existência de uma comunidade ou parentela
potencial das coisas entre si, Ockham rejeita igualmente a teoria que
faz o conhecimento humano consistir em um ato de reprodução da
realidade externa mediante uma imagem, a já mencionada espécie
inteligível, que reproduz a nível mental as coisas na sua essência.
Guilherme abandona a via do conceito como imagem e abra-
ça a teoria do conceito como signo, abrindo assim uma nova pers-
pectiva à gnosiologia, perspectiva que encontrará consenso sobretu-
do na interpretação da intencionalidade, tal como elaborada na fe-
nomenologia contemporânea.
A originalidade e a agudeza da teona do conceito como signo
lingüístico foi colocada em relevo por um recente intérprete do pen-
samento de Ockham, o espanhol Teodoro De Andrés 135, o qual pre-
cisa inicialmente como nos escritos ockhamistas o signo é tomado
em duas acepções diversas, em correspondência a dois níveis de si-
gnificação. O primeiro nível é aquele significativo-representativo,
próprio da imagem (imago) e da marca (vestigium), que têm a ca-
pacidade de significar algo enquanto fazem surgir na mente, respec-

115 De Andrés, E/ 11on11na/1.mw, sob1etudo a pnmena e a segunda parte (pp 27-149)

80
tivamente, a recordação de quem é representado na imagem ou de
quem deixou a marca. Trata-se de uma re-presentação verdadeira e
própria da cmsa significada, pela qual, sem dúvida, gera-se um
novo conhecimento, que. porém, não é produzido ex novo, sendo
antes a recordação de algo precedentemente conhecido 136. O segun-
do nível de significatividade elaborado por Ockharn é aquele que De
Andrés define corno nível significativo-linguístico, que se diferencia
do significativo-representativo pelo fato de não ter um caráter re-
cordativo, isto é, de não ser ligado à produção de um conhecimento
memorativo de algo precedentemente conhecido, mas de poder pro-
duzir uma intelecção prirnána 137 . À capacidade de gerar conheci-
mentos junta-se a função suposicional, pela qual o signo linguístico
tem a capacidade de supor, de estar no lugar da coisa significada,
no interior de uma proposição. Para Ockham são signos lingüísticos
assim' constituídos tanto os termos orais ou escritos, devido à sua
natureza convencional, como os conceitos: sabemos, de fato, que
também estes últimos podem ter a suposição no interior de uma
proposição rnentaln 8 . Para exprim1r o nível significativo-lingüístico
que pertence aos conceitos, Ockharn o compara à capacidade que a
fumaça possui de significar o fogo; o lamento do doente, de signifi-
car a dor, e o riso, de significar a alegria 139 . Trata-se de urna relação
que não se exaure naquela de efeito-causa, porque urna tal signifi-
catividade, aquela devido à qual o efeito é sinal da própria causa, se
encontra também a nível signif1cativo-representativo: "Insistindo de

116 «Una res mcomplexa mediante notltia sua potes! esse causa partiahs rememo1at10ms altenus

rei hab1tuahter notae, Jta quod notltla hab1tuahs nec~sa110 concurnt m iauone causae partiahs
Et tale s1c cogmtum potest voca11 1epiaesentat1vum altenus, nec est ahqu1d ahud propne 1e-
praesentat1vum, et isto modo tam vest1gmm quam imago 1epiaesentant tllud cmus sunt vestt-
gmm vel Imago Per expenent1am ennn patet quod s1ahqms nu liam pemtus habeat cogmt1onem
de Hercule, s1v1deat statuam Hercuhs non plus wg1tab1t de He1cule quam de Sorte» (/n I Sent,
3, 9, Ope111T/zeolog,w 11,p 545)
117 De And1és, E! 1101111na!t~1110 , p 91
l18 «Tenrunus conceptus est mtentto seu pass10 ammae ahqutd naturahter s1gmficans vel con-
s1gmficans, nata esse pars propos1tioms mentahs, et p10 eodem nata supponere» (Summa log1-
we, I, 1, Opera P/11/osoph1w 1,p 7)
119 «Quoddam est umversale naturahter, quod sc1hcet naturahter est s1gnum praed1cab1le de

plunbus, ad modum proport10nahter, quo fumus naturahter s1g111ficat 1gnem et gemttus mfinm
dolmem et nsus mtenorem laetlttam» (/b1, I, 14, Opera P/11/osop/11wI, p 49) Cfr ln l Sent.,
2, 8, Opera Theolog,w II, p 290.

81
modo particular, como o próprio Ockham nos convida a fazer, na
analogia que existe entre a relação do grito com a dor ou do riso
com a alegria e a relação do conceito com a coisa por ele significa-
da, nós constatamos que, além da relação de nexo causal, existe,
tanto no lamento como no riso, uma nova relação, que podemos
chamar relação de pré-ordenação estrutural para ser a expressão
daqueles sentimentos mtemos. Esta pré-ordenação estrutural é, em
última análise, o resultado da unidade psicossomática do homem,
que experimenta a dor ou a alegria na totalidade de seu ser e tende
espontaneamente a manifestá-los por meio do lamento e do riso, sem
interpor um controle consciente de inibição. Poderíamos dizer que o
nexo existente entre o lamento ou o nso e os sentimentos internos
que eles significam, mais que um nexo causal, é um nexo de reação
espontânea, de uma expressão imediata (versión expressiva inmedi-
ata). Mais tarde estes sentimentos poderão ser expressos através·
dos elementos de um sistema articulado de signos arbitrários, ao di-
zer-se, por exemplo: 'Dói-me a cabeça', ou: 'Tenho muita pena'.
Todavia, antes de tal expressão lingüística arbitrária dá-se esta ou-
tra possibilidade expressiva (versión) imediata e espontânea, que é a
reação psicossomática. E esta é a verdadeira expressão natural, o
signo natural da dor ou da alegria.[ ... ] Poderíamos dizer, pois, que,
segundo Ockham, o conceito é signo natural lingüístiéo do obJeto
porque é a reação do entendimento humano ante a presença ativa
deste objeto; e porque esta reação espontânea que é o conceito 'nata
est pro obiecto supponere in propositione mentali'" 140.
O conceito, segundo a interpretação de De Andrés, é signo
natural enquanto é uma reação psicossomática espontânea, não ma-
nipulável voluntariamente, devido a uma pré-ordenação estrutural
do homem a conhecer a realidade através de sinais lingüísticos. Para
sustentar uma tal proposta exegética, o autor passa em resenha as
prmcipais doutnnas ockhamistas acerca da atividade do intelecto e
da natureza do conceito universal. À primeira vista, de fato, parece
que há contradição entre a tese do signo mental como reação es-
pontânea da mente defronte ao objeto e a negação ockhamista da

140 De Andrés. E/ 1w11111whs1110 , pp 99-100

82
atividade do intelecto. Em realidade, rebate De Andrés, as afirma-
ções a respeito da passividade do intelecto na formação dos concei-
tos 141 devem ser acopladas à negação da existência do intelecto
agente e da espécie intelectiva, pois que Ockham, em muitos passos,
reivindica uma certa atividade do mtelecto na formação dos concei-
tos 142. Confirma-se assim o fato de que, após haver hesitado longa-
mente, Ockham acabou abraçando a tese segundo a qual o universal
coincide com o ato mesmo de entender, abandonando toda a teoria
do conceito como imagem, semelhança ou ficção, e substituindo
pela teoria do conceito como signo, ou seja, como reação espontâ-
nea, imediata e de certo modo ativa do mtelecto ante os objetos 143 •
Na medida em que, identificando-se com o ato de conheci-
mento, o conceito não é uma reprodução da realidade, nesta medida
sua capacidade significativa não pode ser reconduzida à semelhança
que os conceitos têm com as realidades extra-mentais, à sua capaci-
dade de representar as coisas. Uma semelhante explicação seria de
resto insuficiente: um conceito-imagem não está em condições de
gerar conhecimento de qualquer coisa que não tenha sido conhecida
antes, pela mesma razão pela qual a estátua de Hércules não faz al-
guém conhecer Hércules, se já não teve antes alguma espécie de co-
nhecimento dele. Entretanto, a idéia de semelhança volta seguido à
explicação do conhecimento conce1tual dada por Ockham, que não a
chama à tela para evidenciar uma semelhança entre o signo mental e
a coisa significada, mas somente em relação à maior ou menor se-
melhança que existe entre os diversos objetos singulares extra-
mentais. O conceito é um signo mental que estruturalmente designa
os objetos reais, mas alguns conceitos abarcam uma multidão de
objetos maior que aquela à qual outros conceitos remetem: a am-

141 «Umversaha ct mtenllones ,ecundae causantu1 natuiahter sme om111act1v1tate mtellectus»


(Quaest1011e1·vwwe, V [Quacst d1;p [[!], Ope"' theolog1w VIII, p 175)
1" De And1és, E/ 110111111a!t11110
, pp 106-111
1" 1 «Quodhbel urnversale est mtenllo an1111ae, quae secundum unam op1111onemprobabtlem ab
actu mtclltgend1 non chlfe1t Unde d I c u n t quod 111tellcct10qua intelhgo hommem est s1-
gnum natuiak hommum, 1ta natuialc s1cut gem1lus cst stgnum mfirrmtatls vel tnstttiae seu do-
/, '"" ae, 1, 15. Ope/(/ P/11/0.,op/11,a 1, p 53)
lolls» (Su111111i1

83
plitude do campo de sua significação depende não de conceitos, mas
da maior ou menor semelhança existente entre os smgulares.
O conceito é signo natural e, segundo a aguda definição de P.
Ricoeur, "a característica do signo é a de ser um envio a qualquer
outra coisa, ausência de si, saída total no movimento para fora de
si" 144• O signo, enquanto signo, não possui qualquer caráter ôntico,
mas somente uma kenosis ôntica, um esvaziamento de si mesmo, no
qual consiste propnamente sua capacidade de remeter a outro. Jus-
tamente por isso De Andrés observa que não é exato afirmar que
Ockham, abraçando a teoria do conceito como ato de entender, te-
nha recusado a teoria do esse obiectivum: assistimos antes a um es-
forço de Guilherme, a fim de dar um suporte suficientemente sólido
ao esse obiectivum, sem objetivá-lo excessivamente. "A descoberta
do esse obiectivum como mero conteúdo referencial (que aparece já
na primeira das teorias adotadas por Ockham, isto é, na teoria do
flctum) constitui a nosso ver a base fundamental da teoria significa-
tivo-lingüística do conceito" 145. Pode-se falar de uma recuperação
do esse obiectivum só depois de serem removidos os perigos de mal-
entendidos, e entendendo-o como uma recuperação de afirmação da
intencionalidade do conhecer na perspectiva que considera o con-
ceito como uma transparência, uma pura mirada. A este respeito, só
se pode concordar com De Andrés se o esse obiectivum não for en-
tendido como algo de intermediário, que se põe entre o sujeito e o
objeto, mas como designante da natureza do signo lingüístico, natu-
reza intencional, que se exaure toda em seu 'tender para'.

4. O êxito do anti-realismo

Na segunda distinção da Ordinatio e na primeira parte da


Summa logicae, tratando dos universais, Ockham faz uma crítica
minuciosa às teorias assim chamadas reahstas, quer se trate do rea-

144 Citado por De Andtés. E/ 110111111a/111110 , p 174


145 lbtdem

84
lismo exagerado, quer daquele mais mitigado, que ele une com a po-
sição de Duns Scotus 146•
A primeira e mais radical crítica aconteceu a respeito da teo-
ria das distinções. Os escolásticos do século XIII, não obstante a
terminologia diferente, admitiam todos uma tríplice distinção: real,
lógica e intermediária. Esta última fora qualificada como formal por
Duns Scotus, como distinção de razão cum fundamento in re por
santo Tomás, como distinção intencional por Henrique de Gand. Por
qual razão Duns Scotus e os outros escolásticos recorriam a esta
distinção intermediária? Para fundamentar a legitimidade de atribuir
a um mesmo sujeito predicados diversos, ou seja, para salvar a pos-
sibilidade de elaborar um saber científico. De fato, é evidente que o
saber humano se constituiria de constatações puras e simples, se em
torno de um objeto qualquer não fosse possível formar outras pro-
posições além daquela na qual o predicado é idêntico ao sujeito: Só-
crates é Sócrates, o homem é homem etc. Pode haver ciência so-
mente se uma realidade pode suscitar no intelecto uma multiplicida-
de de conceitos, se a qüididade de uma coisa, além de designada na
totalidade de suas integrações qualitativas, pode ser designada me-
diante uma ou outra das propriedades ou qualidades que lhe perten-
cen;i. Em tal caso, de fato, daquilo que uma coisa é pode-se deduzir
que ela possui esta ou aquela propriedade. Para afirmar que as pro-
posições como: Sócrates é Sócrates, Sócrates é homem, é um ani-
mal, é um ser vivente etc. são verdadeiras, é necessário admitir que
com aqueles diversos predicados designa-se sempre o mesmo ser,
visto porém como que revestido ora de uma qualidade, ora de outra.
Mas como é possível indicar sempre a mesma coisa com conceitos
diferentes um do outro? A esta pergunta Duns Scotus respondia:
porque não é necessário que a conceitos diversos correspondam se-
res diversos; é suficiente que o intelecto distinga em ato aquilo que
na realidade é distinto somente em potência. A legitimidade de atri-
buir múltiplos predicados a um mesmo sujeito é garantida pelo fato
que os constitutivos essenciais e as diversas propriedades de uma

14r, ln l Sent, 2, 4-7. 11,pp 99-266, S111111110


lo,:,we, 1, 15-16, Opel(I Ph,/o.wph,ca 1, pp 50-
57

85
coisa não são realmente distintos, mas só formalmente; do fato que,
por exemplo, embora na realidade o unum seja inseparável doens, a
humanidade seja mseparável de Sócrates, a humanidade seja insepa-
rável da animalidade, todavia uma coisa não é a outra. Sem dúvida,
esta alteritas não é suficiente para fazer do ens e do unum duas coi-
sas das quais uma possa realizar-se sem a outra; mas é suficiente
para fazer com que o ens seja concebido como distinto do unwn.
Com isto Duns Scotus visava evidentemente a demonstrar que
mesmo se a distinção existente entre os conceitos não se verifica na
realidade extra-mental, isto não impede que essa possua um funda-
mento intrínseco nas coisas 147• Ockham procede invés de modo di-
verso. Começa por observar que uma coisa não pode produzir mais
que um conceito no intelecto: isto é, uma coisa não pode fazer co-
nhecer uma outra. Como consequência, se é possível designar uma
mesma coisa com vários conceitos, isto acontece somente porque ela
é colocada em confronto com outras. Segundo a termmologia
ockhamista, de uma coisa só se pode ter um único conceito
'absoluto'; todos os outros são conceitos 'conotativos', isto é, são
conceitos obtidos ao colocar-se a qüid1dadede uma coisa em relação
com a de uma outra. Esta relação não pode ser deduzida da defini-
ção de suJeito, pois este, de fato, pressupõe o conhecimento próprio
de duas realidades, visto que o conhecimento próprio de um objeto
jamais produz só por si mesmo o conhecimento próprio de um outro
objeto 148• Como fica claro, diferentemente de Scotus, a possibilidade
de atribuir predicados diversos ao mesmo sujeito, Ockham não a
fundamenta na natureza composta do próprio sujeito, mas na capa-
cidade de nosso intelecto de confrontar e colocar em relação uma
coisa com outras. Por sua vez, a multiplicidade de juízos que se
formulam a propósito de uma coisa consiste no colocar em relação
esta coisa com outras de múltiplos pontos de vista. Que as coisas

147DunsScotus,O1c/11w1w, l,8,p l,q 4,nn 191-217.ed Yat1cana,IY,pp 260-274


148«Umversahte1 numquam not1tm umus rei extra 111complexaest causa suffic1ens, etmm cum
111teilectu,1espectu pnmae nottt1ae 111complexealte11us rei qum quthbet expentur 111se quod
quantumcumque cognoscat 111tmt1veet perfecte ahquam 1em. numquam per hoc cognosc1t ah-
am tem ms1 praehabeat not1tta1111lhusalte11us 1e1»/11/Se/li, Prol, 9, Ope/{/ Theo/or;tw 1, pp
240-241)

86
sejam compreendidas deste modo é algo que resulta das conseqüên-
cias insustentáveis em que cai quem admite a distinção formal. Para
Duns Scotus, a proposição: 'Sócrates é homem' é verdadeira, embo-
ra seja verdadeiro que Sócrates não é Platão, o qual também é um
homem: porque embora em ato Sócrates não seja Platão, nem Platão
seja Sócrates, contudo continua verdadeiro que a humanidade pode
realizar-se quer em Sócrates, quer em Platão. Portanto as duas pro-
posições: 'Sócrates é um homem' e 'Sócrates não é Platão' não são
contraditórias, porque a primeira é verdadeira segundo uma certa
perspectiva, e a segunda, segundo uma outra. Ockham faz a se-
guinte observação a este modo de proceder: quando duas coisas dão
lugar a juízos contraditórios entre si, são realmente distintas; uma
coisa distingue-se de uma outra quando aquilo que se predica de
uma não pode ser predicado da outra. Ficando no exemplo prece-
dente: se Sócrates e homem não são a mesma coisa, se a realidade
Sócrates não coincide em tudo com a realidade homem, as duas
proposições que se seguem são ambas verdadeiras: 'Sócrates é em
tudo idêntico a Sócrates', e 'homem não é em tudo idêntico a Só-
crates'.
Na nossa hipótese, aquilo que se predica de um (Sócrates),
não se pode predicar de outro (homem) e, por isso, quem diz:
'Sócrates é homem', se contradiz, porque diz que Sócrates é idênti-
co e ao mesmo tempo não idêntico a Sócrates. Segue-se que não há
espaço para uma distinção formal, isto é, distinta da distinção real
ou da distinção puramente lógica. Guilherme apela no caso para o
princípio de não-contradição, o qual não admite vias intermediárias:
se Sócrates não é Sócrates, não o é com tudo o que é em si mesmo,
radicalmente, do mesmo modo como ao ser repugna o não-ser, isto
é, em sua totalidade 149• À pergunta de quem quer saber sobre que
base se funda então a legitimidade de formular Juízos a propósito de

149 «Arguo per unum argumentum quod est aequahte1 contra d1stmctmnem vel non-1denlltatem

formatem ub1cumque ponatur Et arguo s1c ub1cumque est ahqua d1stmctm vel non-1denutas,
1b1possunt ahqua contrad1ctona de 1lhs venfican, sed 1mposs1b1leest contrad1ctona venfican
* *
de qmbuscumque, msi ilia 1 vel ilia pro qu1bus supponunt 1 smt d1stmctae res» (ln / Sent,
2, 1, Ope1t1 Theo/og1w li, p 14) Cfr S1111111w /og11t1e, 1, 16. Opelll P/11/mopluw I, pp 54-
57

87
uma mesma coisa, ou seja, em força de qual propnedade todos têm
igualmente como verdadeJras as proposições: "Sócrates é Sócrates',
'Sócrates é um homem', 'Sócrates é um animal' etc., Ockham res-
ponde que isto acontece graças à propriedade que o conceito tem de
supor, isto é, de estar no lugar ora de uma coisa, ora de outra, no
interior de uma proposição. Com a proposição anterior se diz que
Sócrates é verdadeiramente um homem e é verdadeJramente um
animal, mas não no sentido que Sócrates seja o predicado 'homem'
ou o predicado 'animal', e sim no sentido de que é alguma coisa no
lugar da qual podem estar o predicado 'homem' e o predicado
'animal' 150 . O pensamento de Guilherme a respeito das distinções
pode ser assim definido: a distinção real acontece somente entre se-
res reais numericamente distintos, dos quais um não é realmente o
outro; a distinção de razão é aquela que se passa entre conceitos ou
termos que possuem definições diferentes.
A distinção real não pode, pois, ser aplicada aos conceitos, e
a distinção de razão não pode referir-se aos seres reais. Entre Só-
crates e Platão, entre um homem e um asno, há distinção real; entre
o ser e o não-ser não há distinção real, mas tão somente de razão,
porque se trata de conceitos.
A tal propósito o texto da distinção segunda da Ordinatio,
onde é tratado de forma um tanto difusa o problema das distinções,
apresenta duas particularidades dignas de nota. A primeira é cons-
tituída pela afirmação ockhamista que a distinção formal, embora
excluída do plano das distinções que se colocam no âmbito das
criaturas, deve ser mantida quando se reporta à essência divina e às
pessoas individuais, isto é, no contexto trinitário. A segunda parti-
cularidade é representada, por parte de Ockham, pela admissão que
ele faz, embora sem desenvolvê-la em todas suas implicações e qua-

"º «Sumhter etiam per tales potpos1t1011es'Smtes est homo', 'Sortes est ammal' 11011 de11otatur
quod Sortes habeat humamtatem vel ammahtatem, 11ecde11otatu1quod humamtas vel ammah-
s1t de es,entia vel de qu1dd1tate Sortis vel de mtel-
tas s1t 111Sorte, 11ecquod homo vel a111111al
lectu qmdd1tat1vo Sortis, sed denotatm, quod Smtcs vere est homo et vere est ammal Non qu1-
dem quod Smtes s1t hoc piaed1catum 'homo' vel hoc piaed1catum 'animal', sed denotatur quod
est ahqua 1es, pro qua stat vel suppomt hoc piacd1catum 'homo' et hoc piaed1catum 'ammal',
qma pro Smte stat utrumque 11lornm piaed1catmurn» (Su111111a /01;1u1e, li, Opera Ph,lowph,ca
I, p 250)

88
se de passagem, de duas distinções intermediárias entre a real e a de
razão: a distinção que se mterpõem entre um ser real e um de razão,
e a que acontece entre um composto de algo real e de algo racional,
e um outro composto semelhante151• Embora tendo sustentado que
entre pensamento e realidade não existe nenhum intermediário e que,
portanto, só existem distinções reais ou de razão, Ockham obedece
neste texto a um imperativo lógico-descritivo, qual seja o de reco-
nhecer que se pode logicamente propor um confronto entre um ser
real e um ser de razão; a distinção entre eles é média, no sentido de
que não coincide simplesmente com a distinção real ou com a de ra-
zão, embora, seguramente, não venha ela entendida com algo de
análogo à distinção formal anteriormente criticada. Estas distinções
médias não se apresentam muito claras para o leitor, mesmo porque
não se vê que coisa pode ser insenda como intermediária entre a re-
alidade extra-mental e a mental, sem cair no abstrativo, isto é, sem
ir contra o princípio fundamental de economia, a conhecida navalha
ockhamista. Provavelmente Ockham chega a esta concepção devido
à negação por ele operada da aplicabilidade da distinção de razão a
uma mesma realidade: ele está convencido que a distinção de razão
é aquela que acontece somente entre os entia rationis, entre dois
conceitos, por exemplo, os quais diferem totalmente entre si, como
difere a realidade extra-mental à qual remete cada um dos dois con-
ceitos.
Referíamo-nos acima ao fato de que os escolásticos do século
XIII, ao contrário, haviam falado da distinção de razão entendendo-

151 «Ideo d I e o guod excepta d1stmct1one vel non-1dent1tate fmmah guae est ex natura rei et
guae est d1fficdlima ad mtelligendum et guae 11011 est ponenda ms1 ub1 fides compelht, mhd d1s-
11ngmtur ab ahguo ms1 s1cut ens reale ab ente 1eah, ct omms tahs d1stmct10 est d1stmct10 1eahs,
nec plus dependei ab mtellectu guam 1psa enlltas dependei ab mtellectu Vel d1stmgmtur s1cut
ens ralloms ab ente ratioms, et omms tahs d1stmc110cst d1~t1nct10ratmms, guae 1dent1tatem re-
alem simphc1te1 excludll, s1cut ens rauoms 11011 potcst esse ens 1eale Vel d1stmgmtur s1cut ens
reale ab ente ralloms vel e converso; et 1sta d1stmct10sinete et pwpne non est reahs nec ratloms,
s1cut nec 1psa d1stmcta sunt entm reaha nec entia ratmms, sed est guas1 media, guia unum ex-
tremum est ens reale et aliud est ens ratmms, guahter autem debeat vocru I non curo ad prae-
sens, guia hoc est m voluntate loquentmm Vel d1stmgmtu1 s1cut aggregatum ex re et ratlone ab
ente reali vel ente ratmms, vel a consumh agg1cgato, et 1sta d1stmct10 - s1cut nec praecedens -
nec est propne et sinete reahs nec est iatmms, propte1 eandem ratmnem» (/11J Sem , 2, 3, Ope-
ra Tlieolog,w li, p 78-79)

89
a como aquela distinção que tem lugar entre conceitos diversos, to-
dos eles correspondendo a uma mesma realidade. Deste modo sal-
vaguardavam a objetividade do conhecimento e, ao mesmo tempo, a
possibilidade que o homem ut1hze conceitos válidos mesmo se à
distmção que se passa entre tais conceitos não corresponde uma
distinção na realidade. Esta necessidade de nossa mente não podia
passar desapercebida para Ockham, sob a pena de redução do inte-
lecto humano a mero registrador passivo de impressões que lhe pro-
vêm do exterior. Pode-se avançar a hipótese de que as duas distin-
ções que Ockham coloca sejam de algum modo uníveis à reivindica-
ção de uma certa atividade autônoma do mtelecto, operada também
mediante a concepção do conceito com o signo. De fato, o intelecto
pode comparar entre si um ente real e um ente de razão (ou seja
uma entidade composta de algo real e algo racional, com um outro
ente semelhante ou com outro ente qualquer), e analisar as distin-
ções que ocorrem entre eles.
Da concepção do conceito como signo e do modo de entender
a distinção real e a de razão surge claramente á luz o anti-realismo
de fundo de Ockham, que nega a existência de qualquer fundamento
do universal enquanto tal na natureza das coisas. Em defesa desta
posição, Guilherme apresenta diversos argumentos. Uma crítica de
fundo que bem reflete o rigor lógico e o ponto de vista teológico de
Ockham é a seguinte: Tomemos a hipótese que no interior das coi-
sas a essência específica ou a genénca distingam-se da essência in-
dividual; ipso facto somos obngados a admitir então que a essência
específica, enquanto realmente existente, possui a sua própria uni-
dade, através da qual se coloca como uma realidade diferente ou di-
vidida daquela outra realidade que é a essência individual, visto que,
para existir realmente, toda a coisa deve constituir-se como coisa
numencamente una, isto é, singular. Assim sendo, a essência uni-
versal, na medida em que pode ser algo de real, cessa de ser univer-
sal para tomar-se singular. Ora, se tal essência encontra-se realiza-
da em diversos indivíduos, mantendo-se mvariada em sua unidade,
devemos dizer que ela se comunica do mesmo modo com o qual a
essência divina, permanecendo idêntica e sem multiplicar-se, comu-
nica-se a mais pessoas no interior da trindade divina. Uma tal con-

90
seqüência, porém, não é aceitável, porque leva a atribuir ao ser cn-
ado as mesmas perfeições do ser divino 152. Com isso cai a hipótese
da qual partimos. O realismo é inaceitável também por outras ra-
zões. Fiquemos ainda na hipótese anterior, pela qual a essência uni-
versal distingue-se realmente da individual. Não há senão duas pos-
sibilidades de entender tal hipótese: ou o universal e o individual são
duas realidades igualmente simples, caso em que, se uma delas é in-
dividualizada, não se vê porque a outra não poderia também sê-lo;
ou então existe a segunda possibilidade, que o universal inclua uma
pluralidade de elementos intrínsecos maior que aquela contida no
indivíduo. Neste caso, porém, cabe a pergunta: de que coisa é cons-
tituída esta pluralidade? Ou é constituída de uma pluralidade de coi-
sas singulares ou de uma pluralidade de coisas universais. No pri-
meiro caso, deduz-se que existiria uma substância constituída de
muitas substâncias singulares, e por isso o universal se distinguiria
do particular tal como o todo se distingue da parte; mas os defenso-
res do realismo querem sustentar exatamente o contrário, isto é, que
o universal se encontra no indivíduo do qual é parte essencial. A se-
gunda solução proposta, isto é, que a pluralidade constitutiva do
universal seja dada por elementos universais, também carrega con-
sigo a c0ntradição: de fato, cada um desses elementos compreende-
ria, por sua vez, uma pluralidade, e assim ao infinito; este processo
ao infinito, porém, é contraditório, porque comporta a existência do
infinito em ato 153.

152 «N1h1lcommumcab1le rebus per 1dent1tatem 111s1 sola essentm d1vma tnbus suppos1t1s qmbus
est eadem reahter» (lb1, 2, 7, Ope1a Theoloi1w II, p 258)
15' «Qma mnnis substantm vel est una 1es et non plmes, vel est plures res S1 est una et non plu-

res, est numero, hoc emm ab ommbus vocatur unum nume10 S1 autem ahqua substantm est
plures 1es, vel cst plures 1es ,mgulares vel plrnes re, umve1sales S1 pnmum detur, seqmtur,
quod ahqua substantm esset plmes substanuae smgulmes, et pc1 consequens eadem rauone ah-
qua substanua esset plures hommes, et tunc, qumnv1s umve1sale d1stmgueretu1 a part1culan
uno, non tamen d1stmgueretm a part1culanbu, S1 autcm ahqua substantm esset plures res um-
versales, acc1p10 unam 1starum rerum universahum et quaero· aut est plures res aut una et non
plures S1 secundum detur, seqrntu1 quod est smgulans, ,1 pmnum detur, quaero aut est plures
res smgula1es aut plrnes res umversales Et 1ta vel e11t processus in mfimtum vel stab1tur quod
nulla substantm est umversahs lia quod non smgulans, ex quo rehnqmtur quod nulla substanua
est umversahs» (Summa loi1cae, 1, 15; Ope1a P/11/0,rnpluw 1, pp. 50-51)

91
Uma outra consequência negativa do realismo é a segumte: se
o universal fosse alguma realidade distinta da essência individual,
Deus poderia produzir o universal sem produzu- nenhum dos indiví-
duos nos quais o uníversal está presente, pelo fato de que, quando
duas coisas são distintas, Deus pode produzir a primeira sem pro-
duzir a segunda. Da hipótese realista seguir-se-ia assim que, por
exemplo, Deus pode produzir a humanidade mesmo se não existem
homens, o que é absurdo 154.
Mais ainda: se os mdivíduos fossem compostos de uma es-
sência universal e de uma essência ind1v1dual,não seria ,possível a
Deus destruir um mdivíduo sem destruir simultaneamente todos os
demais pertencentes à mesma espécie. Para aniquilar um homem,
Deus deveria aniquilar a natureza humana, a qual, segundo a hipó-
tese, é comum a todos os homens. De modo inverso, Deus não teria
a possibilidade de criar, isto é, de colocar em originalidade e novi-
dade absolutas algum indivíduo da mesma espécie: se a essência
universal existisse realmente e fosse um elemento constitutivo es-
sencial da realidade de todo indivíduo, seguir-se-ia que o ato cnati-
vo, que se conclm em um novo md1víduo, seria um ato que não tira-
ria este indivíduo do nada, pois que já ex1stina um de seus elemen-
tos constitutivos, representado pela essência universal presente nos
demais indivíduos existentes 155. Todas estas críticas ao realismo em
todos seus aspectos, exagerado ou moderado, podem-se condensar
em uma crítica breve, que bem exprime a posição de Ockham ante o
real: um ser smgular só pode ser constituído por elementos também
singulares; portanto, é um não-senso afirmar que o indivíduo se
constitua mediante a síntese de um elemento ou parte universal e de
um elemento ou parte não universal: é ir contra o princípio funda-
mental de economia, para o qual, a fon de explicar o singular, é su-
ficiente e exaustivo recorrer aos elementos em tudo e por tudo sin-

154 «Item, s1 ahquod umversale esset substantia una ex1,tens m substantns smgulanbus, d1s-

tmcta ab eis, sequeretu1 quod possetes,e sme eis, qu1a omnis res pnor natmahte1 aha potest pe1
d1vmam potentiam esse sme ea, sed conseguem, est absmdum» (/bulem)
m lb1de111

92
gulares 156. Duns Scotus procurou fugir das conseqüências implícitas
no realismo exagerado, introduzindo a distinção formal: a natureza
comum distingue-se não realmente, mas só formalmente da diferen-
ciação ou contração individual. Ockham opõe-lhe o costumeiro ar-
gumento: duas coisas formalmente distintas ou são iguais sob todos
os aspectos, e então não se distinguem, ou não são iguais sob todos
os pontos de vistas, e então distinguem-se entre si como o ser se
distingue do não-ser, isto é, radicalmente 157. Desta alternativa ine-
vitável não foge nem mesmo a opinião de quem sustenta que entre a
esssência específica e a individual há somente uma distinção de ra-
zão cum fundamento in re. Segundo os defensores desta tese, entre
os quais sobressai Tomás de Aquino, a natureza das coisas, de fato,
não é universal na realidade, mas está apta a realizar-se em muitos
indivíduos, sendo assim diferente do elemento individuante, que por
sua natureza é incomunicável. Sustentando uma tal posição, rebate
Ockham, acaba-se por dizer que o elemento universal distingue-se
logicamente do elemento individual, visto que a universalidade ou
predicabilidade de muitos indivíduos emerge somente em virtude de
um ato intelectivo, e o mesmo acontece para distingui-lo do ele-
mento individual. Ora, sustentar que o universal e o individual estão
ambos presentes no indivíduo, mas distinguem-se só logicamente,
significa não perceber que o universal e o individual resultam con-
traditórios, não só porque o primeiro é predicado em ato de muitos
indivíduos, mas principalmente porque já originariamente (de se, ex
natura sui) o primeiro está disponível para a predicação, ao contrá-
rio do segundo, ao qual tal predicabtlidade repugna. Vale pois o
princípio segundo o qual duas coisas, as quais estão entre si de tal
modo que aquilo que se afirma de uma deve ser negado de outra,
são realmente distintas, isto é, são duas realidades totalmente diver-

156 «Item, tale umversale 11011 posse! pom ahqmd totahter extra essentmm md1v1dm, esse! 1gitur
de essentta 111d1v1dm,et pe1 consequens md1v1duum componeretur ex umversal1bus, et 1ta 111d1-
v1duum non esset mag1s smgulare quam umveu,ale» (Ih,, Ope,a P/11/osop/11ca1, p 51) «Vel
nulla pars md1v1du1est smgulai 1svel quaehbet, ,ed non nu lia, 1g1turquaehbet» (/11/ Sent, 2, 5,
Opera Theolog1ca 11,p 159)
m «S1 natura et ilia d1fferentta cont1ahens non smt idem ommbus modts, 1g1tur ahqmd potes!
veie affinnan de uno et negan a reltquo, sed de eadem te 111creatuns non potest idem vete
affinnan et vere negan, 1g1turnon sunt una re,» (Ih,. 2, 6, Opew Theolog1w II, pp 173-174)

93
sas, como são diversos ser e não-ser 158• Há uma única possibilidade
para manter a distinção entre universal e individual, qual seja a de
reconhecer a diferença radical entre ambos: o universal é um con-
ceito, um signo mental ou ente de razão, enquanto o individual é um
ente real, uma coisa existente por si no plano natural. Todas as
auctoritates dos filósofos e teólogos são interpretadas ou corrigidas
precisamente segundo esta direção 159 .
Para fundamentar a validade de nosso conhecimento, Ockham
não julga necessário fazer do individual um elemento real intrínseco
ao indivíduo, para acabar depois nas incongruências de toda a posi-
ção realista; a capacidade de nossa inteligência de atingir a realida-
de é garantida pela função significativa essencial dos conceitos e
pela aptidão deles em estar no lugar das coisas. Função significativa
e atitude suposicional existem naturalmente e, como tais, não tem
necessidade de serem justificadas com elaborações teóricas mais ou
menos engenhosas. Esta posição não deixa que caia sobre Ockham
a acusação de 'subjetivismo': o conceito não faz conhecer uma mo-
dificação do espírito, mas envia a realidades; por sua natureza é si-
gno da realidade e, portanto, objetivo. Não se pode nem mesmo fa-
lar de 'nominalismo':· a interpretação exata desta alcunha remete
aos sustentadores da tese de que o universal é uma palavra (vox),
um som articulado; ora, a palavra é signo de uma coisa só por con-
venção, significa para mim uma coisa determinada porque os ho-
mens assim o estabeleceram. Para Ockham, ao contrário, o conceito
é, por sua natureza, manifestador da realidade, é signo natural e não
convencional. A qualificação que parece mais exata para designar a
posição ockhamista a respeito do problema do conhecimento univer-

tsx «S1 d I e a t u r quod umve1sale non p1aed1cetm de plunbus ms1 per actum 111tellectus
componenlls, et 1deo res quae de se non piaed1catur de plunbus potest per actum mtellectus
componentts praed1can de plunbus Hoc n o n v a I e t , qum non tantum praed1can de
plunbus et non praed1ca11de plunbus cont1ad1cunt, sed piaed1cab1le de plunbus et non praed1-
cab1le de plunbus contrad1cunt Ante actum mtellectus umversale potes! praed1can de plun-
bus et s111gularenon est praed1cab1le nec potest piaed1cai I de plunbus, 1g1turs111eomm actu 111-
tellectus umversale non est smgulate» (lb,, 2, 7. Opera Theolog1w II, pp 236-237)
''" «Omnes auctontates quae sonant umve1saha esse de essentm substanuarum vel esse 111
substanttis vel esse pattes substantm1um, debent s1c 111telhg1,quod auctores 11011 111tenduntms1
quod taha umversaha decla1ant, exp11munt, exphcant, 11np01tantet s1gmficant substantias re-
rum» (Su111malognae, 1, 17, Ope111Phdo.111p/11w 1, pp 59-60)

94
sal é a de conceptualismo, entendendo-se com isto caracterizar a es-
colha que Ockham faz de negar todo tipo de universalidade extra-
mental e de salvaguardar simultaneamente a objetividade dos con-
ceitos. Conceptualismo realista, como precisa Boehner, contrapon-
do-o ao idealista, p01s todo o conteúdo de nossos conceitos consiste
em sua capacidade de remeter-nos à realidade, a levar-nos para fora
da mente.
O conceptualismo como resultado do anti-realismo deve ser
visto também à luz da posição de fundo da reflexão ockhamista:
Ockham é um filósofo que não cessa jamais de ser teólogo. Ensi-
nando que o universal não é um quid real, mas simplesmente um si-
gno natural da realidade, entende restituir a criação à livre iniciativa
de Deus, sem negar ao intelecto humano a capacidade de conhecer
verdadeiramente as coisas. A validade do conhecimento humano, as
leis da lógica e a possibilidade do saber científico necessário são
postas a salvo sem lesar os d1reitos da onipotência divina, sem
amarrar as mãos ao domínio absoluto de Deus sobre a realidade
contingente.

95
IV

A METAFÍSICA

1. O objeto primeiro do intelecto

O problema do objeto primeiro do intelecto é o ponto de pas-


sagem da gnosiologia para a metafísica: é o momento de verificação
crítica, quando se pode averiguar a maior ou menor solidez do fun-
damento, isto é, do plano onde a evidência domina sob a forma de
incontrovertibilidade. O problema do primum cognitum abarca, de
fato, tanto a questão da relação pensamento-realidade, de natureza
gnosiológica, quanto a questão a respeito da estrutura originária da
faticidade (datità) imediata, que é um problema metafísico.
Para Ockham há um tríplice modo de entender o que seja o
objeto primeiro do intelecto: pode-se falar de objeto primeiro com
relação à prioridade de origem, ou seja, daquilo que atua como tér-
mino do primeiro ato de conhecer; ou pode-se falar de objeto pri-
meiro com relação à prioridade de adequação, ou seja, com relação
à capacidade de ser predicado de todos os inteligíveis, de referir-se à
totalidade; ou, enfim, pode-se entender por objeto primeiro aquele
inteligível que prima pela perfeição, isto é, o ser o ser mais perfeito
que pode entrar em nosso conhecimento intelectivo 160• Dos três mo-

160 «D1stmguo de pnmo ob1ecto mtellectus, qma quoddam potest mtelhg1 esse pnmum ob1ec-

tum mtellectus vel pmmtate generat10ms, et t:!>l11ludquod te1mmat pnmum actum intelhgendi,
vel potest esse primum prilmtate adaequat10ms, et tunc esset 11ludquod praed1caretur de omm-
bus per se mtelhg1b1libus , vel potest esse primum p1imllate perfecttoms, et est perfecttss1mum
mtelhgtb1le ab intellectu» (/11/ Sent, 3, 1; Opera Theolo,:,w li, pp. 388-389) O problema do
'pnmum cogmtum' abmca quase mtetramente a d1stmção terceira da O,dmatw, de modo par-
ticular mte1essam a~ questões: 1 («Utrum p111numcogmtum ab mtellectu nostro slt d1vma es-

97
dos de entender o primum cogmtum, o de maior peso é o segundo,
pelo fato de que comporta a necessidade de estabelecer o conteúdo
concreto da unidade entre pensamento e realidade. A prioridade de
adequação pode fundar-se somente sobre uma imediatidade do plano
originário, a qual não pode ser simplesmente de natureza gnosioló-
g1ca.
O fato de que Ockham introduza a temática do primum cog-
nitum e a desenvolva amplamente é suficiente por si só, mesmo
prescindindo dos resultados obtidos, para desmantelar a tese de
quem vê em Ockham o lógico mteressado exclusivamente em um
correto uso dos termos ou de todo empenhado na tentativa de elabo-
rar uma filosofia da linguagem, longe de todo o interesse de caráter
metafísico. Ockham, como todo o filósofo, sente a premência de in-
dagar a respeito da estrutura ongmána do conhecer; está premido
pela necessidade que o pensamento sente de estabelecer exatamente
a natureza de seu reportar-se com a totalidade do ser. Portanto, é
necessário ler suas aflfmações sobre o conhecimento intuitivo do
singular e sobre a individualidade intrínseca do real também à luz
da temática a respeito do primum cognitum.
Retornando ao texto, vejamos como Guilherme chega a esta-
belecer que o objeto primeiro do mtelecto, com relação à prioridade
de origem, é constituído pelo smgular. É um dado de fato, observa
ele, que o smgular entra no conhecimento mtelectivo: se o smgular
pode ser percebido pelos sentidos, com maior razão se deve admitir
que pode ser captado pelo mtelecto, que é uma faculdade cognitiva
mais perfeita. Aqueles que excluem o smgular do conhecimento in-
telectivo, aduzem como motivo da exclusão a natureza do intelecto,
que é tão perfeita a ponto de não permitir que o mtelecto capte uma

sentia»), 5 («Utrum umversale commumss1mu1n s1t pumum cogmtum a nob1s»), 6 («Utrum


pnma nott!la mtellectus prnrntate gene1attoms sl! no!llla mtu1ttva ahcmus smgulans» ), 7
(«Utrum smgulme possl! d1stmcte cognosc1 ante cogmllonem entis vel CU!uscumque umversa-
hs») e 8 ( «Utrum ens commune sit ob1ectum p11mum et adaequatum mtellectus nostn») No se-
gundo volume da edição crí!lca, tais questões comp1eendem no conJtmto bem 113 págmas, nas
quais GU!lhellne, além de expor a p1ópna op1mão, cntica em detalhes as posições de Tomás de
Aqumo, Hennque de Gand e Dum, Scutm A mesma solução do p10blema está contida no
Quod/ l, q 13 «Utrum pnmum cogmtum ab mtellectu pnml!ate geneiattoms s1t smgulare»
(Opera Theo/og,w IX, pp 72-78)

98
coisa tão imperfeita, como é o smgular material, nem que possa ser
determinado a conhecer por qualquer coisa material, nem que possa
receber qualquer coisa materialmente 161• Tal motivação, porém, não
é fundamentada, primeiramente porque o universal, que é abstraído
das coisas materiais, não é em nada mais perfeito que o singular.
Além disso, o intelecto é determinado a conhecer ou pelo intelecto
agente, ou pela espécie inteligível do fantasma: mas todos estes fato-
res podem muito bem determinar o conhecimento do particular do
mesmo modo como permitem o conhecimento do universal. Enfim,
também o singular pode ser apreendido de modo não material, pre-
cisamente como acontece com o universal, como se pode argumen-
tar do fato que o universal leva sempre ao conhecimento da realida-
de individual. Portanto, o particular não está de per si excluído do
conhecimento imaterial.
Estabelecido, pois, que o singular entra no conhecimento in-
telectivo, Ockham chama atenção para um outro elemento impor-
tante para a determinação do primum cognitum, fazendo observar
que o primeiro conhecimento do singular acontece de modo intuiti-
vo. De fato, acontece que temos o conhecimento do contingente sin-
gular; tal conhecimento pode ser ou intuitivo ou abstrativo, mas nós
sabemos que a notícia intuitiva precede sempre à abstrativa, o que
permite concluir que o singular é originariamente apreendido como
uma intuição 162•
Deve-se, pois, concluir que, em se considerando a origem de
nosso conhecimento, o primum cognitum é constituído pelo singular
sensível. Na verdade, encontramo-nos ante duas faculdades, o senti-
do e o intelecto, que são subordinados entre si e para os quais vige a
regra que a potência mais perfeita estende seu alcance sobre o do-
mínio inteiro da menos perfeita. Como constatamos que o conheci-

161 «Smgulare mtelhg1tur . patet, qma s1 smgulare non pos5et mtelhg1, aut hoc esset rauone

perfecuoms intellectus, aut ratione 1mperfect1oms Non rat10ne 1mperfect1oms, qum sensus est
1mperfectior mtellectu et tamen apprehendu smgulare Nec iat1one perfect10ms, quia s1 s1c, aut
hoc esse! qma non potes! mtelhge1e ahqmd 1ta nnperfectum s1cut est smgulare matenale, aut
qma non potes! 1mmutan ab aliquo matenah, aut qum 01h111ec1p1tmatenahter» (ln l Sent, 3,
6, Opera Theoloi1ca II, p 492)
162 lb,dem; p 494

99
mento sensível inicia-se exatamente no particular, devemos argüir
que também o conhecimento intelectivo inicia-se a partir de uma
intuição part1cular163
.
Com esta conclusão, Ockham toma posição contra o ensina-
mento de santo Tomás e de Henrique de Gand, exposto por ele nas
páginas precedentes 164. Segundo estes autores, o intelecto não pode
conhecer o singular a não ser de maneira reflexa, refletindo sobre os
próprios conhecimentos universais que, por isso, são anteriores.
Uma tal explicação, segundo Ockham, não é necessária e nem justi-
ficada por motivos válidos. A única consideração útil que se pode
tirar dos autores que a defendem é esta: pode-se dizer que o sentido,
que não pode chegar naturalmente ao universal, conhece o particu-
lar sensível melhor que o intelecto, porque o conhece anteriormen-
te165.A leitura da experiência feita por quantos sustentam que o
universal precede ao conhecimento do singular não é correta: eles se
referem ao fato de que a criança, micialmente, chama a todos os
homens de papai e só depms consegue distinguir um homem do ou-
tro, e daí concluem que o mtelecto procede do mais universal para o
mais particular. Esta mterpretação da expenência está errada, por-
que, em caso contrário, teria que aceitar como verdadeira a experi-
ência análoga: tal como vemos que o cordeiro segue a qualquer
ovelha, como se fosse sua mãe, deveríamos então dizer que também
o cordeiro conhece antes o umversal e depois o particular. Ora,
como é absurdo falar de conhecimento universal em um animal, vê-
se que o argumento todo não procede, antes nos confirma na con-
vicção de que o primeiro objeto do conhecimento não pode ser nada
mais que o singular, sendo a realidade mdividual atualmente conhe-
cida aquela que permite a formação do universal. Do primum cog-

'"' «Not1trn smgulai1s sens1b1hsest s11nphc1te1p11ma pro statu isto, lia quod 11ludidem smgula-
re quod pnmo sentllur a sensu idem et sub eadem rat1one p11mo mtelhg1tur mtmllve ab mtel-
lectu, ms1 s1t ahquod 11nped1mentum, qu1a de rauone potent1arum ordmatarum est quod
qmdqu1d - et sub eadem tallone - potest potent1a mfenm potest et supenm» (/bl{/em)
IM Ib,dem, pp 482-488 Enquanto o pmece1 de Hennque de Gand é 1eportado abreviadamente,
Ockham teporta hteralmente o passo da Su11111111theolol{we de santo Tomás (1, 86, 1)
105 «Concedo quod umversale s1t nottu~ secundum tal!onem, qwa sola iatto potest apptehendere

umversale et nullo modo sensus, sed smgulatc e;t notlus apud sensum, qwa smgulare pnus
cognoscltur a sensu quam ab mtellectu» (/b,dem. Opera Theo/rwl( a II, p 505)

100
nitum primitate generationis fica portanto excluído o ente, dentro
da mesma linha pela qual ficam excluídos os universais. A quantos
objetam que é impossível conhecer o singular sem conhecer simul-
taneamente o ente, Guilherme responde que a observação é válida se
o termo ente vem usado segundo sua suposição pessoal, ou seja, se
significa uma realidade concreta dotada de existência efetiva; porém
é falsa se se usa o termo ente em sua suposição simples, ou seja,
quando designa um conceito, porque posso muito bem ter a noção
distinta de uma coisa singular sem recorrer a nenhum conceito uni-
versal, nem mesmo àquele universalíssimo de ente 166•
A situação é outra se se analisa o objeto primeiro do conhe-
cimento do ponto de vista da adequação, ou seja, em relação à ca-
pacidade de um conceito de ser comum à totalidade dos inteligí-
veis 167.
A resposta ockhamista a esta questão é a seguinte: aceitando-
se a tese de que os conceitos universais identificam-se quanto ao seu
ser com o ato mesmo de conhecer, então deve-se dizer que o ente,
enquanto conceito unívoco generalíssimo, é o objeto adequado do
intelecto, porque aquele ato cognoscitivo único, com o qual se pensa
o ente, coloca o cognoscente em condição de poder referir-se a todos
os objetos que podem entrar em sua consciência. Se a noção comu-
níssima e unívoca de ente importa tão somente aquela positividade
indeterminada unida ao fato de poder entrar no horizonte cognosci-
tivo, então é claro que o ato intelectivo com o qual se pensa um tal
inteligibilidade, ou seja, o ato com o qual se coloca o conceito de
ente, não exclui nada de si, porque todas as realidades singulares
existentes, devido à sua positividade, comportam a possibilidade de
serem conhecidas. A tal propósito Ockham precisa que também das
intenções segundas, das proposições falsas, dos insolúveis etc.,
pode-se dizer que são entes, visto que, enquanto pensáveis, são pen-

IM lbt, 3, 7 (Opern TheoloKtW II. pp .521-.523)


167«Ob1ectum adaequatum est 1llud quod est pe1 se commune ad omma per se apprehens1b1ha
ab 1lla potentm» (lb,, 3, 8, Ope1t1 TheoloK"" 11,p .533)

101
sados com atos concretos de pensamento, que são entes realmente
existentes na alma 168.
Ora, da leitura dos Quodlibeta e das Quaestiones in libras
physicorum conclui-se que Ockham aceitou a tese de que o ser dos
conceitos universais coincide com o ato do pensamento que o pensa,
e que ele recusa as opiniões em contrário. Disto devemos concluir
que ele viu na noção de ente a própna abertura do pensamento para
a realidade. O horizonte do ser é também para Ockham o mesmo
horizonte do pensamento, que assim encontra-se estruturalmente
colocado na condição de abraçar toda a realidade, não toda ela, em
seu conjunto, em um úmco ato, mas potencialmente: o intelecto não
chega a captar diretamente tudo o que está contido por si mesmo na
noção de ente comuníssimo, todavia a natureza do intelecto é tal que
não exclut nada de sua potencialidade cognitiva, de sua inclina-
ção169.Esta recuperação da totalidade do positivo, da esfera do ser,
reveste-se de grande importância quando se analisa a posição filosó-
fica ockhamista.
De fato, ao afirmar que originanamente capta-se o particular
através da intuição, Gmlherme havia excluído que exista uma intui-
ção imediata da totalidade do positivo, e isto fazia supor que ele não
reconhecesse a validade de uma semelhante posição da totalidade,
que não a reconhecesse como necessária para o fim de uma correta
colocação do problema da fundamentação especulativa. Agora, po-
rém, mediante a análise do conceito de ente comuníssimo, o mestre

16H «Secundum o p I n I o n e 111 quae pontt quod conceptus s1ve mtent1ones ammae sunt
verae quahtates, 1d est sub1ecttve existentes m amma, est d1cendu111
quod ens est ob1ectu111adae-
quatum mtellectus nostn, quta commune umvocurn omm per se mtclllg1b1h Et isto modo, se-
cundum I s t a 111 o p I n I o n e 111, d1co quod mtenttones secundac, falsa, 1mposs1b1ha,
complexa ct hu1usmod1 sunt verne 1es sub1ect1ve exs1stentes 111amma, nec est ahqmd quocum-
que modo app1ehens1blle ab mtellectu qum de eo em, pe1 se p1aed1cetur» (/b1de111,Opera The-
olog1w li, pp 533-534)
'''º Gu1lhenne formula claramente esta cons1deiação, d1stmgumdo entre obJeto adequado do
mtdeuo que é naturalmente atmgível em s1, e ob1eto adequado no sentido daquilo a que o mte-
lecto tende natu1ai mente, quer chegue a conhecê-lo de fato, que1 não chegue «D1stmguttm de
ob1ecto naturah, quta quoddam d1cttur naturale ob1ectu111quta est natmahter attmg1b1le vel
qma ad 11ludnaturahte1 potentla mchnatm, s1ve potentta poss1t naturahte1 11ludattmgere s1ve
non P111110 modo ens commumssunum. quod est plllnum ob1ectum adaequatum mtellectus, non
est naturale ob1ectum mtellectm, ,ed secundo modo, et 1deo non oportet quod mtellectus posstt
naturaltter attmgere ad omne contentum» (Ibidem. Opeta Theo/og1w li, p 536)

102
inglês recupera uma certa preeminência do ser sobre o singular. Re-
conheço que nem todos os tópicos são igualmente claros e que há
uma certa ambigüidade no modo com o qual Ockham afronta o pro-
blema, visto que, seguidamente, junta as noções transcendentais
com os conceitos universais categoriais. Há, porém, alguns passos
que parecem projetar luz sobre todo o tratado, devendo-se citar em
primeiro lugar os textos há pouco apresentados a respeito do objeto
primeiro do conhecimento do ponto de vista da adequação. Há, de-
pois, os tópicos nos quais Guilherme chega mesmo a reivindicar
uma certa prioridade de natureza do conceito de ente no confronto
com a intuição do singular. Examinando a tese de Avicena, segundo
a qual as noções transcendentais são as primeiras que se imprimem
no conhecimento e, portanto, são as primeiras a serem conhecidas,
Guilherme observa que ninguém conhece qualquer objeto singular
sem que capte, ou ao menos que possa captar, o ente comuníssimo.
Trata-se de um procedimento natural, no qual constatamos que, en-
quanto os conceitos específicos não se podem formar no conheci-
mento sem que se forme ao mesmo tempo o conceito de ente, já o
conceito de ente pode muito bem formar-se mesmo sem a presença
de conceitos específicos 170.
O procedimento cognoscitivo, que concretamente se expressa
sempre em atos de intuição de coisas singulares, não se exaure nesta
mesma intuição, mas se prolonga em uma abstração, ou seja, no co-
nhecimento abstrativo que acompanha sempre o intuitivo. Ora, a ca-
racterística fundamental desta notícia abstrativa é a de captar o ob-
jeto sempre e antes de tudo à luz do ser e comporta sempre o con-
ceito de ente, enquanto, se o objeto conhecido não está devidamente
próximo do sujeito, não se pode formar um conceito específico ade-
quado171.Esta constatação revela de maneira privilegiada a abstra-

170 «Unde non est ahqms qm mtelhgat ahquam 1em smgularem quamcumque qum stattm mtel-

hgat vel possít mtelhgere ens commumssunum, et 1ta non est de quocumque aho commum
contento. Et pro tanto d1c1tur1mpnm1 pnma 1mpress1one,qma prius natura quocumque alto
commum contento sub eo, qma potest 1mpnm1sme quocumque detemmato, 1ta quod non s1t
potentta propmqua ad unpnmendum, et non e convetso» (Ib,, 3, 5, Opera Theolol{1ca II, p
482)
171 «E t s 1 q u a e r a s quare not1tta abstracttva pnmo habetur mediante mtmttva,
r e s p o n d e o ahquando conceptus entts tantum, ahquando conceptus genens, ahquando

103
ção que se encontra na base do surgimento do conceito de ente, em
detrimento dá abstração comum que preside à formação dos univer-
sais em geral. O ente, de fato, é o obJeto adequado do intelecto, no
sentido que abre o intelecto sobre a totalidade dos inteligíveis, em-
bora sem importar a necessidade que todo o inteligível seja natural-
mente cognoscível pelo intelecto, o que quer dizer, precisamente,
que o conceito de ente não é a imagem confusa, desbotada, impressa
em nossa mente pelas coisas, como acontece com os universais, mas
é a instituição na mente daquela positividade que se refere primari-
amente a cada coisa singular que pode entrar no horizonte cognos-
citivo; é a nota da positividade absoluta que contradistingue a zona
do ser da zona do não-ser. Para que tal manifestação da positividade
se realize, não é necessário conhecer muitas coisas, pois que ela
pode ser obtida por uma só positividade relativa. Não acontece as-
sim, porém, com os gêneros e as espécies, que jamais são obtidos de
um só indivíduo 172
Admitindo que ao primeiro contato com a realidade, por parte
do intelecto, surge o conceito de ente, Ockham concede também que
a intuição intelectiva do singular não é exaustiva, não se encontra
em condição de captar plenamente a essência individual das coisas.
O conhecimento do ente como conhecimento do aspecto mais
universal implícito de todo outro aspecto da realidade revela que o
conhecimento humano deve sempre progredir, tem necessidade de
colocar novas determinações para aproximar-se o mais possível da
realidade em sua essência indivídua.
Ockham não ignora, pois, o problema do ser, mas o afronta
em termos concretos. De sua resposta ao problema do primum cog-
nitum retiram-se duas verdades fundamentais, que são confirmadas

conceptus spec1e1 specmhssunae, secundum quod ob1ectum est mag1s vel mmus remotum.
Semper tamen 1mpnmitur conceptus enus, qma quando ob1ectum est debito modo approx1ma-
tum, s1mul causatur a re smgulan extra conceptus spec1ficus et conceptus enlls» (Quodl. I, q
13, Opera Theolog1w IX, p 78)
172 «Pos1to quod ens esset ob1ectum adaequatum mtellectus, adhuc ob1ectum adaequatum posset

non tamen oportet quod omne contentum posse! naturahter att111g1Cums ra-
naturahter att111g1,
110est, qma tunc ad mtelhgendum natmahter ob1ectum adaequatum mtellectus sufficeret quod-
hbet per se contentum sub ob1ecto adaequato, non tamen sufficeret ad mtelhgendum unum
ahud contentum» (/11/ Sent. 3, 8, Opera Theologtw II, pp. 538-539)

104
pela atenção ao desenvolvimento concreto do processo cognoscitivo:
o primeiro ato cognoscitivo humano é a apreensão de um concreto
existente, a intuição conjunta sensível e intelectiva de uma coisa
singular; a segunda verdade é que o ser jamais é intuído no mundo
corpóreo, nem em nós, antes o intelecto, no mesmo instante em que
conhece alguma coisa singular, forma em si o conceito universalís-
simo de ente, daquela positividade que é comum a todas as coisas.
Ockham salva assim os dados da experiência e, ao mesmo tempo,
eleva-se ao nível especulativo, no qual afirma a imediatez da totali-
dade dos inteligíveis, recolhida na onicomprensividade, embora im-
perfeita, do ente.

2. A univocidade

No texto mais completo sobre a unívocidade, contido no Co-


mentário às Sentenças, Ockham distingue três acepções diferentes,
segundo as quais um termo pode ser chamado unívoco, em corres-
pondência a três níveis segundo os quais as coisas podem ser seme-
lhantes entre elas.
Unívoco, em um primeiro sentido, é aquele conceito comum a
mais coisas que possuem entre si uma perfeita semelhança. Duas ou
mais coisas são perfeitamente semelhantes quando nelas não se en-
contra nenhuma qualidade, nenhuma nota característica que deva
ser significada com um conceito diverso. Assim, no caso de dois
homens, Sócrates e Platão, se nós examinamos todas as notas es-
senciais ou acidentais que encontramos em Sócrates, não encontra-
mos nenhuma que seja qualitativamente diversa daquelas que en-
contramos em Platão, isto é, não encontramos notas que importem
uma definição diversa.
É evidente que Sócrates pode possuir qualidades que Platão
de fato não possui, mas trata-se de qualidades ou características que
podem encontrar-se tais e quais em Platão. Pode também acontecer
que Sócrates possua qualidades em grau diverso de Platão, por
exemplo, que seja mais sábio: isto, porém, não impede que a sabe-
doria de um seja qualitativamente idêntica à de outro. Neste exem-

105
plo, a sabedoria de Sócrates não implica em uma sabedoria que
deva ser definida de outro modo, ou com outro conceito, diverso da-
quele que é apto a designar a sabedoria de Platão. Guilherme preci-
sa que unívoco, segundo esta primeira acepção, é somente o con-
ceito que exprime a espécie especialíssima, ou seja, aquela espécie
que não inclui outras espécies sob si mesma, mas somente indivídu-
osI73_
O segundo tipo de univocidade é representado por aquele
conceito comum a coisas que nãô são nem completamente seme-
lhantes, nem completamente diferentes entre s1: tais são os entes
compreendidos num mesmo gênero. O conceito genérico predica-se
univocamente em força da semelhança que ele subentende, seme-
lhança essa que é mais ampla que aquela dos conceitos específicos,
mas que é também menos relevante. O conceito de animal, por
exemplo, está no lugar de uma grande quantidade de indivíduos,
muito maior que aquela significada pelo conceito homem; todavia, a
semelhança que existe entre dois homens é muito maior que aquela
que se passa entre um homem e um asno. Confrontando-se as quali-
dades que se observam neste ou naquele homem com as qualidades
que se observam neste ou naquele asno, percebe-se de imediato que
algumas destas qualidades possuem a mesma definição, enquanto
outras não podem ser significadas por um mesmo conceito. Este
homem e este asno, portanto, não se assemelham em tudo, mas al-
gumas de suas características são semelhantes e outras são diferen-
tes. Como fundamento do conceito unívoco do segundo modo está
aquela semelhança que existe entre algumas notas que existem nos
indivíduos do mesmo gênero 174 .

171 «Umvocum uno modo acc1p1tur pro conceptu commum ahqmbus habenubus pe1fectam
s1m1htudmem m ommbus essentmhbus sme omm d1ss1mil1tudme,1ta quod hoc sll verum tam m
substantmhbus quam m acc1dentahbus, s1c quod m forma acc1dentah non est repenn ahqmd
quod est d1ss1m1lecmhbet formae m aha fonna acc1dentah emsdem rat1oms Et s1c acc1p1endo
umvocum, conceptus sohus spec1e1specmhss1mae est umvocus, qma m md1v1dmsemsdem spe-
c1e1non est repenn ahqmd altenus iauoms muno et m aho» (ln Ili Sent, 1O, Opera Theolog,-
ca VI, pp 335-336)
174 «Aho modo acc1p1tur umvocum pro conceptu commum ahqmbus quae nec sunt ommno s1-

rmha nec ommno d1ss1m1ha,sed m ahqmbus s1m1ha et m ahqmbus d1ss1m1ha,vel quantum ad


mtnnseca vel extnnseca Hoc modo homo et asmus convemunt m conceptu an1mahs, s1cut m
conceptu umvoco Qma hcet fonnae spec1ficae eorum smt altenus rat10ms, tamen matena m eis

106
O terceiro tipo de univocidade examinado por Ockham é de
todo particular e refere-se a conceitos privilegiados: diz-se unívoco
da terceira maneira aquele conceito que é comum a mais seres que
não possuem semelhança alguma entre si, nem nas notas substanci-
ais, nem nas acidentais. Esta univocidade se dá no caso de conceitos
unívocos comuns a Deus e às criaturas, pois entre eles não perpassa
nenhuma semelhança, visto que nada há de intrínseco ou de extrín-
seco que possa ser tomado como semelhante em Deus e nas criatu-
ras 11s _
Em outro passo do Comentário às Sentenças Ockham define
assim o terceiro tipo de univocidade: "Unívoco é aquilo que pode
ser predicado de mais entes, os quais todavia são uma só coisa" 176.
As duas definições, à primeira vista discordantes, na verdade com-
plementam-se mutuamente. Ockham diz que são unívocos da tercei-
ra maneira aqueles conceitos que são comuns a mais seres radical-
mente diferentes entre si, como também são chamados unívocos
aqueles conceitos que designam seres tão semelhantes a ponto de
coincidirem.
No primeiro texto, Guilherme tem em vista a afirmação da
possibilidade de uma teologia racional, a qual jamais se poderia
constituir se o homem não tivesse à disposição conceitos que, embo-
ra sendo finitos, porque tomados das criaturas, são contudo aptos a
fazer conhecer alguma coisa a respeito de Deus: são os conceitos

est emsdem ratloms, et s1c convemunt m ahquo essentiah et m aliquo d1fferunt» (lb,dem, Ope-
ra Theolog,ca VI, p. 336)
175 «Tertto modo acc1p1tur umvocum pro conceptu commum multts non habenttbus ahquam

sumhtudmem nec quantum ad substantiaha nec quantum ad acc1dentaha ln isto modo qmhbet
conceptus convemens Deo et creaturae est eis umvocus, qma m Deo et creatura mhil pemtus,
nec mtnnsecum nec extnnsecum est emsdem rattoms» (lb1dem, Ope1a Theolog,ca VI, p 337)
176 «Tert10 modo d1citur umvocum praed1cab1le de plunbus, quae tamen sunt una res, et hoc

modo relatto d1c1turumvoce de relattombus d1vm1s,quae tamen sunt una res qma sunt una es-
senua numero» (/11/ Se11t.,2, 9, Opera TheologiLa II, p 311) Por respeito a uma visão com-
pleta, msenmos no discurso sobre a umvocidade também este texto em verdade pouco claro, es-
forçando-nos para de algum modo tomá-lo mtehgível ao Iettor Todavia, estamos convencidos
que não se deva dar multa nnportância ao passo, porque Ockham parece estar preso aqm so-
bretudo pela urgência de mclutr entre os conc1etos unívocos também aquele de relação tnmtá-
ria um caso complicado, pois, e que se hga exclusivamente à teologia Tanto é verdadade que o
própno Ockham não retoma mms esta acepção da umvoc1dade de terceiro tipo, mas fala sempre
em referência à defimção dada no pnme1ro texto reportado

107
unívocos das perfeições transcendentais e das perfeições simples das
criaturas racionais, que mediante um peculiar procedimento abstra-
tivo - a ser examinado quando tratarmos da teologia racional - tor-
nam-se predicáveis também de Deus.
Já no segundo texto, ao invés, Guilherme quer fazer ver como
há um único conceito, aquele da categoria de relação, que está apto
a significar todas as três relações que no caso de Deus são reais,
isto é, dão lugar às três pessoas da Trindade, embora constituindo
uma única essência.
O terceiro tipo de unívocidade nos coloca ante a radical opo-
sição, que não subentende nenhuma semelhança real, e a radical
identidade, que não subentende nenhuma diversidade real. A unívo-
cidade de terceiro tipo é somente conceituai e deve-se à capacidade
de alguns conceitos de exprimirem, com a mesma força significati-
va, realidades que divergem totalmente entre si até o ponto de opor-
se, ou realidades que coincidem totalmente entre si até o ponto da
não-distinção real.
A característica da posição ockhamista a respeito da univoc1-
dade é a exclusão peremptória de que um conceito unívoco seja tal
porque compreende uma comunidade real de entes que significa;
trata-se de uma univocidade puramente lógica ou conceituai, que
não implica nenhuma parentela entre entes extra-mentais, os quais
são por sua própria natureza singulares 177 •
Ante as teses daqueles que afirmam que o conceito de ente é
análogo e não unívoco, Guilherme mostra que analogia pode ser
entendida de diversos modos: inicialmente, pode-se definir como
análogo um conceito unívoco do terceiro modo acima exposto, e
neste sentido pode-se usar o termo analogia, mas em realidade es-
tamos frente a Ull)aunívocidade conceptual 178 .

177 «Umversahter, nulh tm1voco correspondent ahqu1d unum a parte rei, 1ll0 modo quo I s t 1

1magmantur, quod sc1hcet piaeter 1psa part1culana s1t ahqu1d unum quacumque umtate reah
tah umvoco coirespondens Et s I d I e a t u r quod tunc 11lud umvocum esset ficlltmm,
d I e o quod non sequ1tur, qma quamv1s tale unum non s1b1conespondeat pnmo, tamen multa
1eaha s1b1correspondent, de qu1bus m qu1d p1aed1catur Unde conceptut hon11111s non cones-
pondet pnmo ahqmd unum, sed OJnnes honunes s1b1coirespondent, et 1deo non est ficlltms»
(lbrdem, Ope,a Theolog,w li, pp 331-332)
178 /n Ili Sent, lO (Ope,a Theolog,w VI, pp 338-339)

108
Mas há outros modos de entender a analogia, que Guilherme
analisa com maior precisão. Por analogia pode-se entender a seme-
lhança de relações que surgem entre coisas diversas, quando entre
coisas diversas instaura-se uma proporção; assim, por exemplo, o
termo semelhante é análogo na seguinte relação: o branco é seme-
lhante a uma cor tal como o homem é semelhante a um animal. Ou
então, um termo é chamado de análogo quando designa coisas di-
versas, mantendo sempre um significado fundamental e primário,
que é colocado indiretamente (in obliquo) cada vez que o termo é
predicado de realidades diversas daquela designada diretamente.
Assim, o termo são é análogo quando é predicado do animal, da
comida e da urina: primariamente, ele significa a saúde do animal;
quando é predicado da comida ou da urina, torna-se um termo co-
notativo, na medida em que secundariamente significa a saúde do
animal, que é algo de extrínseco à comida (esta é a causa) e à urina
(que é um sinal) 179• Não é difícil reconhecer nesta distinção a posi-
ção do duplo tipo de analogia, a de proporcionalidade e a de atribui-
ção, elaborada por Aristóteles e aceita por Tomás de Aquino 180•
Mas Ockham faz logo uma ressalva que o separa claramente da po-
sição de seus predecessores. Se olharmos bem, observa Ockham,
tanto na analogia de proporcionalidade, quanto naquela de atribui-
ção, temos a ver com termos equívocos, isto é, termos que signifi-
cam diversas coisas das quais não se pode dar a mesma definição
nominal. Assim, os ditos termos análogos são termos equívocos não
casualmente, como quando acontece ao ser dado o nome Sócrates a
diversos indivíduos, mas de tal modo que é dado a um como se não

179«De analogo potes! d1stmgm, quod u n o m o d o acc1p1tursecundum quod est ahquod


nornen 1rnpos1tummulus propter consumlern prop01t10nem quarn habent diversa ad ilia, s1cut
pomt P h 1 1 o s o p h u s exemplurn, quod s1cut se habet color ad colorem !ta figura ad fi-
guram, de qmbus dic1tur analog1ce 's1m1le', qum s1cut color s1m1hsest colon !ta figma est s1-
m1hs figurae A 1 1 o m o d o , secundum mtenllonem multorum loquentmm, d1c1tur ana-
logum quando ahqua denommantur eodem nomme non propter umtatem conceptus commums
eis sed propter 1dentitatem alicums altenus quod pnmo s1gmficatur tah nomme ad quod 1psa
habent aliqualem attnbullonem, et hoc secundum quod pomtur 11ludpnmum s1gmficaturn m
obhquo et aliqmd ahud m recto, s1cut exemphficant de sano respectu ammalis et respectu dme-
tae et unnae» (ln l Sent, 2, 9, Opera Theolol{tca li, pp 328-329)
180Anstóteles, Metaphys1ca, IV, e 2, t 2 (1003 a 33 - 1003 b 5), Tomás de Aqumo, Summa
theolog,ae, l, 13, 5

109
fosse dado a um outro; a equivocidade própria dos termos que os
aristotélicos chamam análogos, é uma equivocidade deliberada (a
consilio ), e acontece quando, em virtude de diversos atos de imposi-
ção e mediante diversos conceitos, um termo designa mais coisas,
mas é atribuído a cada uma delas em força da relação que possuem
com uma outra coisa, para cuja designação o termo foi originaria-
mente instituído. Os termos análogos são equívocos porque são ter-
mos conotativos e ao mesmo tempo não o são: o termo são, quando
designa a saúde existente no animal, não é um nome conotativo;
quando, ao contrário, designa o alimento ou a urina, então é um
nome conotativo, porque designa diretamente algo de tais sujeitos,
mas indrretamente designa a saúde do animal, ou seja, mantém o seu
primeiro significado para designar o qual o termo foi constituído. A
conclusão geral é que não há sentido em falar de analogia como algo
distinto da unívocidade, da equivocidade e da predicação denomina-
. toma da em senti'do amp 1o 181. E ste parece ser o exato pensa-
tiva
mento de Ockham, tomando por base as afirmações contidas nos
dois passos diferentes, de não fácil leitura do Comentário às Sen-
tenças. A este propósito deve-se notar como a afirmação contida no
terceiro livro - isto é, que a analogia de proporcionalidade não ex-

m «Non est ahqua praed1ca110anologa d1st111ctacontra praed1ca11onemaeqmvocam et umvo-


cam et denonunattvam lmg1ss1mesumptam Ad proposllum d1co quod analogum pnmo modo
['analogm de proporc10nahdade'] est aeqmvocum s1mphc1ter, non tamen a casu sed a cons1ho
Et hoc d1c1t P h I I o s o p h u s , II Poste11ornm, quod snrule quod d1c1tur de colme res-
pectu colons et de figura respectu figmae est aequ1vocum et secundum analogiam d1ctum Ad
secundum [no que concerne a analogm de 'at11bmção'], quod sanum non d1c1tur umvoce, nec
aeqmvoce, aeqmvocauone a casu» (ln I Sent, 2, 9, Opera Theolog,w 11,pp 326-329) Gm-
lherme afüma que o termo l'ão não se p1ed1ca umvocamente, ao menos se se refere à eqmvoc1-
dade casual (aeq111vocum a u1.rn), com isto quer dizer que o termo ,·iío se predica eqmvoca-
mente, segundo a eqmvoc1dade dehberada (a w1mlw), e o confinna exatmnente a nível de de-
fimção «[Aeqmvocum a cons1ho d1c1tm] a l I o 111o d o quando s1gmficat diversa d1ver-
s1s mod1s, qum respectu umus s1gmficat1 est nomen conuotattvum et respectu altenus non est
connotattvum Exemplum de sano, qma samtas quando s1gmficat quahtatem formahter exs1s-
tentem 111annnah 11011 est nomen e,onnotat1vum, quando autem s1gmficat d1aetmn vel ur111am
tunc est nomen connotauvum, qum quando s1gmficat ahquod 1ll01um, s1gmficat unum 11lorum
111recto et pnmum s1gmficatum suum 111obhquo, qma s1 debe1et expnm1 qmd nom1111s,ahquod
11lorumdeberet pom 111recto et samtas 111obhquo, qma sanum quod d1c1turde dmeta habet 11lud
qmd 1101111111s'sanum est dmeta effecuva samtat1s', secundum autem quod d1c1tm de unna habet
1stud qmd nom1111s'sanum est unna s1gmficans samtatem'» (Ibidem; Opera Theolog,ca II, p
328)

110
clui a univocidade, ou, mais exatamente, que um termo análogo
neste sentido nada mais é que um termo unívoco na primeira ou na
segunda acepção da univocidade 182- não contrasta com a afirmação
contida no primeiro livro, onde se diz que o termo análogo, segundo
a analogia de proporcionalidade, é um termo equívoco deliberada-
mente183.De fato, no comentário ao terceiro livro Ockham quer
acentuar que quando se trata de uma analogia de proporcionalidade
que se dá entre indivíduos e as correspondentes espécies especialís-
simas (Sócrates está para a humanidade como este objeto branco
está para a brancura), é necessáno reconhecer que a semelhança de
relações que sustenta tal analogia é perfeita a ponto de ser total: a
relação entre Sócrates e a humanidade é idêntica àquela entre o ob-
jeto branco e a brancura. Estamos pois ante a unívocidade em sua
primeira acepção. Ao contráno, quando nos encontramos ante uma
analogia de proporcionalidade, que se fundamenta sobre a seme-
lhança existente nas relações entre as espécies e seus respectivos
gêneros, como o modo de pertencer a um gênero varia muitíssimo de
espécie para espécie, deve-se dizer que a base de semelhança é
muito reduzida: em tal caso encontramo-nos ante uma unívocidade
de segundo tipo, que se funda sobre uma semelhança real, mas que
não ignora as muitas diferenças, ou seJa, que deixa subsistir uma
equivocidade 184 . Ora, não vale a pena manter a analogia se ela se
reduz à afirmação de uma semelhança perfeita, visto que essa se en-
contra na base da unívocidade na sua forma mais completa. Se a
analogia se reduz porém à posição de uma semelhança e ao mesmo
tempo de uma diferença, então estamos ante a unívocidade imper-
feita, aquela de segundo tipo, que na linguagem aristotélica se cha-

182«Exemplum hums esl anologm tah modo 's1cul se habet homo ad animal, 11aalbedo ad colo-
1em', modo 11ludquod praed1ca1ur m quaque p10pos111oneesl umvocum secundo modo d1ctum
S1m1hler h1c esl tahs analogia 'S1cu1 se habet Sm les ad hommem, tia haec albedo ad albed1-
nem', ub1 esl perfecliss1ma umvoca110» (/11Ili Sent, 1O, Opera Theolog1w VI, pp 338-339)
1"1 «D1co quo<l analogum pnmo modo esl aeqmvocum s1mphc11e1,non lamen a casu seda con-
s1ho» (ln I Sent, 2, 9, Ope1a Theolog1w li, p 329)
1"4 «Acc1p1endo umvocum secundo modo, s1c 111genere lalent multae aeqmvoca110nes, qma ilia
quae solum convenmnl 111conceplu geneus sunt mullum d1ss1m1ha, qma quanlumcumque ah-
qua habeanl ahqua smuha, s1cu1 pnus patet, tamen omma ilia sunl multum d1ss1m1ha» (/11 Ili
Sent, 10, Opera Theolog1w VI, p 338)

111
ma equivocidade 185, ou seja, estamos ante uma diversidade concep-
tual coberta por uma identidade de signo lingüístico. Como quando
os aristotélicos falam de analogia de proporcionalidade, referem-se
a uma semelhança não perfeita - tanto é verdade que falam de pro-
porção e não de equação de relações - então explica-se porque Gui-
lherme, no Comentário ao primeiro livro das Sentenças, identifica
este tipo de analogia com a equivocidade, sem fazer distinções ulte-
riores. Devemos, pois, manter como definitiva a posição acerca da
analogia assumida por Ockham neste comentário, porque tal texto
faz parte da Ordinatio, ou seja, foi corrigido pelo próprio Ockham
em vista da publicação, enquanto o texto do comentário ao terceiro
livro é constituído de Reportationes, isto é, de anotações das lições
do mestre, tomadas por alguns alunos.
Deparando-se com o tema da analogia no IV Quodlibet,
Guilherme não faz a distinção que vimos na Ordinatio entre dois ti-
pos diversos de analogia; mas o desenrolar do discurso é tal, que se
encontra em perfeita coerência com o que acabamos. de ler no Co-
mentário às Sentenças. Há mesmo uma observação punctual que
confirma nossa leitura de Ockham, quando completávamos as de-
clarações dele a respeito da analogia de atribuição: Guilherme diz,

,xs «Et de isto umvoco [de segundo tipo] d1c1t P h 1 1 o s o p h u s , VII Phys1corum, quod
m genere latent multae aeqmvocauones, qma acc1p1endo aeqmvocatlonem ut d1stmgmtur con-
tra s1m1htudmem perfectam vel contra umvocallonem ahquorum habentium snruhtudmem per-
fectam, s1c conceptus genens tam subalterm quam generahss1m1 non est umvocus sed potms m
genere s1c est aeqmvocatio» (/b1dem, Opelll Theolog1w VI, p 337). Note-se que para
Ockham umvocidade e eqmvoc1dade p10pnamente só têm sentido com referência aos termos
orms e escritos, e não com referência aos conceitos Além disso, para que se possa falar de ter-
mo equívoco, segundo Ockham, não basta uma plurahdade de s1gmficados. neste caso devemos
dizer que todos os termos umversms são equívocos, é equívoco aquele termo que está subordi-
nado a diversos conceitos «Est autem vox ilia aeqmvoca, quae s1gmficans plura non est s1gnum
submdmatum um conceptm, sed est s1gnum unum plunbus conceptlbus seu mtentlombus an1-
mae subordmatum» (Summa log1cae, 1, 13, Opera Philomph1ca 1, p 45) Observe-se também
que, segundo Ockham, toda predicação denommatlva é reconduzível ou à predicação unívoca
ou àquela equívoca «Praed1cat10 denommatlva 11011 est ahqmd s1mplic1ter d1stmctum a praed1-
cat1011eumvoca et aeqmvoca» (Expo.ntw 111 /1brum prned1came11tomm Anstotel,s, c 3, ad
Denom111at1vavero , Ope1a P/11l0.wph1cali, p 146), cfr M Menges, The Conlept of Um-
voc1ty Readmg lhe Pred1ca//m1 of God and Creatwe Alcordmg to W,Jl,am Ockham, St Bo-
naventure, N Y 1952, p 51 Deve-se, pm tanto, co11clmrque com sua análise pnnc1pal sobre a
analogia (v nota 181) Ockham exclm uma via mtermed1ána entre a umvoc1dade e a eqmvoc1-
dade

112
no passo citado da Ordinatio, que o termo são (apresentado por ele
como exemplo da analogia de atribuição) não se predica univoca-
mente, nem equívocamente, ao menos com relação à equivocidade
casual (a casu). Isto significa - acrescentamos nós - que se predica
equívocamente, segundo a equivocidade deliberada (a consílio).
Pois bem, no IV Quodlibet Guilherme observa que só se nós res-
tringirmos a equivocidade à equivocidade casual, torna-se possível
falar de analogia com referência àqueles termos que antes foram de-
finidos como equívocos, segundo a equivocidade deliberada. O ter-
mo analogia equivale a equivocidade deliberada (a consilio ), é um
sinônimo dela; pode-se falar de analogia como algo de intermediário
entre unívocidade e equivocidade só na medida em que restringimos
a equivocidade à equivocidade casual (a casu). O Venerabilis In-
ceptor apresenta como exemplo o termo são, que alguns chamam de
análogo, mas que na verdade é equívoco por deliberação 186, e vem
assim a confirmar que a analogia de atribuição nada mais é que uma
forma típica de equivocidade. Portanto, permanece válida a conclu-
são geral que formulávamos acima, ou seja, que não existe uma via
intermediária entre a unívocidade e a equivocidade; que em sentido
estrito unívocidade e equivocidade são características dos termos
orais ou escritos e não dos conceitos, e que a semelhança que sus-
tenta a predicação unívoca não subentende qualquer comunidade
real entre os objetos extra-mentais, mas é só conceitual, devido à
capacidade que algumas realidade individuais têm de suscitar em
nossa mente conceitos muito semelhantes entre si e que nós expri-
mimos com um idêntico signo lingüístico 187 .

,xo«Accip1endo aeqmvocam praed1cat1onem pro aeqmvoco a casu, et piaed1cauonem analogam


ub1 praed1catur aeqmvocum a cons1ho, s1c praed1cauo analoga est media mter praed1cauonem
umvocam, aequivocam et denommauvam S1c emm 'sanum' praed1catur analog1ce de an1mah
et unna et diaeta qma nec praedicatur aeqmvoce a casu nec umvoce nec denommatlve, sed ae-
qmvoce a consiho S1c etlam 'animal' praed1catur analogice de ammah vero et p1cto» (Quod/
IV, q. 12, Opera Theo/og1ca IX, p. 355)
ix7 As conclusões aqm expostas a respeito da concepção ockham1sta da umvoc1dade são subs-
tancialmente aquelas aceitas também por Menges (The Concept of Umvoc1ty , pp 114-136)
Sou de opimão, porém, que a análise que Menges faz dos diversos textos ockhamistas não é
completa, e em particular que ele não leu com atenção o texto da Ordmatw, 2, 9, citado acima,
onde Ockham distingue cimamente entre os dms tipos diferentes de analogia, apelando para os
mestres do século XIII, e onde afirma que a analogia de atnbmção é sempre uma eqmvoc1dade

113
3. O ente

Ockham aceita a definição aristotélica de metafísica como ci-


ência do ser enquanto ser, e a entende no sentido que o objeto prin-
cipal da metafísica é o ente, não enquanto supõe pela substância ou
pelos acidentes, mas enquanto conceito 188. Tal conceito de ente não
pressupõe coisa alguma que deva ser conhecida antes de conhecer
os entes particulares; antes, deve-se até dizer que o singular pode
ser conhecido mesmo sem os conceitos gerais de ser e de um. É an-
tes um conceito unívoco (em sentido lato, também um conceito pode
ser chamado unívoco), que abarca toda coisa existente no universo
mental e naquele físico. Compreende, p01s, entes reais, dotados de
existência extra-mental, e entes de razão, que existem somente no
intelecto 189 . O conceito de ente forma-se mediante um processo de
progressiva generalização, enquanto tudo o que existe entra na notí-
cia abstrata de positividade que nosso mtelecto forma para si mes-
mo, abstraindo da natureza material das coisas. Ente é qualquer coi-
sa que entra no universo empírico, isto é, todo o indivíduo; é um
conceito unívoco generalíssimo, capaz de representar todas as coi-
sas, sem importar nada de realmente ou naturalmente preexistente
àquilo a cujo respeito é unívoco. A prioridade da noção de ente é
simplesmente uma 'prioridade de conseqüência', isto é, que surge

'a cons1ho' Menges, pelo contráno, é de op1mão que Gu1lhe1me não tenha 1denllficado em
cada caso a pnmeua com a segunda «Ockham d1d not reduce the former only to eqmvocat10n»
(p 130)
188 «Isto modo mtelhgitur quomodo d1c1tur quod ens est sub1ectum metaphys1cae non tantum m

voce sed etmm m conceptu Ens suppomt tantum pro conceptu m mente, non pro substanl!a
vel acc1dente» (ln Ili Sent, l0, Opera Theologrw VI, p 345) «Hmc nom1m ens correspondei
unus conceptus commums praed1cab1hs de ommbus rebus» (Quodl V, q 14, Opera Theologr-
ca IX, p 536)
189 «Ahquod ens parttculare potest cognosc1, quamv1s 1llae mtenllones genetales enlls et umus

non cognoscantur, qma 1llae mtent1011esnon sunt mst quaedam entta rattoms, vel saltem non
sunt de essenlia ret» (ln l Sem, 3, 1, Opew Theologrw II, p 392) «[Loqmmur] de ente quod
omnem naturam postttvam substant1alem et acc1dentalem s1gmficat aeque pnmo et non pnus
substantmm quam acc1dens nec e converso» (/11III Sent, 10, Opera Theologrw VI, p 340)

I 14
em conseqüência do fato de que o procedimento que vai da realidade
ao conceito é correto, enquanto não é correto o caminho inverso 190•
A bem da verdade, convém observar que Guilherme não se
demora muito em analisar como se forma o conceito de ente, delon-
gando-se bem mais sobre os modos de predicação do ente sob o as-
pecto lógico. Deste ponto de vista, embora o ente como conceito
seja comum a qualquer coisa, o termo ente, oral ou escrito, é equí-
voco, isto é, não se predica do mesmo modo de todas as categorias
em particular, tomadas em sua acepção significativa. De fato, se-
gundo Ockham, somente duas categorias significam realidades indi-
viduais, realmente existentes, que são a substância e a qualidade;
por isso, o ente não se predica do mesmo modo das outras categori-
as 191_
A posição exata de Ockham é a seguinte: o conceito de ente é
unívoco, mas como termo que faz parte de uma proposição oral ou
escrita é equívoco, quase da mesma maneira como o termo são é
equívoco.
Sabemos que, para Guilherme, o termo são, predicado do
animal, da comida e da urina é um termo equívoco deliberadamente,
enquanto predica-se de diversos sujeitos, mantendo sempre indire-
tamente um significado originário que lhe é próprio, enquanto varia
o modo com o qual os diversos sujeitos, de que se predica, referem-
se a esta coisa significada primariamente.
Embora com alguma diferença de ordem gramatical, precisa
Ockham, o termo ente comporta-se como o termo são. De fato, pre-
dica-se mantendo a atribuição a uma única realidade primariamente
significada. Em outras palavras, o ente comporta-se como um termo

190 «Nullum umvocum est pnus reahter vel natura 1lhs qmbus est umvocum, sed tantum est

pnus pnontate consequentiae, qma sc1hcet ab umvocato ad umvocum est bona consequentla et
non convert1tur» (ln l Sent, 2, 9, Opera Theolog1ca II, p 332)
191 «Tamen non obstante quod s1c sit unus conceptus commums omni enll, tamen hoc nomen

'ens' est aeqmvocum, qma non praed1catur de ommbus sub1c1b1hbus, quando sigmficative su-
muntur, secundum unum conceptum, sed s1bi d1vers1conceptus correspondent, s1cut super Por-
phynum declarav1» (Sunmw log,cae, 1, 38, Opera P/11/osoph1w 1, p 107), «Hoc nomen 'ens'
est aeqmvocum, qma hcet praedtcetur umvoce de ommbus sub1c1b1hbus absolutls, et hoc s1ve
supponat simphctter s1ve personahte1, tamen non praedtcatur de ommbus sub1c1b1hbus s1gnifi-
cat1ve acceptls secundum unum conceptum, sed hu1c nomm1 d1vers1 conceptus correspondent,
s1cut pateb1t altas» (Quodl V, q 14, Opera Theolog,w IX, p. 537)

1I5
conotativo: diretamente designa a substância, ou seja, aquilo a que
compete propriamente o ser; indiretamente, ao contrário, denota os
acidentes, ou seja, tudo aquilo que pode inerir à substância indivi-
dual. O significado primário pode ser colocado em primeiro plano,
quando a predicação refere-se à substância, ou pode ser posto em
segundo plano, quando predica-se o ente de alguma nota acidental,
visto que esta última é chamada de ente somente enquanto se refere
à substância, estando ordenada a esta 192 . Assim, estamos ante afir-
mações diversas e, à primeira vista, desconcertantes: enquanto, de
um lado, para Ockham o conceito de ente é unívoco, de outro lado,
o signo lingüístico, ou seja, o termo ente, quando surge em uma
proposição oral ou escrita, é equívoco.
Para entender exatamente o significado de tais afirmações, é
oportuna uma pergunta preliminar: o ente é unívoco, mas em qual
das acepções de unívocidade teorizadas por Ockham? - Evidente-
mente, não sendo o ente nem um conceito específico, nem um con-
ceito genérico, só pode ser unívoco no terceiro sentido de unívocida-
de e, precisamente, segundo aquela unívocidade que se refere a um
conceito que esteja apto a evocar à mente realidades radicalmente
diferentes entre si.
Para afirmar que existem conceitos unívocos desta maneira,
há uma só razão, uma única justificação, que vem tomada de um
dado de fato: todos os homens admitem que possuem um certo con-
ceito de Deus, desde que são capazes de pensar em Deus e de for-
mar proposições que têm a Deus como sujeito, mesmo que seja para

192 «Eodem modo est de ente, qma 1sta vox uno modo accepta s1gmficat substanllam pnnc1pa-

hter mediante ahquo conceptu propno ommbus sub,tantns, et secundano s1gmficat omma acc1-
dentia med1anttbus plunbus concept1bus Et ens s1c d1ctum dtcllur m qmd de ommbus substan-
t11s,qma mediante uno conceptu, et denommat1ve de quohbet acc1dente Quia s1c non d1c1tur de
acc1dente ms1 connotando substantiam cu1 a1tnbu1tm tamquan d1spos1tto etus et tamquam pnn-
c1pale s1gmficatum tlhus. S1cut sanum d1c1tur de samtate m omm ammah umvoce» (ln Ili
Sent, 10, Ope,a Theolog1ca VI, p 339-340) «ln ahquo est s1mtle de hoc nomme 'sanum' et
de hoc nomme 'ens', et m ahquo est d1ssurnle Est emm m hoc s1m1lequod s1cut ilia de qmbus
d1c1tur 'sanum' habent attnbuttonem mter se ad unum, 1ta etiam s1gmficata per hoc nomen
'ens' habent attnbuttonem ad unum Est tamen d1ssnrnle m hoc quod hoc nomen 'sanum' non
umfonmter nec eodem modo s1gmficat Ilia de qu1bus praed1catur, hoc autem nomen 'ens' omm
cons1m1h modo grammattcah s1gmficat omma de qmbus praed1catur» (/11 / Sent, 2, 9, Opera
Theolog1ca II, p 335)

116
afirmar que Deus não existe. Donde provém este conceito de Deus?
Ora, como Deus não é objeto de conhecimento direto, isto é, não
entra nem no conhecimento intuitivo, nem no abstrativo que sempre
acompanha o intuitivo, dever-se-á dizer que Deus é conhecido indi-
retamente, ou seja, mediante conceitos que são comuns a Deus e às
outras coisas. Estes conceitos são unívocos no sentido amplo da
univocidade, porque não comportam nenhuma semelhança real entre
as realidades de que se predicam; contudo, são conceitos simples e
quiditativos, isto é, são aptos a fornecer conhecimentos a respeito da
essência das coisas. O conceito que, mais que qualquer outro, goza
destas características, é o conceito de ente: ele se predica de todas as
realidades extra-mentais, sem implicar nenhum parentesco físico 193 •
A univocidade conceituai do ente supõe pois uma diversidade
real das coisas às quais este único conceito remete; ela se exaure
toda na unicidade do ato representativo da mente. A convicção últi-
ma amadurecida na mente de Ockham a respeito da natureza do
conceito é que este se identifica com o ato mesmo de conhecer, en-
quanto a universalidade é devida ao maior grau de confusã,o que é
própria de alguns atos de intelecção em comparação com certos ou-
tros. A realidade cognoscitiva é, de fato, constituída sempre pelo
singular; o conhecimento intuitivo e o abstrativo da primeira manei-

193 «Sed d1co quod conceptus entls est umvocus Deo et ommbus rebus Quod patet, quia omnes

concedunt quod ahquam notltiam mcomplexam habemus de Deo» (Quodl V, q 14, Opera
Theolog,ca IX, p 538) Analisaremos em detalhes a teona ockham1sta da abstração e dos con-
ceitos comuns, simples e qmd1tativos pred1cáve1sde Deus e das cnaturas, ao tratarmos da cog-
nosc1b1hdadede Deus reservada ao homem, no capítulo sob1e a teologia rac10nal Aqm mteres-
sa:iios exammar o papel assmalado ao conceito de ente, do qual Gmlherme diz
«Qmbuscumque exs1stent1busextra ammam ens est commune umvocum, praed1cab1lede eis m
qmd et per se pnmo modo Cums rauo est, qum omma quae sunt extra ammam, saltem m cre-
atuns, si sint ahquo modo d1stmcta, sunt 1es reahter d1stmctae, sed ommbus 1ebus ens est com-
mune umvocum eadem ratione qua est umvocum Deo et creatu11s» (111I Sent., 2, 9, Opera
Theo/og,ca II, p. 317) É mte1essante notar como esta tomada de posição estep contida Já nas
obras m1c1msde Ockham. De fato, no Comentârw a Pm fírw sustenta que ente não é um con-
ceito unívoco no sentido que se possa predicar do mesmo modo de todas as dez categonas,
deve-se todavia adm111rque existe um conceito unívoco, comum a Deus e às cnaturas, pois em
caso contráno não poderíamos ter nenhum conhecimento de Deus «Cum pnmum ens non pos-
sit m se cognosc1 modo, nec m conceptu simphc1 s1b1proprio, oportet quod cognoscatur m con-
ceptu comrnum s1b1et alns, et etiam m conceptu compos1to ex multis qm potest esse propnus»
(Expos1tw m /1brum Po1phy111de praed1cab,/1bus, c. 2, ad Sed m fam1l11s • Opera Philo-
soph,ca II, p 42)

117
ra colhem o singular em si, adequadamente, mesmo se não exausti-
vamente. O conhecimento abstrativo de segundo tipo, isto é, aquele
do universal, capta sempre o singular, mas o capta de maneira páli-
da: o ato de intelecção, desta vez, leva não mais a um único indiví-
duo existente fora da alma, mas a uma multiplicidade de indivíduos,
aos quais podem convir aquelas nota gerais que se encontram na
mente.
Podemos dizer, portanto, que Guilherme não fala da unívoci-
dade do ser como se quisesse colocar uma identidade constitutiva
entre o ser de Deus e o ser das criaturas, ou reivindicasse alguma
forma de semelhança entre o ser incriado e o ser criado; pelo contrá-
rio, ele é solícito em cancelá-la, liberando assim o leitor de qualquer
equívoco em tal direção 194. A univocidade do ente é semelhante
àquela de qualquer outro conceito universal: consiste na unicidade
do ato cognoscitivo que evoca à mente, com um processo de signifi-
cação natural, diversas realidades singulares existentes fora da
mente.
Se isto é verdade, então torna-se facilmente explicável o fato
de que Ockham diga que o ente é também equívoco: como conceito
é somente unívoco; como termo oral ou escrito, é sujeito a uma
multiplicidade de predicações, no interior das quais pode ser usado
quer em um significado originário, quer em um derivado: o termo
ente foi instituído pelos homens para designar primeiramente a
substância, ou seja, algo dotado de existência autônoma, mas pode
ser usado também a propósito de atributos que, embora não existin-
do autonomamente, podem estar presentes em uma substância ou
materialmente (acidentes materiais) ou intencionalmente (os atos do
pensamento em um sujeito). Quando se predica o ente de tais atri-
butos, ele é predicado evocando-se indiretamente seu significado
primário, pelo fato de que de tais atributos se fala como de algo que
pode competir a um sujeito individual.

194 «Dico tamen quod mlul Deo et creatuiae est umvocum acc1p1endoumvocum stncte, qum

mh1l est m creatma, nec essentmle nec acc1dentale, quod habeat perfectam s1m1htudmem cum
ahquo quod reahter est m Deo Et 1stam umvocat1onem S a n e t 1 et A u e t o r e s ne-
gant respectu Dei et creaturae et nullam aham» (/11/ Selll, 2, 9, Opera Theolol{1ca ll, p 317)

118
4. Ser, essência, existência

O ente designa qualquer coisa que entre ou que possa entrar


no universo empírico, mental ou extra-mental. Ora, ente continua
sendo sempre um particípio do verbo esse, e como tal seu significa-
do está ligado àquele do semantema ser. Para Ockham, há diversas
acepções possíveis de ser: ser pode ser tomado como significando a
existência, como quando _sediz: 'Sócrates é', e entende-se dizer que
Sócrates existe - neste caso, é vem utilizado como predicado verbal.
Ser é também usado por vezes como sinônimo de ente, para signifi-
car tudo aquilo que existe ou pode existir; ou também é usado como
cópula, e serve para unir o predicado com o sujeito 195• Segundo o
uso gramatical, o termo ser pode variar em relação ao caso do
substantivo que o segue: assim, posso falar do ser da criatura, do
homem, de Deus etc. e então uso o termo ser no significado de
existente ou de ente. Se, porém, em vez do genitivo, faço seguir ao
ser o caso acusativo, dizendo, por exemplo: ser animal, ser branco,
ser conhecido, então não tomo ser segundo seu significado, mas
como cópula; tais expressões, em verdade, são incompletas, isto é,
são partes de uma proposição mais completa deste teor: o homem é
um animal, uma coisa é branca (no latim conserva-se o infinitivo:
hominem esse animal, hoc esse a/bum, etc.). Neste caso, ser não é
usado segundo seu significado próprio, mas possui uma suposição
material 1%.
Portanto, ser significa propriamente existir. Mas em que coi-
sa consiste a existência de algo? Segundo Ockham, a existência de
uma coisa não se distingue de sua essência. De fato, se entre ambas
houvesse uma distinção, posso perguntar-me, o que é a existência: é
uma substância ou acidente? Não pode ser um acidente, porque a
existência do homem seria qualidade ou quantidade, o que é falso,
porque a qualidade ou a quantidade pressupõem já o homem exis-
tente. Não pode ser uma substância, porque só a matéria ou a forma

195 ln I Sellf, 36, umca (Opera TheoloKiW IV, pp 546-548)


196 Ibidem Cfr Ph Boehner, The Metaphy.m ,. of W1/lwm Ockhmn, m CAO, pp 384-388

119
ou o seu composto podem ser chamados substância, ou se trataria
de substâncias absolutas: mas se a existência é distinta da essência
de uma coisa, não pode ela ser nada de tudo isso 197• Um segundo ar-
gumento contra a distinção entre essência e existência é o seguinte:
se se tratasse de duas coisas distmtas, essência e existência poderi-
am formar uma substância essencialmente una em si (unum per se),
mas deste modo uma delas deveria comportar-se como matéria, e a
outra como forma, o que é absurdo; ou então poderiam dar lugar a
uma unidade somente acidental (unwn aggregatione ou unum per
accidens), mas isto implicaria em que uma fosse acidente da ou-
tra198.Um terceiro argumento contra a distinção entre essência e
existência apoia-se sobre a seguinte reflexão: se fossem duas reali-
dades distintas, Deus poderia fazer existir uma sem a outra; pode-
ria, pois, produzir a existência de um anjo, sem realizar a natureza
angélica, e vice-versa, poderia produzir uma tal natureza sem que
nen hum anJo· existisse
· · 199.
A essência de uma coisa identifica-se com sua existência de
maneira total, isto é, com a mesma força com a qual se identifica
consigo mesmo. A este propósito surgem algumas dificuldades: na
tradição filosófica e teológica medieval sempre se afirmou que a
distinção entre essência e existência é como que o distintivo, a ca-
racterística ontológica do ente criado ante o criador, em quem es-
sência e existência identificam-se, pois ele é o ser por essência.

197 «Et qma tactum est de esse exs1stere, ahquantulum d1sgred1endoconstderandum est quahter

esse exs1stere se habet ad tem utrum sc1hcet essentla 1e1et esse ret smt duo extra ammam, dts-
tmcta mter se Et m1h1vtdetur quod non sunt taha duo, nec esse exs1stere s1gmficat ahqmd dts-
tmctum are qma st s1c, aut esset substantta aut acc1dens Non acctdens, qma tunc esse exs1stere
homm1s esset quahtas vel quantttas, quod est manifeste falsum, s1cut mducttve patet Nec potest
d1c1quod est substantta, qma omms substantta vel est mate11a vel forma vel composttum vel
substantta abstracta Sed mamfestum est quod nullum 1storum potes! d1c1'esse', st 'esse' s1t aha
res ab entttate 1e1»(Summa log,we, lll-2, 27; Ope111P/11/osophtw I, p 553)
198 «Item, s1essent duae res, aut facerent per se unum aut non S1 s1c, oporte1et quod unum esset

actus et rehquum potentta, et pe, consequens unum esset matena et ahud fonna, quod est ab-
surdum S1 non facerent unum per se, 1gttur essent unum aggregat10ne tantum vel facerent
unum tantum per acc1dens, ex quo sequeretur, quod unum esset acc1dens altenus» (lb1dem,
Opera P/11/osopluw I, p 553)
199 «Item, s1essent duae res, non esset contrad1ct10,qum Deus consevaret entltatem ret m rerum

natma sme ex1stentta, vel e conve1so ex1stent1am sme entltate, quorum utrumque est 1mposs1-
b1le» (Ibidem) Cfr Quodl II, q 7 (Opeia Theoloi;tw IX, pp 141-145)

120
Além disso, se essência e existência coincidem, pergunta-se por que
se faz uso de dois termos para indicar uma mesma coisa; pergunta-
se também qual seja exatamente a distinção que intermedeia entre
Deus e o mundo criado.
Guilherme responde à primeira questão, afirmando que es-
sência e existência são dois termos que significam absolutamente a
mesma coisa, mas em dois modos gramaticais diversos: a essência
significa a coisa nominalmente, enquanto a existência a significa
verbalmente, sendo um predicado verbal.
Não é lícito, pois, falar de indiferença da essência ante o
existir ou não-existir, porque seria como dizer que a essência é indi-
ferente a ser si mesmo, ou seja, a ser aquela mesma realidade abso-
luta à qual remete o termo essência e que é a mesma à qual remete o
termo existência 200 • Isto não impede, porém, que entre Deus e mun-
do haja uma nítida distinção, aquela que os Santos Padres e os filó-
sofos entenderam colocar, afirmando que Deus é o ser por essência,
o ser subsistente.
Ockham quer impedir que a distância entre Deus e as criatu-
ras seja reconduzível à distinção entre essência e existência, distin-
ção que em Deus não existiria, mas que atingiria todos os entes fi-
nitos. A acepção exata dos dois vocábulos obriga a dizer que tam-
bém nas criaturas a essência e a existência identificam-se. A raiz
das diferenças entre Deus e o mundo está antes no fato de que Deus
é o ens a se, incriado, necessário, absoluto; as criaturas, pelo con-
trário, são derivadas: seu ser, quer seja tomado na denominação de
essência, quer na de existência, é um ser dependente, causado, não
necessário, como se pode constatar baseando-se no fato de que toda
criatura surge por proveniência de uma outra, vem ao ser através de
uma outra criatura pré-existente 201 •

200«Enutas et exsistentta non sunt duae res, sed 1sta duo vocabula 'res' et 'esse' tdem et eadem
s1gmficant sed unum nommahter et ahud ve1bahter Et tdeo non est plus imagmandum quod
essentta est mdifferens ad esse et non esse quam quod est md1fferens ad essenuam et non essen-
uam, quta stcut essentia potest esse et non esse. 1ta essentla potest esse essentta et potest non
esseessentta» (Summa /og,cae, 111-2,27, Ope1a Phtlo.wphica I, p 554)
201«Causa autem guare S a n e t I et a I 1 1 dtcunt Deum esse tpsum esse, est quia Deus
s1c est esse quod non potest non esse, 1mmo necesse est esse, nec ab ahquo alto est; creatura au-

121
Com estas declarações precisas, Ockham confirma sua fim-
damental disponibilidade para um discurso metafísico que, porém,
permanece de todo implícito, enquanto as premissas destas afirma-
ções têm uma índole exclusivamente lógica, no sentido acima visto.
Ele se preocupa em fundamentar o uso correto dos termos metafísi-
cos em relação à lógica, mas não se preocupa em mostrar porque é
necessário afirmar que Deus, o ser a se, é absoluto: por força de que
coisa somos obrigados a admitir tal absoluto, isto é, por que não
posso negá-lo, afirmando, por exemplo, que o único modo de ser é
aquele que conheço, isto é, aquele dos entes que derivam sempre de
outros a própria existência? Baseado naqueles argumentos, Gui-
lherme não se detém no dado empírico, que lhe é tão caro ao nível
de análise lógica e gnosiológica, mas por que não conclui que, assim
como o ser que entra em nosso conhecimento é sempre um ser deri-
vado, também o horizonte do finito é exaustivo, isto é, este hori-
zonte abarca todo o ser?
A mesma interrogação é colocada com referência às afirma-
ções dele quanto à unívocidade do ser: por que deve haver um con-
ceito comum a Deus e às criaturas, se ainda não se demonstrou que
Deus existe? Ockham justifica sua tese aduzindo um inconfutável
dado de fato: todos os homens falam de Deus e estão convencidos
que este termo está no lugar do ente primeiro; mas quem nos diz que
existe um tal ente primeiro, que esteja fora da atual ordem finita dos
entes, ordem esta empiricamente constatável? Se o originário, para
Ockham, é o individual, isto é, se o pensamento não transcende ori-
ginariamente o plano do dado positivo para atingir a positividade do
real em sua totalidade, só resta concluir que podemos falar de ente
primeiro ou de absoluto quando tivermos demonstrado a necessida-
de de colocar um tal absoluto. Com estas breves observações que-
remos sublinhar como em Ockham faltam tanto o conhecimento
(consapevolezza) do ser absoluto, como um discurso orgânico que
atue como substitutivo deste conhecimento e justifique o engate do
ente finito ao ente absoluto.

tem s1c est esse, quod non est necessano esse, s1cut nec necessano est res, et ab aho est, s1cut ab
aho est res effectlve» (lb1dem, Opew Ph1/osoph1w 1, p 555)

122
Imbuído pela premência da correção lógica e pela necessidade
de ler e interpretar fielmente Aristóteles, ele acaba por introduzir em
seu discurso distinções ontológicas mediante um vocabulário for-
malmente muito correto, sem contudo fornecer, posteriormente, uma
justificação. Sem dúvida, com a demonstração da existência de
Deus consegue suprir estas lacunas, visto que em tal prova docu-
menta a necessidade de ultrapassar o horizonte do finito para colo-
car o plano do imóvel. Uma tal demonstração, porém, deveria ser
colocada no início mesmo do discurso ontológico, quando se fala de
finito e de infinito, de ente criado e de ente primeiro. Concluindo,
não está sendo dito que Ockham se coloca em uma posição anti-
metafísica, e sim que seu discurso metafísico não é fundamentado,
mas somente esboçado, por vezes apenas proposto, mas jamais de-
senvolvido em todas suas implicações. Como, porém, aconteceu que
se sentiu obrigado a elaborar, em duas obras diversas, a demonstra-
ção filosófica da existência de Deus, ou melhor, do absoluto, deve-
mos verificar a nível de leitura de sua teologia racional qual seja
exatamente o alcance de sua metafísica.
Haveremos de ver, pois, se está suficientemente justificada a
passagem do finito ao infinito e, sobretudo, veremos se o conceito
que Ockham tem de infinito ou de absoluto seJa autêntico, isto é, se
é verdadeiramente o conceito do horizonte onicompreensivo do imó-
vel e conforme a estrutura originária do pensamento que tenha ama-
durecido em si a convicção de não poder compreender nada se não
em virtude da presença da totalidade do ser.
Voltando à análise da distinção entre o ser de Deus e o ser do
mundo, deparamos com um comentário que merece ser recordado.
Guilherme afirma que a distância que o mundo tem de Deus é me-
lhor caracterizável quando nos reportamos à distinção, introduzida
por Boécio e retomada por muitos escolásticos, entre aquilo que
uma coisa é (quod est) e aquilo pelo qual uma coisa é (quo est). Em
Deus, precisa Ockham, o quod est e o quo est identificam-se, pois
que não existe nada que não seja Deus, não se dá nada de diverso de
Deus, do qual ele possa tomar o ser. Já nas criaturas, o quo este o

123
quod est diferem, porque a realidade de cada criatura é distinta da
realidade da qual provém cada criatura 202 . É evidente que Ockham
toma o quo est em uma acepção toda particular, diversa daquela se-
gundo a qual o termo havia sido usado por Boécio, Gilberto de la
Porrée, Tomás de Aqumo e outros mestres que haviam adotado a
terminologia boeciana. O quo est para Guilherme é aqmlo de que
uma coisa é; podemos dizer que é a causa eficiente da coisa, aquela
que se encontra na ongem de seu vir-a-ser. De fato, ele afirma que o
quo est dos entes é distinto realmente dos própnos entes, da mesma
maneira como Deus se distingue das criaturas. Já os outros pensa-
dores medievais, embora com vanações, tinham visto no quo est a
causa formal: os de onentação platônica o entenderam como causa
formal extrínseca, enquanto os de orientação aristotélica o identifi-
caram com a causa formal intrínseca, ou seja, com a força intrínse-
ca própria de cada existente para mantê-lo no ser, ou de explicar o
fato de ser si mesmo.
Mas se essência e existência identificam-se, é claro que as
coisas são si mesmas em força de sua mesma existência como coi-
sas individuais, para as quais deixa de haver a premência de expli-
car como uma essência exista ou possa existir, ou seja, não se colo-
ca o problema da relação entre a essência individual e o ser.

5. A relação

Um tratado característico da metafísica de Ockham é aquele


acerca da categoria aristotélica da relação. O problema é estudado
em quase todas as obras, desde o Comentário às Sentenças, até os
Quodlibeta, a Summa logicae e a Quaestio de relatione, que é re-
conhecida pela maior parte dos estudiosos como obra autêntlca 203 .

202 «Et 1deo non d1fferunt ln Deo 'quod est' et 'quo est', qma non est ahqmd ahud a Deo quo
Deus est, sed ln creatura d1fferunt, guia 1llud quod est c1eatu1a et quo est creatma sunt d1stlncta
sm1phc1ter, s1cut Deus et creatura d1fferunt» (lb1de111)
2º1 Cft IH l Sent, 30, 3-4 (Ope1a Tlzeolog1w IV, pp 335-374), Quodl VI, qq 16-18 (Opera

Tlzeolog1w IX, pp 639-651), Twltat11s de relatwne (Opera P/11/osoplz1w VII, pp 333-369),


Summa log1we, 1, 49-54 (Opern Plulosop/11w 1, pp 153-179)

124
Ockham conhece e critica as interpretações que os escolásti-
cos latinos haviam dado da categoria de relação. Inicialmente, refuta
a teoria segundo a qual à relação corresponde na realidade algo de
distinto dos sujeitos que estão em relação: na composição do real
não entra nada alérp das substâncias e acidentes absolutos; no mun-
do há coisas colocadas cada uma em si mesma, absolutamente, e
tais são os termos da relação. A relação não possui nenhuma reali-
dade distinta daquela dos absolutos: trata-se, pois, de um termo que
significa diversos absolutos. No gênero da relação encontram-se
pois os termos mentais, orais ou escritos, que designam diversa-
mente os mesmos objetos reais. Ela se resolve nos nomes relativos,
naqueles nomes que significam algo somente se se acrescenta a eles
um caso oblíquo: o termo pai, por exemplo, não significa uma reali-
dade absoluta diversa daquela de Sócrates e de seu filho, ou seja,
designa indivíduos existentes em si e que possuem qualidades anco-
radas na própria substância. Não existe a paternidade como algo
distinto do ser de quem gerou e da ação mesma de gerar. Uma mes-
ma coisa - explica Ockham - é por vezes conhecida por meio de um
conceito absoluto, como quando é conhecida em si mesma, sem que
o intelecto se refira a uma outra coisa; mas a mesma coisa pode ser
conhecida tamb~m mediante um conceito relativo, e isto acontece
quando é conhecida em relação a algo outro. Quando se conhece
uma coisa no primeiro modo, fala-se dela como de uma realidade
absoluta: o homem, a brancura etc.; quando se conhece no segundo
modo, fala-se de termos relativos, como são os termos pai, patrão
etc.204 .
Entre os termos absolutos e os relativos existe a seguinte di-
ferença: os nomes e os conceitos absolutos significam as coisas as-
sim como elas são em si mesmas, não em relação com algo outro, e,
por isso, convêm sempre às coisas que designam, contanto que estas
existam. Já os conceitos e nomes relativos, como designam a relação
com outra coisa, não convêm sempre às coisas que significam si-
multaneamente: assim, o nome de pai convém a este homem so-

VII, p 348), Summa /og1cae, I, 49 (Opera


2<l4 T1actatus de re/atione (Opera P/11/o,\'1Jp/11ca

Philosoph1w i, pp 154-155)

125
mente durante todo o tempo em que coexiste com ele o filho; assim
também a semelhança é própna de uma brancura enquanto uma
outra brancura coexiste com ela205•
A relação é um 'nome de segunda imposição ou de segunda
intenção' 206. Mas nós sabemos que com isto não se aftrma que é
algo de arbitrário, que se pode pensar ou não pensar ao bel-prazer:
os nomes de segunda mtenção sigrnficam, por sua natureza, os no-
mes de pnmeira intenção, são smais naturais das intenções primei-
ras e podem substituí-las em uma proposição 207. Como para os uni-
versais, a relação é signo da realidade: ela significa os seus termos,
sem ter propriamente alguma realidade fora da alma. Ela surge na
consciência do sujeito quando aos nomes relativos se acrescenta um
caso oblíquo no interior de uma proposição, mantendo toda a signi-
ficatividade natural dos termos nos confrontos com a realidade sin-
gular extra-mental 208•

205 «Conceptus et nomma absoluta s1c d1ffemnt a nmmmbus et conceptlbus respecllv1s quod
nomma et conceptus absolull, qma s1gmficant 1es ut sunt ad se [et] non m hab1tudme ad ahud,
1deo semper vete d1cuntur de 1ebus quas s1gmficant, dummodo 1es humsmod1 exs1stant Con-
ceptus vero respecllv1 et nomma 1espect1va, qma s1gmficant m hab1tudme ad ahas, 1deo non
semper convemunt rebus quas snnul s1gmficant dummodo 11lae res exs1stant, sed ahquando
convemunt eis et ahquando non, propter solam Uansmutallonem m alns Et 1deo hoc nomen
'pater' non semper convemt 1s11hmmm, sed solummodo dum fihus vel fiha coexs1sllt cum eo»
(Twltatus de 1elatume, Opera Ph,lo,w,p/uw VII, p 350)
206 «Et 1deo secundum op1monem Anstoteh~. ut ae~t1mo, '1elat10' s1ve 'ad ahqmd' s1ve ellam

'1ela11vum' eiat nomen secundae 1mpos1t1omsvel nomen secundae mtenlloms et non nomen
pnmae mtenlloms» (Summa loguae, 1, 49, Ope,a P/11/o.\Oph1w1, pp 155-156) F01 obse1va-
do com iazão como a tese de Martm, que mte1p1eta a doutnna da 1elação de Ockham em dire-
ção da filosofia llanscendental kantiana e 1deahsta (a 1elação, segundo Ockham, sena Vo1stel-
lu11guber Vo1.,tellu11g)não é suficientemente sufragada pelos textos Cfr Junghans, Ockham
1111L,ihte , pp 199-202
207 Cfr Summa log,we, 1, 12 (Opera P/11/o,w,p/11w1, pp 41-44), Quodl V, q 25 (Opera

Theolog1w IX, pp 582-584)


208 T De Andrés colocou em evidência a 1mpo%1b1hdadede entender a teona da relação como

'nome de segunda mtenção', em dneção nommalísllca de fato, Ockham não p1etende reduzir a
relação a um flatu., voc,.1, isto é, a mero som ffs1co, pnvado de qualquer elo com a reahdade
Sua concepção do nome como naturalmente s1gmficauvo de uma reahdade absoluta (nomes de
pnme1ra mtenção) ou de um outro teimo existente na mente do suJe1to (nomes de segundam-
tenção), rompe pela raiz toda e qualque1 hgação com o nommahsmo A segmr, De Andrés faz
sua proposta a respeito do modo de avahar a posição ockham1sta Dep01s de haver subhnhado o
fato de que Gmlhenne ms1ste sob1e a necessidade que 05 nomes relativos seJam mtegrados em
uma proposição, a fim de que possa surgir a 1elação ve1dadena e própna, ele afirma que não se
deve falar de nommahsmo, mas de filosofia da hnguagem «Como :i correspondente mtentlo
prima é p1ec1samente o conteúdo de uma proposição, é natwal que o signo que a s1gmfica te-

126
Concluindo, a relação não deve ser pensada .como uma coisa
acrescida a seus termos, como se se tratasse de uma ligação materi-
al que os unisse. Para Ockham, a ordem do universo não possui ou-
tra realidade que aquela de suas partes constitutivas: admitir uma
ordenação real do universo comportaria a necessidade de uma reali-
dade que se refere por sua vez à precedente (partes do mundo junto
com a relação real entre elas), e assim ao infinito209 • É, pois, incon-
cebível que a relação acrescente algo de real à realidade dos termos
que são postos em relação. Se não fosse assim, surgiriam muitos
absurdos, como este: cada vez que movo um dedo, encho o mundo
de um número infinito de realidades novas, visto que mudando a po-
sição do dedo com relação a outras partes do céu, surgem outras
tantas novas relações nestas partes que são infinitas e, portanto,
surgem infinitas novas realidades. Todo corpo conteria, pela mesma
razão, realidades infinitas: de fato, cada corpo pode ser considerado

nha um caráter propos1c10nal Tal caráter p10pos1c1onalé constituído pela implicação, no sem
da relação, de um caso oblíquo Junto ao reto Somente um signo linguístico assim constituído
pode ser o signo de uma proposição, visto que a implicação do caso oblíquo Junto ao caso reto
não é nada mais do que a fonna ab1evmda de uma p1opos1ção Deste modo, o termo mental,
oral ou escnto, pa, implica no caso oblíquo o filho E esta nnpllcação é que o toma capaz de ser
signo da proposição, na qual exprmumos llngmsucamente o fato concreto, smgular e absoluto
da geração, dizendo que Ped10 é pm de João Deste modo, a mterpretação ockham1sta <la rela-
ção m creat1s sublinha, mms que aquela <lasdemais categorias, o caráter radical da filosofia da
lmguagem que possm o assim chamado 'nommallsmo' de Ockham» (E/ nommalismo ., p
215) A proposta de De Andrés nos deixa perplexos, não no que se refere à leitura dos textos de
ockharrnstas sobre a relação, que é exata, mas quando diz que a filosofia de Gmlherme não é
um nommallsmo, e sim uma filosofia da Imguagem Na verdade, a designação de filosofia da
linguagem é pmarnente extrínseca, isto é, não diz nada a 1espe1to da orientação e sobre a vali-
dade das análises efetuadas, enquanto com o termo nommal1smo a tradição qms formular um
Juízo de val01 sobre a lógica de Ockham, qualificando-a como análise formal, pnvada de todo
mfluxo (mm dente) sob1e a realidade e, por isso, <l1ssolutorada leitura metafisica Que Ockhmn
seJa um filósofo da linguagem, nmguém o coloca em dúvida (nem mesmo aqueles que o quali-
ficam de nommall~ta); o problema que urge, porém, é aquele de tomar evidente qual seJa a li-
gação que, segundo ele, se passa entre a linguagem e a realidade que se expnme através da lm-
guagem ou que é por ela subentendida
209 «Secundum mtellectum P h I I o s o p h I debet concedi quod umtas umvers1 est ordo
partmm ad mv1cem, quia mhll ahud mtelhg11 quam quod 'umversum esse unum' est 'partes sic
ordman', non quod ordo vel umtas s1t allqmd m re d1stmctum ab omni parte et ab omnibus
part1bus umve1s1 S1c emm esset procederem mfimtum» (/11/ Sent, 30, 1, Opera Theologtw
IV, p. 317)

127
como duplo, com relação à sua metade, e esta metade é o dobro de
sua metade, e assim ao infinito21º.
Com esta visão da doutrma sobre a relação, Ockham separa-
se da mterpretação de Aristóteles dada por Tomás de Aquino, o
qual defendeu a tese da realidade da relação, distinta da substância e
da causa que a produziu. Para santo Tomás, a relação "era uma en-
tidade sui generis e para admiti-la bastava considerar que, por
exemplo, a paternidade pela qual Sócrates era verdadeiramente pai,
não era a sua substância, porque esta existia também antes que ele
fosse pai; nem era a geração, porque a ação de gerar Já havia pas-
sado; era aquela entidade pela qual Sócrates se refena ao filho como
a um efeito de sua ação geradora" 211• Na realidade, a tese tomista já
havia sido polemicamente abandonada por Henrique de Gand, se-
guido de Tiago de Metz, Durando de São Porciano, Hervé de Néde-
Ilec e Pedro Auréola. Segundo o ensinamento destes mestres, a rela-
ção e as seis categorias sucessivas, elencadas por Aristóteles, dis-
tinguem-se das três pnrneiras porque não designam urna realidade
objetiva distinta daquela da substância, da quantidade e da qualida-
de; a relação não possui, pois, um fundamento objetivo próprio fora
da alma humana, mas é um ente de razão212•
A posição de Ockham não é todavia reduzível àquela dos
mestres acima mencionados. Ele concorda com ela na crítica à con-
cepção realista da relação, mas não a reduz ao nível de mera entida-
de de razão: as relações não são reais, mas nem por isso não são
objetivas. O caráter objetivo é garantido pelo fato de que a relação,
como conceito ou intenção da alma, ref~re-se a diversas realidades

210 ln li Sellf, 2 (Ope,a Theolog,w V, pp 35-38), Quod/ VII, q 3 (Opera Theolog,w IX,
pp 709-713), Summa log,we, I, 50 (Opew Ph1/ol()p/11w 1, pp 159-162)
211 G Gmcon, Gug/1e/1110 d, Ouam, Milão 1941, II, p 481
212 Para Hennque de Gand. cfr Quodl IX, q 3 (ed Paus 1518, foll 348-354), Quod/ V, q 6

(foll 161-164) Para Dmando de São Porcmno, v /11/ Sent, d 33, q 1 (ed Veneza 1571, pp
89-91) Para Hervée de Nédellec. v Quod/ I, q 9 (ed Veneza 1513, pp 19-23), cfr também
o volumoso li atado De 1elatw111b111·
(ed Veneza 1513, pp 54-71) Para Pedro Auréolo, v ln I
Sent,d 30,q 1

128
singulares, ou é mais realidades singulares, tal como um povo é uma
pluralidade de homens e nenhum homem é povo213.
Deve-se observar como também quanto a este tema Ockham
declara que deseja manter-se fiel a Aristóteles, distinguindo nitida-
mente entre o âmbito da teologia e aquele da filosofia: a Sagrada
Escritura, ou melhor, os Santos Padres, sentem-se obrigados a ad-
mitir que em Deus há relações que possuem uma realidade própria,
precisamente aquelas relações que medeiam entre as pessoas e a es-
sência divina. Aquilo que a revelação nos faz conhecer a respeito de
Deus não vale, porém, necessariamente também para o caso das
criaturas. De resto, deve-se ter presente que as relações não signifi-
cam sempre uma realidade, nem mesmo em Deus, pois de outro
modo deveríamos conseqüentemente admitir que a relação que vem
a ser colocada entre Deus e as criaturas mediante a criação introduz
realidades novas em Deus, o que é absurdo 214•

2" «Non pono quod relat10 est idem reahter cum fundamento, sed d1co quod relat10 non est
fundamentum sed tantum mtentlo et conceptus m amma 1mportans plura absoluta, vel est plura
absoluta, s1cut populus est plures hommes et nullus homo est populus» (ln I Sent, 30, 1, Opera
Theolog,ca IV, p 314)
214 ln I Sent.,30, 4 (Ope,a Theolog,w IV, pp 366-374), Summa log1cae, I, 49 (Opera Phdo-

.wph,ca I, pp 153-159)

129
V

A TEOLOGIA RACIONAL

A acusação mais recorrente movida contra a filosofia de


Ockham é a de não reconhecer validade alguma à teologia racional,
de haver excluído toda possibilidade de um discurso filosófico sobre
Deus 215 .
Aos historiadores que acusam Ockham de ser um agnóstico,
pode-se responder, primeiramente, que Guilherme em realidade ja-
mais negou que o homem possa fazer um discurso filosófico rigoro-
so a respeito de Deus. Tanto é verdade que se preocupou em distin-
guir entre aquilo que a pura razão pode estabelecer evidenter a pro-
pósito de Deus, de sua existência e de sua natureza, e aquilo que, ao
contrário, não está em condições de demonstrar sem o auxílio da re-
velação. Em segundo lugar é colocado em evidência um dado ainda
mais importante e significativo: Guilherme elaborou toda uma teoria
com o escopo de fundamentar criticamente a possibilidade humana
de raciocinar a respeito do problema de Deus, o que exige conse-
qüentemente a necessidade de uma análise particularizada de suas

215 A acusação de agnosticismo foi levantada po1 todos os estud10sos mais conhecidos do pen-
samento de Ockham, como M. de Wulf, H1çto11ede la philosoplue méd1évale, III, Louvam-
Pans 1947, pp 41-43, N Abbagnano, Gugl1elnw c/1 Ockllllm, Lancmno 1931, p 253, E
Bréh1er, la filosofia dei Medwevo, trad 1tal Tonno 1952, pp 348-440, Gtacon, Gugltelmo
d1 Occam, pp 592-598, C Vasoh, Gughelmo d'O, cwn, Flmença 1953, p 222 Tal visão do
pensamento ockhamista a respeito da teologia rac10nal encontta-se tainbém em alguns estudos
postenores aos de Boehner e de Menges, que documentaram a falta de fundamento das antigas
afirmações, é o caso, por exemplo, do ensaio de L Cazzola Palazzo, Osse,vazwm critlche
sul/'agnostu:1s1110teolog1co d1 Gugltelnw d, Ockllllm, ·«Attt <lell'Accademta delle Sc1enze d1
Tonno. Classe d1 Sc1enze moralt, stonche e filolog1che», 95 (1960-61), tomo 11,300-324

131
posições, a fim de que a resposta mais convincente à acusação de
agnosticismo seja extraída diretamente da leitura dos textos.
Nos últimos anos, três c1<mhecidos estudiosos tomaram posi-
ção a respeito, depois de haver perquirido as obras de Ockham à
procura de elementos válidos para tolher todo fundamento ao pre-
tenso agnosticismo. Tais autores são Boehner, Menges e Baudry 216 .
Boehner, por primeiro, sublinhou a falta de fundamento da tese tra-
dicional, fazendo ver como com a teoria da univocidade dos con-
ceitos transcendentais Ockham encontrou um elo de conjunção entre
as criaturas e Deus e, como conseqüência, entre ontologia e teolo-
gia racional. Boehner julga até mesmo estranha a tese de que
Ockham tenha separado a teologia racional da filosofia, visto que
Guilherme apontou explicitamente para a univocidade do conceito
de ser como base comum tanto a uma como a outra. Ockham elabo-
rou um discurso crítico original para construir a teologia racional,
demonstrando que é possível ao homem conhecer alguma coisa a
respeito de Deus e incluindo entre as verdades, que são objetos de
demonstração verdadeira e própria, a existência de Deus, atingível
por uma via que dista quer das provas tomistas quer da escotista. A
edição crítica dos textos a que nos referimos, a respeito da teologia
racional, está contida no segundo volume da Opera Omnia, e na
antologia preparada por Boehner.

1. Fé e razão

No modo de ver de Ockham, a solução dada pelos escolásti-


cos do século XIII às relações entre fé e razão deve ser revista não
propriamente para conceder maior peso a uma ou a outra, mas para
que se possa precisar melhor o que significa para a razão o fato de
colocar-se ante o dado revelado Ul porsi del dato rivelato ). Uma
das afirmações recorrentes sob a pena de Ockham é esta: as verda-

Ph Boehner, Zu Ockham'.1 Bewei., det Ex1ste11zGol/es, «Franz St », 32 (1950), 50-69;


216

Menges, The Concept of Uwvouty ; L Baud1y, Les ,apporH de la rwso11et de la foi selon
Gu1/111u111e
d'Oiwm, AHDLMA, 37 ( 1962), 33-92

132
des da fé não podem tornar-se objeto de demonstração racional. A
afirmação em si mesma não era de todo nova, mas nova foi a inter-
pretação que Ockham lhe deu, ao menos com relação às posições
daqueles escolásticos do século XIII que, como Tomás de Aquino,
haviam visto nos preambula fidei o ponto de emergência do encon-
tro entre a fé e a razão.
Também para santo Tomás, um artigo de fé não pode, en-
quanto tal, ser objeto de demonstração. Contudo, a razão é capaz de
adquirir algumas verdades pela via demonstrativa, tais como a da
existência de Deus, de sua unidade, da onipotência, da imortalidade
da alma humana - verdades estas que pertencem também ao hori-
zonte das verdades reveladas. Disto não deriva nenhum prejuízo à
utilidade e à conveniência da revelação destas verdades 217 , enquanto
a razão obtém vantagens com este fato: exatamente porque percebe
que possui pontos de encontro com a fé, a razão humana está em
condição de oferecer menor resistência à vontade, quando esta opta
por aderir ao dado revelado. Santo Tomás reconduz assim a possi-
bilidade de harmonização entre fé e razão ao fato de que uma parte
do dato revelado é adquirível apodíticamente, e, por isso, que algu-
mas proposições dos preambula fidei não estão sujeitas à regra ge-
ral, segundo a qual as verdades de fé não podem demonstrar-se so-
mente através da razão. Por outro lado, dá-se como certo que o
Deus, ao qual se chega pela via demonstrativa e do qual se discorre
na teologia natural, é o mesmo Deus do qual nos fala a revelação.
Ockham opõe-se a esta solução, afirmando a necessidade de
uma nítida distinção entre o dado racional e o dado revelado. Entre
os dois âmbitos não existe nenhuma base comum, a partir do mo-
mento em que não pode jamais acontecer que a verdade própria de
um artigo de fé seja passível de demonstração. "Articulus fidei non
potest evidenter probari" 218 • As razões que levaram Ockham a
abraçar uma tal posição quanto ás relações entre fé e razão devem

217 Cfr Summa wntra Gentes, 1, 4 «Quod ventas d1vmorum ad quam naturahs rat10 pertmgtt

convementer hoffilmbus credenda propomtur»


218 Quodl I, q l (Opera Theolog1w IX, p 1) VeJa-se também Quodl II, q 3 «Utrum art1cuh

fide1 possmt demonstran Ad 1stam quaest10nem d1co quod non possunt demonstran a vmtore,
qma nec demonstrat10ne qma nec propter qmd» ( Opera Theolog1ca IX, p l 17)

133
ser procuradas no caráter radical de sua especulação, sempre pronta
a avaliar o peso das conseqüências. Se as coisas não fossem como
Ockham julga que são, isto é, se algumas verdades reveladas pudes-
sem ser alcançadas racionalmente, então a revelação delas teria sido
perfeitamente inútil. Ora, Deus não revela ao homem as verdades
que o homem já conhece ou que pode alcançar usando a razão, isto
é, valendo-se de um meio adequado para conhecer a verdade que,
em última análise, provém de Deus, o qual, criando o homem, do-
tou-o de racionalidade. Se houve a revelação de certas verdades da
parte de Deus, isto significa que o homem por si só não podia al-
cançá-las. Com isto Ockham faz valer o princípio de economia,
mais conhecido como 'navalha de Ockham', pelo qual 'frustra fit
per plura quod potest fieri per pauciora ', o que em nosso caso es-
pecífico podemos parafrasear assim: Deus não faz as coisas duas
vezes; ou: Deus não faz coisas inúteis.
Se Deus colocou o homem em condições de chegar a uma
determinada verdade, é inútil que ele mesmo se preocupe posterior-
mente em oferecer-lhe a mesma por vm de revelação. São Paulo di-
zia a mesma coisa, segundo Ockham, quando afirmava que a fé não
repousa sobre a sabedoria dos homens, mas sobre a potência de
Deus 219 • A posição ockhamista justifica-se também por uma moti-
vação filosófica: demonstrar um artigo de fé significa torná-lo evi-
dente; ora, sob o aspecto de definição, dizemos que as verdades de
fé são aquelas que têm a Deus como sujeito, o que quer dizer que
para poder ter evidência de tais proposições nós devemos estar ap-
tos a formar um conceito simples próprio de Deus.
Isto, porém, não acontece, visto que o conceito simples pró-
prio de uma coisa, isto é, aquele que cabe somente a ela e ao mesmo
tempo signifique a ela totalmente, pode formar-se somente através
da notícia intuitiva da própria coisa, o que não é evidentemente o
caso de Deus. A notícia intuitiva, de fato, é aquela que nos fornece
um conhecimento de ordem existencial, o que nos diz imediatamente

219 «Ut fides vestra non s1t m sap1entm hommum, sed m v1rtute Dei» (1 Cor 2, 5) Cfr
Ockham, D,alogus, I, 2, 30, m ed Goldast, Monanlua Sana, Romam Imperu, II, pp 431-
432

134
se uma coisa existe ou não existe. Ora, não é possível que o homem
tenha um tal conhecimento de Deus, já que a experiência nos mostra
que muitas pessoas duvidam que Deus exista 220 •
Em geral, pois, o homem viajar não dispõe de conceitos sim-
ples próprios de Deus porque Deus encontra-se além do horizonte
do conhecimento intuitivo, o qual capta o objeto diretamente, em
sua imediatidade. Ockham mostra-nos como também as proposições
referentes a Deus, as quais à primeira vista parecem gozar de evi-
dência imediata, são em realidade proposições dubitáveis, que po-
dem ser verdadeiras ou falsas. Por exemplo, a proposição 'Deus é
Deus' parece-nos evidente; se, porém, a examinamos bem, vemos
que equivale a esta outra proposição: 'O ser supremo e infinito é o
ser supremo e infinito'. De fato, em nossa mente, ao termo Deus
corresponde o conceito de ser sumo e infinito, e de imediato se per-
cebe que não se trata de um conceito simples, próprio de Deus, e
sim de um conceito composto. A verdade da proposição em questão
estará então condicionada pela verdade da implicação entre os dois
conceitos que entram para formar o objeto, isto é, estará condicio-
nada pelo fato de que existe na realidade um tal ser que seja sumo e
infinito: mas isto nós não podemos verificar, porque foge de nossas
possibilidades cognoscitivas. Por conseguinte, a proposição 'o ser
supremo e infinito é o ser supremo e infinito' não pode ser tida
como evidente, visto que é possível que não seja verdadeira221 •
A respeito de Deus podemos formar também conceitos sim-
ples, que, porém, não são próprios de Deus, mas comuns a Deus e
às criaturas 222 • Por isso, também este conhecimento não está apto a
fornecer-nos a evidência daquelas proposições nas quais Deus, ou a
essência divina, fungem como sujeito.

220 «Vtator mtelhgens Deum notttta mcomplexa, quantum est poss1btle vmton potest dub1tare
an mcludat contradtcttonem Deum esse» (/u / Sent, 2, 9, Opera Theo/og,w li, p 313)
221 «Ista propos1tto quam nos habemus 'Deus est Deus', est dub1tab1lis,qma 1sta aeqmpollet 1stt

'ens summum et mfinttum est ens summum et mfinttum' Hoc entm d1c1musesse 'qutd nomi-
nts' Dei, vel ahqmd cons1mtle Et tamen 1sta m qua praed1catur idem de se, est dub1tab1hs, s1cut
unto 11lorumquae ponuntur a parte sub1ectt est dub1tab1hs, s1cut s1 unto 11lorumesset falsa, tota
propos1t10esset falsa, propte1 falsam 1mphcattonem S1cut s1 nullus homo esset albus, haec esset
falsa 'homo albus est homo albus'» (lb,, Ptol, 2, Ope1a Theolog,ca II, pp 112-113)
222 Cfr lbt, 2, 9 (Opera Theo/og1ca li, pp 315-317)

135
Na base da posição ockhamista referente à indemonstrabili-
dade dos dados revelados encontra-se um outro elemento importan-
te, qual seja o rigorosíssimo conceito de demonstração. Para
Ockham, é filosoficamente provante ou evidente aquela demonstra-
ção que não deixa ao adversário nenhuma possibilidade de sustentar
a tese oposta, sob pena de contradição. No vocabulário ockhamista,
demonstrare, probare evidenter, probare sufficienter possuem
sempre o significado de uma demonstração rigorosa, que provoca
um assentimento incondicionado. Ora, para as verdades reveladas
não existem demonstrações de tal força, visto que são aceitas por
uns filósofos e não são aceitas por outros. A respeito delas podem-
se organizar tão somente razões persuasivas, persuasiones, as
quais, sem dúvida, gozam de uma boa margem de validade, pois
também a certeza da adesão serve por vezes para produzir um as-
sentimento semelhante àquele da evidência, mas elas não podem ser
definidas como demonstrações verdadeiras e próprias 223 .
Uma concepção das relações entre fé e razão, tal como a pro-
posta por Ockham, coloca sérios interrogativos para um pensador
que esteja convencido da validade da teologia racional, sendo o pri-
meiro deles o da validade da demonstração filosófica da existência
de Deus. Ora, como fica claro pelos seus escritos, que Ockham ad-
mitiu a possibilidade de um conhecimento de Deus por parte do ho-
mem nesta vida - ele elaborou mesmo uma prova discursiva para
demonstrar a existência de Deus -, parece que se impõe a necessida-
de de uma análise do modo como ele consegue conciliar as diversas
posições. Se a revelação nos fornece dados precisos a respeito da
existência e da natureza de Deus, e se estamos convencidos de que
não pode existir uma demonstração filosófica verdadeira e própria
dos conteúdos da revelação, que sentido tem então em se manter a
possibilidade da teologia racional, isto é, de um discurso filosófico a
respeito de Deus? Não existirá talvez uma contradição de fundo
nesta posição? Para estarmos em condições de dar urna resposta a

221
Cfr. Baudry, Les 1apport.1·de la lltwm , 81 ss Para um estudo analítico da demonstração
em Ockham, cfr o volume de D Webenng, Theol)' of Demonstration Acwrd,ng to W
Ockham, St. Bonaventure, N Y-Louvam-Paderbom 1953, pp XV-186

136
estas perguntas, examinemos as linhas mestras da teodicéia ockha-
mista.

2. A cognoscibilidade humana de Deus

Já mencionamos a exclusão introduzida por Ockham quanto à


possibilidade de podermos formar um conceito simples próprio de
Deus: segundo parecer do mestre inglês, o viajor não dispõe de um
conceito que seja ipso facto, por si mesmo, predicável somente de
Deus. E isto acontece porque não é possível que o homem forme de
Deus qualquer conceito que lhe venha diretamente do horizonte di-
vino224.Deste modo, Ockham demonstra que aceita plenamente o
empirismo moderado de Aristóteles, para o qual todos os conceitos
com que o intelecto humano gradualmente se enriquece, compreen-
dendo aí também as noções transcendentais, são tirados da experi-
ência interna ou externa.
Desta tese segue-se que a possibilidade humana de conhecer a
Deus estará condicionada pela possibilidade maior ou menor de
adaptar algum conceito tomado da experiência e predicável também
de Deus. Ockham sustenta que esta possibilidade é dada ao via-
jor225:de fato, jamais veio à mente de alguém negar ao homem a ca-
pacidade de formular certas proposições a respeito de Deus, mesmo
que seja só para dizer que Deus não existe, ou que dele nada sabe-
mos. Se não tivéssemos à disposição algum conceito de Deus, não
poderíamos dizer nada dele, não poderíamos formular nenhuma
proposição a seu respeito, nem mesmo para afirmar que ele é com-
pletamente desconhecido.
Como é tirado das criaturas o conceito do qual o viajor dis-
põe para falar de Deus, segue-se que é um conceito comum a Deus
e às criaturas. Não pode, porém, ser um conceito meramente cono-

224 «N1h!I potes! cognosc1 a nob1s ex puns natmahbus m conceptu s1mphc1 s1b1propno ms1 1p-
sum in se praecognoscatur» (ln I Se11t, 2, 9, Opera Theolol{tW II, p 314)
225 «[Deus] potes! concipi a nob1s m ahquo conceptu commum praed1cab!li de eo et de alils»

(lb1dem, Opeta Theolol{tW II, p 312)

137
tativo ou descritivo, mas deve ser qüiditativo, isto é, um conceito
que de algum modo faça saber que coisa é Deus, e não se limite a
dar uma definição nominal de Deus.
Segundo o parecer de Ockham, um tal conceito qüiditativo
comum a Deus e às criaturas, deve ser unívoco, isto é, um conceito
que esteja apto a significar diversas realidades distintas entre si.
Pela gnosiologia ockhamista sabemos que um conceito que se predi-
ca de dois sujeitos diversos não implica jamais que a qualidade ou
perfeição significada unitariamente se encontre tal e qual neles; no
máximo a univocidade subentende a existência de qualidades ou de
perfeições em todo ou em parte semelhantes entre si, como acontece
no primeiro e no segundo tipo de unívocidade prospectados por
Ockham 226•
Mas a propósito de Deus e as criaturas, nem mesmo isto pode
ser afirmado, porque nenhuma perfeição ou qualidade, tal como está
realizada nas criaturas, é comparável à perfeição ou qualidade cor-
respondente, quando se a considera existente em Deus. Então, a
univocidade que existe entre Deus e as criaturas só pode ser funda-
da sobre uma semelhança conceptual: esta semelhança se demonstra
mostrando-se a possibilidade que um único conceito refira-se a duas
perfeições distintas, evoque ambas à mente, embora sejam total-
mente diversas na realidade concreta. A semelhança que sustenta a
predicação unívoca, neste caso, é reduzida ao mínimo; as duas per-
feições significadas pelo conceito unívoco têm em comum somente o
fato de serem chamadas à mente por um mesmo signo mental 227•
Trata-se então de ver de que modo sé chega a obter um termo
e, por conseqüência, um conceito que remeta a Deus e às criaturas,

226Cfr ln 1/1 Sent, 10 (Opera Theolog1ca VI, pp. 335-338).


227«D1co quod ahqua panfican potes! mtelhg1 d u p 1 1 e I t e r . vel quod ahqutd existens
m uno panficetur alícm ex1stent1m altero et isto modo Deus et creatura in nullo panficantur,
qma nihil quod est m creatura habet pantatem cum ahquo quod est m Deo ahter potes! intelhgi
ahqua parificari m ahquo, qma sc1hcet est ahqmd unum quod aequahter resp1c1tilia, et isto
modo concedo quod Deus et c1eatura m ahquo panficantur, dlud tamen unum non est intrinse-
cum Deo nec creaturae Unde s1cut non est ahquod inconvemens Deum et creaturam parifican
m ahqua voce aeque pnmo Deum et creaturam s1gmficante, qum 11lavox non est ahqu1d de es-
sentJa Dei vel c1eaturae, 1ta non est inconvemens Deum et creaturam panfican m ahquo con-
ceptu umvoco, qma dle umvocus conceptus nec est de essentra Det nec creaturae» (ln I Sent, 2,
9, Opera Theolog,ca 11,p 333)

138
de uma maneira idêntica e direta. Ockham responde ao problema
afirmando que o processo mediante o qual obtém-se, por exemplo,
um conceito tal de sabedoria, que pode ser predicado univocamente,
sem sofrer variações, tanto da sabedoria divina como da sabedoria
humana - embora na realidade uma seja totalmente diferente da ou-
tra-, está fundado na abstração. A abstração de que fala Ockham é,
porém, algo diverso da abstração aristotélico-tomista. Para esclare-
cer, desenvolvamos o exemplo escolhido: a sabedoria de que temos
experiência é a propriedade ou o atributo da uma criatura e, por
isso, é uma sabedoria criada, que aponta para a imperfeição; a Deus
repugna ser sábio deste modo. Contudo, se analisarmos melhor o
conceito de sabedoria, constatamos que ele, enquanto abstrato,
prescinde do modo pelo qual tal perfeição existe nos vários sujeitos
que são sábios. Constatamos, pois, que o conceito de sabedoria tor-
na-se predicável de toda sabedoria, tanto da imperfeita como da per-
feita, não obstante seja ele formado em nossa mente em contato e
em virtude da sabedoria observada em uma criatura. Tal acontece
porque, segundo Ockham, o conhecimento abstrativo, diferente-
mente do intuitivo, não diz nem que uma coisa existe, nem que não
existe e, portanto, menos ainda se existe em um certo modo ou em
outro. Enquanto abstrato, o conceito de sabedoria é 'neutro', isto é,
capaz de evocar à mente tanto uma sabedoria finita, como uma sa-
bedoria infinita, visto que prescinde do modo de ser do qual a sabe-
doria se reveste na realidade228 •
Na realidade, tanto a sabedoria criada como a incriada são
duas coisas totalmente diversas; todavia, elas são significadas por
um mesmo signo ou termo mental, o conceito de sabedoria, o qual
goza da propriedade de 'abstrair', no sentido de 'prescindir do modo
de ser', de não incluir na sua definição nem um modo de ser finito,

22M «Eodem modo tenet alia ratm de remouone nnperfectmms a sap1enua creaturae et annbuen-
do s1bi quod est perfectmnis - hoc non est ms1 abstrahere a sap1entia creata conceptum sap1enti-
ae qm nullam rem creatam vel íncreatam d1c1t,qma quaehbet res creata dic1t imperfecllonem.
Et 1deo abstrahere 1mperfect1onem a sapientm creata non est ms1 abstrahere conceptum sap1en-
t1ae a creatura 1mperfecta qui non plus 1esp1c1tcreaturam quam non creaturam Et tunc 11lud
quod resultai attnbuendum est Deo per praed1catmnem» (ln l/1 Sent, 1O, Opera Theolog1ca
VI, p 344).

139
nem um modo infinito. Contudo, deve-se observar que nem todos os
conceito abstraídos das criaturas gozam desta propriedade, mas tão
somente os que denotam as perfeições simples, capazes de se reali-
zar tanto de forma finita, como de forma infinita, como são, por
exemplo, a sabedoria, a bondade, a justiça, o amor. Gozam desta
característica também os conceitos transcendentais da filosofia clás-
sica, isto é, os conceitos de uno, verdadeiro, bom e belo, que são
convertíveis com o conceito de ente229 •
Ockham apresenta um exemplo, que serve para esclarecer seu
pensamento: por que não se pode dizer, por exemplo, que Deus é
uma pedra? ,Porque, se é verdade que o conceito abstraído de pedra
não me diz nada a respeito de sua existência real, todavia inclui um
modo de ser finito: de fato, ser pedra quer dizer ser limitado, ser de-
finido na própria materialidade. O conceito de pedra é, sem dúvida,
fruto de uma abstração, mas de uma abstração que não prescinde da
finitude que é própria do ser pedra; este conceito, portanto, não é
aplicável a Deus não só porque, no plano concreto, Deus é radical-
mente diverso da pedra, mas também porque, no plano conceptual,
há uma irredutibilidade de significados. Para encontrar um conceito
abstrato comum a Deus e a uma pedra, é preciso ir além de todos os
conceitos categoriais e chegar ao conceito transcendental de ente.
Pelo contrário, entre as perfeições que encontramos nas cria-
turas racionais, há mais de uma que pode ser significada mediante
um conceito que abstrai tanto de seu existir concreto, como do modo
de seu existir, de tal forma que cada uma destas perfeições pode ser
predicada também de Deus 230 •
Os conceitos que formamos em relação a tais perfeições
mostram ser possível que Deus e as criaturas racionais, radical-

229 ln l Se,u, 2, 3 (Ope,a Theolog1w II, pp 98-99)


2' 0Em um texto que à p11me1ravista está em contradição com tudo o que se afinnava a propó-
sito do terceuo tipo de umvoc1dade, Ockham afüma que «C1eatura ratlonahs max1me Deo as-
snrulatur» (ln I Sent, 3, 1O, Opera Theolog,w II, p 556). A semelhança da qual aqm se fala é
uma semelhança puramente conceituai, referente à poss1b1hdade de um conceito que chame à
mente aeque primo Deus e a c11atura No texto sobre a umvoc1dade, pelo contráno, negando
que exista qualquer semelhança entre Deus e as cnaturas, Ockham quena exclmr a poss1b1hda-
de de uma semelhança obJetlva, concreta, real VeJa-se a respeito o estudo de Menges, The
Conlept of Univodty , pp 82-99

140
mente diferentes do ponto de vista ontológico, convenham sob o
ponto de vista gnosiológico, visto que tais conceitos podem signifi-
car quer as perfeições divinas, quer as perfeições criadas paralelas.
Deste modo, Ockham colocou as bases para uma teologia ra-
cional, tendo estabelecido que o viajor dispõe de um certo conheci-
mento de Deus, pelo qual podemos formular legitimamente proposi-
ções a seu respeito. Afirmada esta possibilidade preliminar, segundo
Ockham resta ainda ver, de modo concreto, o que é que a razão, por
si só, pode demonstrar a respeito de Deus. Em primeiro lugar, a
proposição 'Deus existe' pode-se ser alcançada racionalmente?

3. A demonstração da existência de Deus

Ockham elabora sua demonstração da existência de Deus


criticando e corrigindo aquela de Duns Scotus. As reservas críticas
ockhamistas concentram-se todas naquela parte da prova de Duns
Scotus na qual se justifica a impossibilidade de um processo ao in-
finito na procura de uma causa primeira, fundamento último da rea-
lidade contingente. Ockham está convencido que é difícil, se não
mesmo impossível, demonstrar o absurdo de um envio ao infinito na
série de causas eficientes que explicam a produtibilidade ou a pro-
dução das coisas; julga, ao contrário, que é impossível ir ao infinito
quando se trata de explicar as causas 'conservadoras', isto é, as
causas que mantêm as coisas no ser. Em outras palavras, o pensa-
mento ockhamista sobre a questão da existência de Deus pode ser
assim expresso: filosoficamente não é absurdo admitir que o univer-
so tenha vindo à existência independentemente do fato que existe
uma causa incausada; é absurdo, porém, que o universo continue a
existir sem a assistência permanente (ou 'coexistência') de uma
causa que não pertença à série de causas eficientes que, por sua vez,
são também causadas.
Sobre esta questão, Ockham mostra que têm presente a histó-
ria da filosofia. Historicamente, pensadores não-cristãos, como
Aristóteles e os árabes, ensinaram a criação ab aeterno do mundo,
isto é, a impossibilidade de chegar a um início na série de causas

141
segundas. Se alguns filósofos sustentaram esta posição, isto quer
dizer que não existem demonstrações da tese contrária, capazes de
convencer totalmente, isto é, de levar a um assentimento incondicio-
nado. Como prova disso serve a fraqueza dos argumentos de Duns
Scotus a respeito, fraqueza que Ockham quer ressaltar através de
uma crítica minuciosa do texto scotista231•
Duns Scotus fizera preceder à sua demonstração da impossi-
bilidade de um regresso ao infinito uma caracterização precisa das
causas essencialmente ordenadas e das acidentalmente ordenadas 232 •
A primeira diferença apontada a propósito dos dois tipos de causas
é a seguinte: nas causas essencialmente ordenadas, a segunda de-
pende da primeira no exercício da causalidade (in quantum causat),
enquanto isto não acontece no caso de duas causas que concorrem
acidentalmente a produzir um determinado efeito: neste caso, a se-
gunda depende da primeira na existência, ou sob algum outro ponto
de vista, mas não no exercício da causalidade.
Esta afirmação scotista é refutada por Ockham, baseado na
impossibilidade de entender claramente em que coisa consista tal
dependência causal. Não é verdade que a causa segunda dependa da
primeira porque pode causar só em colaboração com esta, visto que
também a primeira não pode causar sem a segunda, e por isso de-
ver-se-ia dizer que também esta é dependente. A dependência da se-
gunda causa ante a primeira não pode consistir em uma dependência
no ser e menos ainda pode ser entendida como uma influência ativa
da primeira sobre a segunda233.

rn O problema é aventado em duas obras d1ve1sas /u J Seul , 2, 1O (Opera Theologica II, pp


338-350), e nas Quaestumes m ltbrum Phys1wrum Anstotel,,ç, qq. 132-136, (Opera Phdoso-
ph,ca VI, pp 753-769)
m O texto da demonstração scollsta encontra-se na Ordmallo Scoll, I, d. 2, p 1, qq. 1-2 (ed.
Vaticana, 11,pp 149-215) No Comentârw às Se/lten~as Ockham reporta textualmente as dis-
tinções scotJstas (cfr ln J Sent , 2, 10; Opera Theolog1w II, pp 338-340).
2 " «Pnma d1fferentm non est bene data, qu1a quaero. qmd est causam secundam dependere a

pnma m causando? Aut hoc est reqmrere causam pnmam ad hoc quod causet, quia sme ea cau-
sare non potest, aut qma m suo esse dependet a prima, vel qma recip1t vJrtutem acttvam vel alt-
quam mfluentmm a pmna [ ] Pnmum non potes! dan, qum s1cut m multJs causa secunda
non potes! causare sme pnma, 1ta nec e converso, 1g1turtunc non plus isto modo dependei causa
secunda a pnma m causando quam e converso Assumptum patet, quia s1cut m 1st1smfenonbus
multa agentJa part1culana non possunt causai e effectus suos sme sole ita sol non potes! m mui-

142
Segundo Ockham, pois, não se pode falar de uma dependên-
cia no causar somente com referência a uma das causas essencial-
mente ordenadas, visto que estar-se-ia indo contra a experiência. E
ir-se-ia também contra a opinião de Duns Scotus, o qual, falando
dos elementos que concorrem para produzir um ato de conhecimento
(objeto e sujeito), os define como duas causas particulares essenci-
almente ordenadas entre si para produzir um ato de conhecimento.
Ora, precisa Guilherme, segundo o mesmo Scotus, nenhuma das
duas depende da outra no exercício da causalidade, mas tanto o ob-
jeto como o intelecto agem em virtude própria234 •

tos effectus sme caus1s secund1s Nec potest da11secundum » (ln I Sent, 2, 10, Opera Theo-
log,ca II, p 347)
214 «Praeterea, secundum 1stum D o c t o r e m , ahb1, ob1ectum et mtellectus sunt duae cau-

sae partiales respectu mtellectloms, et tamen secundum eundem neutra causa dependet ab aba
m causando, sed utraque agtt v1rtute propna» (lb,dem, Ope,a Theolog1ca II, p 348) Com re-
lação à crítica ockhallllsta à p11me1radas três diferenças postas por Scotus entre as causas es-
sencialmente ordenadas e as acidentalmente 01denadas, deve-se notar uma forte discrepância
entre o texto do Comentário à.1Sentei!( as e aquele da questão 132 das Quaemones m libros
phy.wcorum Anstote/1s De fato, enquanto as 1eservas críticas contidas no Comentário às Sen-
tenças são pertmentes e precisas, o texto das Quaestumes apresenta uma deturpação da posição
de Scotus Ockham rechaça a argumentação escotlsta com uma reflexão que só é compreensível
se se tem presente como para os escolásticos os fatos ativos da geração são d01s, o sol e o ma-
cho. P01s bem, observa Ockham a Scotus, no caso que um homem seJa cnado diretamente por
Deus, teríamos um macho colocado na existência sem a ação concomitante do sol, e então, ele
não dependena do sol quanto ao seu ser, contudo, este macho se encontrana na 1mposs1b1hdade
de gerar outros homens sem a assistência fecundad01a dos corpos celestes «S1 homo crearetur a
Deo solo, tunc non dependerei a sole, et tamen esset causa secunda respectu sohs m generatlone
hmrums» (Quaestume.v III hbros phys1wru111A11stote/1.1,q 132, Opera Ph1/osoph1ca VI, p
753) Ockham crê haver assim desmentido a lei afirmada por Scotus, mas percebe-se logo que a
crítica somente é váhda na hipótese que a dependência da causa segunda ante a causa prmc1pal
seJa entendida como dependência no ser De fato, ele pode afirmar que um homem, levado à
existência por um ato cnador de Deus, não depende do sol só no que se refere à dependência no
ser, mas não à dependência no agtr O pensamento de Scotus não era porém este afirmava que
quando duas causas são ordenadas uma à outra de uma forma essencial, a segunda está subor-
dmada à pnmetra quanto ao agtr ou à eficácia causal, e não quanto ao ser Que Ockham no
texto das Quaestwnes, tal como apresentado Já na edição de Bohner, não tenha entendido bem
a pnmetra d1stmção entre causas essencialmente ordenadas e acidentalmente ordenadas ou que,
pelo menos, não haJa levado devidamente em conta, fica claro também pelo Respondeo à
questão «Ad 1stam quaestmnem d1co, quod d1fferentia est mter causas essentlahter ordmatas et
acc1dentahter ordmatas, et causas partiales concurrentes ad producendum eundem effectum
numero» (lb,dem, Opera P/11/0.wph,w VI, pp 753-754) Nosso autor contrapõe as causas es-
sencialmente ordenadas e as acidentalmente às causas 'particulares' ou parciais, essas também
destmadas a colaborar entre elas para a p10dução de um úmco efeito Para explicar tal d1stm-
ção, Ockham recorre ao exemplo da geração Sócrates depende de Platão, seu pai, porque fm
colocado no mundo por ele, uma vez, porém, colocado no mundo, Sócrates vive também se

143
Ockham cnt1ca também a segunda diferença que, segundo
Scotus, contradistingue as causas essencialmente ordenadas ante as
acidentalmente ordenadas, diferença que deriva como corolário da
primeira e que consiste no fato de que, nas causas essencialmente
ordenadas, a causa superior é mais perfeita que a inferior.
Antes de manifestar sua opinião, Guilherme faz duas distin-
ções esclarecedoras. A primeira é a seguinte: quando duas causas
concorrem para produzir um determinado efeito, pode acontecer que
cada urna delas esteja apta a produzir o efeito sem a outra, ou não.
No primeiro caso, temos a ver com causas que merecem a qualifica-
ção de 'causa total'; no segundo caso, trata-se de causas que, por
sua natureza, são causas 'parciais'. A segunda distinção refere-se
ao conceito de perfeito: pode-se dizer que uma coisa é mais perfeita
que uma outra na medida em que sua natureza está em absoluto per-
feitamente realizada; ou pode-se dizer que uma coisa é mais perfeita
que uma outra porque se tem em vista uma característica particular,
isto é, deseja-se evidenciar que algumas notas de uma são mais per-
feitas que as correspondentes da outra. Feitos estes esclarecimentos,
Ockham dá uma tríplice resposta à questão, se nas causas essenci-
almente ordenadas a superior é mais perfeita.

Platão vem a mmrer Este é um exemplo de causas 'essencialmente' ordenadas, no qual a se-
gunda depende da pnme1ra no ser Entre as causas parciais, pelo contrát10, não ocorre depen-
dência alguma o mtelecto humano e o objeto são causas parciais do ato cognosc1uvo, mas ne-
nhuma delas depende da outra, nem quanto ao sei, nem quanto à própna conservação «Nam m
caus1s essentiahter ordmatis secunda causa dependet a pnma quantum ad pnmum esse et
[quantum ad conservan, m acc1dentahter ordmatis secunda tantum depender a pnma quantum
ad pnmum esse et] non quantum ad conservat10nem S1cut Sortes dependet a Platone, guia 11011
potest naturahter causan sme Platone, cum slt pater ems, sed non conservatur per Platonem, eo
quod Sortes v1v1tmortuo Platone ln caus1s autem pmtrnhbus respectu emsdem effectus non est
ahqms ordo, nec una plus dependet ab aha quam e conve1so Verb1 gratia, ob1ectum et mte-
llectus sunt causae partrnles 1espectu actus mtelhgend1 et neuter depender ex aho nec quantum
ad esse nec quantum ad conservationem» (lh1de111,Ope,a Plu!o.10p!uw VI, p 754) O texto
apresenta dificuldades notáveis antes de mais nada, Ockham apresenta o exemplo da geração
em se tratando de causas essenciais, enquanto pai a Scotus o bmôm10 pai-filho é o modelo para-
d1gmát1code causas acidentalmente ordenadas, além disso, a defimção e a exemphficação apre-
sentadas por Ockham relativamente às causas pmt1culmes comc1dem com o que Duns Scotus
atnbm às causas essencialmente ordenadas Por isso, não se compreende a contraposição entre
estas e as causas paicrn1s, amda mais que no texto do Co111e11táno à.1·Senten~as não existe uma
tal contraposição Portanto, há fundamento na suspeita de que o texto das Quaes/iones esteja
corrompido neste ponto

144
Quando uma das duas causas é capaz de produzir por si só o
efeito pretendido, a primeira causa é sempre mais perfeita que a se-
gunda. Esta afirmação é evidente em vista do fato de que, nesta hi-
pótese, tem-se a ver com causas totais e que a qualificação de causa
total convém a Deus com relação a todas as causas segundas, ao sol
com respeito à geração e a toda outra causa que esteja apta a pro-
duzir por si só o efeito pretendido, mesmo se ordinariamente se dei-
xa auxiliar por uma causa secundária. Na segunda resposta Gui-
lherme estabelece que, no caso de duas causas eficientes parciais,
aquela mais importante não é sempre mais perfeita, em sentido ab-
soluto, que a subordinada: o sol, por exemplo, é mais importante
que o homem na geração e, por isso, é causa superior, mas nem por
isso o sol possui uma natureza que, em sentido absoluto, seja mais
perfeita que aquela do homem-pai. Isto não exclui, e estamos assim
na terceira resposta, que a eficiência causal do sol, quanto à gera-
ção, deva considerar-se mais perfeita que a eficiência causal de cada
homem-pai singular, pois este está sempre subordinado à eficiência
do sol. De fato, enquanto cada homem-pai, por exemplo, Sócrates,
pode gerar filhos somente em colaboração com o sol, o sol, de sua
parte, explica sua eficiência causal a respeito da geração também
prescindindo de Sócrates: em colaboração com Platão, por exemplo.
Enquanto causa parcial da geração humana, o sol é menos condici-
onado que todo o homem-pai singularmente. Neste sentido o sol é
causa mais independente e, por isso, mais perfeita que Sócrates e
que qualquer outro homem235 • Todo o discurso ockhamista visa a

2' 5 «Pono t r e s c o n c I u s 1 o n e s P r 1 m a est quod causa totahs supenor est


perfectlor causa mfe11ore.Hoc patet, qum causa tahs mcludtt Oeum, solem et omnes causas
partmles Ilhus effectus praeter causam postenorem S e c u n d a c o n c I u s 1 o est,
quod causa partmlis supenor non est umversahter perfecttor causa secunda, et hoc loquendo de
perfectlone primo modo. Hoc patet, qma sol est causa supenor partmhs respectu generatloms
holillms et tamen non est perfectmr homm1, et tamen pnma causa supenor est perfect10r
T e r t 1 a e o n e I u s 1 o est quod causa supenor est causa perfecttor secundo modo lo-
quendo de perfectlone Hoc patet, nam causa secunda non potest m ahquem effectum suae spe-
c1e1ms1 concausante causa superion tllum effectum Sed e converso bene potest, qum quamvts
Sortes non posstt producere naturahter hommem sme sole, tamen sol potest naturahter produce-
re hominem sme Sorte, qma medmnte Platone, et pet conseguens causa supenor mdependentlus
causat quam mfenor» (Quaestwne.f 111 !,b10.vphy.wcmum Anstotelis, q 133, Opera Theolo-

145
demonstrar que não é verdade que em todo o caso, nas causas es-
sencialmente ordenadas, a causa mais importante é também a mais
perfeita. Esta afirmação é verdadeira somente quando as duas cau-
sas ordenadas a produzir um dado efeito são ambas causas eficien-
tes parciais e quando, ao estabelecer-se o seu grau de perfeição, se
considera não a perfeição ontológica, mas a importância ou preemi-
nência da respectiva contribuição causal236 .
Também com referência à terceira lei de Scotus, Ockham
manifesta reservas críticas. Por ela distingue-se a cooperação ope-
rativa que se estabelece entre as causas essencialmente ordenadas e
a cooperação entre as acidentalmente ordenadas. Para Duns Scotus,
duas causas eficientes estão essencialmente ordenadas entre si à
produção de um determinado efeito quando são naturalmente com-
plementares, isto é, quando a eficiência de uma exige ser integrada à
eficiência da outra, a tal ponto que o efeito, por via ordinária, só se
obtém se ambas concorrem atualmente. De fato, se um determinado
efeito pudesse ser produzido pela causa A, sem o concurso simultâ-
neo da causa B, isto significaria dizer que a colaboração entre as
causas A e B não é exigida pela natureza mesma das coisas, mas
somente por força de circunstâncias extrínsecas. Então não temos
mais a ver com uma complementaridade natural e, por isso, não se
trataria sequer de causas essencialmente ordenadas. Ockham julga
que a experiência desmente esta lei: o sol, de fato, pode gerar o
verme com o concurso simultâneo de um outro verme; mas pode ge-

g1w VI, pp 758-759) A crítica contida no Come11tâ110às Sentell(ll,\ concorda plenamente


com esta cfr ln I Sei!/, 2, 10 (Opera Theologua 11,pp 349-350)
2 ' 0 Penso que Duns Scotus não tena tido nenhuma dificuldade em subscrever esta explicação

ockha1TI1staPara Scotus, de fato, são essencialmente ordenadas precisamente aquelas causas


que Ockham chama causas parc1ms Antes do mms, o d1scmso sobre as leis que caractenzam
sua relação não é feito de forma absoluta, mas relativamente, isto é, com vistas à relação opera-
tiva que se estabelece entre elas como antenounente se falava de dependência da segunda cau-
sa com relação à pnme1ra in qual!tum u111s11t, assnn, neste ponto, Scotus afirma que a pnme1ra
causa é mais perfeita que a segunda somente «m quantum causal», tsto é, considerando-se so-
mente a 1espect1vaefic1ênc1acausal

146
rá-lo também sem a causa complementar, como na geração espon-
tânea, aceita pelos medievais 237 .
Do fato que um verme pode nascer não só por geração natu-
ral, mas também por geração espontânea, Ockham deduz três con-
clusões. A primeira é que não é absurdo que um efeito da mesma
espécie, produzido pelo concurso atual e simultâneo de duas causas
eficientes essencialmente ordenadas, possa por vezes ser produzido
por uma só causa. A segunda conclusão: por vezes a causa univer-
sal (no nosso caso o sol, fator ativo de todos os processos gerativos)
pode produzir por si só efeitos em tudo idênticos, quanto à espécie,
àqueles que produz normalmente com o concurso atual de outros
agentes. Terceira: a ação simultânea das causas essencialmente or-
denadas é exigida só em vista de um efeito numericamente idêntico
(idem numero, isto é, exatamente este efeito aqui e não um outro).
De fato, para haver um efeito numericamente idêntico, exige-se não
só este agente aqui, bem determinado, mas também esta precisa
quantidade de matéria238.

217 «Contra Sol produclt vennen cum vetme et sine ve1me» (Quaestwnes 1ll libros phy.Hu,-
rum Anstotel,s. q 134, Ope1a P/11/o.\Oph1caVI, p 760) Vale a pena observar como Ockham
toma como desmentidas pela expenênc1a as conclusões de Scotus as duas conclusões p1ece-
dentes são refutadas apelando-se a parte que se refere ao sol na geração humana, a terceira, re-
fenndo-se ao fato que certos seres infenores (os ve1mes nascidos de organismos em putrefação)
são produzidos pelo sol sem o concurso do fator vivente Trata-se de interpretações de dados
experimentais, que devem ser necessai tamente colocados em seu contexto htstónco, isto é, na-
quela época em que tais fatos eram considerados ve1daden os e dados provindos da expenêncta,
tanto é verdade que Ockham sente-se autonzado a extrair deles conclusões universalmente vá-
lidas
z,x «D1c1t S c o t u s necessanum [est] quod una non posstt agere sine alta Sed h1c sunt
t r e s c o n c I u s 1 o n e s c o n t 1 a 1 1 a e P r 1 m a est quod effectus emsdem
spec1e1qm produc1tur stmul ab omnibus, potest ahquando produc1 ab una causa per se Hoc
patet, qma vennts generatus per propagattonem et putrefact1onem sunt emsdem spec1e1,marn-
festum est, et tamen venn1s productus per propagattonem producltur ab ommbus causts essentt-
ahter ordinatts stmul, venn1s autem ptoductus per putrefacttonem p1oduc1tur a sole sine acttone
verrrns S e c u n d a c o n c I u s 1 o est quod ahquando [tta] perfectum effectum
potest causa umversahs producere per se stcut stmul [cum causa parttculan] Hoc patet, quta h-
cet effectus d1v1s1b1hss1t perfectror [s1causetur] ab ommbus tlhs caus1s s1mul quam ab una per
se, s1cut patet de calore causato ab tgne et sole s1mul, tamen quando effectus est ind1v1s1b1hs,s1-
cut est forma substantmhs, max1me in eadem parte matenae, tunc potest esse Jta perfectus ab
una per se s1cut ab ommbus sinml T e 1 t 1 a e o n c I u s 1 o est quod idem effectus
numero, qm causatur ab omnibus s1mul non potest causan ab uno solo Hoc patet, quta s1cut
p o s t e a d1cetur in matena de motu, unus effectus numero detenmnat s1b1certum agens et
certam matenam, 1ta quod ab alto agente non potest 11leeffectus produc1, et per conseguens 11le

147
Chegamos assim ao tema principal, em vista do qual Scotus
introduziu as distinções retomadas e criticadas por Ockham. O fra-
de escocês quer demonstrar que é impossível ir ao infinito na série
de causas essencial ou acidentalmente ordenadas, e que é necessário
chegar a uma causa eficiente primeira, que não seja causada. O
primeiro dos argumentos aduzidos por Duns Scotus para demons-
trar a absurdidade de uma série infinita de causas essencialmente
ordenadas é assim formulado: se a totalidade das causas essencial-
mente ordenadas entre si não dependesse de uma causa que esteja
fora daquela totalidade, teremos então uma totalidade de causas de-
pendentes (enquanto essencialmente ordenadas, dependem uma da
outra) e ao mesmo tempo não-dependentes. Nem se pode admitir
que a totalidade em questão dependa de si mesma, ou seja, que pos-
sa dar-se, como conseqüência, uma realidade que seja causa de si
mesma. Ockham replica a Scotus: concedo que o problema é uma
série infinita de causas que dependem uma da outra e, portanto, com
uma série de causas segundas. Observo, porém, que um pensador
que se apoiasse exclusivamente na razão não encontraria a alegada
necessidade de colocar uma causa fora da série e, por isso, primeira
em sentido absoluto. O ponto frágil da argumentação está no fato
que Scotus apela para a causa primeira a fim de explicar a possibi-
lidade que uma coisa passe do não-ser ao ser. Mas para isto é sufi-
ciente a existência de uma causa apta a produzir a coisa, não ha-
vendo nenhuma importância, deste ponto de vista, o fato de que tal
causa seja por sua vez produzida por outra e seja, portanto, uma
causa causada, e assim ao infinito. Tudo isto, na verdade, não im-
pede que cada uma de tais causas, enquanto chamada a explicar
somente o produzir-se hic et nunc de um efeito singular, satisfaça
plenamente tal exigência.

effectus numero, qm producllur ab ommbus non potest ab uno solo produc1, [qma omnes cau-
sae essentrnhter ordmatae s1mul] necessano concurrunt ad producendum effectum Sed tamen
effectus emsdem spec1e1potest produc1 ahquando ab uno solo, s1cut patet de verme» (lb1dem,
Opera Pht!o.rnpluca VI, pp 760-761) Também a respeito deste ponto, o texto do Comentário
às Sentençar e aquele das Quae.1·twnes estão em perfeita comc1dêncrn Cfr ln I Sent, 2, 10
{Opera Theolog1w II, p. 350)

148
Para explicar uma sucessão ordenada de efeitos não é preciso
nada mais que uma série ordenada de causas que se sucedem no
agir. Em tal caso, não se vê como se seja obrigado a admitir, como
pretende Scotus, o absurdo de uma realidade que seja causa de sua
causa e, portanto, seja causa de si mesma. Esta conseqüência inad-
missível fica excluída pelo fato de que uma causa remete a outra ao
infinito, pelo que cada uma das causas sucessivas não depende ja-
mais de si mesma, mas sempre daquela que a precede239 •
Esta é a crítica de Ockham ao primeiro dos oito argumentos
com _osquais Scotus demonstrava a impossibilidade de ir ao infinito
na série de causas essencialmente ordenadas. A crítica aos outros
sete argumentos é substancialmente a mesma: Scotus não percebeu
que para justificar uma série sucessiva de efeitos basta uma série de
causas acidentalmente ordenadas. Em uma tal série, pois, segundo o
modo de ver do próprio Aristóteles, pode-se ir ao infinito sem in-
convenientes240 .
Portanto, a via da 'produção' de uma série ordenada de efei-
tos não leva a uma causa eficiente primeira; a esta chega-se percor-
rendo a via da 'cons~rvação', isto é, do perdurar no ser de uma série
ordenada de efeitos. Eis a demonstração ockhamista: toda coisa que
existe devido ao ser recebido de outros, permanece na existência até
quando aquele que lhe deu o ser também o conserve. Nem pode ser
de outro modo, porque é absurdo que um ser recebido possa tornar-
se um ser não recebido. Ora, constata-se sem possibilidade de dúvi-
da a existência de um conjunto de realidades (isto é, o mundo), as
quais recebem de outros o próprio ser, sendo portanto realidades
que não existem necessariamente; ora, baseados no princípio de
não-contradição, devemos concluir que este conjunto de realidades,

"º «Concedo qúod umversttas causatorum est causata Sed [mmtens ratlom natural!] negaret
1stam consequentiam, qma d1ce1etquod unum causatum causatur ab aho quod est pars mult1tu-
d1ms, et 1llud ab [aho] 1lhus mult1tud1111s,et s1c 111111fimtum,s1cut est 111acc1dentahter ordmatls,
secundum P h 1 1 o s o p h u m , quornm unum potest esse et [causan ab] aho, puta unus
homo causatur ab aho, et 11leab aho, et s1c 111111fimtum Non potest proban contrnnum per pro-
duct10nem Et tunc non seqmtur ultra quod 'idem esset causa sm', quia tota ilia multitudo non
causatur ab ahqua una causa sed unum causatur ab uno et ahud ab aho 1lhus mult1tud1111s»
(Quaestwnes 111 t,b, os phys1coru111Anstotel,s, q 135, Opew Ph,lo.rnph1ca VI, p 765)
240 Ib,dem (Opera Ph,losoph,w VI, pp 763-767)

149
que é o mundo, por todo o tempo no qual continua a existir, deve ser
conservado na existência por alguma outra realidade. Desta outra
realidade que mantém no ser o mundo - entendido como o conjunto
das realidades produzidas - pergunta-se se é possível ou não que te-
nha recebido por sua vez o ser que lhe é próprio.
Se se responde que não é possível que tenha obtido de outro o
próprio ser, a realidade em questão é ela mesma a causa primeira
que produz e também conserva o mundo, e isto porque é absurdo
que a causa que mantém no ser Úma coisa não se identifique com
sua causa eficiente Ora, somente quem dá o ser pode conservá-lo,
isto é, continuar a dá-lo.
Se, em vez, à pergunta precedente se responde que aquela re-
alidade que mantém no ser o mundo recebeu de outros o próprio ser
e, por conseguinte, é conservada por outros, seremos então obriga-
dos a recolocar o problema a respeito desta causa ulterior: pode-se
pensar que ela, por sua vez, também tenha recebido o ser, ou não o
recebeu?
Ockham julga que aqui seja impossível propor um processo
ao infinito, pois a causa que mantém alguma coisa no ser direta-
mente, ou mediante causas segundas, coexiste atualmente com esta
alguma coisa. O processo ao infinito implicaria portanto na coexis-
tência em ato de um número infinito de causas conservantes, mas o
infinito em ato é um absurdo 241• É necessário, pois, afirmar a exis-

241 «Qmdqmd reahter producnur ab ahquo, reahter ab ahquo conservatur quamdm manei m

esse reah; sed 1ste effectus - certum est - produc1tur. 1g1tmab ahquo conservatur quamdm ma-
nei. De 1110conservante quaero aut producllur ab aho, aut non S1 non, est effic1ens pnmum s1-
cut est conservans pnmum, qma omne conse1vans est effic1ens, s1cut declarab1tur m secundo S1
autem 1llud s1c conservans p10duc1tur ab aho, 1gllu1 conservatur ab aho, et de 1110aho quaero
s1cut pnus, et na vel oportet ponere processum m mfimtum vel oportet stare ad ahqu1d quod est
conservans et nullo modo conservatum, et tale ent pnmum effic1ens Sed non est ponere proces-
sum m mfimtum m conservanubus, qma tunc ahqua mfimta essent m actu, quod est 1mposs1b1-
le» (ln I Sent, 2, 10, Opera Theolog1ca li, pp 355-356) O texto das Quae.Wones m hbros
phy.wwrum A11.<tote/1s,que contém a prova da ex1;tência de Deus, é quase 1dênt1coa este da
Ordinatw; contudo, na conclusão, quando se trata de mostrar o absurdo de um ínfimto em ato,
Guilherme caractenza multo melhor a diferença ent1e 'producens' e 'conservans' «Sed non est
processus m mfimtum m conservantlbus, quia tunc ahqua mfimta essent m actu, quod est 1m-
possíbile. nam 01nne conservans ahud - s1vemediate s1w 1mmediate - est sunul cum conservato,
et 1deo mnne conservatum requmt actuahter omne conservans, non autem omne productum re-
qumt omne producens actuahter - med1ate vel unmediate Et 1deo quamv1s posset pom proces-

150
tência de uma causa que conserva as coisas no ser e que não depen-
de por sua vez de nenhuma outra coisa.
A novidade da demonstração ockhamista com relação à dos
demais escolásticos precedentes encontra-se toda no seguinte:
Ockham julga que a causa primeira é necessária não para evitar a
contradição de uma realidade tirada do nada, mas para evitar a
contradição que emerge do fato de que uma realidade se mantém no
ser, embora se constate que foi tirada do nada.
O que cria problema é permanecerem no ser aqueles entes
que receberam o ser, pois não pode acontecer jamais que um ser
'recebido', participado, se torne um ser 'não recebido', imparticipa-
do. Ao virem á existência mediante as causas segundas, as coisas
mostram que adquirem uma perfeição, precisamente a perfeição do
ser, que antes não possuíam. A que título os entes singulares con-
servam este ser? Não é em virtude de uma causa eficiente segunda,
porque vemos que o filho continua a viver, mesmo depois da morte
dos genitores. Somos, pois, obrigados a admitir uma co-presença da
causa conservante junto ao ente finito, causa esta que é razão neces-
sária e suficiente da permanência dos entes no ser.

4. O Deus dos filósofos não é o Deus dos cristãos

A demonstração da existência de um primum conservans é


introduzida por Ockham no interior da problemática escolástica a
respeito da demonstrabilidade da existência de Deus. Este fato po-
deria levar à conclusão de que também para Ockham existe uma
identificação imediata entre a primeira causa conservante e aquele
que comumente se entende com o nome de Deus, identificação que é
explícita, por exemplo, em santo Tomás, que conclui suas provas

sus m mfimtum m producttombus sme mfimtate actuah, non potest tamen pom processus m m-
fimtum m conservantlbus sme mfimtate actuah» (Quaestumes m libros phystlorum Anstote-
fts, q 136, Opera P/11/osoph1ca VI, p 768)

151
identificando cada vez o primeiro motor, a primeira causa eficiente,
o ser necessário etc. com Deus242 •
Ockham é de opinião que esta identificação não pode ser pro-
posta tão facilmente, e que antes se deva esclarecer aquele conceito
de Deus que se encontra à disposição do viajor. Até agora vimos
que tal conceito de Deus é qüiditativo e simples, mas não próprio de
Deus, mas antes comum a Deus e às criaturas. Qual é exatamente o
alcance deste conceito?
Ockham precisa que o termo Deus pode ter diversas defini-
ções ou descriptiones. Pode-se definir Deus em um primeiro modo,
dizendo que Deus é o ser que supera todo outro ser possível em per-
feição e valor. É possível também uma outra acepção do mesmo
termo, pela qual Deus é um ser de bondade e de perfeições insupe-
ráveis243.
Estas duas definições impróprias de Deus são muito seme-
lhantes na aparências, mas na realidade diferem radicalmente. Se-
gundo a primeira descriptio, Deus se coloca no vértice da hierarquia
dos seres e se exclui não só que possa existir um ser superior a
Deus, mas também que possa existir um ser que lhe seja igual. A
segunda descriptio, pelo contrário, limita-se a afirmar que é impen-
sável a existência de qualquer coisa que, do ponto de vista do valor
e da perfeição, supere a divindade: noutras palavras, diz que com o
termo Deus indica-se uma natureza tão perfeita que não se pode
pensar em uma maior, mas não exclui categoricamente que existam
mais que uma de tais natµrezas.
Pois bem, acrescenta Ockham, se tomarmos Deus segundo a
primeira definição, não estamos aptos a demonstrar-lhe a existência.
A razão humana não consegue demonstrar rigorosamente que existe
um ser tão perfeito que não só exclua que algum outro lhe seja· su-
perior, mas até mesmo que não possa sofrer que algum lhe séja
igual. Esta tese pode ser provada de maneira exaustiva: para

242 «Et hoc omnes mtelhgunt Deum». «quod omnes d1cunt Deum», «et hoc dic1mus Deum»
(Sumnu, theologiae, l, 2, 3)
24 ' «Hoc nomen 'Deus' potest habere diversas descnptlones u n a est quod Deus est ahqmd

nob1hus et mehus omm aho a se, a 1 1 a descnpllo est quod Deus est 11ludquo mhll est me-
hus nec perfecllus» (Quodl I, q 1, Opera Theolog1w IX, pp 1-2)

152
Ockham, a existência de um Deus, entendido deste modo, não é uma
verdade imediatamente evidente (ou per se nota), porque muitas
pessoas duvidam que Deus exista, e tal dúvida não se explicaria em
se tratando de uma evidência. A existência de um tal Deus não pode
ser nem mesmo uma verdade de evidência mediata (ou probatio ex
per se notis), porque, examinando-se bem, até agora toda tentativa
de demonstração falhou, ou deixa espaço para alguma dúvida, ou
faz uso de premissas tomadas da fé. Enfim, a existência deste Deus
não pode ser-nos atestada pela experiência, isto é, não é uma verda-
de que tomamos a partir dos fatos 244.
Se, porém, tomamos Deus na segunda acepção acima men-
cionada, é possível demonstrar que existe. Pode-se demonstrar a
existência de Deus entendido como uma natureza soberanamente
boa ou perfeita, ou, em outros termos, pode-se demonstrar a exis-
tência de uma realidade que não admite a existência de outra que
possua qualidades ou atributos mais perfeitos que aqueles que ela
possui. Ockham prova assim sua afirmação: se entre os seres não
existisse algum auto-suficiente e perfeito, de modo a excluir que
possa depender de outro e, por isso, ser-lhe inferior, então estaría-
mos obrigados a admitir a possibilidade de um regresso ao infini-
to245.É necessário, pois, afirmar a existência de um ente que seja
verdadeiramente primeiro na ordem do valor e da perfeição, a fim de
evitar o absurdo do regresso ao infinito.
Resulta, pois, que a demonstração ockhamista da existência
de Deus deve ser referida à segunda descriptio de Deus, visto que
só essa nos fornece uma definição que exprime o conteúdo exato
daquele conceito de Deus que o viajor forma a partir das criaturas.

24 ' «Acc1p1endo 'Deum' secu11dum p11mam descnpt1011em no11 potest demonstrauve proban

quod tantum est unus Deus Cmus rauo est qma 11011 potest ev1denter sem quod Deus est, s1c
acc1p1endo, 1g1tur110npotest ev1denter sem, quod est tantum unus Deus, s1c acc1p1endo Deum
Consequenua plana est, antecedens probatur, qma haec p10pos1t10 'Deus est' non est per se
nota, qma multi dubltant de ea, nec potest p1oba11ex per se not1s, qma 111omm rauone acc1p1e-
tur ahquod dubmm vel c1ed1tum, nec est nota pe1 expe11ent1am,mamfestum est» (Ibidem, Ope-
1 a Theolog1ca IX, p 2)
245 «Sc1endum tamen, quod potest demo11stran Deum esse, acc1p1endo Deum secundo modo

pnus d1cto, qum ahter esset processus 111mfimtum 111s1 esset ahqmd m e11t1busquo non est ah-
qmd pnus nec perfectms» (lb1, Opera The11/11g1wIX, p 3)

153
Por conseguinte, a primeira descriptio não é um bom ponto de par-
tida para o filósofo, porque seu conteúdo vai além da possibilidade
do homem, colocando elementos que não podem ser tomados do ho-
rizonte de seus conhecimentos naturais. Uma tal definição de Deus
não pode vir-nos a não ser da revelação: somente por esta sabemos
que Deus é o ser que não só não admite ser superado por nenhum
outro, mas que não tolera que nenhum outro o iguale em perfeição e
valor. Este é o Deus da Bíblia, soberanamente transcendente sobre
tudo e sobre todos, infinito e onipotente.
Uma confirmação da validade desta interpretação - segundo a
qual no fundamento da demonstração da existência de Deus encon-
tra-se o conceito de Deus próprio da segunda descriptio - é apre-
sentada em um outro passo dos Quodlibeta, onde é exposta uma de-
finição diferente de Deus. O teólogo, observa Ockham, entende
Deus como um ser infinito, mais nobre que todos os infinitos de
uma outra ordem, tomados não só separadamente, mas em conjun-
to246.E acrescenta que a existência de um tal Deus não pode ser
objeto de evidência e a seu respeito não se pode dizer nada de rigo-
rosamente provado. Do texto e do contexto desta definição concluí-
mos que ela vem a coincidir com a primeira descriptio de que fala o
tópico acima examinado. O elemento novo é dado pelo fato que
Ockham atribui uma acepção semelhante de Deus ao teólogo, vindo
com isso a dizer que aquela definição é tomada da revelação.
A este ponto de nossa leitura da teologia racional ockhamista,
podemos formular um primeiro balanço dos elemento característicos
nos seguintes termos: o Deus da revelação cristã, ser transcendente
e único, não coincide com o Deus de que falam os filósofos. Toda
demonstração filosófica não chega jamais a um Deus que se confi-
gure como uma natureza da qual se deva dizer que não suporta ser
realizada em dois ou mais indivíduos. Tal Deus é só o da revelação,
e é conhecido pelo homem porque ele mesmo se revela. "Deus de

246 «Theologus mtelhg1t per nomen Dei ens mfimtum nob1hus qmbuscumque mfimlls altenus
ralloms, s1 essent, s1mul non solum d1v1s11nsed comunct1m est nob1hus ommbus» (Quodl V, q
1; Opera Theolog1ca IX, p 477)

154
Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó, não dos filósofos ou dos sá-
bios"247.
Quando, pois, o filósofo elabora um discurso de teologia ra-
cional, deve estar atento a fim de não confundir aquilo que é o Deus
da revelação com aquilo que é o Deus que se atinge pela via da de-
monstração. Por via demonstrativa, rigorosamente, pode-se provar
somente a existência de uma natureza que não é superada por ne-
nhuma outra em perfeição, enquanto não se pode demonstrar que de
tal natureza exista tão somente uma. O fato de ser primeira e per-
feitíssima não implica necessariamente a sua unicidade, pois pode
ser a natureza suprema com relação a uma determinada ordem natu-
ral.
Na terminologia própria da prova ockhamtsta, pode-se dizer
que se chega a demonstrar a existência de um primum efficiens et
conservans, mas trata-se da causa eficiente e conservante de uma
determinada ordem de entes, representada por este nosso mundo.
Tal causa é posta como transcendente a toda a ordem que dela pro-
cede e que por ela é mantida no ser, mas não é transcendente com
relação a qualquer outra ordem possível de entes.
Ora, como podem existir - pela força da possibilidade pura e
sem incluir contradição evidente - outros mundos e outras ordens de
entes, segue-se que é possível a existência de outros seres perfeitís-
simos, que se encontram à origem destes outros universos de reali-
dade e que os transcendem. Segundo Ockham, os filósofos nem
sempre se deram conta desta possibilidade e procederam à elabora-
ção de inúmeras argumentações, com as quais estavam convencidos
de provar rigorosamente a unicidade de Deus. Na verdade, estes ar-
gumentos não resistem a um crivo crítico punctual. Ockham de-
monstra-lhes a fraqueza ao criticar os argumentos de Duns Scotus,
argumentos que, a seus olhos, apresentavam-se como os melhores
entre os oferecidos pela tradição filosófica.
Ockham rebate as argumentações de Scotus em duas obras
diferentes 248
, e a conclusão é sempre a de que as provas não são

247 B Pascal, Pensées, Geneve, p 62

155
concludentes, não demonstram rigorosamente. Isto não significa que
sejam erradas de todo, e sim que possuem tão somente o valor de
persuasiones, de argumentações capazes de suscitar uma certeza de
ordem moral. Ockham mesmo oferece um argumento de tal porte,
isto é, não rigorosamente apodítico, mas persuasivo, a respeito da
unicidade de Deus, formulando-o de acordo com sua teologia racio-
nal. A prova da existência de Deus, diz ele, conduziu-nos a Deus
entendido como um ente que existe por si mesmo e que, por isso,
existe necessariamente. Suponhamos agora que existam dois desses
deuses:. para dizer que existem dois deuses, devemos dizer que po-
dem existir - isto é, que não inclui contradição o fato de que existam
- dois deuses da mesma natureza e de igual perfeição. Mas se po-
demos pensar que existem dois, não há nenhuma razão que impeça
de pensar que existem três, quatro ou um número infinito de tais
deuses. De fato, dois deuses não podem distinguir-se especifica-
mente, isto é, com relação à natureza e às perfeições, porque então
seguir-se-ia que um é mais perfeito que o outro e, por conseqüência,
este último não seria mais deus. Então, a distinção entre eles não
pode ser específica, mas numérica. Ora, quando indivíduos distin-
guem-se entre si só numericamente, não é contraditório que possam
existir mais que dois. O caso de Deus, porém, tem uma peculiarida-
de, pois nele, tudo o que é possível é ipso facto necessário. Visto,
pois, que o que é necessário deve existir atualmente, segue-se que
existe necessariamente um número infinito de deuses. Mas uma in-
finidade em ato de entes separados é contraditória e, por isso, deve-
se concluir que pode e deve existir um só Deus249 .

248Cfr ln I Sent, 2, 10 (Opern Theo!og,w li, pp 337-357). O outro texto encontra-se em


Quodl 1, q. I (Opera Theolog,ca IX, pp 4-11) Una anáhse punctual das críticas ockhaIIllstas
fm feita por- L. Baudry, Gu,llaume d'Ollam. critique des proeuve,v scot/Stes de /'unic1té de
D,eu, AHDLMA, 28 /1953), pp. 99-112
249 «D1co quod est tantum unum ens s1mphc1ter pnmum, quamv1s contra proterv1entes s1t diffi-
cile hoc probare Adduco tamen unam ratlonem 1stms D o c t o r 1 s ad 1stam conclus10nem.
qum quandocumque est ahquod commune habens plura contenta, aut ilia contenta d1stmguun-
tur specie, aut solo numero, et 1ta s1 essent duo du s1c d1stmguerentur. Sed non specie, qma tunc
esset vens1IIllle quod unus esset prefectlor aho, et pe1 consequens 11lenon esser Deus S1 autem
d1stmguerentur solo numero, hoc non v1detur p10bab1le, qma quando sunt plura mdiv1dua d1s-
tmcta solo numero non v1detur mclude1e contrnd1cl!onem quin smt plura quam duo, nec potes!
dan certus numerns tahum md1v1duo1um, et per consequens possent esse plures dn quam smt

156
. Esta é uma prova persuasiva, que possui seu valor porque
capaz de suscitar uma certeza de adesão à tese bíblica da unicidade
de Deus. Seu valor, como aquele de outras provas semelhantes,
provém também do fato que não há argumentos filosóficos com os
quais se prove exaustivamente que a unicidade de Deus é um absur-
do. O caso da unicidade de Deus, segundo Ockham, é análogo
àquele do número das estrelas e àquele da trindade das pessoas em
Deus. Não há argumentos que obriguem a admitir que as estrelas
são em número par, ou que em Deus há três pessoas, mas também
não há argumentos para sustentar que as estrelas são em número
ímpar, ou para excluir como absurdo que em Deus haja três pesso-
as2so_
A unicidade de Deus não é o único atributo dele que admite
tão somente persuasiones: o escolhemos como caso paradigmático,
mas argumentos de tal porte, prováveis ou persuasivos, estão à dis-
posição do homem também com relação a outros atributos divinos,
como a infinidade, a onipotência, a liberdade, todas notas que são
apresentadas pela fé, e que não podemos demonstrar apodíticamen-
te, sem recorrer ao empréstimo de alguma premissa do âmbito da
revelação 251 •
A partir dos elementos que foram surgindo, podemos tentar
urna resposta à interrogação da qual partimos, sobre como se rela-
ciona a posição de Ockham a respeito da indemonstrabilidade das
verdades reveladas com a afirmação da possibilidade de uma teolo-
gia racional. A resposta provém da distinção entre a noção de Deus
a que se chega racionalmente e aquela definição que Deus deu de si

cum non smt mfinit1,et per consequens essent plu1es quam smt, qma mh1l potest esse Deus qum
necessano stt Deus 1 § Haec ratJo videtur probab1hs, quamv1s non demonstrai sufficiente1 ~ 1 »
(ln l Sent, 2, 10, Opera Theoio!{,'W II. pp 356-357)
250 «Umtas Dei non potest ev1denter p10ban, acc1p1endo'Deum' secundo modo Et tamen haec

negativa 'umtas Dei non potest evidenter proban' non potest demonsuauve proban, qum non
potest demonstrari quod umtas Dei non poss1t evidenter proban, nis1 solvendo ratJones m con-
tranum; sicut non potest demonstratJve proban quod astra smt parm, nec potest demonstran
Trinitas personarum; et tarnen istae negatlvae non possunt ev1denter proban 'non potest de-
monstrari quod astra smt pana', 'non potes! demonstran Tnmtas personarum'» (Quod/. I, q 1,
Opera Theoi<w1ca IX, p. 3).
251 Para a análise sistemáuca da posição ockham1sta a respeito dos atnbutos divinos em parti-

cular, remeto ao estudo de Baudry, Les ,apports de la 1a1.wm

157
mesmo na revelação. A teologia racional elabora um discurso mini-
malista e imperfeito a respeito de Deus, um discurso limitado às
possibilidades cognoscitivas do viajar, que por força de sua realida-
de deve ater-se ao nosso mundo atual, que é o único mundo do qual
o homem pode falar em termos de evidência.
Os limites deste discurso surgem não apenas ao se pensar
como o nosso mundo pode ser um de tantos mundo possíveis. A
abertura do horizonte da possibilidade leva a razão humana a decla-
rar a própria incapacidade de resolver de maneira definitiva os pro-
blemas, sobretudo aqueles de natureza teológica.
Em nosso caso, Aristóteles bem demonstrou a unicidade de
Deus, partindo da evidência que surge da afirmação: "unius mundi
est tantum unus princeps". Ora, como Aristóteles estava convenci-
do que existia tão somente um mundo, segue-se que também o go-
vernador deste mundo seria somente um252. O limite desta argu-
mentação e de outras semelhantes encontra-se no fato de se ter como
necessárias e eternas a ordem e as leis que se descobrem na nature-
za, isto é, não se distingue a ordem de direito da ordem de fato, e
por isso conclui-se afirmando que é necessário ou absurdo o que,
pelo contrário, em absoluto não o é. Ockham sublinha que é esta,
sem dúvida, a lição mais importante que o filósofo deve tirar da re-
velação, a qual mostra constantemente como o Onipotente, que fez
este mundo, poderia fazer infinitos outros semelhantes a este ou di-
versos dele.
Aristóteles ignorava a revelação e, por isso, pode ser descul-
pado. Não o são, porém, aqueles pensadores cristãos qqe, na trilha
de Aristóteles, contentam-se em descrever a ordem habitual encon-
trável neste nosso mundo e não se esforçam para elevar-se ao nível
da pura possibilidade. Mas quando esta perspectiva diferente é
adotada coerentemente no filosofar, percebe-se então que muitas
demonstrações tidas como incontrovertíveis, de fato não o são.
A teologia racional de Ockham deseja desta forma fazer uma
admoestação à razão, a fim de que não ultrapasse seus limites no
discurso teológico. Aquilo que ela consegue descobrir a respeito de

252 Quodl 1, q 1 (Opera Theoloi1w IX, p l)

158
Deus é bem pouca coisa, se comparado com o que Deus revela de si
mesmo 253 .

25 'Por d1scutíve1sque seJam, as punctuahzações c1íllcas da teo,':>~ia1ac10nal ockham1sta a res-


peito da 1mposs1b1hdadepara a razão humana de chegar ao conceito daJ)eus cnstão oferecem
um ponto de partida para. uma leitura crítica da teologia natural dos giandes 1nestr1:,-do-~c;1Ji_o
XIII, visando a estabelecer se o Deus ao qual chegam as demonstrações de santo Tomás e de
Duns Scotus, ou o Deus que f01ma o obJeto do d1scu1so bonaventurmo, é verdadeiramente o
Deus cnstão Para uma b1eve exposição desta problemática veJa-se A Gh1salbert1, li Dw dei
filosofi secondo Gul{lte/mo d, Ocwm, «RIVlsta d1 filosofia neo-scolasllca», 62 (l 970), 287-
290

159
VI

A FILOSOFIA DA NATUREZA

1. A quantidade

A tese mais característica, da qual promana a filosofia da


natureza de Guilherme, é representada pela redução da categoria da
quantidade a um termo conotativo, isto é, um termo que não possui
um significado próprio bem definido, mas que designa principal-
mente a substância ou as qualidades materiais e indiretamente indi-
ca a exterioridade de suas partes.
A quantidade, em sentido estrito, vem definida como aquilo
que se pode dividir em diversos indivíduos da mesma natureza, cada
um dos quais tendo o seu lugar 254 . Podemos dizer que é a extensão
em virtude da qual as substâncias corpóreas são divisíveis em partes
homogêneas. A quantidade pode ser contínua ou discreta. A caracte-
rística da quantidade contínua é ;:t ausência de intermediários entre
as partes do extenso, de maneira que cada uma delas seja o prolon-
gamento da outra, tenha seu lugar preciso e forme com as outras
uma realidade numericamente una.
A quantidade discreta é constituída, pelo contrário, pela divi-
são do contínuo em uma pluralidade de partes, quer estas ocupem
ou não o mesmo lugar, exista ou não exista entre elas um intermedi-
ário, sejam ou não sejam contíguas. Enquanto, pois, a quantidade
discreta é um conceito, um ente de razão que significa um conjunto

214ln li Se11t.,7 (Opera Theolog?w V, pp. 126), Q1wdl IV, qq 23-28 (Ope1a Theologtur IX,
pp. 406-445)

161
de indivíduos tomados simultaneamente, cujo tipo representativo é
dado pelo número (o número abstrato ou numerante), o contínuo,
pelo contrário, é definível como uma coisa constituída de partes,
situadas umas fora das outras2.'í
5_

É fácil percebe que a quantidade discreta não implica nenhu-


ma realidade distinta da substância ou da qualidade, porque o nú-
mero não possui outra realidade que aquela das coisas numeradas.
Mas o mesmo acontece também com a quantidade contínua: para
explicar a presença de partes entre si distantes numa substância ou
em uma qualidade, é suficiente admitir que a substância ou a quali-
dade são feitas de partes e que suas causas extrínsecas (a causa efi-
ciente e a final) dispuseram tais partes segundo um critério de su-
cessão e de distância.
Portanto, não é necessário admitir nenhuma realidade inter-
mediária entre a substância e a qualidade, como se pode ver pelo
estudo do fenômeno físico da rarefação: quando uma coisa se rare-
faz, não adquire nenhuma nova quantidade, nem se corrompe aquela
precedente; verifica-se simplesmente um movimento local no interi-
or do próprio corpo, pelo qual suas partes distanciam-se mais uma
da outra e, com isso, trazem um aumento de volume256.
Afirmando que a quantidade coincide com a substância ex-
tensa ou com a qualidade que possui continuidade e contiguidade

2" «Et 1sta est d1fferentm mter quantttatem continuam et dtscretam secundum A r 1 s t o -
t e I e m , qma ad quantttatem dtscretam mhtl referi an ilia quae constttuunt quanutatem dis-
cretam smt d1stmcta loco et sttu vel non, an etmm mter ea s1t medmm vel non Non s1c autem
est de part1bus contmm, qma ad hoc quod smt contmuae, oportet quod mini stt medmm mter
eas, sed oportet quod una s1t protensa usque ad aham, et tamen quod d1stent s1tu, et quod fac1-
ant unam rem numero» (Swllma log1cae, i, 45, Ope1a P/11/osoplucai, p 143)
"' 256 «Stc 1gttur dtco, secundum opm1onem A 1 1 s t o t e 1 1 s , quod quando ahqmd rarefit

riulla nova quanlltas adqumtu1, nec ahqua praecedens conumpttur vel depentur, sed ilia eadem
numero quae pnus fiut manet, sed tamen mag1s extend1tur, et mag1s d1stant partes praecedentes,
et dtlatantur et occupant matorem locum Et 1sta quantttas est 1psamet substantta ret - et euam
ahqua quantttas est quanlltas mhaerens rei substantmh -, qma quantitas non est nist res habens
partem dtstantem a parte quahs est sLJbstantm substanua emm habet partem dtstantem a parte
Nec ad hoc quod pais substantme d1stat a p:ute requmtur mst partes substantme et causae ex-
tnnsecae factentes eas dtstare Et per conseguens ad hoc quod d1stent non requmtur ahqua res
mhaerens eis» (Summu/a p/11/o.wp/11ae11atu1ah1,III, 12, Opew P/11/osoph1w VI, pp 288-
289) Cfr S11m111a log1we, i, 44 (Oper<1P/11/o.rnp/11w1, pp 132-138), Tractatus de quautl-
tate, q 3 (Ope,a Theolog,ca X, pp 51-85), Quodl IV, q 25 (Ope,a Theo/og1ca IX, pp 416-
424)

162
em suas partes, Ockham não pretende reduzir a substância à quan-
tidade, ao extenso ou ao contínuo. Ele se limita a dizer que a subs-
tância material é extensa, sem afirmar que todas as substâncias são
materiais e, por isso, que todas são extensas 257 •
Um outro conceito físico que alguns escolásticos haviam hi-
postatizado é aquele da mutação, ao qual se atribuíra um caráter
absoluto, uma realidade própria distinta do sujeito que muda.
A mutação distingue-se do movimento em geral porque, en-
quanto este último comporta uma sucessão, a mutação é aquela al-
teração peculiar que acontece instantaneamente, sem adquirir ou
perder algo sucessivamente.
A geração, por exemplo, não é um movimento sucessivo, pois
não admite sucessão: o ingresso da forma substancial na matéria
deve ser instantâneo, em um momento, e o mesmo acontece com a
corrupção. 258
Ockham observa que fazer da mutação uma realidade distin-
ta, que é destruída tão logo o sujeito adquire a nova forma, encerra
múltiplos inconvenientes. Antes de mais nada, seguir-se-ia que a
cada mutação instantânea seria gerado ou destruído um número in-
finito de coisas totalmente distintas entre si, visto que o tempo é
composto de um número infinito de instantes, em cada um dos quais
pode acontecer uma mutação.
Além disso, não se encontra uma explicação adequada ares-
peito da modalidade da corrupção de uma tal realidade. De fato, não
pode ser destruída nem por destruição de seu sujeito, porque este
continua a existir; nem pela introdução de seu contrário ou de uma
entidade incompatível com ela, porque nada de tudo isto se verifica;
enfim, a realidade da mutação, entendida como um absoluto, não

257 «'Quanutas' s1gmficat substanllam connotando 1psam habere partem extra partem, et qma
substanlla potes! esse hcet non habeat partem e"ll a partem, tdeo potes! esse ltcet non s1t quan-
lltas» (Quodl IV, q 25, Ope111Theo/01:u-11IX, pp 423-424) Cfr ln IV Sent., 6 (Opew The-
ologtca VII, pp 71-78) Para as 1mphcações que a teona da quantidade ap1esentava no campo
da teologia, a respeito da dout11nacatóhca da llansubstanctaçâo, cfi Gtacon. Gugl,e/1110dt Ol-
cam, 11,pp 521-524
25 x Summu/a p/11/o,W1pluae natul{f/,,,, lll, 8 (Ope,a P/11l0.W1p!11w
VI, pp 272-276)

163
pode desaparecer seguindo-se à ausência de sua causa, porque esta
permanece idêntica e capaz de agir como agia no início.
Em terceiro lugar, se a mutação possui uma realidade pró-
pria, pergunta-se em qual das categorias ela se enquadra: não pode
ser posta entre as substâncias, porque não é matéria, nem forma,
nem um composto de matéria e forma. E baseando-se na experiência
é fácil demonstrar como a mutação não se coloca entre as notas ca-
tegoriais da qualidade ou da quantidade. Nem pode ser determinado
à mutação pertencer a uma categoria m~diante um procedimento de
redução, semelhante àquele com o qual relacionamos à categoria de
substância a matéria ou a forma substancial, pois a mutação, de
fato, não é uma parte própria e intrínseca de algum sujeito que se
enquadre por si mesmo em uma categoria 259 .
Deve-se, pois, concluir que a mutação substancial não possui
nenhuma realidade própria e coincide, quanto à consistência real,
com a forma que se adquire ou se perde e com o próprio ser do su-
jeito que adquire ou perde tal forma. Como para a quantidade, tam-
bém aqui estamos ante um termo conotativo que designa direta-
mente o sujeito que se torna e, indiretamente, o fato de que este su-
jeito adquire ou perde imediatamente uma forma.
Não se trata, portanto, de um termo que designa um incom-
plexo, ou seja, uma coisa individual, tal como acontece com os ter-
mos homem, asno, brancura etc. O termo mutação designa, pelo
contrário, um complexo, ou seja, seu significado exaure-se somente
com uma proposição do seguinte teor: quando alguma coisa muda,
adquire ou perde alguma coisa. Como tantas outras palavras que
derivam de sincategoremas, ou que derivam de verbos que se en-
quadram nos predicamentos de ação ou de paixão (negação, priva-
ção, condição, movimento etc.), também o termo mutação foi intro-
duzido para abreviar o discurso ou para torná-lo mais elegante,
visto que todo seu significado se exaure naquele da proposição para
cuja designação foi inventado260•

259!b,, Ill, 2 (Ope,a Phi/osophtca VI, pp 250-253) Cfr Trnuatus de .mue.mv,s, pp 33-35.
200«Non emm hoc nomen mutat10 s1gmficat ahquam 1em unam absolute, s1cut factt hoc nomen
homo vel hoc nomen asmus vel hoc nomen albedo, sed mtroductum est, ut ahquando ponatur
gratm ornatus locuuoms, qma quantum ad ornatum pomtur ahquando convenienter m uno loco,

164
Já o atributo de instantânea não quer significar que caiba à
mutação alguma consistência, antes indica apenas o fato de que
quando algo muda, adquirindo ou perdendo qualquer coisa, tal aqui-
sição ou perda acontecem indivisivelmente, simultaneamente. Com o
termo instantâneo quer-se excluir uma aquisição sucessiva, de parte
após parte, sem afirmar que ela existe em um instante temporal
mais que em outro, como quando se diz que o ar é iluminado ins-
tantaneamente, entendendo-se que isto acontece tudo em um só mo-
mento e não sucessivamente261 .
O procedimento ockhamista na elaboração das teses de filo-
sofia da natureza recorre sempre ao princípio metodológico da recu-
sa de toda explicação que não obedeça ao critério de economia.
Como no caso da quantidade, no qual o extenso e a qualidade bas-
tam para explicar a presença de partes no corpo, assim também nas
mutações substanciais as realidades permanentes (o móvel e a for-
ma) bastam para explicar esta espécie de modificação, quando a
matéria recebe uma forma que antes não possuía, e a recebe toda
simultaneamente.
É importante observar que Ockham, embora afastando~se da
maior parte dos aristotélicos que o precederam, afirma que o modo
por ele proposto, de entender a quantidade e as mutações substanci-
ais, atém-se à intenção de Aristóteles, ou seja, à letra e ao espírito
da filosofia da natureza de Aristóteles262 , de quem deseja ser intér-
prete fiel.

m quo non 1ta mnate pone1etm verbum, a quo descend1t, ahquando pon!lur causa brevitat1s, s1-
cut 1sta oratlo brev1s omms mutat10 est ab agente valet totam 1stam ora!Ionem omne quod
mutatur, ab ahquo agente mutatur Et s1c est de multis alns, s1cut 1sta omms transmutat10 est
ab ahquo et m ahquo et m ahqu1d, valet totam 1stam orat1onem quandocumque ahqmd trans-
mutatur, 1b1est ahqmd, quod acqmntur vel deperd1tur ab eo, quod transmutatur, et a11qmdfac1-
ens, quod h1c acqumt 11ludvel deperdlt» (Trnctatus de sulless1v1s, pp 37-38)
261 Ih,, pp 41-42, cfr Summula p/11/ornphwe 1uttullll1s, III, 4 (Opera Ph,losoph1w VI, p
259)
262 A documentação destas afirmações é facilmente encont1ável nos textos «D1co quod s1cut

nuh1 vedetur, mtentlo Ph1losoph1est quod quanlltas contmua non est res absoluta medm mter
substantlam et quahtatem» (Quodl IV, q 27, Opera Theolog1w IX, p 435) No que se refere
à mutação, lemos «Inc1p1endumest autem a subita mutatlone, de qua oportet sc!fe quod muta-
tlo, secundum pnnc1pm A r 1 s t o t e 1 1 s , non est ahqua res secundum se rotam d1stmcta
ab omm re permanente quae necessauo destruatm» (Summula phdosopluae naturahs, III, 2,
Opera P/11/osopluw VI, p 250) Observe-se, todavia, que quando se encontra ante afirmações

165
2. O movimento e o espaço

Seguindo o esquema aristotélico, Ockham dedica longa parte


da filosofia da natureza ao tratado do movimento, do espaço e do
tempo.
Por movimento, em sentido amplo, ele entende toda mudança,
enquanto, em sentido restrito, o movimento é definido como uma
mudança sucessiva, na qual o sujeito que se modifica adquire ou
perde algo, parte após parte, sem repouso intermediário 263 .
Ockham declara logo que também no caso do movimento é
necessário evitar toda hipostização, isto é, não se lhe deve atribuir
uma realidade absoluta: o movimento não possui uma realidade
própria, distinta daquela do móvel.
Entre os diversos tipos de movimento, isto é, entre o movi-
mento em relação com a quantidade (aumento e diminuição), ou em
relação com a qualidade (alteração), e o movimento local perpassam
distinções precisas, mas, nenhum deles designa uma realidade dis-
tinta do sujeito que se modifica.
Ockham o demonstra com um procedimento muito próximo
àquele adotado ao tratar da mutação, perguntando-se que realidade
é atribuível ao movimento, para concluir que não se chega a uma
resposta adequada. Recorda, então, que conceber o movimento
como algo que possui uma realidade própria significa ir contra o
princípio de economia: para explicar exaustivamente o movimento
local, por exemplo, bastam os elementos que observamos empirica-
mente, como é o caso de um corpo que, sem interrupção, passa de
um lugar para outro. Certamente, da existência de um corpo e de
um lugar não se pode deduzir a existência do movimento, mas é

de Anstóteles que parecem sustentar o contráno de quanto afirmou, Ockharn dtstmgue entre o
sigmficado verbal das expressões que Julga falsas e a mtenção do Estagmta Ockham é de opt-
mão que, com aquelas afirmações, Anstóteles pretendia sustentar exatamente a mesma doutnna
que ele agora está articulando no texto
261 Summula ph1losophiae natura/is, III, 6 (Opera Ph,lo.rnph1w VI, p 264); ln li Sent, 7

(Opera Theolog1ca V, pp 99-151)

166
preciso que o corpo antes esteja em um lugar e depois em um outro,
de maneira sucessiva. Todavia, além do móvel e o lugar não é ne-
cessário nada mais. Para que o móvel se encontre no ponto A, não
se exige nenhuma outra realidade além de A, do mesmo modo que
pelo fato que quando o móvel se encontra em A não se encontra em
B, não se deriva que exista alguma outra coisa além de B e o corpo
móvel264 • Também neste caso, Guilherme está convencido de ser um
fiel aristotélico, e declara que as descrições dadas por Aristóteles e
Averróis, que definem o movimento como o ato do ser em potência
enquanto em potência, ou como o ato do móvel enquanto móvel etc.,
são transpostos perfeitamente em uma posição como ésta: o que se
move possui em ato algo que antes não possuía, mas que podia pos-
suir. Aristóteles, pois, jamais entendeu afirmar que o movimento
seja um ato distinto do móvel e das outras realidades permanentes; a
atualidade em questão é somente aquela do móvel que, quando se
move, possui em ato algo e encontra-se em potência para possuir
uma outra coisa imediatamente e sem repouso intermediário265 .
Deixemos de examinar nos detalhes o amplo tratado acerca
das várias espécies de movimento, o movimento no vazio, o proble-
ma do aumento e da perda de intensidade das formas etc.266 Mas é
oportuno examinar a tomada de posição ockhamista a respeito do
movimento dos projéteis, pois ela oferece elementos úteis para uma

264 «S1 d1catur, quod non suffic1unt a<l motum localem co1pus et locus, qma tunc quandocum-

que essent corpus et locus, tunc esset motus, et Ita COIpus semper moveretur - d1cendum, quod
corpus et locus non suffic1unt ad hoc, quo<l motus s1t, 1ta quod 1sta consequentm non est forma-
lts corpus et locus sunt, 1gttm motus est Et tamen pt aeter COIpus et locum non requmtur aha
1es, sed requmtur, quod COIpus pnus fue11t111uno loco, et postea 111alio loco, et s1c cont111ue,1ta
quod numquam 111toto 1ll0 tempore qmescat 111altquo loco Et patet, quod praeter omma 1sta
non pomtur altares a 1ebus pennanenttbus Unde per hoc, quod COIpus pnmo est m A, non po-
mtur ahqua alta res ab A, s11mhte1per hoc, quo<l pt 11110 non est m B, non pomtur aha res a B et
a corpore» (Tralfatu, de .111cce.H1v1s,p 45)
265 «lstam autem sentenuam exprimir P h 1 1 o s o p h u s quando <lefimt motum, <l1cens

«Motus est actus entts 111 potenlla m quantum m potentta», hoc est quando altqmd movetur,
actu habet ahqmd et est 111potentm a<l altud sme quiete media» (Summula p/11/0.rnph,aenatu-
rahs, Ili, 6, Opern P/11/o.rnph1c11Vl, p 265) «Non est mtentm Ph1losoph1 d1cere, quod motus
s1t qmdam actus dtstmctus a te mobtlt et caelens pennanenttbus, sed mtendtt d1cere, quod
quando altqmd movetur, est actu s11baltquo vel m altquo, vel actu caret altquo, mquantum est
m potentla» (T,actatu.1·de suaes.Hv1.1,p 64)
266 Uma anáhse punctual de~tes p10blemas foi 1ealtzada pOI H Shap110, Motwn, Time and Pla-

ce Acwrdmg to W,llwm O'-kham, St Bonaventure, N Y -Louvam-Paderborn 1957, pp 44-91

167
colocação precisa do pensamento do autor com relação à passagem
da física escolástica para a ciência moderna. A cada movimento, na
concepção ari.<;totélica,aplica-se o princípio de que tudo o que se
move é movido por outro, isto é, por uma causa eficiente extrínseca.
Além disso, para Aristóteles, é inconcebível a ação à distância e por
isso, para ele, no caso do movimento violento (isto é, não natural)
de um projétil, deve-se perguntar qual seja a causa que faz com que
uma flecha prossiga seu curso após haver-se separado do arco, ou
que a pedra prossiga após deixar a mão que a projeta. Desde a anti-
güidade haviam sido dadas respostas diversas ao problema. Segun-
do alguns, a causa do movimento de um projétil é a pessoa que rea-
lizou o lançamento, tanto é verdade que se o projétil fere ou mata
alguém, atribui-se a responsabilidade pelo acontecido precisamente
a quem o lançou. Uma outra solução, conhecida como teoria da an-
tiperistase, era esta: a pedra, no momento em que se destaca da
mão, abandona o lugar no qual estava e o deixa vazio; o ar que se
situa atrás precipita-se para encher o vazio deixado pelo projétil, al-
cança este último e imprime-lhe novo embalo, causando assim suas
deslocações posteriores. Aristóteles havia recusado estas duas solu-
ções, porque as tinha como em contraste com muitos dados da expe-
riência, e havia proposto uma terceira, segundo a qual, o movimento
de um projétil explica-se com o movimento do ar circundante; o
gesto de quem projeta ao longe um objeto qualquer comporta tam-
bém o movimento da camada de ar circundante; sendo um movi-
mento veloz o do ar, ele arrasta consigo, de camada em camada, o
objeto em questão, até que se arrefeça o movimento imprimido ao ar
pelo lançador. Ora, também esta concepção deixa em aberto muitos
problemas, o primeiro dos quais, sem dúvida, o de que não estava
de acordo com alguns fatos da experiência, motivo pelo qual, já no
século VI de nossa era, havia sido criticada por João Filopono, que
a corrigiu da seguinte maneira: quem lança um objeto, não transmite
uma força derivada ao ar, e sim ao próprio corpo que é projetado,
de modo que este continua a mover-se até que a força imprimida se
consuma. Ockham examina as diversas soluções e as recusa todas,
apresentando para tanto motivos precisos. O motor não pode ser a
causa do movimento do projétil, pois pode cessar de existir sem que

168
o projétil suspenda seu deslocamento. Nem se pode pensar no ar
como causa de tal movimento, porque isto significar ir contra os da-
dos da experiência: no caso em que dois projéteis venham a encon-
trar-se, seria preciso dizer que o mesmo ar, no mesmo momento, é
movido em duas direções opostas, o que é impossível. Critica depois
a solução de João Filopono, aceita também por Avicena, dizendo
que a causa que move o projétil não pode ser uma energia produzida
no móvel, pois pergunta-se: por quem é causada uma tal energia?
Não é pelo motor, porque todas as vezes que colocamos um agente
ante um paciente, ficando invariáveis as condições, obtemos sempre
o mesmo efeito. Ora, posso colocar a mão em uma pedra, exata-
mente e.ornose a quisesse lançar, e todavia nada acontece: portanto,
não pode ser o motor enquanto tal, nem uma sua posição particular,
que suscita esta energia hipotética. Esta não pode ser produzida
também pelo movimento local de quem lança o projétil, pois o mo-
vimento local nada mais faz do que unir o motor ao móvel, isto é,
não representa nada mais que a aproximação entre o lançador e o
projétil267 •
Não sendo justificado, como causa da trajetória, o recurso a
uma energia suscitada no projétil, cabe apenas uma admissão a ser
feita: a de que o projétil, quando abandonou o corpo que o lança,
torna-se o motor de si mesmo, move-se a si mesmo. Nada nele va-
ria, nem em sentido absoluto, nem em sentido relativo. No projétil

267 «Item, n o t a n d u m quad 1 n m o t u p 1 o I e e t I o n I s est magna d1ffi-


cultas de pnnc1p10 mouvo et effect1vo 1lhus motus Quia non potes! esse p101c1ens,qma potest
c01rump1 existente motu, nec ae1, qma potes! move11 motu contrnno· s1cut s1 sagttta obv1aret
lap1d1 Nec vmus 111lapide, qma quacro a quo causatur ilia vmus? Non a pr01c1ente, qma agens
naturale aequahter approx1matum passo aequahte1 semper causal effectum Sed pr01c1ens,
quantum ad omne absolutum et 1espect1vum m eo, potest aequahter approx1man lap1d1 et non
movere s1cut quando movet Potest enim manus mea tarde moven et approx1man ahcm corpon,
et tunc non moveb1t ipsum locahtcr Et potest velocttcr et cum 1mpetu moven, et tunc app10x1-
matur eodem modo s1cut pnus, et tunc causabtt motum et pnus non lgttur 1sta vtrtus quam tu
ponis, non potest causan ab ahquo absoluto vel respecllvo 111p101c1ente,nec a motu locah tp-
sms pr01c1entts, qma motus locahs mini fac1t ad effectum mst approx1mat acuva pass1v1s, s1cut
supra saepe d1ctum est Sed omne pos111vumm p101c1enteaequahter approx1matur prmecto per
motum tmdum, s1cut per velocem ldeo d1co quod 1psum mollvum 111tah motu post separauo-
nem mob1lis a pnmo pr01c1enteest 1psum motum secundum se, et non per ahquam vmutem ab-
solutmn 111eo respecllvam, 1ta quod hoc movem, et motum est pemtus 111d1stmctum»(/11 Ili
Sent. 4; Opera The11/11i1mVI, pp 142-143)

169
não se pode distinguir o que move daquilo que é movido: de real há
só o projétil e o espaço que ele percorre em seus deslocamentos su-
cessivos: Ockham já havia examinado o caso, distinguindo os diver-
sos tipos de movimento local violento, a impulsio, a expulsio, a
tractio, a vectio, e a vertigo: o caso do movimento do projétil é
exatamente aquele da expulsão, que acontece quando aquele que dá
origem ao movimento não permanece unido ao móvel durante todo o
tempo no qual este se move 268.
Para melhor compreender a onginalidade do modo como
Ockham trata a questão do movimento, devemos examinar breve-
mente o contexto histórico no qual desenvolveu seu trabalho. A lei-
tura que os árabes e os latinos haviam feito de Aristóteles partia de
uma afirmação de princípio viciada, segundo a qual todo movimento
é ligado a um corpo fixo, com relação ao qual o móvel é dito em
movimento ou em repouso, segundo muda ou não sua posição com
relação àquele centro fixo. Tal corpo fixo, que atua como centro ou
eixo, deve existir em ato. No caso do movimento do universo, o
centro é representado pela terra.
Uma tal concepção do movimento comportava uma séria difi-
culdade de âmbito teológico, enquanto "afirmar a imobilidade da
terra no centro do mundo significa afirmar a imobilidade do univer-
so secundum substantiam. As diversas partes do universo podem
muito bem trocar entre si os lugares que ocupam, de forma que o
mundo se torne móvel secundum dispositionem: mas o universo não
pode sofrer nenhuma deslocação em bloco, pois encontra-se fechado
em uma esfera que é invariável, visto que o centro é absolutamente
fixo. Falar de um deslocamento em bloco do universo significaria
falar de uma impossibilidade lógica. A própria onipotência de Deus
não saberia produzir um tal deslocamento, que implica contradi-
ção"269.Devido a esta conseqüência. em 1277, Estêvão Tempier ha-

20 "«Expuls10 est quando non coniung1tm pellens mob1h continue dum movetur, s1cut est m
pr01c1ente lapidem a se» (Summula p/11/owpluae 1w1111ahs,111,9. Opera Plulo.wiph,ca VI, p.
279)
209 Duhem, Le systeme ., VII, p 204

170
via condenado a proposição, segundo a qual "Deus não pode mover
o céu segundo um movimento retilíneo".
A condenação teve o mérito de provocar nos filósofos a ne-
cessidade de encontrar uma outra explicação para o movimento. O
primeiro pensador que tentou dar uma resposta nova ao problema
foi Ricardo de Mediavilla, o qual sustentou que Deus pode imprimir
um movimento de translação a todo o unh,erso. A seu modo de ver,
de fato, Deus é capaz de criar um espaço novo, fora do mundo
atual, e colocar nele o mundo.
Ricardo não tomava em consideração a doutrina aristotélica
do movimento e, por isso, sua solução não resolvia a dificuldade
apontada acima. Contudo, ele aceitava como não de todo absurda a
existência do vazio;:indo com isto contra uma outra convicção for-
temente radicada nos peripatéticos medievais e abrindo, assim, o
caminho para um distanciamento de Aristóteles no que se refere às
doutrinas físicas270•
De fato, depois dele, Duns Scotus propôs uma nova concep-
ção, segundo a qual o movimento é uma 'forma fluente'. Um corpo
que se move adquire a cada instantC?algo de novo, que não consiste
no local; isto não é um atributo seu e, por isso, reside fora dele, nos
corpos que o circundam. O móvel adquire, pelo contrário, uma de-
terminação qualitativa representada pelo onde (ubi), e esta é preci-
samente a forma fluente. Em outros termos, o movimento é uma re-
alidade absoluta, que pode existir também sem o lugar, em virtude
da onipotência divina, à qual é possível fazer tudo o que não inclui
contradição. Na hipótese scotista,_portanto, Deus poderia mover o
céu em um movimento retilíneo, sem provocar-lhe um deslocamento
espacia1271• Mas esta teoria continha implicitamente uma conse-
qüência absurda, qual seja a de que, em base nas mesmas razões,
Deus poderia produzir o movimento também se não existisse ne-
nhum corpo que se movesse, conseqüência esta que Ockham não
está disposto a subscrever, pelos motivos que acenamos acima.

270 Jb,, p. 206


271 Duns Scotus, Q11aestumesQuodhbetales, XI, 1, ed Vives, Paus 1895, XXV, p 440

171
Guilherme refuta também a concepção scotista do espaço,
entendido como uma realidade distinta do corpo ao qual funge como
limite. Voltando-se para a definição aristotélica, segundo a qual "o
lugar é o primeiro limite imóvel que envolve o corpo", afirma que o
lugar é a última parte de um corpo que contém um outro corpo, ou
seja, aquela parte que toca imediatamente o corpo contido272•
Portanto, o lugar é, por sua vez, um corpo extenso e, por
isso, divisível ao infinito: por menor que se possa concebê-lo, será
sempre possível pensá-lo ainda menor. Além disso, enquanto corpo,
também ele ocupa um lugar bem determinado. Assim, por exemplo,
diz-se que uma pedra está no ar porque o ar circunda o corpo e está
em contato imediato com ele. Mas aquele ar, por sua vez, mediante
suas partes externas últimas, acaba estando imediatamente contíguo
a um outro corpo e, por isso, encontra-se em um lugar. Sendo um
corpo, o lugar é móvel como todos os corpos. A qualificação que
Aristóteles apresenta dele, na definição como limite imóvel, quer
somente aludir a uma imobilidade 'por equivalência'. Quer dizer
que um lugar único e perfeitamente imóvel nos colocaria em condi-
ções de explicar a doutrina do lugar, do movimento e do repouso
dos corpos particulares, exatamente como o permitem diversos lu-
gares numericamente distintos entre si. O lugar, portanto, pode mo-
ver-se ou para tornar-se o lugar de um outro corpo, ou para vir a
estar em um outro lugar, sem conter nada de diverso.
Além disso, é possível que um corpo se mova, embora fican-
do no mesmo lugar, como também é possível que um corpo possa
mover-se e não estar em nenhum lugar. No caso da última esfera,
não há nada que a contenha, ela não se encontra em nenhum lugar.
Todavia, pode-se dizer que ela é um lugar "por equivalência", ou
seja, pode-se imaginar que tal esfera contenha um corpo em repou-

272 «Pro mtenttone Anstotehs dicendum est, quod non mtend1t, quod locus s1t aha res a corpore
locante et una aha res tenmnans 1psum corpus, sed 1psum corpus se1pso et hoc 1pso, quod non
habet partes extensas ultenus, termmatur, nec est ahud 1psum corpus termman vel finm ms1
tantum extend1 et non ultenus Intent10 Ph1losoph1est d1cere, quod locus est corpus contmens
ahud corpus s1b1ub1que conttguum, lia quod non est ahqua pars corpons contenu extenor, quae
sc1hcet tang1t ahud corpus, qum 1psa conttguetur ahcut parti loc1, nec e converso» (Tractatus
de suae.mv1s, pp. 73-74). Cfr Summula p/11/ornp/11aenaturahs, IV, 18 (Opera Pl11/o.wph1w
VI, pp 392-394), Quodl 1, q 4 (Opera Theolog,ca IX, pp 23-28)

172
so, ao redor do qual ela se move273• A afirmação é importantíssima,
porque Guilherme diz-nos explicitamente que, se é verdade que o
movimento local supõe o motor, o móvel e o lugar, é também verda-
deiro que não é necessário que o terceiro elemento, ou seja, o lugar,
exista realmente. Para compreender o movimento é suficiente ima-
ginar um ponto de referência, supondo-o como existente. Deste
modo caem os pressupostos que haviam levado à condenação de
1277, porque, negando toda hipostização do movimento e do lugar,
Guilherme oferece uma explicação da doutrina do movimento local
que não postula para tanto a existência de um corpo real e imóvel,
que atue como ponto fixo de referência. Dizer que um corpo se
move, é dizer que, se existisse um outro corpo, ele ocuparia diversas
posições sucessivas com relação a este274 •

3. O tempo

Estreitamente conexo com o estudo do movimento encontra-


se a análise filosófica do conceito de tempo, segundo um procedi-
mento constante, comum a todos os pensadores dos séculos XIII e
XIV, que se inspiravam em Aristóteles. Também Ockham segue
esta linha, com a intenção explícita de elaborar um tratado sistemá-
tico o mais fiel possível a Aristóteles, como se pode constatar nas
diversas obras que tratam do tema 275 .
A tese central de Ockham é a de que o tempo não possui ne-
nhuma realidade extra-mental distinta daquela das coisas em movi-

pp 87 e 94-95. Sw11111ula
in Tractatus de .rncces.1·1v1s, ph1/o.mphtae natura/is, III, 10 (Opera
Ph1/osoph1ca VI, pp 280-283), Quod/ VII, q 6 (Opera Theolog1w IX, pp. 721-723)
274 «Ahquando etiam potest fien motus locahs sme acqms1t1one cumscumque mfom1ant1s vel

non mformantis, sed suffic1t quod s1 esset ahqms locus cucumstans, quod tunc acqmreretur lo-
cus Exemplum est de ultima sphera, qum pe1 hoc quod movetur locahter mh1I acqumt, tamen
s1 esset ahqms locus qmetus cucumstans iliam spheram tunc acqmreret locum Sed de facto
nullum locum de novo acqumt et tamen d1c1tur moven locahter» (Quodl VII, q 6, Opera
Theolog1ca IX, pp 723)
275 Cfr. Summula ph,losop/11ae naturalts, IV, 1-18 (Opelll Ph1/osoph1w VI, pp 344-394); ln

li Sent, 10 (Opera Theolog1ca V, pp 183-231), Quaestwnes III ftbrm phy.morum Anstote-


/1s, qq 37-57 (Opera P/11/o.w,phtcaVI, pp 493-554), Ttallaflts de suCle.mvts, pp 96-122

173
mento e pode ser definido como a medida do movimento segundo o
antes e o depois. Se, no plano da realidade, movimento e tempo co-
incidem, distinguem-se, contudo, no plano de suas definições nomi-
nais: o conceito de tempo, de fato, implica todas aquelas coisas que
estão contidas no conceito de movimento e denota, a mais, a ativi-
dade da consciência (em termos escolásticos, da alma) humana, que
mede o movimento. O medir comporta uma atividade do sujeito
cognoscente que não é exigida também do movimento em si, e por
isso os termos movimento e tempo não são nem convertíveis entre
si, nem sinônimos. Quando Aristóteles e Averróis afirmam que "o
tempo não é o movimento", entendem precisamente dizer isto, mes-
mo se, pelo rigor dos termos (de virtute sermonis), se deve dizer que
'o tempo é o movimento', naquilo que concerne à realidade extra-
mental276.
Definindo o tempo como número do movimento, Aristóteles
havia precisado que se deve distinguir entre o número numerante e o
número numerado: enquanto o primeiro é o número abstrato, núme-
ro cardinal, medida abstrata que existe no sujeito que mede a quan-
tidade, o número numerado, pelo contrário, coincide com a própria
realidade medida. O tempo, não sendo uma entidade abstrata do gê-
nero do número matemático, deve ser entendido como número nu-
merado; ele é resultado de uma explicitação que a alma realiza, de-
signando em concreto o antes e o depois contidos implicitamente no
movimento.
No final do N livro da Física, Aristóteles também havia co-
locado um outro problema, aquele da unidade do tempo. Sendo o

276«D1co quod P h I I o s o p h u s mtendll quod tempus non s1gmficat ahquam rem extra
ammam nisr quae 1m_portaturper motum. Sed tempus importai dia eadem quae importai hoc
nomen 'motus', et ultra hoc nnportat actum ammae mensurantem, quem actum non importai
hoc nomen 'motus' Et 1deo 1sta nomma 'motus' et 'tempus' non habent easdem defimllones
expnmentes quid nommrs nec sunt nomma convert1b1ha nec synonyma tamen de v1rtute
sermoms haec est concedenda 'tempus est motus' (Quae.mones 111hbros phys1corum, q 41, p
39) É importante ter presente uma drstmção metodológica que aílora contmuamente no discur-
so ockhamista aquela entre o nível da ngorosa obJet1v1dade mental e linguística ('de v1rtute
sermoms'), o nível do uso comum dos termos ('ex usu loquentmm') e o nível do uso dos termos
segundo acepções pru11cularess, própnas de cada autor ('secundum mtentmnem d1cent1s'). Cfr
a propósito Corvmo, Le «Quaestumes III hbws phys1cmu111» .. , pp 16-22, Mtethke,
Ockhams Weg , pp 231-237

174
tempo a medida de duração de diversos movimentos, é claro que tal
medida deve ser fixada em concreto, tal como se estabeleceu que o
comprimento do braço é a medida dos objetos que medimos. Por
isso, deve-se escolher um movimento que atue como medida dos
demais e, para reahzar tal escolha, Aristóteles fixa critérios gerais:
o tempo é medido tomando-se um movimento bem determinado, que
tenha uma duração precisa e que se repita idêntico a si mesmo todas
as vezes que se deseja. Entrementes, estabeleceu-se (na Metafísica)
que aquilo que é o pnmeiro em um gênero, é também a medida de
tudo o que está contido naquele gênero. Ora, entre todas as espécies
de movimento, aquele que acima de todos é uniforme e regular é o
movimento circular e, entre os movimentos ctrculares, o mais per-
feito é o da primeira esfera celeste. Segue-se que o tempo é dado
pelo movimento do primeiro móvel.
No caso de diversos movimentos simultâneos, mas diferentes
entre si, pelo fato que são simultâneos, o tempo no qual duram é o
mesmo. Por isso Anstóteles afirma a unicidade do tempo, enquanto
é idêntico o número com o qual se exprime a medida de seu movi-
mento, assim como para dez cães e para dez cavalos a medida é a
mesma, constituída pelo número dez.
Esta conclusão aristotélica era aporética, na medida em que
identificava o tempo com o número numerante, abstrato, enquanto
antes o havia definido como coincidente em todo caso com o número
numerado, que é concreto.
Os comentadores med1eva1shaviam procurado restabelecer a
coerência lógica no interior do ensmamento aristotélico. Todavia, as
tentativas de Averróis, Alberto Magno e Tomás de Aquino não ha-
viam dado resultados de todo convincentes277 . Por sua conta,
Ockham aceita a definição aristotélica de tempo como também a
tese de que o tempo é medido com o movimento do primeiro céu278 •

277 Cfr A Mans1on, la théo11e anstotél,c1enne du temp.• chez /es pénpatélluens méd1évaux,
«Revue Néoscolastique de Ph1losoph1e»,36 ( 1934), 275-307
278 Cfr Summu/a philo,wph1ae natural,,1, IV, 7 (Opera P/11/o.wph1w VI, pp 357-359), ln II

Sent, 10 (Opeta Theolog1w V, pp 191-194), Quae<tume.• 111 /1bros phys1wrum Anstoteli.v,


q 42 (Opera PJ11/o.wph1wVI, pp 507-510) Segundo Duhem (e Corvmo concorda) as Qua-
estumes m l,bros phys1unum An.vtote/1s apre&entam o pensamento defimtivo de Ockham a

175
De pessoal ele acrescenta uma precisão, qual seja a de que, além
desta acepção ngorosa, podem haver acepções impróprias de tempo,
como quando se mede o tempo pela medida do movimento dos cor-
pos sublunares ou mesmo a partir de um movimento imaginário.
Tais noções de tempo são imperfeitas, no sentido de que não foram
referidas a seu fundamento último 279 . Já no que se refere à tese apo-
rética da unidade do tempo, ele dá a seguinte solução: o tempo não
deve ser definido simplesmente como número numerado, mas, por
um certo aspecto, o tempo é também numerante. É número numera-
do enquanto é a medida da sucessão segundo o antes e o depois do
mais conhecido de todos os movimentos para nós, ou seja, o do pri-
meiro móvel; mas como através do antes e o depois deste movi-
mento nós medimos o antes e o depois de todos os outros movi-
mentos, segue-se que o tempo é também aquela medida mediante a
qual medimos e dimensionamos os outros movimentos, o que signi-
. dº1zer que o tempo e, tam b,em numero
f1ca , numerante 280 .
Renunciando à definição de tempo como sendo exclusiva-
mente um número numerado, Guilherme indica que o tempo é o
'complexo', ou seja, um ato composto de inteligência com o qual o
homem entende que algo se move por movimento contínuo e uni-
forme e acentua que suas partes estão antes em um lugar e sucessi-
vamente em um outro 281 . Destas afirmações transparecem tanto a
convicção ockhamista da essencialidade do momento interior para o
constitmr-se do tempo, como a conseqüente exclusão da possibili-
dade de que o tempo tenha uma consistência prescindindo do sujei-

respeito de d1ve1sos p1oblemas, entre os quais aquele do tempo (Duhem, Le ,y,teme , VII, p
346)
279 Quaestwnes 111 hbro., phys1w1unz Ari.1t11te/,,1,q 48 (Ope,a P/11/11.wphtw VI, pp 527-
528)
280 «Tempus est numerns motus secundum p11w,et poste11us m p11mo motu nob1s maxm1e noto,

et 1ste est numeiatus Sed quia pe1 ilia pnus et po~terws ilhus motus d1urm nume1amus pnus et
poste11us ahornm motuum, 1deo tempus est numern, extra ammam quo numeramus et mensu-
1amus ahos motus» (1b1, q 47, Opew Pht111.\0p/11wVI, p 525) Esta tese do tempo, que é,
concrnmtantemente, núme10 numeiado e número numeiante Já tinha sido p10posta por Alberto
Magno, ln IV Phys1w1 um, ti 3, cap 17, ed Borgnet, 341 b - 342 a
281 «S1gmficat 1g1tur 'tempus' ahqmd contmue et u111form1te1 et veloc1ss1111emoven, cu1us par-
tes d1c1t amma esse pnus m uno sllu et postea III aho, 1ta quod totum 1llud exp111mtm per hoc
nomen tempus, [quamv1s] ahqmd 1stornm expnmatu1 m recto et ahqmd m obhquo»
(Quaestrones tn hbw, phymorum An,toteh.,, q 47, Opera Pht!osophtw VI, pp 524-525)

176
to, isto é, que seja identificável, enquanto tal, com o movimento do
primeiro móvel. O tempo é um ente, mas não um ente incomplexo,
ou ente real; é antes um ente composto, que se resolve em uma pro-
posição deste teor: algo se move, e por isso a mente humana pode
conhecer a entidade do movimento de um outro móvet282 •
Desta forma Ockham sublinha o aspecto subjetivo e interior
do tempo, tenta separá-lo da união excessiva com a visão cosmoló-
gica, união esta nociva para uma correta compreensão filosófica da
duração temporal. Fazendo entrar a consciência como um dos ele-
mentos fundamentais na defmição completa do tempo, Guilherme
também consegue desatar o nó da teoria contraditória sobre a uni-
dade do tempo, que implicava na total identificação do tempo com o
movimento físico do primeiro móvel.
Não se pode com isto afirmar que em Ockham haja um dis-
tanciamento de Aristóteles, em favor da teoria agostiniana do tem-
po. Aristóteles mesmo, aliás, havia apontado para a incompletude
de uma concepção filosófica de tempo que não levasse na devida
conta a atividade interiorizante do sujeito.
Por outra parte, ao menos em um caso Ockham perde a oca-
sião de dar uma definição de tempo correspondente às instâncias
próprias de santo Agostinho e da filosofia moderna: quando expõe e
interpreta o pensamento de Averróis. O comentador árabe havia
feito uma afirmação original, sustentando que, essencialmente e per
se, nós percebemos o tempo quando estamos conscientes de nosso
porvir, de nosso pertencer ao horizonte do vir-a-ser 283 • A idéia aver-
roísta da relação entre tempo e vir-a-ser abria o caminho para uma
concepção da temporalidade como modo de ser próprio dos entes
materiais, enquanto está essencialmente nesses a capacidade de mu-
dar, segundo um movimento contínuo, um contínuo vir-a-ser. Em
vez de mover-se na perspectiva averroísta, Guilherme prefere seguir
os desenvolvimentos cosmológicos da doutrina, ficando fiel às con-

282 «Per iliam propos1t10nem'tempus est' mh1l ahud est mtelhgendum ms1 quod ahqmd move-
tur, unde potest amma cognoscere quantum ahquod ahud moblle movetur» (lb,, q 39, Opera
Ph,losopluw VI, p 500)
281 Cfr An,tote/1s Opera mm A,e,rms Veneza 1562, vol IV, com 98, 132 e
Com111e11tm11.1·,
133

177
clusões do aristotelismo averroísta. De fato, à pergunta se é possível
para um homem cego de nascimento ter a percepção do tempo, em-
bora jamais haja visto o movimento do céu. que lhe permita medir
os demais movimentos, Ockham responde que o cego de nascimento
não precisa captar diretamente o movimento do céu, mas basta que
o perceba em um conceito composto, proveniente do confronto com
os outros movimentos percebidos por ele. O cego percebe movi-
mentos exteriores, ou os pode imaginar, e por eles está apto a com-
preender de todo o significado desta afirmação: eu coexisto com um
objeto que se move. Estando em condições de compreender isto, o
cego de nascimento pode ulteriormente imaginar um movimento ra-
pidíssimo, uniforme e contínuo, isto é, pode formar-se um conceito
do movimento do primeiro móvel, um conceito não simples, mas de-
rivado e, por isso, composto, que, todavia, é próprio do movimento
do primeiro móvel.
A esta altura da argumentação, Ockham apela para a afirma-
ção averroísta, segundo a qual não percebemos o tempo se não
quando percebemos que padecemos mutações, porque nos perten-
cence um vir-a-ser, e a tanto ele dá a seguinte interpretação: é fora
de dúvida que o tempo é captado quando temos consciência de so-
frer uma contínua modificação, ou seja, quando estamos conscientes
de nossa característica essencial de vir-a-ser. Mas, como e quando
temos consciência de tudo isto? Guilherme responde que um homem
percebe-se como vir-a-ser quando percebe que coexiste com um
corpo que se move em movimento contínuo e uniforme; ora, como o
movimento circular é o único movimento regular no dito modo e
como, entre os movimentos circulares, o mais perfeito é aquele do
primeiro móvel, segue-se que o homem somente consegue apreender
que está sujeito ao vir-a-ser quando conhece o movimento da pri-
meira esfera, mesmo que somente através de um conceito compos-
to2s4.

2"4 «Ex isto patet p r I m o quod tahs non v1dens motum caeh perc1p1t motum ems cum per-
c1p1tse esse messe trnnsmutab1h, hoc est cum pe1c1p1tse coexs1ste1e s1ve perc1p1t 1stam propo-
s11Ionem '1pse coexs1s1It ahcu1 COIpo11 continue et umf011111termoto' S e e u n d o patet
quod nos non perc1pnnus nos esse messe trnnsmutab1lt modo prned1cto, ms1 pe1c1p1mustempus
essenllahter, qma non perc1p1mus tunc ahqmd moven contmue et umform1ter, et per conse-

178
As ,afirmações averroístas recebem assim uma clara inter-
pretação fisicista, confirmando a fidelidade substancial de nosso
autor à concepção peripatética do tempo, estreitamente ligada à
cosmologia e que, por isso, deveria ruir ao surgir uma cosmologia
diferente.
A este respeito resta examinar algumas afirmações ockha-
mistas contidas na questão 45 das Quaestiones in libros physico-
rum. Na terceira conclusão, Guilherme afirma que uma pessoa pode
muito bem formar para si um conceito de tempo sem precisar neces-
sariamente formar também um conceito composto, próprio do mo-
vimento do primeiro móvel; na quarta conclusão acrescenta que
permanece sempre verdadeiro que qualquer um que forma um con-
ceito de tempo partindo do movimento real ou imaginário de qual-
quer corpo finito, pode chegar a formar um conceito do movimento
do primeiro móvel. Como Averróis já havia colocado em evidência,
o tempo reporta-se ao movimento do céu "porque não há nada que
se mova de maneira uniforme, através do qual a alma possa medir
com absoluta certeza os demais movimentos. Com isto, é verdade
que esta proposição: 'o céu se move', não é evidente a todos aqueles
que percebem o tempo, porque alguém que não está em condições
de ver pode formar-se um conceito composto do movimento do céu
e, contudo, ignora esta proposição: 'o céu se move"' 285 • Segundo
Miethke, na questão 45 Ockham ensinaria, em primeiro lugar, que
não é necessário recorrer ao movimento do primeiro móvel para

quens non perc1p1mus tempus essentmhte1 T e I t I o patet quomodo non pe1c1p1mus nos
esse m esse transmutab1h ms1 ex transmutauone caeh, qum ex quo mhd movetur continue et
uniform1ter et regulanter ms1 caelum 1deo non possumus nos apprehendere nos esse m esse
transmutab1h ms1 appiehendendo coelum, saltem 111conceptu compos1to» (Quae<tume• m lt-
bros phy.wwrum , q 45, Ope,a Phdo.wpl11w VI, p 520) Jnte1essante a este propósito a ob-
servação feita por Corv1110dep01s de havei comparado a exposição das Quaest10ne• m hbros
phys1coru111com aquela de outros escntos ockhmmsla5. em particular com o Come11tár10 eh
Sentenfa.< «Na proposição com a qual define o tempo, o teuno que funge como sujeito denota,
de fato, um ente na alma (um conceito), mas este, por sua vez, denota sempre um ente real fora
da alma "te11111nussupponens p10 1e 111amma suppomt pro ente reah, cums est conceptus, quo
1magmatum futt" A tendência que se mamfesta em Ockham e que se vem consohdando nele
através das sucessivas prectsações é aquela de negai uma escolha at bttrána de um movimento
qualquer como tempo, constdetando-o umf01me por convenção, e de, ao contráno, tomar como
base um dado empínco e natural " («Quae,twne., 111 hbro., phys1w1 um» , p 12)
285 Quaestume• 111 A, 1stote/i.1, q 45 (Opelll Phdo.wph1w VI, p 520)
l,bros phy<1w111111

179
fundar o conceito de tempo; em segundo lugar, quando Qckham diz
que um cego de nascimento pode formar-se o conceito de movi-
mento do céu em um conceito próprio, mesmo se composto, e toda-
via pode ignorar a evidência da proposição: o céu se move, quereria
dizer que um cego pode representar-se o concerto de um movimento
uniforme e possuir assim um concerto que objetivamente chega ao
movimento da mais alta esfera celeste, sem poder estar objetiva-
mente seguro disto286 •
O primeiro ponto da interpretação de Miethke não preserva o
fato de que Ockham fala sempre em termos de não-necessidade ou
de possibilidade, e quer dizer que certamente é possível formar-se
um conceito de tempo, mesmo sem apreender o movimento do pri-
meiro móvel287 , mas tal conceito não é rigoroso, não é reduzido à
sua fundamentação última. É antes o conceito de tempo que o filó-
sofo deve analisar para descobrir nele a verdadeira fundamentação.
Tanto é verdade que, falando do movimento do relógio como possí-
vel base para a formação de um conceito de tempo, diz que entre to-
dos os movimentos inferiores, aquele do relógio é o mais regular e,
por isso, o que 'menos impropriamente' se chama tempo 288 .
O conceito próprio de tempo é, portanto, aquele que o reduz
ao movimento do primeiro móvel. No texto em questão, Ockham
quer dizer simplesmente que os dms conceitos não são estritamente
unidos ou complementares a ponto que não se possa dar o primeiro
sem o segundo.
Quanto ao segundo ponto da exegese de Miethke, não me pa-
rece correto afirmar que o cego, ou quem está comumente impossi-
bilitado de ver, quando imagina o movimento uniforme e regular do
primeiro móvel, encontra-se na condição de dever referir objetiva-
mente seu próprio conceito de tempo como medida da sucessão do

286 «Der Ze1tbegnff 1st pnnz1p1ell von dei Bewegung des F1xsternh1mmels unabhang1g», «Em
Blmdgeborener kann s1ch den Begnff eme1 hochst gle1chfornugen Bewegung b1lden und hat
dam1t emen Begnff, der obJekt1v der Bewegung der aussersten H1mmelssphare zukommt, ohne
s1ch subJekt1v semer vers1chem zu konnen» (M1ethke, Ocklwms Weg , p 218)
287 «Ahqms perc1p1ens tempus non necessauo apptehendtt motum coeh», «Qmhbet perc1p1ens

tempus potest apprehendere motum coeh» (Quaesrwnes til ltbrm phys1corum A11stotelts, q
45, Opera Phtlosophtw VI, p 518)
288 VeJa-se o texto apresentado por M1ethke, Odhams Weg, nota 303, p 219

180
movimento àquele movimento regularíssimo, mas subjetivamente
não está em condição de dar o assentimento pleno à proposição: o
céu se move. Não há nenhum ponto ou momento da gnosiologia
ockhamista que torne justificável semelhante distinção entre convic-
ção subjetiva e objetiva. O único modo correto de entender a afir-
mação ockhamista parece ser este: o conceito composto de movi-
mento que o cego pode formar-se é o fruto de uma abstração, ou
seja, da transformação de um conceito de movimento não de todo
regular e uniforme em um conceito de movimento regular e unifor-
me. A abstração consiste no prescindir das características do movi-
mento dos corpos sublunares, isto é, no prescindir da irregularidade
e imperfeição destes. Surge assim um conceito 'abstrato', no sentido
dito, de movimento regular e uniforme, que, porém, não é capaz de
gerar no cego um juízo de existência. Ele não pode, por isso, apre-
sentar a evidência da proposição: o céu se move (subentendendo-se:
com movimento regular e uniforme). Tal evidência, de resto, pode-
ria provir da notícia intuitiva, a qual, porém, é excluída de início,
pois trata-se de um sujeito que não possui ou não pode exercitar a
visão; ou poderia derivar da notícia abstrativa, se fosse o caso da-
quela notícia abstrativa que vem sempre acompanhada da notícia
intuitiva; mas sabemos que o conceito composto próprio do movi-
mento do céu não é uma notícia abstrativa deste tipo, que, aliás,
fornece sempre conceitos simples: enquanto conceito composto, é
resultado de uma abstração no sentido acima descrito, que consiste
em adaptar um conceito obtido do movimento imperfeito, de manei-
ra que possa exprimir também um movimento perfeito.
Como conclusão, o conceito composto, por sua natureza, co-
loca o cego em condição de dar assentimento pleno, isto é, de reco-
nhecer como evidente esta proposição ou juízo existencial: "eu coe-
xisto com um corpo que se move por movimento contínuo e unifor-
me". Não lhe fornece, pelo contrário, a evidência desta afirmação
ou juízo de existência: "o céu se move".

181
4. O instante

Um dos pontos nevrálgicos do estudo filosófico do tempo é


aquele relativo à consistência ontológica do sujeito, cujo movimento
é medido segundo o antes e o depois.
Aristóteles, seguido por todos seus comentadores medievais,
árabes e latinos, havia elaborado a este respeito a doutrina do ins-
tante ou momento (instans sive nwzc). A consciência que numera o
antes e o depois do movimento, o faz com relação a uma presença, a
uma substância móvel presente, a qual, considerada em si mesma,
fica sempre a mesma ao longo de todo seu curso. Enquanto, porém,
é animada pelo movimento, apresenta-se sob aspectos diversos e su-
cessivos, passando ininterruptamente de uma posição a outra. Sendo
examinada em um ponto qualquer de seu curso, dir-se-á que todas
as partes percorridas, até aí pela substância móvel pertencem às
partes anteriores (o antes) do movimento, enquanto todas as posi-
ções espaciais, que tal substância deve ainda percorrer, compõem a
parte posterior (o depois) do movimento. Prescindindo do movi-
mento, o móvel tem uma presença estável, isto é, permanece sem
variação alguma: é esta presença aquela que Aristóteles chama ins-
tante, ponto fixo que permite distinguir o passado do futuro. O ins-
tante não é o tempo e não é nenhuma parte do tempo, isto é, não é
algo de intermediário entre o passado e o futuro. De fato, entre o
passado e o futuro não pode existtr nenhum témpo intermédio, desde
que um tempo assim qualificado estaria já no passado, dada a con-
tinuidade com que o futuro acompanha o passado. O instante é o
móvel, uno em si e sempre diverso em relação à sua contínua suces-
são. Em terminologia escolástica, o instante em ato unifica, en-
quanto segundo a razão diversifica, ou seja, o instante é um limite
unificador-divisor introduzido pela mente na sucessão temporal,
fundado na indivisibilidade em ato própria do extenso que está em
movimento289 .

289 Uma exposição orgâmca da dout11naanstotéhca do instante está contida no comentáno de

Tomás de Aqumo ao hvro quarto da Ffow de Anstóteles Cfr Tomás de Aqumo, ln oao lt-

182
Guilherme inicia a exposição de seu pensamento a respeito
impugnando a opinião de alguns pensadores, que define como
'modernos', segundo os quais o instante é uma realidade indivisível,
real e totalmente distinta das realidades permanentes, e que desapa-
rece em um piscar de olho290 . Que não se deve entender o instante
nestes termos, é algo que se pode demonstrar com diversos argu-
mentos. O instante não pode ser uma substância, visto que não é
nem matéria, nem forma, nem um composto de matéria e forma. Se
fosse uma substância, além do mais, dever-se-ia concluir que conti-
nuamente estariam sendo destruídas substâncias e também estariam
sendo geradas continuamente novas substâncias, devido à caracte-
rística de mobilidade e fugacidade do instante. Mas ele também não
pode ser acidente, porque não se vê quais características poderia
possuir o sujeito primeiro e adequado de um tal acidente: não pode
ser um sujeito divisível, porque em tal caso também o instante com-
portaria a divisibilidade, o que é falso por definição. Nem vale a hi-
pótese de que o sujeito de um tal acidente seja constituído de uma
substância, porque as únicas substâncias indivisíveis são Deus, as
inteligências separadas e as almas intelectivas, e nenhuma delas
pode fungir de sujeito primário de um tal acidente.
Em segundo lugar, se o instante fosse uma realidade distinta
do tempo e das coisas que duram, infinitos instantes haveriam
transcorrido no passado e por isso, deveríamos admitir a existência
(absurda) de uma infinidade em ato. Mais ainda: na hipótese que o
instante seja um acidente indivisível, não poderia ter o céu como
sujeito, pois este passaria a perder e a adquirir continuamente tais
acidentes, coisa absurda, dada a imutabilidade do céu. Em quarto
lugar, contra a atribuição de uma realidade própria ao instante, ar-
gumenta-se: o instante não pode ser um acidente que seja destruído

bros phys1corum Anstotem expos1tto, ed Magg1olo, Tonno-Roma 1954, 1 IV, lecllo 18 (pp
285-289) e lectto 21 (pp 300-303)
290 «Instans non est una pai va res md1vis1b1hs rapt1m trans1ens, s1cut dtcunt modemt»
{Quaestwnes m hb1os phys1corum Anstotehs, q 55, Opera Phi/osoph1w VI, p 546) Não
fica claro a quais pensadores exatamente Ockham se refere quando fala dos «modem1» Contu-
do, deve-se excluu que se trate de Tomás de Aqumo e de Duns Scotus, visto que estes pensado-
res estão totalmente afastados de uma semelhante mterpetação da doutnna do mstante

183
continuamente, porque nenhuma das substâncias que poderiam fim-
gir-lhe de sujeito é naturalmente passível de destruição. Em quinto
lugar, o instante não entra no gênero do tempo, não sendo, por defi-
nição, nem o tempo, nem uma parte do tempo; deveria, por isso,
constituir um gênero por sua própna conta, mas isto não é possível,
~isto que não é uma substância, nem uma qualidade. O sexto e o
sétimo argumentos com os quais Guilherme confuta a tese que atri-
bui ao instante uma realidade autônoma e fugaz referem-se ao ponto
de vista da onipotência teológica: Deus pode conservar simultanea-
mente todas as realidades de uma mesma natureza, entre as quais
não existe repugnância. Poderia, portanto, conservar como atual-
mente presentes todos os instantes passados, mas isto daria lugar ao
infinito em ato, isto é, a um absurdo. Deus poderia, também, sepa-
rar uma realidade absoluta de uma outra: se o instante fosse aquela
realidade distinta, como o concebem os modernos, Deus poderia se-
pará-lo de seu sujeito, o que é absurdo291•
Ao instante não cabe, portanto, nenhuma realidade em sentido
próprio. Ele é um termo conotativo, que designa acima de tudo o
primeiro móvel e, secundariamente, o ato da mente que mede a su-
cessão no movimento do mesmo primeiro céu. De fato, este se move
(segundo a concepção de Ptolomeu), de tal forma que uma parte do
'
céu vem a encontrar-se diretamente oposta a uma determinada parte
da terra e outra, a uma outra, e assim para todas as partes do céu e
da terra respectivamente. Com o seguimento do movimento regular
do céu, varia a distância de suas partes com relação àquelas da ter-
ra, a qual, ao contrário, está parada. Para um espectador que se en-
contra sobre a terra, o primeiro móvel ora (nunc) está em um lugar,
e ora (nunc) em um outro, sem que com isto se deva pensar em
qualquer novidade, em algum novo acontecimento no céu292

Ibidem (Opera P/11/osoph1w VI, p 545)


2'JI
292«De facto caelum movetur, 1ta quod una pais caeh est oppos1ta dtrecte 1st1parti terrae et alta
aln, et s1c de ommbus part1bus caeh et terrae Tunc quamv1s caelum vere nunc s1t m uno sttu et
post verum s1t d1cere quod caelum nunc est m alto s1tu sme omm generattone rei novae et cor-
rupttone ant1quae, non tamen sme d1vers1tated1stant1aeetusdem partis caeh ad eandem partem
te1rae qmescentls, qma continue s1cut caelum movetm, eadem pais caeh ahter d1stat ab eadem
parte terrae pnus et post, et tamen ptopter hoc non oportet ponere ahquam rem novam m caelo

184
Este é o verdadeiro significado da palavra instante, ou me-
lhor, é sua exata acepção sempre que se a tome como um termo ca-
tegoremático, segundo o significado corrente do vocábulo (ex usu
loquentium).
Por sua conta, Guilherme está inclinado a considerar o ins-
tante antes como um termo sincategoremático, isto é, um advérbio
de tempo que por si só não tem nenhum significado e que, portanto,
rigorosamente falando (de virtute sermonis), não significa nem
mesmo o primeiro móvei293 . E este é também, segundo Ockham, o
pensamento de Aristóteles. Deve-se, porém, observar que uma exe-
gese feita desta maneira, como acontece para todas as outras dou-
trinas de filosofia da natureza, responde a exigências metodológicas
e ao espírito da perspectiva filosófica próprios de nosso autor, que
se caracteriza sempre por fundar sobre uma acurada análise da ex-
periência os conceitos básicos da física. Neste sentido, também o
instante é reconduzido a um ponto fixo, empiricamente determiná-
vel, de um corpo sujeito ao movimento que permanece idêntico a si
mesmo, sem sofrer variações, embora seguindo um movimento cir-
cular e uniforme. Mais uma vez Ockham demonstra estar longe quer
de uma redução do tempo à subjetividade, quer da negação da reali-
dade do tempo. Sua visão se revela substancialmente aquela do
tempo físico, do assim chamado tempo dos relógios, medida do mo-
vimento exterior, que será excluída da filosofia moderna por obra de
Kant, Bergson e dos existencialistas. Sem dúvida, é difícil negar
que, ao menos tendencialmente, o estudo aristotélico não estivesse

Instans 1g1tur pnnc1pahter s1gmficat pnmum mobile. sed connotat secundano actum ammae
numeiant1s» (lb1, q 56. Opera P/11/owph,w VI, p 547)
29 ' «Sed nunc est adverbmm tempons, s1gmficans ahquod permanens esse reahter praesens et

neque [esse] praetentum neque futurum. Et 1deo non s1gmficat ahquod unum determmatum nec
habet fimtam s1gmficat10nem s1cut habent nomma categorematJca, eo quod est
[syncategorematJcum]» (/b1, q 57, Ope1a Plulowph,w VI, p 553) No Trallatu.< de sulces-
.,.,v,sOckham expnme a mesma conv1cção, isto é, que a opm1ão de quantos atnbuem ao ms-
entre o passado e o futmo é falsa e se opõe ao pensamento de
tante uma realidade mte1111ed1á11a
Anstóteles «Quod est ommno falsum et contia mtentJonem Ph1losoph1 qma nunc non est tahs
res, sed nunc est adverbmm tempons s1gmficans ahquod permanens esse reahter et non esse nec
praetentum nec futurum sed esse praesentmhte1 et 1deo non s1gmficat ahquod unum detenru-
natum nec habet s1gmficat10nem fimtam ad modum, quo nomma categorematJca habent fimtam
s1gmficat10nem» (p I 02)

185
dentro da linha ockhamista: basta recordar que, para Aristóteles, a
escolha de movimento paradigmático, com o qual confrontamos e
medimos os demais movimentos, não cai sobre um movimento ima-
ginado ou convencional, mas sobre o movimento fisicamente con-
trolável do pnmeiro móvel. Ockham, que era sensível a uma exegese
fiel de Aristóteles, mais do que a uma calibragem exata do vocabu-
lário técnico, filosófico e científico, procurou, acima de tudo, salva-
guardar a objetividade da noção de teinpo, entendida como corres-
pondente não equivocável entre os conceitos significantes e a reali-
dade extra-mental por eles significada.
Por isso, não me parece correta a posição de Miethke, que re-
cusa as interpretações de S. Moser, H. Shapiro e F. Corvino ares-
peito, por julgar que não apreenderam o aspecto ontológico do tem-
po294_
Parece que Ockham jamais toma posição a respeito de uma
fundação ontológica do tempo, diversa daquela constituída por um
movimento físico externo, real ou imaginado (sempre reconduzível,
ao menos potencialmente, àquele movimento regular e uniforme do
primeiro móvel), e pelo ato de consciência que mede tal movimento.
Para falar de uma ontologische Struktur em sentido verdadeiro e
próprio, dever-se-ia pressupor o superamento da concepção do mo-
vimento, entendido como movimento físico - real ou imaginado - de
um corpo, para entendê-lo, invés, como vir-a-ser, ou seja, como ho-
rizonte do ser, sujeito ao aparecer e ao desaparecer, do qual o tempo
seria a expressão mais característica. Parece-me, além disso, exces-
siva a qualificação de subjetividade a propósito da concepção
ockhamista do tempo, elaborada com base no fato que Guilherme
inclui entre os movimentos que podem entrar na definição de tempo
também um movimento imaginado: o movimento imaginado é sem-
pre um movimento físico, nem se vê, de resto, como a imaginação
poderia formar-se a representação de um movimento que não seja
aquele sensível.

294 «Der Ze1tbeg11ff1st pnnz1p1ell von dei Bewegung des F1xsternhm1mels unabhangig Das
ze1gt, daB dte Interpretallon von S Moser, H Shapuo und F Corvmo mcht dte ontolog1sche
Struktur der Ze1t nach Ockharns Auffassung tnfft» (Mtethke, Olkhams Weg , p 218, n 300)

186
Nem mesmo se pode pensar que todos os textos, nos quais
Guilherme fala do movimento do primeiro móvel, como de um mo-
vimento uniforme que funge de medida para todos os demais movi-
mentos, sejam textos nos quais queira expor tão-somente o pensa-
mento de Aristóteles295 . Acima de tudo, Ockham jamais contrapõe
explicitamente sua própria noção de tempo àquela de Aristóteles,
aliás, já vimos à saciedade, e em seguida encontraremos confirma-
ção, como em todas as obras de filosofia da natureza ele jamais teve
outra ambição que aquela de ser um fiel expositor de Aristóteles,
embora com a reserva de atualizá-lo à luz das conseqüências que
derivam para a filosofia da noção teológica da onipotência divina.
Acrescente-se a isto, enfim, que as conclusões ockhamistas a
respeito da doutrina do instante, de todo ignorada por Miethke, ofe-
recem uma confirmação ulterior de como a mentalidade de Ockham
dista de uma valorização subjetiva do tempo, em sentido agostiniano
ou em sentido moderno. Por isso, permanece válida a conclusão que
avançávamos acima, segundo a qual Ockham preocupou-se, em
primeiro lugar, em salvaguardar a objetividade da noção de tempo,
entendendo-a como perfeita correspondência entre os conceitos
mentais ou os termos de linguagem e a realidade singular extra-
mental.

5. A duração eviterna

É sabido que, para contradistinguir a duração das substâncias


espirituais, ou seja, dos anjos e das inteligências motoras das esferas
celestes que, não tendo matéria, não podem ser sujeitas a um movi-
mento de tipo físico, controlável através da sucessão do antes e do

295 Este parece ser o parecer de M1ethke, o qual, dep01s de haver mostrado que os textos mais

explíc1tos acerca da comc1dêncm do movimento que atua como medida com o movimento do
pnme1ro móvel estão contidos nas Summu/ae III ltbw.• phys,wrum Anstote/1.•, acrescenta
«Der Wahrhe1t schemt uns allerdmgs eme Erklarung naherzukommen, d1e auf das 1m Prooe-
mmm der Summ Phys mede1gelegte Piogramm abstellt, d1e pnnc1pm der Naturphllosoph1e
"vesttgns Anstotelis mhaerendo secundum mtenttonem Phllosoph1" aufzuschre1ben D1e
anstotehsch-averr01sttche Ausgangsbas1s zummdest musste demnach m d1eser Schnfi besonders
deuthch zutage tteten» (Ockham.• Weg , p 220, n 305)

187
depois, os escolásticos haviam mtroduz1do o conceito de eva
(aevum), ou de duração eviterna. Entre a eternidade de Deus e o
tempo próprio dos seres do mundo sublunar, haviam colocado os se-
res evitemos, nos quais se verifica uma certa sucessão, mas somente
nos aspectos acidentais, enquanto em suas substâncias são imutá-
veis. Ao defimr os caracteres próprios do eva, Tomás de Aquino
havia sustentado que ele não adm1te a sucessão segundo o antes e o
depois 296 , enquanto Boaventura havia reivmd1cado a presença de
uma certa sucessão também nas substâncias eviternas 297 . Ambas as
posições necessitavam de uma clanficação ulterior: de fato, per-
guntava-se em que c01sa o eva pode diferenciar-se da eternidade se,
como queria o Aquinate, ele não admite sucessões intrínsecas; se,
pelo contrário, aceitava-se a tese bonaventuriana da presença da su-
cessão nas substâncias eviternas, tornava-se difícil distinguir o eva
do tempo. Pedro João Olivi foi o primeiro a analisar cnticamente a
questão do eva e conseguiu mostrar-lhe as contrações de fundo. De-
pois de se haver empenhado em distinguir claramente o eva da eter-
nidade, visto que também os anJ0S são criaturas e que a característi-
ca dos seres criados é a sucessão temporal, Olivi encontrou-se na
impossibilidade de distinguir o evo do tempo. Mas esta impossibili-
dade não o preocupou muito e confessou sem mais que não se en-
contrava em condições de definir a diferença formal entre as duas
noções 298 .
Nesta questão Ockham assume uma posição radical, recusa
em bloco a doutrina e proclama a falta de fundamento da própria
noção de eva. De fato, este eva deveria ser ou uma substância, ou

296 Tomás de Aqumo, Summa theoloJ!.llle.1, 1O, 5


297 São Boaventura, ln li Se11t, d 2, pars I, art 1. q 3, ed Quarncch1, II, pp 61-63
298 «Ad 1d autem quod addltur quod omms mensura success1va slt idem quod tempus, qma

nulla d1fferentrn fonnahs mter ea mven111potest, fateor me nesc1re dare d1fferentrnm fonnalem»
(P J. Ohv1, Quaestwne1· 111 seumdum /1b111111 Se11te11tu11um,q 9, ed Quaraccht, I, p 177)
Bettom apostila esta declmação de Ohv1 da segumte maneira «Manifesta-se que nosso autor
não só se encontra na 1mposs1b1hdadede d1Wngu!f o evo, como o concebe, do tempo, mas que,
no fundo, isto não o interessa mullo que o evo se 1dent1fiqueou não com o tempo, não é um
problema que o mqu1ete, supondo-se que esteJa bem claro que o evo nada tem a ver com a ete1-
mdade Convenhmnos é um modo elegante, d1plomát1code abandonar, sem dar mmto na vista,
um conceito trnd1c10nal, do qual se entreviu a mcons1stêncrn e a mullhdade» (E Bettom, Le
dott11ne filo.mfu.he dt Pter dt Gwv,mm OIIVI,Mil ano I 959, pp 258-259)

188
um acidente. Não pode ser uma substância, porque deveria ser uma
substância espiritual e é claro que a duração de uma substância in-
telectual não é medida por uma outra substância do mesmo gênero,
visto que através da primeira jamais se conseguirá estabelecer
quanto dura a segunda. O evo também não pode ser um acidente,
porque nenhum acidente pode medir a duração da substância 299 •
Deve-se pois concluir que o evo é uma noção espúria, como é espú-
ria aquela de eternidade participada, entendida sempre como medida
da duração dos anjos, fruto de uma compreensão errada do conceito
de eternidade. Entre a duração dos anjos e a verdadeira eternidade
há esta diferença: enquanto o anjo não poderia durar se não existisse
alguma sucessão atual ou potencial, e todavia a sucessão poderia
existir mesmo sem a existência dos anjos, Deus e sua eternidade,
pelo contrário, podem existir mesmo se não existisse sucessão al-
guma e, no caso de Deus não existisse, nenhuma sucessão em ato
poderia ser pensada 300 .
Há uma outra diferença, mais importante, entre a duração de
Deus e aquela dos anjos: a duração de Deus é dada toda junta, de
uma vez para sempre, isto é, Deus não pode não durar, e se coexiste
com um momento da duração não pode coexistir com todos os de-
mais. Diverso é o caso do anjo, pois este, no limite, poderia também
não perdurar na duração, caso Deus o aniquilasse, e, além disso, o
anjo reporta-se a um momento qualquer do tempo de uma maneira

299 «Quaero qu1d est 11ludaevum aut est substanua aut acc1dens Non substantrn, qurn tune es-
set substanlla mtellectuahs Et mamfestum est quod una substanlla mtelleetuahs non mensura-
tur aha quantum ad durallonem, qma numquam per unam substantrnm mtellectualem potes!
sem de aha quantum durat. Nee 1llud aevum est add1eens, qma elrnm per tale add1eens non po-
tes! sem quandm durat substanlla mtelleetuahs» (Summu/a p/11/owphwe 11atura/1s, VI, 14,
Ope,a P/11/osoph1w VI, p 385) Outros textos sobre o evo ln II Sent., 8 e 11 (Opera Theolo-
g,ca V, pp 125-162 e 232-250), Summu/a ph,losoph,ae 11atura/,s, IV, 12-14 (Opera Phrlo-
sophrca VI, pp 375-386), Quae.1·t/fmes ,n /1b10s physrwrum Anstotehs, q 54 (Opera Ph,lo-
soph,w VI, pp 540-543)
' 00 «Inter durationem angeh et aetermtatem est tahs d1fferentrn quod angelus non posset durare
ms1 posset esse ahqua sueeess10 m actu vel m potentrn Sed sueeess10 bene potest esse sme du-
rat10ne et eoex1stentrn et durauone angeh, qurn suecess10 potest esse ets1 angelus non s1t Sed s1
nulla esset suecess10 m aetu vel m potenua, adhuc posset esse Deus vel ems aetermtas Sed
nulla suceess10 est nec esse potes! 111s1Deus vel aetem1tas Dei s1b1eoexs1stat» (ln II Sent, 8,
Opera Theolog1w V, pp 157-158)

189
tão precisa e definida que não pode contemporaneamente não re-
portar-se a ele 301 .

Deve-se portanto afirmar que a duração dos anjos é mensurá-


vel com o tempo, tendo presente que há dois modos de entender a
expressão "ser no tempo": em sentido amplo, está no tempo toda
coisa que coexiste com o tempo; em sentido estrito, está no tempo
aquela coisa da qual pode-se saber quanto tempo dura e quando
cessa de durar. Dos anjos pode-se dizer que estão no tempo não só
no primeiro sentido, mas, sob um ponto de vista específico, também
na acepção mais estrita, porque com o tempo pode-se conhecer uma
parte da duração deles, com base no número de anos, ou seja, com
base no número preciso das rotações do primeiro móvel, com as
quais os anjos coexistem. Não deixa de permanecer verdadeiro que,
por outro lado e sob outro ponto de vista, o tempo não permite esta-
belecer exatamente a duração das substâncias espirituais, que é per-
pétua: assim como perdurarão também quando o tempo não mais
existir, eles excedem o tempo e não podem ser medidas exatamente
por e1e·1020.. s anJos, portanto, estao
-
no tempo, porque possuem um
ser criado, e assim como este ser teve um início preciso de sua du-
ração, ele permite dizer que Deus o conserva em ato por aquele nú-
mero de anos que se obtêm da numeração das rotações do primeiro
móvel. Mas o ser dos anjos não cessará quando cessarem as rota-
ções do céu e, por isso, não é possível conhecer a inteira duração de
seu ser de maneira adequada e definitiva.

'º' Jb1,q8 (Opera Theolog1w V, pp 159-160)


«Angeh sunt m tempore secundo modo accepto, qum per tempus potest sem quantum durant
' 02
angeh, puta quod duraverunt per centum vel mille annos vel per mmus vel per marns»
(Quaestwnes m libros phys1un um Anstotelis, q 54, Opera Philosoph1w VI, p 542) «N1h1I
autem mensuratur tempore ms1 quod exced1tur a tempore, hoc est rmnus durat quam tempus,
qum de nullo aho potest sem per tempus quandiu durat» (Summu/a ph1/osophwe natura/is,
IV, 14, Opera Phi/o.wp/11w VI, p 386)

190
6. A eternidade do mundo

O problema da origem temporal ou não do mundo foi motivo


de longo debate por parte dos escolásticos dos séculos XIII e XIV e,
embora para nós possa parecer hoje um problema secundário por
diversas considerações críticas, todavia, no plano histórico, merece
ser examinado devido às implicações e conexões que tem com o
conjunto das teorias filosóficas de um autor. Se é verdade que só em
época moderna, e particularmente com Kant, chegou-se a uma clara
visão da antinomia que se encontra na base da controvérsia, também
é verdade que o modo próprio de tratar a controvérsia em cada um
dos autores medievais revela sua maior ou menor penetração crítica.
De fato, aqueles escolásticos que, como são Boaventura e muitíssi-
mos m~stres da escola franciscana, negaram a possibilidade da cria-
ção ah aeterno, estavam convencidos também da necessidade de
subordinar a filosofia à teologia e excluíam a hipótese que uma ver-
dade revelada pudesse não ser imediatamente subscrita, sem reser-
vas mentais provenientes de argumentações racionais.
Já os mestres que, como Tomás de Aquino e Duns Scotus,
afirmavam a impossibilidade de demonstrar com argumentos rigo-
rosos a temporalidade ou a eternidade da criação, julgavam que era
possível distinguir entre o âmbito filosófico e o teológico, e que pelo
fato de, no plano psicológico, um pensador continuar a ter determi-
nadas convicções - a crer, por exemplo, que o mundo iniciou no
tempo, tal como o quer a Bíblia -, nem por isso, no plano lógico,
estaria impedido de procurar a demonstrabilidade ou não de tal
crença, baseado em princípios racionais. A partir destas premissas
já é possível entrever qual possa ser a tomada de posição de
Ockham: sua constante preocupação em distinguir entre o âmbito da
filosofia e o da teologia, levou-o a alinhar-se com as posições de
Tomás e Scotus: somente com a razão não se pode demonstrar nem
a criação ah aeterno do mundo, nem a tese oposta, visto que ne-

191
nhuma das teses dispõe de argumentos válidos a ponto de forçar a
um assentimento incondicionado303 .
Convém sublinhar a precisão com que Guilherme se coloca
no âmago da questão, seja no Comentário às Sentenças, seja no se-
gundo Quodlibet. De fato, não se pergunta se o mundo pode ou não
pode ser eterno, pergunta esta que levaria consigo o absurdo de uma
matéria eterna, contraposta dualisticamente à eternidade de Deus.
Pergunta-se tão somente, tomando como pressuposto que o mundo
inteiro é o resultado da ação criadora de Deus, isto é, é essencial-
mente produto da vontade livre e soberana da única causa eficiente
primeira, se se deve pensar que Deus o criou ah aeterno ou no tem-
po. O exame dos argumento a favor e contra é conduzido no âmbito
das discussões tradicionais, isto é, na forma recorrente nos mestres
do século XIII que trataram siste,maticamente o problema, como
Tomás, Boaventura, Godofredo de Fontaines, Olivi, Mateus de
Acquasparta, Duns Scotus, etc .. Por sua conta, Ockham declara-se
disposto a subscrever a tese afirmativa, visto que a possibilidade de
que o mundo tenha sido criado ah aeterno não é uma contradição
intrínseca e, por isso, Deus poderia tê-lo produzido desde toda a
eternidade, visto que pode fazer tudo o que não é contraditório 304 .
Contudo, um particular parece digno da máxima atenção,
porque revela um real progresso teórico com relação aos mestres
antecessores, que haviam admitido a criação ah aeterno. O argu-
mento principal, ao qual acabavam apelando os que sustentavam a
criação ah aeterno, pode ser formulado sinteticamente da seguinte
maneira: se o mundo tivesse sido criado desde toda a eternidade, in-
finitos homens teriam vindo à existência do momento da criação até
hoje, e, por conseqüência, sendo a alma intelectiva imortal, existiria
hoje em ato um número infinito de almas intelectivas. O raciocínio,

101 «Utrum Deus potmt mundum fec1sse ab aeterno neutra pars quaest10ms potest suffic1enter
proban pars negativa non, qma nulla apparet contrad1ct10 manifesta, nec affirmauva, qma rau-
ones non suffic1enter concludunt qum poss1t solvi» (Quodl II, q S, Opera Theolog1w IX, p
128)
104 «Deus potest facere qmcqmd non mclud1t contiad1ct10nem, sed mundum fmsse ab aeterno

non mclud1t contiad1ct1onem» (Quae.1t11111es vanae, q 3, Ope1a Theolog,w VIII, p 97)


«D1co probab1hter quod Deus potmt fec1sse mundum ab aeterno, propter hoc quod nulla appa-
ret contrad1ct10 manifeste» (Quodl II. q 5, Ope1 a Theolog1w IX, p 129)

192
impecável em suas conseqüências, fundava-se sobre a evidência da
asserção de que o infinito em ato é um absurdo, e, por isso, nem
mesmo Deus pode produzi-lo. Quem quisesse sustentar a possibili-
dade da criação ab aeterno, deveria defrontar-se com esta verdade.
A posição de santo Tomás sofreu uma evolução a respeito, e
nas suas últimas obras chegou a afirmar que o infinito em ato não é
um absurdo, isto é, que do ponto de vista da potência absoluta de
Deus não é contraditório305 • Para fazer uma tal afirmação, santo
Tomás devia evidentemente perceber que havia um vício de base no
modo de apresentar o argumento e que o 'infinito' ao qual se faz re-
ferência quando se proclama o absurdo do infinito em ato não é uma
noção suficientemente unívoca e clara. No Quodlibet XII do Aqui-
nate encontramos uma declaração explícita em tal sentido, a mesma
que se lê em Ockham, o qual responde da seguinte maneira à difi-
culdade a~ima colocada: estou de acordo em admitir que, na hipóte-
se da criação ab aeterno do mundo, deve-se admitir a possibilidade
da existência de um número infinito de almas e de atos infinitos de
conhecimento e de vontade, mas o infinito em questão não tem nada
a ver com o verdadeiro infinito, o infinito em sentido forte. Um nú-
mero infinito de almas não pode jamais dar lugar a uma única reali-
dade que seja intrinsecamente infinita, como é infinita a perfeição de
Deus 306• Trata-se de uma soma sem fim e, por isso, não propria-

105 «Non est adhuc demonsttatum quod Deus non poss1t ut smt mfimta actu» (De aetern,tate

mulldi wntra murmu,a/ltes, 111Opuscu/a 0111/llll, ed J Perner, 1, Pans 1949, p 60) Cfr
Quodl XII, art 2
1<!6 «Concedo quod mfimtae possent esse ammae m actu, seqmtur et mfimtae pass10nes ammae

m actu, et mfimtae perfecttones ahae a Deo possunt esse m actu, sed ex hoc non seqmtur quod
ahquid ahud a Deo s1t mfimtae perfecttoms quta 11laeammae non possunt facere ahqmd unum
S1 d 1 c a s quod ad mmus oportet concedere quod ahqmd extra Deum habet tot perfecuones
quot Deus, c o n e e d o quod homo habet plures perfect10nes quam Deus, qma Deus
nullam habet formahter ms1 unam, 1mmo est tantum una perfecuo quae est essentm sua, - ms1
voces ['habe1e'J 'habere v1rtuahter' S1c habet plures perfecllones, qma potes! creare hommem,
asmum et s1c de alns» (Quaestw11e.1vm we, q 3, Opera Theolog,ca VIII, p 68-69) O mesmo
conceito é rebatido em outros textos de Ockham Uma referência clara à poss1b1hdade de 1r ao
mfimto encontra-se neste texto «Propter mfimtatem v1tandam non oportet negare talem proces-
sum m mfimtum, s1cut p10pte1 mfimtatem vltandam non oportet negare quod Deus non potes!
facere tot 111d1v1duaahcums spec1e1qum poss1t facere plura Cmus rat10 est, qma s1 ponatur ta-
hs processus m mfimtum, semper tllud quod ponetur III actu, ent fimtum S1cut ponendo quod
Deus non poss1t facere tot md1v1duaqum posslt facere plura, semper ilia quae fient, erunt fimta

193
mente 'infinita', mas antes 'indefinida', que não chega a apresentar
um resultado definitivo: é um infinito em potência, mais que um in-
finito em ato. O ganho teórico consiste exatamente em haver escla-
recido o valor do conceito de infinito: a verdadeira infinidade,
aquela que transcende constitutivamente o horizonte do finito, é o
oposto do infinito enquanto soma de atos que se sucedem sem fim e
que constituem o infinito matemático. Deus é infinito em suas per-
feições não porque possua uma número ilimitado delas, mas porque
as possui em modo ilimitado, isto é, em um modo totalmente diverso
daquele limitado e finito.
Observe-se, porém, que Ockham não quer dizer que o infinito
em ato não é um absurdo. Também para ele é absurdo que exista
algo fora de Deus que seja da mesma perfeição (infinita) de Deus;
exclui, porém, que um número mdefinido de almas intelectivas dê
lugar a uma realidade de igual perfeição que aquela divina 307•
Se, por um lado, Guilherme organiza o discurso de forma ri-
gorosa, reduzindo-o ao essencial, evitando discutir a hipótese da
eternidade da matéria e desqualificando de início a possibilidade de
reduzir a uma única realidade todas as criaturas ou de falar do tem-
po como criatura possuidora de uma consistência própria 308 , por

Et 1deo semper fac1endo plura, numquam fient mfimta sed fimta» (ln I Sent, 17, 8, Opera
Theo/og1ca Ili, p 553)
107 A anáhse que estamos fazendo deve ser colocada em seu contexto exato cremos haver en-

contrado no passo citado a respeito do mfimto em ato uma aqms1ção especulattva de Ockham,
deve-se, porém, ter presente que alhures ele faz uso md1scnmmado da asserção a respeito da ab-
surdidade do mfimto em ato Tratando, por exemplo, da existência de Deus, ele sustenta que é
necessáno chegar a uma pnme1ra causa conservadora para evitar o absurdo de um número mfi-
mto de causas conservadoras (cfr o cap qumto A teologia racmnal). No que concerne, pois, à
própna noção filosófica de mfimto, veremos em breve como Gmlherme abraçou a tese de que o
verdadeuo mfimto, segundo Anstóteles, não existe em ato e que no hrmte, falando filosofica-
mente, de Deus não se deve dizer que é mfimto, mas fimto
108 Na escola franciscana havia-se mtroduzido o costume de argumentar contra a cnação ab

aete,no baseado no fato de que um número 1hm1tado de entes é reconduzível a um úmco ente
mfimto, atualmente existente Ora, como é absurdo que exista um ente mfimto d1sl1ntode Deus,
eis porque Deus não pode cnm o mundo ab aete1110 Outros mestres franciscanos, pois, como
Mateus de Acquasparta, refutavam a criação ab aete1110porque o tempo, que segundo santo
Agostmho, acompanha necessanamente o cnado como nota característica, sena por sua vez
eterno, embora sendo, em certo sentido, uma cnatura mas uma cnatura eterna, e por isso mfi-
mta, é contraditóna. Os textos mais s1gmficauvos a respeito são os de são Boaventura (/11 /
Sent, 43, art umcus, q 3; ed Quaracch1, 1, pp 771-773) e de Mateus de Acquasparta
(Quae.Wones d1sputate de prod11ctwne rerum et de prov,dentw, q 9, ed Quaracch1, p 213)

194
outro lado, deixa aberta uma interrogação: como se pode explicar
que ninguém percebeu a raiz antinômica e viciosa sobre a qual
apoiava-se todo o problema? Uma vez que se estabeleceu que o
mundo deriva de Deus, por criação, e que se definiu o tempo como a
medida do movimento, não tem-sentido perguntar-se se o mundo,
que é o reino do movimento, exista ab aeterno, ou no tempo. Que
significado pode ter uma alternativa deste gênero quando, transcrita
em outros termos, soaria assim: o tempo existe ab aeterno, ou
existe no tempo?
A discussão sobre a eternidade do mundo arrisca falsificar
tanto a noção de tempo, como a de eternidade. A pergunta, querendo
saber se o tempo poderia ser criado antes das coisas ou, mais ainda,
se neste tempo anterior poderia ser colocada a criação, é em si im-
proponível, porque neste modo a temporalidade é projetada ao infi-
nito e, sem alguma justificação plausível, prospecta-se o tempo an-
tes do tempo. A eternidade, por sua vez, não é uma duração com
sucessão, de modo a permitir a pergunta se o mundo esteve em um
momento de sua sucessão. De fato, a eternidade não pode ser consi-
derada como a duração que precede o tempo, mas como a duração
que transcende o tempo, sem sucessão e totalmente presente a si
mesma.
Ockham demonstrou-se rigorosíssimo no que concerne ao
conceito de evo, mas não se pode dizer que agiu de igual maneira no
que se refere à questão da eternidade da criação, uma pseudo-
questão do ponto de vista filosófico, porque o problema não versa
sobre a eternidade real das coisas criadas, mas somente sobre a in-
definidade de sua duração temporal, visto que, enquanto criadas,
elas estão fora do horizonte da eternidade e da infinidade. A criação
decide peremptoriamente a cesura entre o finito e o infinito.

Para uma anáhse detalhada, cfr A Glusalbertl, ú.1 , ont, ove, s,a su,last,ca sul/a creazwne ab
aeterno, «RIVlsta d1 filosofia neo-scolasuca, 60 (1968), 211-230

195
7. A natureza e a unidade do universo

Ockham entende por natureza uma coisa absoluta, positiva,


dotada de existência real extra-mental. Mais precisamente: a nature-
za de uma coisa coincide com os elementos constitutivos da própria
coisa, isto é, com a matéria e a forma substancial.
A natureza não deve ser concebida como uma entidade abs-
trata, distinta da realidade objetiva, mas chamam-se naturais todas
as coisas que são constituídas da matéria e da forma substanciais.
Considerando que as substâncias compostas de matéria e forma são
as substâncias sensíveis, ou seja, aquelas que são geráveis, corrup-
tíveis e SUJeitasao movimento, Guilherme define a natureza como o
princípio do movimento e do repouso no interior de um corpo, que
por si mesmo se move ou se aquieta. As características exigidas,
para que uma coisa possa ser chamada natural, são duas: o princí-
pio do movimento deve ser-lhes algo de próprio, diretamente e não
de modo acidental; tal princíp10 deve coincidir com o próprio móvel
ou com uma sua parte essencial 309 . A natureza não deve ser entendi-
da necessariamente como um princípio ativo, mas pode ser também
um princípio passivo do movimento. A este propósito é esclarecedor
o texto das Quaestiones in libros physicorum, no qual se afirma
que os princípios ativos identificam-se com a quantidade e a quali-
dade primárias, que por sua vez coincidem com a substância das
coisas sensíveis. As qualidades secundárias, pelo contrário, são
princípios passivos imediatos do movimento. Contudo, foi oportu-
namente observado que "também as qualidades secundárias derivam
das qualidades primárias; outras, como a densidade, de fato não
comportam nada de diverso e de distinto das próprias qualidades

109«Natura est pnnc1pmm motus et qu1etis, s1 s1t natum habere qmetem, ems m quo est per se et
pnmo tamquam 1psum essenllahter vel tamquam pais essenualis 1psms mob1hs» (Expo.wtw rn
hbros phy.,iw1um Anstote/1s, li, 1, Opera Ph1/o."'p/11w IV, p 230) Cfr ln Ili Sent, 1
(Opera Theo/og,w VI, p 5)

196
primárias. Portanto, em todo caso, a 'natureza' é o princípio do mo-
vimento e de toda mutação"310 .
No que concerne à natureza dos corpos celestes, Guilherme
afirma que a matéria deles não é diversa da matéria dos corpos
sub lunares, contrariamente à opinião de Aristóteles e de Averróis e
de seus comentadores latinos. A doutrina bíblica da criação fala de
uma mesma e idêntica matéria para os astros e para os corpos. Mas,
mesmo prescindindo do dado revelado, não há argumentos válidos,
de tal modo convincentes, a ponto de obrigar a afirmar que a natu-
reza do céu é mais nobre e que sua matéria é incorruptível. Os pró-
prios adversários, de fato, admitem que a forma do céu é menos per-
feita que a alma intelectiva e, contudo, a alma intelectiva informa a
mesma matéria que vem informada por outras formas substanciais,
o que demonstra que pela maior ou menor nobreza da forma não se
pode deduzir uma diferença na natureza da matéria informada.
A incorruptibilidade da forma celeste não comporta que tam-
bém a matéria dos céus seja incorruptível: a incorruptibilidade não é
uma conseqüência do fato de que os elementos que compõem um
corpo são incorruptíveis por si mesmo.
No composto humano, por exemplo, acontece que a matéria-
prima e a alma intelectiva são incorruptíveis, enquanto o homem,
que é o composto deles, é corruptível. No caso dos corpos celestes,
pode muito bem existir incorruptibilidade, mesmo se resultam da
composição de uma forma corruptível e de uma matéria incorruptí-
vel. De resto, ninguém disse jamais que a incorruptibilidade dos
céus seja um dado absoluto, definitivo, porque Deus os pode des-
truir a cada instante. Na realidade, os corpos celestes são incorrup-
tíveis só em relação ao homem e às demais criaturas sublunares, no
sentido que nenhuma delas pode destruí-los ou atingi-los.
Portanto, não existem argumentos afirmativos que nos obri-
guem a sustentar que a matéria celeste é diversa daquela terrestre;
pelo contrário, explica-se muito bem se se admite a identidade entre

11 °
F Corvmo, li s1i:111ficatodei te1111111e
natura nel/e ope1e filowfilhe d1 Occam, m La filo-
sof1a dei/a natwa 11elMedwevo, p 607

197
as duas matérias, a sua homogeneidade fundamental 311 . Não se deve
esquecer que postular uma matéria diversa para os céus comporta-
ria uma derrogação do princípio de economia, visto que tudo o que
se pretende salvaguardar como afirmação de uma matéria diversa
nos céus pode muito bem ser salvaguardado afirmando-se a unici-
dade da matéria 312 . A matéria celeste é do mesmo gênero e espécie
(eiusdem rationis, eiusdem ~peciei), isto é, é homogênea com a
matéria da qual são feitos os corpos terrestres. A homogeneidade
não subentende nenhuma comunhão física, nem genérica, nem espe-
cífica, porque os gêneros e as espécies têm somente uma existência
conceituai à qual correspondem na realidade indivíduos distintos
entre si. Trata-se, pois, de uma idêntica matéria no sentido que pro-
duz os mesmos efeitos que são produzidos pela matéria terrestre, o
que quer dizer que chegamos à homogeneidade ou uniformidade da
matéria a partir de um critério operativo, constituído pela identidade
das operações 313 .
A posição de Ockham é inovadora, e com razão se pode dizer
que ele abre o caminho para a concepção própria da física moderna.
Embora nenhum de seus sucessores imediatos tenha recebido a crí-
tica à quintessência, retomada e desenvolvida no século XV por Ni-
colau de Cusa, a crítica de Guilherme influenciou certamente a João
Buridano, o qual aplicou a teoria do impetus também aos corpos
celestes: o movimento das esferas celestes pode explicar-se muito
bem admitindo-se que Deus lhes tenha imprimido um impulso ou
ímpeto motivo no momento da criação, e com isso evita-se o recurso

111 ln II Sel!t, 18 (Ope,u Theolog1w V, pp 400-404) No artigo citado na nota precedente,


Corvmo observa como das Q11ae.•t1m1e•111l,b101 physllorum não se pode extrmr claramente
qual seJa a posição definitiva de Ockham a respeito do movnnento do céu segundo o texto dos
manuscntos de Pans e do Vaticano, o pnncíp10 ativo do movimento celeste é constituído pelas
mtehgêncms motoras, o texto do código de V 1ena, ao cont1á110, afirma, embora 11nphc1tamente,
que o movunento dos céus não é causado pelas mtehgêncms, e sim pelas mesmas causas natu-
rms que movem as coisas terrestres
112 «Plurahtas numquam est ponenda sme necess1tate, s1cut saepe d1ctum est Nunc autem non

apparet necessitas ponend1 matenam alte11us 1at1oms h1c et 1b1,qum omma quae possunt salvan
per d1vers1tatem matenae secundum iat10nem pm,;unt aeque bene vel mehus salvar1 secundum
1dent1tatem iauoms» (111II Sent, 18, Ope, a Theolog1w V, p 404)
111 Quaestwnes 111i,b,os phy.mo,um, q 6 do Cod Dom 307 (B1bl Nac Viena), editada por
Corvmo m Le «Quaestwne• 111 l,b, o., phy.11co111111», pp 25-28

198
à explicação aristotélica, que apela para intelig_ênciasmotrizes. Da
visão ockhamista resulta, portanto, que o universo goza de sua pró-
pria unidade, a qual não implica em parentesco real entre os diver-
sos corpos que o compõem, visto que de real somente existem os in-
divíduos: a ordem, a unidade e a harmonia do universo encontram
uma explicação adequada nas partes que o constituem e na disposi-
ção espacial de tais partes 314.
Conclui-se, pois, que o mundo é uno em si mesmo, sem que
exista uma ligação entre as coisas. Contudo, deve-se dizer também
que este mundo é único, isto é, que não pode existir mais que um
universo? Aristóteles, no De coe/o et mundo, havia dito que a hi-
pótese da pluralidade dos mundos é um absurdo e os aristotélicos
medievais encontravam-se na situação embaraçosa de conciliar esta
tese com a tese da onipotência divina, pela qual Deus não é limitado
por algo proveniente do exterior. As tentativas de conciliação das
duas assertivas não obtiveram resultados convincentes, pois em
1277 Estêvão Tempier condenou a seguinte proposição: a causa
primeira não pode produzir múltiplos universos.
Ockham, ao dar sua resposta à questão, não se contentou em
declarar falsa a tese aristotélica, mas procurou mostrar qual era o
erro que se encontrava na base da tese do Estagirita, desenvolvendo,
para tanto, tudo o que já fora elaborado por Ricardo de Mediavil-
la31s _

A onipotência divina, observa Guilherme, deve ser entendida


no sentido que Deus pode fazer tudo aquilo que não inclui contradi-
ção. Ele pode criar, por exemplo, um número infinito de indivíduos
da mesma espécie daqueles que existem atualmente. Isto quer dizer
que Deus pode criar um número infinito de indivíduos, igual ao
existente atualmente, e pode também produzir mais, sem com isso
ser coagido a produzi-los no mundo atual. Pode produzi-los fora

114«Iste ordo importai solum 1psa absoluta quae non facmnt unam rem numero, mter quae
unum ab eodem plus d1statet ahud mmus, et unum est propmquum alten et ahud distal plus vel
mmus sme omm respectu mhaerente» (Quodl VII, q 8, Opera Theologna IX, p 729)
m Duhem, Le systeme_ , VII, pp 95-96

199
deste mundo e, com isso, faz surg1r deles um outro universo, exata-
mente como aconteceu na origem do umverso atuaI316•
Como se vê, o argumento decisivo aduzido por Ockham ao
refutar a tese aristotélica é aquele da onipotência teológica, trans-
crita, porém, em sua implicações e conseqüências filosóficas. E
mais uma vez Aristóteles mostra-se ligado à ordem de fato, igno-
rando aquela mais fundamental: a ordem da possibilidade. Não se
defende a impossibilidade de uma coisa pelo fato que ela não entra
na ordem atual das c01sas; a impossibilidade de uma coisa provém
de uma manifesta contradição que nasce da hipótese de sua existên-
cia real. A ausência do ponto de vista da possibilidade encontra-se
também em outros tópicos aristotélicos. Com relação ao problema
se podem ou não existir mais universos, o Estagirita afirmava que
como todos os corpos de uma mesma espécie tendem para um único
lugar natural, se existissem dois universos, aconteceria que os cen-
tros de ambos constituiriam dois lugares naturais distintos para a
terra, a qual seria atraída de modo natural para cada um deles, o
que é um absurdo.
Guilherme responde com clareza à dificuldade: é verdade que
todos os indivíduos de uma mesma espécie movem-se em direção a
um mesmo lugar natural, caso estejam dispostos sucessivamente na
mesma posição, fora daquele lugar. Mas isto não quer dizer que tais
indivíduos dirijam-se todos e sempre, em cada circunstância, para
um mesmo lugar, isto é, é possível que se movam simultaneamente
na direção de lugares diferentes.
Dois fogos da mesma natureza, colocados, um em Oxford e
outro em Paris, elevam-se ambos ao céu, mas cada um na direção
de um ponto diverso da esfera celeste. Tomando-se o fogo de
Oxford, e colocando-o no lugar em que se encontra aquele de Paris,
então aquele elevar-se-á em d1reção ao mesmo lugar para o qual se
elevava este. O mesmo aconteceria na hipótese: se a terra, que per-

116 «lnfimta md1v1dua emsdem rat10ms cum 1lhs quae modo sunt, posset Deus producere Ig1tur
tot md1v1dua et plura quot modo sunt producta et earundem spec1erum potest Deus producere,
sed non arctatur ad producendum ea m isto mundo ergo posset ea producere extra 1stum mun-
dum et ex eis facere unum mundum, s1cut ex 1lhs quae sunt iam producta fec1t hunc mundum»
(ln I Sent, 44, umca, Opera Theolog,w IV, p 655)

200
tence ao segundo universo, viesse colocada no universo atual, ela
tenderia ao mesmo lugar natural ao qual tende a terra de nosso uni-
verso. Mas como aquela terra pertence ao outro universo, não pode
acontecer que por movimento natural ela se mova para o centro de
nosso universo, exatamente como um fogo de Oxford não se dirige
àquele ponto do céu, ao qual se dirige um fogo aceso em Paris.
Aristóteles prosseguia afirmando que o céu é formado por
toda a maténa que convém à sua natureza, motivo pelo qual deve-se
excluir que possa ser multiplicado. Guilherme rebate a argumenta-
ção, sustentando que o céu é composto por toda a matéria existente
e não por toda a matéria produzível pelo criador 317 .
A partir destas afirmações Ockham passa a sustentar a pos-
sibilidade de um mundo melhor que o atual: se Deus pode criar mais
mundos, e se pode aumentar ao infimto todas as qualidades suscetí-
veis de aumento ou de diminuição, segue-se que Deus pode criar um
mundo acidentalmente mais perfeito que o atual.
A outra afirmação, que Deus pode fazer também um mundo
intrinsecamente mais perfeito, ou seja, de maior perfeição substan-
cial, não é sustentável com argumentos definitivos: é provável que
Deus possa criar uma substância mais perfeita que aquela atual e
assim pode-se proceder ao infinito, mas pode-se avançar também a
hipótese que a substância criada é tão perfeita que Deus não possa
fazer uma melhor.
Por sua conta, Ockham opta pela primeira hipótese, segundo
a qual Deus pode fazer um mundo mais perfeito que o atual, exclu-
indo que, rigorosamente falando, deva-se com isto concluir pela
possibilidade de um infimto atual: um mundo de indivíduos criados
por Deus, por mais perfeitos que possam ser tais indivíduos, será
sempre um mundo finito, como será sempre finito um oceano ao
qual se acrescentem sempre novas águas 318 .

111ln I Sent, 44, umca (Opera Theolog1w IV, pp 655-658, 660)


118«Quamv1s mundus non rec1piat mag1s et mmus 1!10modo quo acc1dentales quahtates susc1-
pmnt mag1s et mmus, tamen potes! fien um1s perfcct101 1sto, et potest fien 1stJ add1t10 S1cut
aquae potest fien add11Jo,et s1cut facta una pm va aqua, potest fien una aha mmor, et per conse-
guens pe1fect101 1!10modo D1centes quod non est status m md1v1dms altenus spec1e1, qma
quocumque dato posset fieJJ mehus, d1ce1ent quod Deus posse! facere mundum mehorem 111111-

201
8. O infinito

Concluamos a exposição dos principais temas e problemas da


física ockhamista, analisando o conceito de infinito, que se encontra
unido estreitamente ao tema da mfinita divisibilidade do contínuo,
ou seja, daquele extenso, cujas partes não se encontram separadas
entre elas e formam um todo unitário.
As partes de um contínuo são separadas entre si somente em
potência, e não em ato, o que não significa, porém, que não tenham
uma existência verdadeira e própria, distinta da existência do todo
do qual são partes. De fato, se não possuíssem uma existência real,
não poderiam entrar como partes constitutivas de uma realidade
concreta, visto que nada pode ser composto de algo que não exis-
te319_
Partindo destas premissas Guilherme passa a afirmar a exis-
tência atual de um número infimto de partes: é necessário admitir a
existência atual de um tal número de partes, divididas entre si só
potencialmente, para evitar o absurdo de uma extensão que não pos-
sa ser ulteriormente dividida, isto é, que seja indivi~ível.
Se, por definição, as partes de um contínuo são sempre divi-
síveis, não se pode dizer que existe um cert0 número delas e não um
número maior. Portanto, deve-se dizer ~ue são de número infinito.
Não se pode, contudo, dizer que uma garte seja mais perfeita que
uma outra que a precede ou a segue, que seja de extensão maior,
menor ou igual, porque isto comportaria que o extenso, composto de
partes assim constituídas, seria mfinito segundo a quantidade, en-
quanto os filósofos concordam em afirmar que é impensável a exis-
tência de um infinito quantitativo 320 .

fimtum, non tamen mfimtum S1cut potes! facere aquam mmorem quacumque data, et tamen
non mfimtam» (/11/ Sent, 44, umca, Opera Theoloil(a IV, pp 660-661)
119 Cfr Quaestwnes m l,bros phy.morum, q 68 (Opera P/ulo.\{/ph1w VI, pp 587-589)

' 2º «ln contmuo sunt mfimtae partes s1c d1stmctae quod quaehbet secundum se totam est extra
aham, mter quas tamen nulla est pnma nec secunda ln eodem contmuo non sunt mfimtae
partes s1c d1stmctae quod quaehbet secundum se lotam sll extra aham, 1ta quod ahqua s1c s1t

202
A afirmação da divisibilidade ao infinito do extenso está uni-
da à análise do conceito de mínimo ou de infinitamente pequeno.
Duhem observou a respeito como a exclusão da existência dos indi-
visíveis foi realizada por Ockham a partir de argumentos de tipo ge-
ométrico, semelhantes àqueles que se encontram já em Rogério Ba-
con e Duns Scotus: se as linhas são compostas de átomos indivisí-
veis, a diagonal de·um quadrado e o seu lado tem a mesma relação,
que se exprime com os números inteiros dos átomos dos quais tais
comprimentos são formados. Diagonal e lado, desde modo, passam
a ser comensuráveis entre si, contrariamente ao que sustentam os
matemáticos 321 . Mas que realidade têm então aqueles indivisíveis
como o ponto, a linha e a superfície, que são admitidos por todos?
Segundo Ockham, eles não possuem nenhuma realidade positiva,
mas são puras negações. O ponto, por exemplo, não é um conceito
simples, mas um complexo, um conjunto de noções diversas. De-
senvolvido adequadamente, o conceito de ponto eqüivale a proposi-
ções deste gênero: uma linha se estende daqui até aqui, uma linha
não se estende além de certo limite322 .
Duhem julga muito precisa a análise de Ockham, a qual foi
de tal importância a ponto de dissipar muito preconceitos e de ori-
entar de maneira decisiva a ciência moderna, influindo sobre mate-
máticos do século XIX, que desenvolveram o tratado do cálculo in-
finitesimal323.

s1mphc1ter pnma, aha secunda, et aha tertm et s1c de111ceps,qma hoc necessano concluderet
totum compos1tum esse 111fimtumquanlltate ln eodem [cont111uo]non sunt mfimtae partes
totahter d1stmctae aequales et emsdem quant1tat1s secundum omnem d1mens1onem quarum
quaehbet secundum se cotam s1t exila aham, qma tunc, s1 ahqua esset pnma et a!Ia secunda
etc , tunc totum resultans ex eis necessano esset mfimtum» (lb1, q 71, Operei Ph1/osoph1ca VI,
pp 596-597)
121 Duhem, Le systeme , VII, pp 20-21 O texto ockham1sta mms claro a respeito é aquele do
Quodhbet 1,q 9 «Utrum lmea componatur ex punclls» (Opera Theolog1ca IX, pp 50-61)
,2 2 Tractatus de quantltate, q 1 «Hoc nomen 'punctus' aeqmvaleb1t toll 1su lmea tantae vel

tantae longitud1ms, s1ve lmea non ultenus p10tensa vel extensa, vel ahcm humsmod1 toll com-
pos1to ex ad1ect1vo et substantivo, vel ahcm tot1 compos1to ex nomme et verbo mediante com-
unct1011eet adve1b10» (Opera Theolog1w X, p 22)
121 Duhem, Le systeme , VII, p 27 Obse1ve-se que, embma negando a existência do~ md1v1-
síve1s, Ockham não nega que exista o 'mímmo natmal', ou séJa, uma pequena partícula tão pe-
quena, mms abmxo da qual uma substância não mais resiste às causas que a cmrnmpem Tal
'númmo natural', porém, é md1v1sível só em 1elação aos agentes natur.:11sde corrupção De

203
No que tange ao segundo aspecto do problema da infinidade,
aquele do infinitamente grande, unido estreitamente àquele do infi-
nitamente pequeno, pergunta-se inicialmente se a presença atual de
partes infinitas potencialmente separadas no contínuo não comporta,
como conseqüência, que tal contínuo seja infinito. Ao responder a
esta pergunta, Ockham reforça as teses por ele sustentadas ao tratar
da eternidade do mundo e da possibilidade de -diversos universos:
deve-se observar que o conjunto de muitos finitos não pode jamais
resultar no infinito.
As partes e as perfeições relativas que entram na composição
de um contínuo, sendo constitutivamente destinadas a compor um
corpo finito, não podem de modo algum dar lugar a algo de infini-
to324_
A problemática do infinito torna-se interessante pelas inova-
ções que Guilherme introduz no contexto da Escolástica, substanci-
almente alinhada sobre teses aristotélicas, segundo as quais não só
não é pensável que exista uma infinidade atual diversa de Deus, mas
exclui-se também a existência concreta de um infinito potencial.
Uma grandeza não é suscetível de um aumento ao infinito, porque
não pode superar os limites do universo que é finito. Nenhuma po-
tência, portanto, segundo Aristóteles, poderia realizar uma grandeza
que supere qualquer outra grandeza dada.
Guilherme é de parecer diferente. Afirma, de fato, que, por
grande que seja uma determinada forma, Deus sempre pode criar
uma maior e uni-la à precedente. Aristóteles errou neste ponto, por-
que, não admitindo nenhuma potência criadora, concebeu o mundo
como composto de toda a matéria possível, e julgando tal matéria
limitada. Mas uma potência criadora pode produzir sempre novos
indivíduos e sempre nova matéria, alargando sem limite os confins

fato, Deus podena anular a ação de tais agentes e d1v1d1ro mímmo natural em partes sempre
menores até o mfimto (ln I Sent, 17, 8. Opera Theolog1ca Ili, pp 563-564)
124 «L1cet m quohbet contmuo smt actuahter mfimtae partes et mfimtae perfect1ones quarum

nulla est aha, modo praed1cto, qma tamen omnes 1stae perfecttones sunt natae facere unam per-
fect10nem fimtam, 1deo non seqmtur quod conttnuum stt perfecuoms mfimtae» (Quaestwnes
vanae III [Quaest dtsp I], Opew Theolog,w Vlll, p 76) Cfr Quaestumes tn /1bros phys1-
wrum, qq 70-71 (Opera P/11/0.wpluw VI, pp 590-597)

204
do universo, como também pode acrescentar novas águas a uma
determinada quantidade de água, e assim ao infinito325 .
Portanto, é necessário estudar Aristóteles com atenção, para
determinar qual seja a exata noção que tinha de infinito. Os aristo-
télicos escolásticos do século XIII Julgavam que o conteúdo do con-
ceito de infinito do Estagirita fosse substancialmente aquele de natu-
reza perfeitíssima: Tomás de Aquino e Duns Scotus estavam con-
vencidos que Aristóteles havia demonstrado a impossibilidade de
uma grandeza infinita em ato, ou seja, de um infinito quantitativo
atual, mas que havia admitido a possibilidade de um infinito em ato
que esteja fora do âmbito da matéria.
De fato, santo Tomás sustentava que o motor imóvel de
Aristóteles é infinito, isto é, que possui uma plenitude sem limites de
ser, é perfeitíssimo em absoluto. Duns Scotus, por sua vez, de-
monstrava que a primeira causa eficiente é mfinita, aduzindo como
prova argumentos tomados de Aristóteles326 . Segundo o parecer de
Ockham, ambos os mestres estão errados ao julgar atingível racio-
nalmente o conceito de infinito, tal como vem entendido quando é
aplicado a Deus. Além disso, erram quando afirmam que Aristóteles
atribui ao motor imóvel uma potência infinita intensiva, uma infini-
dade em ato.
Os dois problemas estão estreitamente conexos entre si, mais
do que pode parecer à primeira vista. Guilherme está convencido
que filosoficamente se pode obter somente o conceito de infinito
potencial, de uma infinidade extensiva, que pode ser aquela de uma
potência que seja indefectível na duração e que produza um número
indefinido de efeitos. E tal é, a seu modo de ver, o conceito de infi-

m «Auctontas P h 1 I o s o p h 1 non est 1ec1p1endam hac parte, qma 1pse pomt saus par-
vum tenmnum talmm augmentab1hum Unde pomt quod esse! contrad1c110quod aqua augeret
ad quanutatem sphaerae 1storum infenorum generab1hum et co1rupt1b1hum Quod tamen non
est ponendum qma posse! Deus facere unum ahum mundum, 1mmo credo quod non posset fa-
cere tot mundos fimtos qum posse! facere plures Nec esse! contrad1ct10 quod ex ommbus 1lhs
aquis faceret unam aguam» (/11/ Sent, 17, 8, Opera Theolol{1ca Ili, p 567)
126 «Omnes anllqm ph1losoph1 attnbuunt mfimtum pnmo pnnc1p10, ut d1c1tur m III Phys1co-

rum» (Tomás de Aqumo, Summa theolol{llle, L 7, 1) Duns Scotus formula assnn o pnme1ro
argumento em favor da mfimdade de Deus «P11mamviam, ex parte causae, tang1t Ph1losophus
VIII Phys1corum et XII Metaphys1cae, quia movei motu mfimto, ergo habet potentiam mfim-
tam» (Ordmatw Swtl, 1, d 2, p 1, qq 1-2, ed Va!Icana, 11,p 189)

205
nito que Aristóteles aplica ao motor imóvel no livro VID da Física e
no XII da Metafísica: o primeiro motor dura por um tempo ilimita-
do e pode produzir uma infinidade de efeitos sucessivos; por isso é
infinito na extensão, mas não na perfeição. O sol e o fogo produzem
indefinidamente o calor, e o intelecto gera um número indefinido de
atos cognoscitivos, mas nem por isso atribui-se a eles uma infinida-
de intensiva. Da mesma maneira, também para o motor imóvel
deve-se falar de potência infinita somente no sentido de que pode
produzir um número infinito de efeitos327 .
Não obstante isto, a natureza de tal motor pode ser limitada,
finita em si mesma: produzir um número infmito de efeitos não si-
gnifica, de fato, produzir um mfinito em ato, porque todo o efeito
produzido toma-se finito e, somando-se o finito ao finito, não se
obtém o infinito328 • A interpretação ockhamista do conceito aristoté-
lico de infinito parece historicamente mais correta que as de santo
Tomás e Duns Scotus. Os estudiosos mais recentes de Aristóteles
afirmam, de fato, que segundo o filósofo grego, não se pode falar de
um infinito que exista em ato, mas somente de um infinito potencial:
o infinito não é aquilo, fora do qual não existe nada, mas aquilo que
tem sempre algo fora de si. Aristóteles concebe o infinito como liga-
do à quantidade e parece que não se haja jamais distanciado de seu
ponto de vista inicial. Também a potência infinita do primeiro motor
é tal somente em relação aos efeitos e, portanto, em relação à quan-
tidade: "A potência infinita atribuída ao primeiro motor no livro

127 «Ad pnmum 1storum nego consequentlam, qma antecedens est verum secundum mtent10nem
Philosoph1, et consequens falsum, qum 1pse non posmt pnmum motorem mfimtum m vigore,
sed solum probat mfimtatem secundum durat10nem sme fat1gat1oneet dnrunutlone v1rtutls mo-
ventls Ad probat10nem concedo quod potest producere success1ve mfimta Sed ultra d1co quod
habere potentlam ad producendum mfimta success1ve non est habere potentlam mfimtam, qma
s1c sol et s1m1hter angelus esset mfimtus, qma ute1que habet potentlam producend1 mfimta
success1ve» (Quodl III, q 1, Ope,a Theolog,w IX, p 203) A correta interpretação do con-
ceito de mfimto em Anstóteles é obJeto de toda a questão I 7 do Quodl,bet VII «Utrum de-
monstratlones Ph1losoph1,VIII Phys1corum et XII Metaphys1cae, concludant Deum esse mfim-
tum mtens1ve» (Opera Theolog,w IX, pp 766-774)
128 «D1co tamen quod P h 1 1 o s o p h u s per mfimtam mot10nem mtend1t probare quod

pnmum movens non est v1rtus fat1gab1hs nec defect1b1hs, quae per longam mot1onem potest
consumi, s1cut est de vlrtute cmpoiah Ideo solum probat v1rtutem mfimtam secundum durauo-
nem sme omm fat1gat1oneet perdltlone 1lhus v1rtut1s,s1ve etmm d1mmut1one» (Quodl. II, q. 2,
Opera Theo/og1w IX, p I 17)

206
VIII da Física (10, 266 a 12 ss.), para explicar a eternidade do mo-
vimento dos céus, não necessita de uma infinidade intensiva, mas
somente de uma infinidade de duração. Para a sucessão local e cro-
nológica de um mundo finito é suficiente um movente de perfeição
finita: a infinidade permanece toda da parte do efeito que se desen-
volve sem fim, conotando somente do exterior o ser do agente" 329•
Negando a demonstrabilidade filosófica da infinidade intensi-
va de Deus, Guilherme repropõe sua tese de fundo a respeito da ne-
cessidade de distinguir claramente o âmbito da razão daquele da fé.
A extensão do âmbito da razão coincide substancialmente
com a elaboração que Aristóteles fez do conceito de infinito:
Ockham introduz porém uma novidade na análise do infinito, ao
afirmar que o infinito potencial existe em ato, enquanto Aristóteles
fala dele somente em termos de existência sucessiva, ou seja, de um
processo ao infinito. Mas a novidade é tão só uma precisação da
doutrina aristotélica que deixa inalterada a substância do conceito
filosófico de infinito, como aquilo que não pode ser percorrido, por-
que é inexaurível na potência causal, ou na capacidade cognosciti-
va, ou na extensão.
É necessário e lícito ir para além de Aristóteles somente sob a
guia da onipotência teológica, isto é, quando sustentar uma tese fi-
losófica significa tr contra uma verdade revelada. Negar que a infi-
nidade intensiva de Deus seja adquirível racionalmente não é o
mesmo que dizer que .Deus não é infinito, mas eqüivale simples-
mente a dizer que a razão não está apta a atingir a infinidade inten-
siva, pois alcança somente a infinidade extensiva de Deus, como fez
Aristóteles.
Pelo contrário, negar que Deus possa fazer com que exista
concretamente um infinito potencial, excluindo que possa aumentar
ao infinito qualquer grandeza finita, significa negar que Deus seja

m A Popp1, Causahtà e mfimto nella srnola padovana dai 1480 ai 1513, Padova 1966, p
11 Cfr Leo Sweeney, L'mfi,u qua11t1tat1fchez A11stote, «Revue philosoph1que de Louvam»,
58 (1960), 505-528 M Tweedale chega às mesmas conclusões anahsando a crítica de Ockham
à prova com a qual Duns Scotus procurava demonstrar a mfimdade de Deus partindo da noção
de ser emmentíssuno (Quodl VII, q 21) Swtus a11dOckham 011the Jnfin,ty of the Most Enu-
nent Bemg, «Franc St », 23 (1963), 257-267

207
onipotente. De fato, Aristóteles não afirma que não se pode de-
monstrar que possa existir um número infinito de indivíduos, mas
diz que é absurdo que um tal número seja dado. Ora, dizendo-se que
um número infimto de indivíduos atualmente existentes é absurdo,
deve-se dizer também que uma verdade de fé - aquela que diz que
Deus pode produzir simultaneamente tudo o que pode ser produzível
- é um absurdo sob o plano filosófico.
Também neste caso, a verdade teológica da onipotência divi-
na nos obriga a avaliar melhor nossos conceitos de absurdo e de
contraditório, para ver qual é a extensão do horizonte daquilo que é
possível. É oportuno sublinhar ainda uma vez que a onipotência di-
vina não é tomada por Ockham como critério positivo para de-
monstrar uma verdade, mas opera como critério negativo, que serve
para desmantelar as afirmações filosóficas muito apressadas ou pre-
sunçosas. Ockham não cai jamais no erro lógico de usar uma verda-
de revelada, como a da onipotência divina, como elemento de de-
monstração de uma verdade filosófica: o princípio da onipotência
divina opera como um critério metodológico, no sentido que dele
provém tão somente um toque, para colocar em movimento uma
valoração mais acurada dos elementos que o intelecto deve operar
ao proceder na determinação da verdade. Pode-se dizer, noutras
palavras, que Ockham adotou a nível de argumentação filosófica o
ponto de vista LÜ possibilidade que aplica constantemente no plano
meta-empírico, sob o impulso da revelação. A justificação do prin-
cípio de possibilidade não é, contudo, pedida à teologia: trata-se tão
somente da rigorosa aplicação do princípio de não-contradição fora
dos esquemas e das leis próprias do determinismo físico e, como tal,
este princípio tem limites precisos, não permitindo, por exemplo,
deduzir a priori a ordem do mundo.
Para passar do horizonte da possibilidade àquele da realidade
fatual, deve-se proceder com método e análise empíricas, onde se
aplica o princípio de economia.
Como. ,;e pode facilmente deduzir das múltiplas aplicações
que Ockham faz do princípio de possibilidade, resulta que por pos-
sível ele entende aquilo que não é impossível de um ponto de vista
absoluto, ou seja, aquilo que não é contraditório que exista prescin-

208
<lindoda ordem atual das coisas. Enquanto o princípio de economia
regula a filosofia da natureza, na medida em que esta filosofia tem o
ofício de examinar os dados empíricos e organizá-los em uma ciên-
cia punctual, o princípio de possibilidade regula o saber filosófico
meta-empírico que, para Ockham, é igualmente legítimo e válido e
que é sustentado pela lógica do não-contraditório 330 •
A navalha ockhamista repele o recurso à pluralidade para a
explicação da experiência no sentido que a presença de uma deter-
minada coisa é critério suficiente e válido para explicar um determi-
nado fato da experiência. Mas é igualmente verdadeiro que o âmbito
da experiência, ao qual se aplica o princípio de economia, não é de-
finitivo, não exaure todo o real. Para além do empírico encontra-se
todo o possível, entendido como o não-contraditório na linha do ser,
e que, portanto, é um horizonte filosófico e não propriamente teoló-
gico.


3 Corvmo escreve a propósito «O pnncíp10 de economia, bem longe de ter um sigmficado
metafisico. é um simples cnténo pragmático Por consequência, o pnncíp10 de econolTilase co-
nexa com o empmsmo de Ockham e com sua concepção da md1v1duahdade do real, que se re-
vela de maneira imediata ao espínto humano Colocar como real aquilo que não é apreendido
pela expenência s1gmfica arquitetai construções falazes que não possuem a menor consistência,
nem possuem poss1b1lidadealguma de ve11ficação » (Le «Quaestwnes », p 24). Subscreve-
mos plenamente estas observações, mas gostmíamos de sublinhar o fato de que, se a navalha de
Ockham não possui nenhuma amplitude metafísica, contudo é verdade que para Ockham o
pnncíp10 da poss1b1hdadepossui tal amplitude Além disso, deve-se observar que o pnncíp10 de
econo1TI1a,exclumdo da realidade aquilo que não é empmcamente venficável, não nega de an-
temão a atnbuição da poss1b1hdade ou da existência possível àquilo que, embora não sendo
empmcamente venficável, goza contudo de uma não-contranedade positiva no plano lógico

209
VII

A PSICOLOGIA

1. A natureza do homem

Ockham afirma que duas são as definições possíveis de ho-


mem, a definição física e a metafísica. O físico, isto é, aquele que
elabora uma filosofia da natureza, tal como Aristóteles lhe traçara
as linhas, define o homem como "uma substância composta de um
corpo e de uma alma intelectiva", enquanto o metafísico o define
como um "animal racional", ou como uma "substância animada
sensível".
Embora tratando-se de definições reais e não nominais, pois
fazem uso de termos absolutos e não conotativos, as duas definições
são distintas entre si. De fato, enquanto na definição metafísica to-
dos os termos estão no nominativo (in recto), na definição física os
termos que designam as partes essenciais estão em caso oblíquo.
Com a segunda definição, o metafísico não apela a nenhuma outra
realidade que não seja aquela defm1da: os termos da definição, que
exprimem o gênero e as diferenças (animal rationale, substantia
animata sensibile), exprimem as partes essenciais da realidade defi-
nida, mas não supõem por ela, isto é, os termos não servem como
substitutos daquelas partes, mas de todo o composto. Na definição'
do físico, ao contrário, os termos que designam as diferenças expri-

211
mem as partes essenciais da realidade definida e estão em lugar
dela 331 .
Ambas as definições são porém insuficientes e Ockham evi-
dencia-lhes os limites do ponto de vista lógico com quatro observa-
ções. Antes de mais nada, estas definições são proposições contin-
gentes e, como tais, estão sujeitas às condições de serem verdadeiras
somente supondo-se que existam realmente homens. De fato, no
caso em que não existisse nenhum homem, a afirmação contida na
definição seria falsa.
Em segundo lugar, tais definições não são capazes de fazer
ver como o homem pertença essencialmente a duas ordens: mediante
o corpo, a alma sensitiva e a capacidade de conhecer, o homem está
inscrito no domínio da necessidade, próprio da ordem natural, en-
quanto, pelo fato de ser dotado de vontade, pertence ao reino da li-
berdade. Os dois componentes, ou seja, a necessidade e a liberdade,
são fundamentais e complementares para uma compreensão global
do homem. As definições precedentes dão a conhecer uma outra coi-
sa importante, isto é, não revelam que, além do corpo e da alma in-
telectiva, existem no homem uma forma da corporeidade e uma
alma sensitiva, a qual é distinta tanto da alma intelectiva, quanto da
forma da corporeidade.
O último limite das definições precedentes é aquele de não as-
sinalar a presença de humores no homem. Seguindo a antiga tradi-
ção ligada à medicina, Ockham atribui à carne diversos humores
que se desenvolvem em maneira natural e exercem um notável in-
fluxo no porvir da alma. Os humores coincidem substancialmente
com a fomites peccati que seguiu-se à culpa original, tornando-se

"'«S1 definiam hommem s1c 'homo est substantm compos1ta ex corpore et amma mtellecl!va',
1sta est defin1t10 naturahs, et 1sll te1m1m obhqm 'corp01e' et 'amma mtellect1va', expnmunt
partes rei ln defimllone metaphys1cah non pomtur ahqms tenmnus m obhquo, sed genus po-
mtur m recto et s1m1hter d1fte1entme expnmentes partes essentmles rei defimtae Exemplum
1sta defimtto hom1ms ·ammal rat1onale' est metaphys1cahs, s1m1hter 1sta 'substanua ammata
sens1b1hs', ub1 mnnes term1m ponuntur m recto Et quamv1s tales d1fferentme praed1cantur m
1ecto de defimto, tamen expnmunt partes essenllales 1e1 defimtae, non tamen supponunt pro tlhs
part1bus sed piaec1se p10 toto compos1to ex 1lhs part1bus, s1cut 'album' expnm1t albedmem, non
tamen suppomt pio albedme sed tantum pro sub1ecto ems D1fte1entmeautem pos1tae m defim-
llone naturah expnmunt partes e.<.sentJalesdefüull et pro 1lhs supponunt» (Quod!tbet V, q 15,
Opera TheoloKtW IX, pp 539-540)

212
como que uma qualidade da carne a inclinar o apetite sensitivo para
·
atos pecammosos· 332
· .
Para serem completas, as definições física e metafísica do
homem deveriam compreender explicitamente o gênero e tantas dife-
renças quantas são as partes essenciais do homem. Uma defmição
metafísica completa do homem poderia, por exemplo, ser a seguinte:
o homem é uma substância matenal, sensível, racional. Com o ter-
mo substância é indicado o gênero, e com os outros três termos in-
dicam-se respectivamente a matéria, a alma sensitiva e a alma inte-
lectiva333.Como observamos mais de uma vez, segundo o pensa-
mento de Guilherme os indivíduos pertencentes a uma mesma espé-
cie não são compostos por uma natureza específica comum e por
um princípio que tornaria indivídua esta natureza, pois o indivíduo é
o que é em todas as suas partes. Segue-se disso que entre termos
como humanidade e homem não existe nenhuma diferença: ambos
significam igualmente uma mesma coisa, como acontece entre os
termos Sócrates e socratidade. Trata-se de sinônimos a exprimirem
uma mesma realidade, embora com nuances diversas. O termo ho-
mem designa uma natureza composta por um corpo e uma alma in-
telectiva, que se 'sustenta' por si mesma, isto é, que subsiste por si.
O termo humanidade significa mais uma natureza composta de um
corpo e uma alma intelectiva, sem especificar se tal natureza é sus-
tenta por algum composto334 .

mQuodl lll, q 13 (Ope,a Theo!og1w IX, pp 251-253). /n /Se/li, 5 (Opera Theolog1w VI,
·PP 149-153) Cfr E Hochstettet, Viato1 mu11d1 E1111geBeme1ku11gen zur S1tuatwn des
Menschen be, W von Ockham, «F1a11z St », 32 ( 1950), 4-6
'''Summa loi:1we, I, 26 (Ope111P/11/o\{}p/11w1, p 84) Ockham exclm que seJa possível tam-
bém uma terceira defimção, a lógica «Et 1deo t1uffat1cum est 11ludquod d1cu11t a 1 1 q u 1
quod hormms quaedam est defimtto log1cahs, quaedam 11aturahs,quaedam metaphys1cahs, qma
logicus cum 11011 ttactet de homme, eo quod non tractat de 1ebus quae non sunt s1gna, non habet
hommem defimre, sed habet docere quomodo ahae sc1enttae tractantes de horm11etpsum defim-
re debe11t»(lb1dem, Opera P/11/0\()plura I, pp 85-86)
114 «Hoc emm nomen 'humamtas' mhtl s1g111ficat ms1 naturnm unam compos1tam et corpore et
amma mtellecuva, non connotando quo<l 1sta naturn sustentetur ab ahquo suppos1to, puta a per-
sona dtvma Homo est naturn composlta ex co1pote et amma mtellecuva, a nullo suppostto
sustentata, vel est ahquo<l suppos1tum talem naluram cmnpos1tam ex corpore et amma mtellec-
t1va sustentans» (Summa log1we, 1, 7, Ope111P/11/osoph,w 1, p 25) Apresentamos aqm, para
claieza, a acepção ockham1sta de 'supposltum', que tetomaremos mms à frente «suppos1tum

213
Destes esclarecimentos prelimmares emerge uma preocupa-
ção constante do pensamento ockhamista com relação à concepção
do homem, o que o conduz às raízes franciscanas de sua especula-
ção: no homem existe uma pluralidade de formas, compreendendo a
alma intelectiva, a alma sensitiva e a forma da corporeidade335 .
Sem dúvida, é difícil demonstrar que a alma sensitiva e a in-
telectiva são distintas no homem, visto que tal distinção não é obtida
de propósições evidentes. Contudo, Ockham se esforça para elabo-
rar uma prova da distinção real entre elas, voltando-se para a expe-
riência: é manifesto que o homem pode desejar uma coisa com o
apetite sensitivo, enquanto ao mesmo tempo pode recusá-la com a
vontade racional. Ora, o ato com o qual um sujeito aceita uma coisa
e o ato com o qual ele recusa sempre a mesma coisa, são dois con-
trários, e como é impossível que no mesmo sujeito residam simulta-
neamente dois contrários, torna-se necessário admitir que os dois
atos pertencem a dúas formas distintas, que são precisamente a
alma sensitiva e a intelect1va336 .
No que tange a distinção entre alma sensitiva e forma da cor-
poreidade, Ockhám admite novamente que se trata de algo dificil-
mente demonstráveJ de maneira apodítica. Todavia, é afirmada
como conseqüência· da concepção que Ockham tem da matéria.
Tendo recusado considerar a matéria como pura potencialidade e
tendo-lhe atribuído constantemente uma certa consistência ontológi-
ca proveniente de uma-forma possuída de maneira própria, o Vene-
rabilis Inceptor elabora uma visão coerente do composto humano. O
corpo do homem, como ~quele dos demais viventes, que é matéria
com relação à alma, possui uma atualidade própria, isto é, uma
forma própria, mdependente da alma, e de tal forma o corpo deriva

est ens completum, non constituens ahquod ens unum, non natum alten mhaerere, nec ab ahquo
sustenllfican» (/11I Sent, 23, umca, Opera Theolog1<llIV, p 61)
mCfr Quodl II. IO (Opern Theolog1w IX, pp 156-161), /11li Sent, 18 (Opera Theolog,w
V, p 407)
l 16«Imposs1b!le est quod m eodem sub1ecto smt ~11nulcontrana. sed actus appetendt ahqmd et
actus renuend1 idem m eodem sub1ecto sunt contlana, 1g1turs1 smt sunul m rerum natura, non
sunt m eodem sub1ecto, 5ed mamfestum est quod sunt sunul m homme, 11ludidem quod homo
appettt per appetttum sens1Uvu111,1enuit pe1 appetltum mtellecttvum» (Quodl II, q 10, Opera
Theolog1w IX, p. 157) Cfr ln IV Senf, 9 (Ope1ll Theolo1wa VII, pp 161-165)

214
a natureza de organismo apto a unir-se a uma substância espiritual.
A prova que Ockham dá da verdade desta tese é semelhante àquela
apresentada por Duns Scotus ao procurar estender a todos os seres
viventes a tese de Henrique de Gand referente à presença de uma
forma de corporeidade no composto, em virtude da qual os cadáve-
res de um homem ou de um animal conservam sua fisionomia ou
mantêm seus traços fisionômicos característicos, que os impedem de
serem confundidos com um outro cadáver 337. Ora, isto não acontece
em virtude da matéria-prima, a qual não está apta a fungir como
suposto de acidentes separáveis, e sim em virtude da forma da cor-
poreidade, isto é, daquele princípio que permite ao corpo de cada
vivente de possuir unidade e características particulares, que perdu-
ram por algum tempo, mesmo depois da morte338 • Ockham recorre
também ao tradicional argumento teológico, segundo o qual deve-se
postular a forma da corporeidade para poder explicar a identidade
numérica do corpo vivente e do corpo morto de Cristo339 •
A alma sensitiva, extensa e material, entra na forma da cor-
poreidade simultaneamente com a chegada da alma intelectiva, isto
é, quando surge verdadeira e propriamente o homem.
Para delinear o quadro exaustivo dos componentes da nature-
za humana, falta examinar agora o que se deve entender por alma
intelectiva, isto é, definir qual seja sua natureza.

2. Impossibilidade de demonstrar a espiritualidade e


a imortalidade da alma

À pergunta a respeito da natureza específica da alma intelec-


tiva, os pensadores cristãos que precederam Ockham haviam dado

111Ordmatw Scot1, IV, d1st 11, q. 3, n 27, ed Vives, XVII, pp 397 ss


" 8 «Mortuo homme s1ve bruto ammah, remanent eadem acc1dentm numero quae pnus; 1g1tur
habent idem sub1ectum nume10 Consequentla patet, qma acc1dens naturahter non rrugrat a su-
b1ecto m sub1ectum, sed illud sub1ectum non est matena pnma, qma tunc matena pnma 1mme-
dmte rec1peret acctdentm absoluta, quod non v1detur verum, 1gitur remanet ahqua forma prae-
cedens, et non sensitiva, 1g1turcorpore1tas» (Q11odl II, q 11, Opera Theolog,w IX, p 162)
119 Ib1 (Opera Theo/og1ca IX, pp 163-164) ·

215
respostas diversas, mas que possuíam um mínimo denominador co-
mum. Para além das divergências entre os mestres que se inspira-
vam no agostinismo e os seguidores do aristotelismo, e antes do
aparecimento do averroísmo latino, os pensadores medievais esta-
vam concordes em afirmar que a alma intelectiva é de natureza espi-
ritual e é forma do corpo. Segundo os mestres da linha agostiniana,
a alma é forma do corpo e é ao mesmo tempo uma substância espi-
ritual autônoma (forma et hoc aliquid); segundo os tomistas, em
vez, a alma é simplesmente a forma substancial do corpo.
Nosso autor distancia-se de tal base comum a todos seus pre-
decessores. Para responder à pergunta se a alma intelectiva é a for-
ma do corpo, Ockham julga oportuno fazer algumas colocações
preliminares. Antes de mais nada, pergunta-se se poderíamos ter
conhecimentos intelectivos, mesmo se a alma não fosse forma do
corpo. A resposta a ser dada é claramente afirmativa, precisando ele
que, na linguagem comum, atribuem-se ao homem operações ou
qualidades também sobre as bases de uma relação extrínseca, se-
melhante àquela entre motor e movido. Nós dizemos, por exemplo,
que alguém é remador ou sapador porque move o remo ou a enxada
respectivamente, e não porque o remo ou a enxada sejam seus cons-
titutivos formais. Do mesmo modo, poderia dar-se que o homem
entenda mediante a alma intelectiva, sem que esta seja uma sua
forma intrínseca 340 .
Se, porém, por alma intelectiva entende-se uma forma imate-
rial e incorruptível, presente toda em todo o corpo e em cada uma de
suas partes, Ockham julga que não podemos demonstrar baseados
somente na razão ou na experiência que uma tal alma exista em nós,
nem que a atividade de nosso intelecto pertença a uma substância
deste gênero, nem, enfim, que a alma assim entendida seja a forma

"º «Utrum possemus mtelhgere per ammam mtellecuvam quamv1s non esset forma corpons
V1detur quod s1c, qma multa attnbuuntur um 1e1proptt:r aham per commumcauont:m 1d1oma-
tum, quae nec est matena nec forma nec pars ems S1cut d1c1musahqu1d attnbm alten propter
mstrumentum, propter vesllmentum et s1m1ha, quemadmodum d1c1mus 1stum hommem esse
renngatorem a remo vel fossorem, et 11lumd1c11nusvesutum et calceatum et armatum, et d1c1-
mus quod 11lehomo tet1g1tahum qma panm sm tetlgerunt vel arma sua» (Quodl I, q I O, Ope-
ra Theolog1w IX, p 63).

216
do corpo humano. A autoridade de Aristóteles neste ponto não é de
auxílio, porque ele fala sempre de uma tal forma de maneira dubita-
tiva341.Nós não experimentamos em nosso íntimo a presença de
uma forma imaterial e incorruptível; sequer podemos demonstrar
que os atos intelectivos dos quais temos experiência sejam atos de
uma tal forma, isto é, não somos constrangidos por alguma forma
de necessidade a atribuir estes atos a uma forma imaterial: intelec-
ções ou volições poderiam derivar muito bem de uma forma do cor-
po que seja extensa e corruptível. E mesmo que estivéssemos em
condições de provar que os atos intelectivos e volitivos experimen-
tados por nós são atos de uma substância imaterial, nem então esta-
ríamos em condição de dizer se tal substância se une ao corpo como
forma antes que como motor342 .
Não se podendo demonstrar a existência no homem de uma
forma espiritual; não se poderá demonstrar também a sua imortali-
dade. Somente através da revelação é dado conhecer que o homem
possui verdadeiramente uma alma espiritual e, por conseqüência,
imortal.
Tomada em separado, a conclusão de Ockham relativa à in-
demonstrabilidade da imortalidade da alma humana pode fazer pen-
sar que exista um acordo substancial entre Guilherme e Duns Sco-
tus, pois este havia ensinado que não é possível elaborar argumentos
filosóficos capazes de demonstrar de modo apodítico que a alma so-
brevive ao corpo. Porém, não obstante a proximidade em um ponto
conclusivo, as duas concepções de alma são muito diversas. Antes

' 41 «lnte!hgendo per 'ammam mtellecuvam' fo1mam 1mmatenalem, mcorruptibtlem quae tota
est m toto corpore et tola m quahbet parte, nec potes! ev1denter sem per rauonem vel per expe-
nentrnm quod talis forma sll m nob1s, nec quod mtelhgere tahs substantiae propnum s1t m no-
b1s, nec qÚod tahs amma sll forma corpons, - qmcqmd de hoc sensent P h 1 1 o s o p h u s
non curo ad praesens, qma ub1que dub1tat1ve v1detur loqm -, sed 1sta tna sola cred1mus»
(Ib,dem, Opera Theolog,ca IX, pp 63-64)
' 42 «Concederei seguens naturalem iat10nem quod expenmur mtellecuonem m nob1s quae est
actus formae corporeae et corrupt1b1hs, et d1ceret consequenter quod tahs forma rec1p1tur m
forma extensa Non autem expenmur 11lammtellect10nem quae est operauo propna substantrne
1mmatenahs, et ideo per mtellectlonem non conclud1mus 11lam substanuam mcorrupub!lem
esse m ommbus tamquam fomiam Et forte s1 expenremur 11lammte!lectionem esse m nobis,
non possemus plus concludere ms1 quod ems sub1ectum est solum m nob1s s1cut motor, non au-
tem s1cut forma» (lb1dem, Opera Theolog,ca IX, p 65)

217
de tudo, Duns Scotus, de acordo com todos os teólogos de seu tem-
po, ensina que a alma é uma substância espiritual, e que se une ao
corpo como forma substancial. Para Scotus, a impossibilidade de
demonstrar a imortalidade deriva de seu modo característico de en-
tender a união das duas formas, isto é, da forma corpórea com a
forma vital, no interior do composto humano343 . Ockham, pelo con-
trário, afirma que não se pode demonstrar nem a espiritualidade da
alma, nem que ela se une ao corpo como forma substancial. Destas
afirmações provém, a modo de corolário, a impossibilidade de de-
monstrar que a alma sobrevive ao corpo. A explicação é muito im-
portante do ponto de vista histórico, visto que coloca em evidência
uma diversidade de metodologia crítica e de interesse filosófico en-
tre os dois autores, e revela melhor o contexto no qual se move a re-
flexão filosófica de Ockham. De um lado, o Venerabilis Inceptor re-
duz constantemente o número das verdades atingíveis apodítica-
mente ou que resistem a uma cerrada triagem empírica, enquanto,
de outro lado, está pronto a manter tais verdades inscritas no hori-
zonte teológico344 . Teologia e filosofia não podem, pois, ser levadas

341Cfr. Ordmatw Sum, IV, d1st 43, q 2, n 16. ed Vives, XX, pp. 49 ss. Sobre o argumento,
veJa-se Bettom, Duns Scoto , pp 138-142
' 44 A exclusão da 1mortahdade da alma do número das verdades demonstráveis apod111camente
(observe-se bem a exclusão somente da 1mortahdade, e não da espmtuahdade da aJma), não fm
colocada, pela pnme1ra vez por Ockham Quase todos os pensadores da escola franciscana, e
em particular AJexandre de Hales, João de la Rochelle, Eudes R1gaud, Gmlherme de Ware,
Mateus de Acquasparta, haviam sustentado a mdemonstrab1hdade da 1mortaJ1dade da alma
VeJa-se a propósito S Vanm Rov1gl11,l'mmwrtahtà dell'anima ne, maestrt franiescan, dei
seco/o XIII, Milano 1936 Nos tempos de Ockham, enquanto Francisco das Marcas voltava a
propor a solução de Duns Scotus, Ped10 Auréolo, comentando as Sentenças em Pans, nos anos
1316-1318, afastava-se da hnha comum à escola franciscana em alguns particulares. segundo
Auréolo, pode-se demonstrar que a alma é forma do corpo no senlldo de que ela é uma parte es-
sencial do homem, e mesmo a parte pnnc1pal, mas não se pode demonstrar que a alma é forma
como o são as outras formas, isto é, no sentido que se une ao corpo assim como uma outra for-
ma qualquer se une à maténa Noutras palavras, não se pode provar que a alma seJa aquilo que
faz com que a maténa se tome um corpo humano Auréolo declarava-se todavia disposto a
aceitar pela fé aquilo que a seu modo de ver não se pode alcançar pela via de demonstração
Estava disposto, portanto, a subsc1ever a fonna conc1har de que a alma é forma do corpo «vere
ac per se», que se reporta à maténa informada, como todas as demais formas Cfr Pedro Auré-
olo, ln li Sent , d 16, q l-2 Uma anáhse da questão é feita por A Bald1ssera, la deu.mme
dei Conc,lw d, V1enne (1311) «Substantta mwnae ratwnal,s ,eu mtellect1vae vere ac per .,e
humam iorpon., forma» nell'mterpreta:uone d, un umtemporaneo, «R1v1sta d1 filosofia neo-
scolastica», 34 (1942), 212-232

218
a um acordo, no sentido de uma convergência entre as demonstra-
ções racionais e as verdades assumidas da revelação, como o havia
afirmado santo Tomás a respeito dos preambulafidei.
No campo das doutrinas psicológicas surge espontaneamente
a tendência de aproximar Ockham dos averroístas, que foram os
únicos, entre
, os pensadores cristãos, a negar explicitamente a possi-
bilidade de demostrar com argumentos filosóficos que a alma inte-
lectiva é forma do corpo, e a colocar a imortalidade pessoal entre as
verdade conhecidas só pela via da fé. A aproximação à psicologia
averroísta é sugerida por um passo do próprio Ockham, no qual se
pergunta se é possível demonstrar rigorosamente que não existe um
único intelecto para todos.
A resposta merece uma leitura atenta, para evitar mal-
entendidos. Guilherme observa de início que há diversos modos de
entender o que seja o intelecto único. De um primeiro modo, pode-se
falar de um único intelecto, tomando-o como a forma do corpo hu-
mano, ou como a potência que se encontra na origem de nossos co-
nhecimentos. Ora, prossegue Ockham, afirmar que o intelecto é úni-
co quando entendido deste modo, significa cair em uma flagrante
contradição: na verdade dever-se-ia dizer conseqüentemente que o
intelecto é ao mesmo tempo sábio e ignorante, que ama e odeia, que
concorda e discorda, com relação às quahdades e á atividade inte-
lectiva dos diversos homens345 .
Portanto, Ockham refuta com absurda a posição de Averróis
e de seus sequazes, que haviam adaptado a definição aristotélica de
alma como forma do corpo à tese deles da unicidade do intelecto
possível, e haviam concluído que a alma intelectiva é forma do cor-
po 'de maneira equívoca', isto é, não do modo com o qual as outras
formas informam a matéria. Além disso, haviam atribuído ao inte-

' 45 «lntellectum
esse m nob1s potest mtelhg1 duphctter u n o m o d o quod stt forma cm-
pons vel potentm qua mtelhg1mus, a 1 1 o m o d o , quod s1t pnnc1pmm movend1 m nob1s
quocumque motu» (Quod/ I, q 11, Ope1a Theolog,w IX, p 66) Tomando-se o mtelecto se-
gundo a pnmena acepção, «potes! ev1denter proban quod non est unus mtellectus numero m
ornmbus, qma 1mposs1b1leest quod idem snnul et semel s1t sc1ens et 1gnorans idem, d1hgens et
od1ens idem, gaudens et dolens de eodem, assentlens et d1ssent1ensrespectu emsdem» (Ibidem,
Opera Theologlla IX, p 68)

219
lecto único a capacidade ativa de conhecimentos universais, afir-
mando que tais conhecimentos podem dizer-se próprios de cada ho-
mem individual, enquanto se realiza uma união íntima entre os fan-
tasmas do conhecimento sensível humano e o próprio intelecto pos-
sível único, através da espécie inteligível. Ao refutar estas duas po-
sições averroístas, conexas entre si, Ockham reafirma sua vontade
de seguir o Aristóteles verdadeiro, purificado das contaminações
dos escolásticos árabes e latinos, e para tanto tem que desmentir
solenemente Averróis346 .
A crítica de Ockham à posição averroísta demonstra ainda
uma vez como ele não quer filiar-se a nenhuma escola que não seja
a de Aristóteles, que, em última análise, coincide com a razão pura.
Por este motivo, como teremos ocasião de mostrar a seguir, há uma
profunda diversidade entre a posição de Ockham e a dos averroístas
também ante a indemonstrabilidade racional do dado revelado.
Na questão 11 do primeiro Quodlibet há uma tomada ulterior
de posição, digna de nota, nos confrontos das teses averroístas, ao
observar que há um segundo modo de entender o intelecto único
para todos os homens: aquele de concebê-lo como o motor que pre-
side a qualquer movimento nosso. Se o intelecto é entendido como
um motor, observa ele, torna-se difícil excluir que seja único para
todos os homens. Deve-se, porém, observar que tal motor é supér-
fluo porque, com base na experiência, resulta que, para explicar
cada movimento nosso, tanto local como de alteração, bastam as
disposições de nosso organismo e os nossos atos de conhecimento e
de vontade347 .
Destas afirmações resulta claro que Ockham está convencido
que experimentamos a existência dos atos do intelecto e da vontade,
mas que está também convencido que não é necessário atribuir tais
atos a um motor separado do corpo, tal como antes havia dito que
não é necessário atribuir estes atos a uma forma imaterial ou alma
espiritual.

' 46 «Ad p r I n e I p a I e , nego Commentatorem, guia erravlt m hac parte s1cut m mult1s»
(Ibidem, Opera Theologtw IX, p 68)
' 47 /btdem

220
Resumindo: Ockham não diz que não possuímos uma alma
espiritual e imortal; afirma simplesmente que não somos capazes de
demonstrar racionalmente que a possuímos. Enquanto a filosofia
não está apta a pronunciar-se, a fé afirma que todo homem é dotado
de uma forma espiritual e imortal. Portanto, estamos certos que as
coisas são assim. Neste sentido, Guilherme propõe um modo de en-
tender as relações entre fé e razão, diverso daquele dos averroístas.
Estes sustentavam que a nível filosófico é possível demonstrar apo-
diticamente a verdade de algumas afirmações que são negadas pela
revelação, como, por exemplo, que a alma intelectiva não é forma
substancial do corpo.
A posição de Ockham é muito diferente. Como a respeito dos
atributos divinos ele sustenta que não se pode demonstrar filosofi-
camente a unicidade de Deus, sua onipotência, a infinidade, a cria-
ção, etc., assim, a nível de psicologia, afirma que a espiritualidade
da alma, sua presença no homem como -forma do corpo, e sua
imortalidade, não são demonstráveis racionalmente. O fato de tra-
tar-se de teses não demonstráveis não significa ipso facto que de-
vam ser recusadas: racionalmente não se pode provar nem mesmo o
seu contrário348 .
Neste caso, como em todos os casos análogos, nos quais a
filosofia se cala, não há senão uma única verdade, aquela da fé ca-
tólica, à qual os decretos do concílio de Vienne ( 1311) acrescenta-
ram uma explicitação importante, a ponto de pôr fim às controvér-
sias dos teólogos, definindo que a alma intelectiva ou racional do
homem é "verdadeiramente, por si e essencialmente, a forma do
corpo" 349 • Os motivos histórico-teoréticos que balizam as conclu-
sões ockhamistas a nível de psicologia, devem ser proçurados em
sua posição de crítico sem prevenções, que mantém firmes suas
convicções teológicas e que junto a isso faz uso rigoroso da navalha

' 4 H Abbagnano esc1eve que Ockham «chega, p01s, sem mais à negação de toda alma mtelecuva,
entendida como fonna substancial, que seJa o substrato das atividades espmtums » (Gugltelmo
d1 0<-kham,p 271) Na 1eahdade, Ockhmn Imuta-se a negar a poss1b1hdade de demonstrar a
existência de uma tal alma, embora não negue que exista
149 Denzmger-Schonmetzer, E11li1111dum Symbo/orum, Fre1burg 1m Bre1sgau 1965, n 902, p
284

221
no que se trata da verificação externa e interna. Fé e razão não se
encontram na situação de chegar á um acordo tal que permita à te-
ologia de ser uma ciência: a chave para compreender a negação
ockhamista da demonstrabilidade das realidades de fé, negação con-
tida na afirmação já mais vezes recordada, que uma verdade de fé
não pode tornar-se jamais objeto de demonstração, tal chave encon-
tra-se na oposição dele à adaptabilidade do conceito de ciência no
campo da fé. Isto porém, convém repeti-lo, não coloca em discussão
as próprias realidades, tal como a indemonstrabilidade de muitos
fatos da experiência não comporta a afirmação de que eles não
existam.

3. Intelecto e vontade

Vimos como Ockham sustenta a pluralidade de formas no


interior do composto humano, afirmando a existência de uma forma
da corporeidade, de uma alma sensitiva e de uma alma intelectiva.
Embora sustentando tal pluralidade, Guilherme recusa admitir uma
distinção real entre as faculdades de uma determinada forma, isto é,
afirma que se existe uma alma sensitiva, ela é, sem dúvida, distinta
da intelectiva. Mas, com relação às assim chamadas potências da
alma sensitiva, não é necessário concebê-las como realmente dis-
tintas da própria forma.
Contudo, é preciso esclarecer o modo como se deve entender
tais P?tências. Se por potências da alma sensitiva se entende tudo
aquilo que é exigido como causa parcial de qualquer ato vital, é ne-
cessário dizer que as faculdades sensitivas são distintas da alma
sensitiva e são distintas também entre si: de fato, as disposições aci-
dentais exigidas necessariamente para que se dê o ato de ver, são
realmente distintas das disposições exigidas para o ato de ouvir, po-
dendo mesmo acontecer que alguém perca a capacidade de ver, mas
não a de ouvir. Se, porém, por potências da alma sensitiva entende-
se aquilo que na alma é causa parcial dos diversos atos de sensação,
então é preciso dizer que não há alguma distinção real entre a alma
e suas potências, nem entre as potências mesmas. Por princípio de

222
economia, não é necessano recorrer às faculdades correspondentes
aos diversos órgãos do sentido, visto que a alma sensitiva, que se
estende por todo o corpo e opera através dos órgãos do sentido,
basta por si só para explicar as sensações 350 .
Também a nível de alma racional não se propõe uma distin-
ção entre a alma mesma e suas faculdades, nem entre cada uma das
faculdades: dizer intelecto não significa nada mais que dizer alma
racional, enquanto esta é capaz de entender, e dizer vontade signifi-
ca dizer a alma enquanto quer. Entre intelecto e vontade não existe
qualquer distinção. O intelecto não difere da vontade mais que Deus
difere de Deus e Sócrates de Sócrates. Trata-se de dois termos di-
versos para designar a mesma alma que pode emitir atos distintos
entre eles, de intelecção e de volição. A diversidade dos atos não
comporta uma diversidade real dos princípios ou faculdades destes
atos. Pelo princípio de economia deve-se admitir uma única alma,
da qual procedem diversos atos. Além disso, tais distinções acabari-
am por lesar a simplicidade própria da alma intelectiva, quer se
trate da distinção real proposta por santo Tomás, quer da distinção
formal apontada por Scotus 351 .
Ockham afirma, pois, a real identidade entre intelecto e von-
tade, enquanto, de outra parte, mantém firme a multiplicidade das
formas substanciais. Por isso, pergunta-se como ele concebe a pes-

Nl «Potentm ammae potest duphctter acc1p1 uno modo pro omrn necessano reqms1to ad quem-
cumque actum v1talem tamquam causa partrnhs Aho modo pio 1110praec1se quod se tenet a
parte arnmae ehc1ent1stanquam p1111c1p1um paitmle» (ln Ili Sent, 4, Opera Theolog1w VI, p
135)
' 51 ,dntellectus non plus d1st111gu1tur
a voluntate quam ab mtellectu, vel quam Deus a Deo, vel
Sortes a Sorte, qma nec d1st111gmtura voluntate 1e nec rat1one, sed s1cest una substantia arnmae
potens habere d1st111ctosactus ratlone respectu quorum potest habere diversas denommatlones
qma ut ehcll vel ehcere potest actum 111telhgend1d1c1tur mtellectus, ut actum volend1 d1c1tur
voluntas» (ln li Sent, 20, Opera Theologica V, p 436) O p10blema das relações entre a alma
e suas potêncms, que hoje, para nós, pode pmece1 de somenos 1mportâncm, f01 objeto de mmtas
discussões nos séculos XIII e XIV A gênese h1stónca da problemática deixa-se 1econduzir às
tentativas de conc1har a concepção agostmmna de alma com a anstotéhca Paulatmamente deu-
se maior espaço às 11nphcaçõesteóncas da contrové1s1a, sendo a pnme1ra delas a da liberdade
se não se consegmsse leg1t1mai uma concepção de vontade como potência realmente d1stmta do
mtelecto, sena mmto d1fíc1lresolver o p1oblema das escolhas hvres que cada pessoa expen-
menta fazei, bem como o problema conexo, a 1espe1toda poss1b1hdade de a vontade não seguu
as d!fetlvas do mtelecto

223
soas humana, isto é, quais são os elementos que permitem a ele sal-
vaguardar a unidade do composto humano.
Inicialmente é sublinhada a distinta tomada de posição com a
qual Ockham estabelece"que o ser do homem, em sua totalidade, é
um só, mesmo se se fala de diversos seres parciais 352 . -

E se examinamos as definições de pessoa, vemos que Gui-


lherme caracteriza a esta como uma natureza intelectual completa,
como uma substância autônoma, que não está destinada a entrar
como parte constitutiva de um todo353 . Estes requisitos explícitos
demonstram que não podem ser chamados pessoas os seres não' do-
tados de sensibilidade e os desprovidos de racionalidade, e ainda que
não podem ser chamadas pessoas a alma intelectiva por si mesma, a
qual está destinada a ser uma parte de um todo substancial, e nem
mesmo a natureza humana assumida pelo Verbo, porque vem sus- 0

tentada pela pessoa divina.


Para sublinhar a unidade da pessoa humana na concepção
ockhamista, Copleston insiste em uma definição sucinta, mas signi-
ficativa que Ockham dá em um outro lugar: a pessoa é um supósito
intelectual354 . Além da definição já recordada de supósito, contida
no Comentário às Sentenças, Guilherme oferece uma análoga no
quarto Quodlibet, onde o supósito vem definido como "um ente
completo que não é comunicável por identidade, não está apto a en-
contrar-se em um outro ser e não é sustentado por um outro sujei-
to"355.Enquanto as palavras 'ente completo' excluem do supósito a
presença de partes ou de seres parciais, como a alma separada do
corpo, a forma ou a matéria, as palavras 'incomunicável por identi-
dade' excluem que a essência divina seja um supósito, visto que tal
essência, embora sendo indubitavelmente um ser completo, é comu-
nicável às três pessoas divinas. Além disso, dizendo que o supósito

152 Quodl II, q 10 (Opera Theologna IX, pp 156-161)


151 «Persona est natura mtellectuahs completa quae nec sustent1ficatur ab aho, nec est nata face-
re per se unum cum alw s1cut pars» (/11 Ili Sent, l, Ope1a Theolog,w VI, pp 4-5)
154 «Persona est supposllum mtellectuale» (/11 / Se11t, 23, umca, Opera Theolog1ca IV, p 62)

Segundo o modo de ver de Ockham, esta defimção assemelha-se à celebre de Sevenno Boécw e
à de Ricardo de São Vítor Cfr Copleston, S11111<1 dei/a f,lo.wfiil, IIJ, pp 129-132
155 «Est ens completum 111commumcab1Ie pe1 1dent1tatem,nufü natum mhaerere et a nullo subt-
ecto sustentatum» (Quod IV, q 7, Opera Theo/ogu.a IX, p 328)

224
'não está apto a encontrar-se em um outro ser', exclui que a nature-
za humana de Cristo, que foi assumida pelo Verbo, seja uma pes-
soa.
Unindo todos os aspectos emergentes das duas definições,
concluímos que o conceito de pessoa, segundo Ockham, é aquele
que exprime o ser total e unitário do homem. Guilherme não está
portanto em contraste com as definições do concílio de Vienne de
1311, visto que este concílio se havia proposto diferenciar a unidade
do ser humano, principalmente contra as conseqüências das teorias
psicológicas de Olivi, o qual cria possuir razões suficientes para
afirmar que a mesma alma é constituída por três princípios formais:
o vegetativo, o sensitivo e o intelectivo356• Não se diz com isto que
desapareçam todas as perplexidades que surgem ante a tese ockha-
mista, quando afirma que a forma sensitiva é realmente separável da
forma racional do homem e da forma da corporeidade. Depois de
haver mostrado como no fundo todos os pensadores medievais esta-
vam de acordo em afirmar que a alma espiritual é separável do cor-
po, Copleston acrescenta que a afirmação ockhamista da separabili-
dade entre a alma sensitiva e a racional não compromete a unidade
do homem mais do que compromete a afirmação de que a alma ra-
cional do homem é separável do corpo. A observação parece preci-
sa, embora venha mitigada com toque posterior: "Contudo, tem-se o
direito de dizer, ao menos, que a doutrina ockhamista da distinção
real entre alma sensitiva e alma racional compromete a defesa da
unidade do homem mais do que quanto não faz a doutrina scotista
da distinção formal" 357•
Refutando, como vimos, a teoria de Duns Scotus a respeito
da distinção formal entre a alma e as suas potências, Ockham colo-
cava-se na condição de não criar ulteriores problemas ou distinções
complicadas do ponto de vista da unidade da pessoa, mas, teorica-
mente, dava um passo atrás e acabava subscrevendo a solução já
apresentada por Henrique de Gand, que identificava as potências

""Cfr Bettom, Le dott1111efilosofiche , pp 344-349, R Zavallom, Richard de Med1av1/la et


la umtwvetse .1ur la plurnltté des formes, Louvam 1951, pp 339-418
157 Copleston, Suma dei/a f1/owfw, III, p 130

225
com a essência da alma e ensinava que a alma é intelecto quando
conhece e é vontade quando ama. A esta posição Duns Scotus havia
feito a seguinte crítica: quem se limita a afirmar que a afina se qua-
lifica como intelecto quando se refere ao ser enquanto verdadeiro, e
como vontade quando se refere ao ser enquanto bem, nada mais faz
do que constatar um fato, sem contudo explicá-lo.
A posição do filósofo deve ser mais radical, deve voltar-se
para a explicação dos fatos: "Deve haver um motivo pelo qual a
alma comporta-se e reage de dois modos tão diversos ante o ser, e
um motivo que esteJa dentro da alma e não fora. A diversidade das
operações deve ter um fundamento no intenor da própna alma" 358 .
A necessidade de dar uma exphcação a esta realidade psicológica
havia conduzido Scotus a afirmar a distinção formal entre a alma, o
intelecto e a vontade. Contra a premência teórica de Scotus,
Ockham invoca o princípio de economia, que o coloca em condição
de manter firme um dado da experiência, qual seja o de que perce-
bemos que somos sempre nós que estamos na origem dos atos de
conhecimento e de vontade, mas não o permite explicar como e por-
que isto acontece.

4. O processo cognitivo

A doutrina do conhecimento intuitivo e abstrativo, examinada


no capítulo sobre a gnos10logm,representa a parte principal da in-
terpretação ockhamista do processo cognoscitivo. Resta dizer qual
seja o contributo dado pelos sentidos externos e os sentidos internos
ao conhecimento humano.
Inicialmente deve-se observar que sentidos externos e senti-
dos internos pertencem todos à forma ou alma sensitiva e coincidem
substancialmente com aqueles que a tradição aceitou de Aristóteles,
com exceção da memória que, como veremos, pode ser tanto sensí-
vel como intelectiva.

158 Bettom, Duns Swto , p 124

226
Vários são os momentos do conhecimento sensível: a sensa-
ção, como ato verdadeiro e próprio do sentir é acompanhada por
uma dupla impressão sobre os órgãos externos por parte do objeto.
Os objetos provocam um estímulo ou uma irritação do órgão senso-
rial, que Ockham chama, com terminologia escolástica, uma positi-
va "qualidade que GOnfortaou debilita o órgão", e ao mesmo tempo
produzem no órgão uma certa imagem do próprio objeto.
No caso da vista, por exemplo, uma imagem do objeto im-
prime-se nos olhos e lá permanece por um pouco de tempo, o que se
prova pelo fato de que se alguém, depois de ter visto um objeto in-
tensamente colorido, fecha os olhos, por alguns instantes retém a
imagem do objeto. Também esta impressão é definida como uma
qualidade verdadeira e própria, da mesma natureza que a do objeto
externo, gerada por ele no preciso momento no qual é causada a
sensação atual. Mas essa não se identifica com o ato de sentir, não é
nem um efeito, nem a causa dele, mas somente acompanha cada ato
nosso de conhecimento sensitivo. O terceiro momento do conheci-
mento sensível é representado pelo ato mesmo de sentir, isto é, do
ver, do ouvir, etc. Ele se situa na potência da alma sensitiva, potên-
cia que, como sabemos, enquanto se distingue do órgão, identifica-
se com a própria forma 359 . Os sentidos internos, que para Ockham
são reduzíveis à imaginação ou fantasia e a um aspecto da memória,
produzem seus atos perceptivos graças a três fatores: a sensação
(sentidos externos), a potência fantástica própria da alma sensitiva,
e Deus, que é a causa primeira e, por isso, concausa de tudo aquilo
que acontece.

159 «Quantum ergo ad potenttas mtenores et extenmes recapitulando d1co quod m v1su 1mpn-

m1tur quaedam quahtas confortans vel deb1htans mganum v1sus, et ilia est sub1ect1ve in organo,
qma organum deb1htatur et non potentla, s1cut patet pe1 P h 1 1 o s o p h u m Praeter 1s-
tam quahtatem est ponere unam aham qyae est pass10 vel pass1b1hsquahtas, quae potest sentm
a v1su Et 1sta est emsdem ratloms cum ob1ecto extia, et 1mpnm1tur simul cum pnmo actu v1-
dend1 ahquod sens1b!le excellens Et non gcneiatur ex 1ll0 actu nec est pnnc1pmm 11lmsactus
s1cut nec quahtas aha deb1htans, sed utJaque 1stmu111snnul 1mpmmtur m organo v1sus d1stm- •
guendo contia potenttam Et 1sta quahtas secunda est ob1ectum 11Imsv1s10ms secundae quae
vocatur appanuo quae est m absentta sens1b1hsextra, etlam 1pso non existente Et praeter istas
quahtates est m v1su actus v1dend1qm est sub1ect1vem potentta ut d1stmgmtur contra organum»
(ln III Sent, 3, Opera Theo/og1ca VI, pp 117-120)

227
O objeto externo desenvolve uma ação de estímulo ou de en-
fraquecimento sobre a imaginação, mas tal ação não é homogênea
com o objeto, ou seja, não é uma qualidade da mesma natureza que
ele. O objeto não é a causa direta da percepção imaginativa, pois se
assim fosse, isto é, se a causa da ação perceptiva dos sentidos inter-
nos fosse representada por aquele objeto que é a causa da sensação
externa, deveríamos dizer que sentidos internos e sentidos externos
operam simultaneamente cada vez que o objeto está presente, o que
é falso, porque a experiência atesta que a fantasia pode multiplicar
seus atos próprios na ausência do objeto sensível. Nem mesmo se
deve explicar o ato da imaginação como que se tratasse de um efeito
permanente, deixado nos sentidos externos pelo objeto e destinado a
causar aquele ato.
Ao objeto Ockham confere somente a função de causa remota
ou de causa da causa, visto que ele suscita a sensação dos sentidos
externos, sensação esta que, juntamente com a virtude imaginativa
própria da alma sensitiva, e juntamente com Deus, representa a ver-
dadeira causa da atividade fantástica do homem 360 •
Depois, Ockham pergunta se tanto nos sentidos externos
como nos internos haja os dois tipos de conhecimento, o intuitivo e o
abstrativo, levando em consideração que o segundo acompanha
sempre o primeiro e que os sentidos externos são a fonte primária,
embora não única possível, do conhecimento intuitivo. A resposta
baseia-se em uma constatação preliminar: na origem do conheci-
mento, tanto externo como interno, há uma única forma, a alma sen-
sitiva.
Admitir que na alma sensitiva há dois conhecimentos intuiti-
vos distintos e dois conhecimentos abstrativos, significa ir contra o
princípio de economia, que exclui todo recurso a diversas entidades,
quando não se constate uma necessidade imediata para tanto. Ora,
uma exauriente explicação do conhecimento que se verifica na for-
ma da sensibilidade é aquela de admitir que nos sentidos externos

'"°«Una causa partmhs est v1smcorporahs, et aha est potentla phantasuca Istae duae, cum Deo,
suffic1entercausant actum pnmum phantasmnd1,et ob1ectumsens1bileextra non est causa llhus
actus, sed tantum est causa causae» (Ili Ili Sent, 3, Opera Theo/ogiw VI, p 123)

228
dá-se o conhecimento intuitivo, e só este, enquanto os sentidos in-
ternos produzem somente conhecimentos abstrativos 361•
Passando à análise daquela atividade cognitiva que se encon-
tra sob o nome de memória, Ockham sente necessidade de precisar o
alcance dos termos. A memória pode ser entendida de dois modos:
ou como potência que, em virtude de um hábito gerado nela por um
ato passado, foi tomada capaz de produzir um ato semelhante na
ausência do objeto; ou como a potência que pode produzir urna re-
cordação verdadeira e própria, graças a um hábito gerado nela por
ato do passado, não porém por atos incomplexos, e sim por atos
complexos, isto é, por proposições reflexas do seguinte tipo: sei que
percebo esta coisa, sei que vejo esta outra 362. Em outras palavras,
podemos dizer que há fundamentalmente dois aspectos: aquele da
memória como atitude que conserva e reproduz as imagens do pas-
sado, e aquele da recordação reflexa, isto é, da atitude de reconhecer
que as imagens reproduzem acontecimentos do passado.
Tomada na primeira acepção, a memória pode encontrar-se
tanto na faculdade que preside ao conhecimento sensível, como no
intelecto; tomada, porém, no segundo modo, a memória encontra-se
seguramente só no intelecto, enquanto não é claro se pode encon-
trar-se também na potência sensitiva.
O elemento comum aos dois tipos de memória é este: o ato de
representificar o objeto, incomplexo ou complexo, é sempre gerado

161«Plurahtas non est ponenda sme necessttate Sed non apparet necessitas ponend1 talem cog-
mtlonem mtu1t1vamm phantasia I d e o d I e o quod pnma ems cogmuo est abstracuva,
qma m una forma quae est pnnc1pmm multanun cogmtlonum suffic1t una cogmtlo mtmtlva
respectu unius ob1ect11lhusformae Sed aha pars emsdem fmmae ehc1t mtmt1vam Et ilia una
mtmtlva m una forma C!fca unum ob1ectum est ilia mediante qua md1catur res esse vel non
esse, et non mechante abstracuva, cumsmodt est omms actus phantasiae, sensus et brev1ter om-
mum sensuum mtenorum» (ln III Sei!/, 3, Ope1a Theolog1ca VI, pp 124-125)
162«Memona duphc1ter acc1p1tur uno modo pro potentia habente ahquem hab1tum vel quahta-
tem derehctam ex actu piaetento, vtrtute cums potes! tahs potentia m ahquem cons1mtlem ac-
tum et emsdem rat10ms cum actu praetento, qm qu1dem actus praetentus altqmd requmt ad
suum esse quod non ex1g1turad esse secund1 actus, puta ob1ectum extra Aho modo acc1p1tur
pro potenua quae potest m actum recordand1 p10pne d1ctum mediante hab1tu generato ex actl-
bus praetenus, non qmdem mcomplex1s sed complex1s, puta ex 1sus 'mtelhgo me nunc aud!fe
vel v1dere hoc' Ex 1sus et s1m1hbusgene1atu1 ahus hab1tus ab hab1tu generato ex actlbus m-
complex1s mtmt1v1svel absuact1v1s, et mediante talt hab1tu cognosco postea evidenter per ac-
tum recordandt quod hoc v1d1et hoc audlVI» (111IV Seut, 14, Opera Theolog1w VII, pp 297-
298)

229
por um hábito. Aqui podemos entender por hábito, sem mais, aquela
trilha deixada pelas experiências do passado, pela qual elas podem
ser recordadas; portanto, não Ull)a trilha inerte, mas um fator dinâ-
mico, que contribui ativamente para a chamada do passado.
Ockham, com terminologia escolástica, define o hábito como uma'
qualidade acidental gerada em uma potência através do ato ou dos
atos desta mesma potência, que a inclina a produzir atos semelhan-
tes363_
No caso específico da memória, os atos que estão na origem
do hábito que permite a recordação são os atos da percepção. Assim
como é pacífico para Ockham que os hábitos cognoscitivos são ge-
rados sempre por conhecimentos abstrativos, parece que se deve
concluir que os hábitos da memória derivam do conhecimento abs-
trativo de primeiro tipo, aquele que acompanha sempre a notícia
intuitiva364. Aqui, porém, surge uma dificuldade ulterior, que nasce
do fato que Ockham define o ato de recordar como um
'conhecimento intuitivo imperfeito'. Diferente do perfeito, que não
pode produzir-se naturalmente se não quando o objeto existe, o co-
nhecimento intuitivo imperfeito pode produzir-se também quando o
objeto está ausente ou foi destruído.
O fato de ser produzível também na ausência do objeto, as-
semelha o conhecimento intuitivo imperfeito ao conhecimento abs-
trativo, a ponto de poder ser assim denominado. Mas, considerando-
se o fato que este faz referência à existência de uma coisa, mesmo
se colocando-a em tempo passado, vê-se logo porque se trata de um
conhecimento intuitivo365 .
Ora, segundo o ensinamento de Aristóteles, a quem Ockham
declara desejar seguir, os atos que geram um hábito são da mesma

161 Cfr
Expos,tw m t,brum p,aed1wmento1um Anstoteh.,, e 14 (Opera Ph,!o,w,ph1ca II, p
273), Summula p/11/osoph,ae ,wturahs, III, 18 (Opelll Ph1losoph1ca VI, pp 305-307),
Quodl II,q l8(0peraTheolog1wlX,pp 189-192) .
16\<Et ilia cogmtlo abstractiva est causa partiahs concurrens cum mtellectu ad generandum ha-

b1tum mclmantem ad cogmuonem mtmtlvam 1mperfectam, per quam md1co rem ahquando
fmsse Ergo hab1tus mchnans ad cogmt1onem mtu1t1vam 1mperfectam, s1 generetur ex ahquo
actu cogmuvo, ilia cogmt10 ent abstracuva, et ilia e11tsunul cum cogmt10ne mtmtlva perfecta»
(/11II Sent, 13, Ope,a Theolog1w V, pp 261-262)
165 Cfr ln li Sent, 13 (Opera Theolog1ca V, pp 261-266)

230
natureza daqueles aos quais tais hábitos dispõem. Mas como é pos-
sível então admitir que o hábito que produz atos de conhecimento
intuitivo, embora imperfeito, é gerado por atos de conhecimento
abstrativo? Pode-se superar a dificuldade colocada em tela por esta
interrogação ao se refletir em quanto já foi dito, isto é, que o conhe-
cimento intuitivo imperfeito é, em sua última raiz, um conhecimento
abstrativo ao qual acrescentam-se referências temporais.
Mas uma tal resposta fazer surgir uma segunda pergunta:
como é possível que aquele conhecimento abstrativo, que possui re-
ferências temporais precisas, tenha uma origem comum com aquele
que prescinde de tais referências?
A dificuldade é superada por Ockham com a afirmação que,
não obstante a origem comum, o conhecimento abstrativo primeiro,
que toma possível a permanência no sujeito de conhecimento sem
referências temporais, é diverso daquele que toma possíveis tais co-
nhecimentos temporais situados. Para que se gere um hábito capaz
de produzir estes conhecimentos do passado, Ockham afirma que o
ato de conhecimento abstrativo deve ser acompanhado por uma
ação reflexa do intelecto; do concurso destas duas causas parciais
forma-se um ato complexo que nos torna conscientes de ver ou de
perceber algo. Portanto, o ato que origina aquele hábito que dá lu-
gar ao conhecimento intuitivo imperfeito ou recordação é diverso
daquele que leva ao simples conhecimento abstrativo, como é diver-
so o ato pelo qual eu afirmo: "sei que estou vendo um cão". En-
quanto de tais atos de conhecimento abstrativo reflexo nasce um há-
bito peculiar - aquele que dispõe ao conhecimento intuitivo imper-
feito -, dos atos de conhecimento abstrativo simples nasce um hábito
de um tipo totalmente diferente daquele do qual se originam repre-
sentações do objeto conhecido abstrativamente, que por sua vez dão
lugar à formação de conceitos universais relativos aos vários gêne-
ros de coisas 366.

166 Parece-me que estes seJam os pontos essenciais da mtnncada discussão a respeito da memó-

na e do conhecimento mtutttvo 1mperfe1to Pma um estudo mais parttculanzado, remeto a· O


Fuchs, The Psyclwlogy of Habtt Acwrd111g to W1/l,am Olkham, St Bonaventure, N Y -
Louvam 1952, pp 29-39 VeJmn-se também Boehner, Nolftta 111tu1t1va of non-ex1stens, pp
271-274, Abbagnano, Gug!telnw d, Ockham, pp 278-284 Não concordmnos, porém, com a

231
5. Intelecto possível e intelecto agente. Significado
histórico da psicologia ockhamista

No vértice do processo cognoscitivo, os mestres dos séculos


XIII e XIV, também nisto fiéis a Aristóteles, colocavam o intelecto,
ou seja, a potência mediante a qual a alma está apta a compreender.
De Aristóteles os escolásticos haviam tomado de empréstimo tam-
bém a distinção entre intelecto possível e intelecto agente, distinção
tornada célebre pelas múltiplas tentativas feitas para esclarecê-la e
pelas numerosas polêmicas que suscitou entre averroístas, tomistas
e agostinianos.
Pode-se dizer que a distinção entre um momento ativo e um
momento passivo do intelecto fora colocada para explicar o modo
pelo qual as espécies inteligíveis passam da potência ao ato. A ex-
plicação que lhes dava santo Tomás, por exemplo, pode ser assim
resumida: no intelecto possível encontra-se o fantasma, isto é, a
imagem sensível do objeto tomada da percepção. O trabalho do in-
telecto agente é o de iluminar o fantasma, ou seja, de despojá-lo das
notas individuantes, de maneira a torná-lo inteligível ao intelecto
possível. No fundamento de uma tal explicação do conhecimento
intelectivo encontra-se a convicção de que o intelecto não pode co-
nhecer diretamente o singular, e por isso se postula a ação do inte-
lecto agente, que torna inteligível o particular universalizando-o, li-
berando-o das características individuais e de natureza sensível.
Uma teoria do conhecimento como esta encontra-se distante
da mente de Ockham. De fato, para o nosso autor, o intelecto pode
captar diretamente o particular e, além disso, os universais formam-

observação que Abbagnano faz à págma 281, quando diz que Ockham, ao exphcar a função da
memóna, teria modificado "sua op1mão precedente a respeito da 1mposs1b1hdadede o conheci-
mento mtmllvo produzu hábitos" Do texto acima menc10nado (ln II Sent, 13) fica claro que
Ockham não entendeu modificar sua opm1ão sobre a ongem dos hábitos. de fato, ele ms1ste
energicamente que uma causa parcial do hábito do conhec1mento intuitivo imperfeito é dada
pelo conhecnnento abstrallvo, enquanto a outra causa parcial é representada pelo intelecto, pelo
seu ato de reflexão e de consciência de conhecer é verdade, portanto, que os hábitos sempre
têm à sua raiz um conhecimento abstrativo

232
se em nossa alma naturalmente, sem que intervenha fator algum ati-
vo em trajes de intermediário entre o conceito universal em potência
e o conceito em ato. Desaparece, pois, a necessidade de admitir uma
distinção entre intelecto agente e intelecto possível, pois ambos são
uma mesma realidade. Esta realidade coincide totalmente com a
própria alma intelectiva, já que não existe distinção alguma entre a
forma e as suas potências. Ockham está disposto, porém, a salvar o
uso comum dos termos e, como no caso do intelecto e da vontade,
declara que não são sinônimos: com o termo intelecto agente - preci-
sa ele - designa-se diretamente a alma e indiretamente o fato de que
ela produz conhecimentos intelectivos, enquanto com o termo inte-
lecto possível indica-se sempre a alma, mas indiretamente designa-
se a sua capacidade de receber conhecimentos intelecti,vos367 .
Falar, pois, de intelecto ativo e de intelecto passivo é pleo-
nástico. A alma racional ou forma intelectiva basta por si só para
explicar o fato que nós tenhamos conhecimentos intelectivos.
Quanto à natureza específica dela e ao modo de como se une ao
corpo, não podemos produzir argumentos concludentes, enquanto,
baseados no princípio de economia, devemos dizer que não há ne-
nhuma faculdade da alma que se distinga dela realmente, ou seja um
acidente real dela.
Os filósofos e os santos, porém, falam do intelecto agente e
Ockham está disposto a dar crédito à autoridade deles, isto é, a
aceitar a existência de tal intelecto, embora os argumentos a favor
desta tese não sejam apodícticos, mas tão somente prováveis 368 •
Esta posição pode parecer contraditória à primeira vista. Para
compreendê-la corretamente, deve-se prestar atenção para o fato de

167 «lntellectus agens et poss1b1hs sunt idem omnmo re et rat10ne Tamen 1sta noffilna vel con-

ceptus bene connotant diversa, qum agens s1gmficat ammam connotando mtellecuonem proce-
dentem ab anima act1ve, poss1b1hsautem s1gmficat eandem ammam connotando mtellecuonem
receptam m anima Sed idem 011101110 est effic1ens et rec1pens mtellect10nem» (ln II Sent, 20,
Ofera Theolog1w V, pp 442-443)
16 «Per praed1cta potest habe11 occas10 respondend1 ad omma argumenta quae probant act1v1ta-

tem mtellectus Tamen teneo oppos1tum p10pter auctontates S a n e t o r u m et p h 1 -


1 o s o p h o r u m quae non possunt salva11 sme act1v1tate mtellectus, s1cut patet de
mtellectu agente, III De amma Quare 111hoc [comrnento] quomodo pomt 111tellectumagentem
Et ad hoc etmm sunt rationes probab!les, hcet non concludant necessano» (Quaestumes vanae,
5, Ope1a Theo/og1w VIII, p 191)

233
que, quando Ockham se diz disposto a admitir a existência do inte-
lecto agente, não pens~ neste como em uma faculdade realmente
distinta da alma; por mtelecto agente ele entende exatamente uma
certa atividade da alma racional no campo do conhecimento, tal
como a descreve no texto que acabamos de reportar.
E é precisamente em força da admissão de uma certa ativida-
des da alma na formação dos conceitos, atividade em favor da qual
os autores apresentaram provas, que Ockham declara não ser ab-
surda a posição de quantos falam de um intelecto agente.
Como, porém, tais argumentos não o convencem de todo, e
como a formação dos conceitos universais, a seu modo de ver, pode
ser explicada muito bem mesmo sem recorrer ao intelecto agente,
Ockham refu~a tal doutrina, julgando-a inútil e, por isso, contrária
ao princípio de economia 369.
Com estas afirmações, ele refuta, pari passo, também um
outra teoria importante do aristotelismo escolástico, qual seja aquela
da 'espécie inteligível'. Segundo os defensores desta teoria, as coi-
sas tomam-se objeto do intelecto somente enquanto resultam des-
materializadas, ou seja, separadas das notas individuantes, em vir-
tude da ação universalizadora do intelecto agente. Trata-se de um
tratamento espiritual verdadeiro e próprio, pelo qual o objeto conhe-
cido, então já imaterial em ato, pode unir-se ao intelecto possível,
fazendo surgir uma nova representação de si mesmo, que é precisa-
mente a 'espécie inteligível'.
Para Ockham, não é necessário recorrer a uma semelhante
explicação do conhecer. Sabemos já que nas coisas não há nada de
universal, nem de universalizável, pois elas são intrinsecamente in-
divíduas e, como tais, são apreendidas no conhecimento intuitivo,
tanto a nível de sensibilidade, como a nível de intelecto.
Assim, chega a uma completa maturação um processo de re-
visão crítica da gnosiologia e da psicologia elaborada pelo aristote-
lismo moderado de santo Tomás, processo iniciado logo após a

169 «Umversaha et mtent10nes secundae causantur naturahter sme omm acttv1tate mtellectus et

voluntatts a notttns mcomplex1s termmorum» (Quaestw1tes vanae, 5, Opera Theolog1ca VIII,


p 175)

234
morte do mestre dominicano por obra de Henrique de Gand e que
prosseguiu com Durando de São Porciano e com Pedro Auréola,
para citar tão somente os nomes de personalidades muito influentes
naqueles anos.
Henrique de Gand julgara inadequada a teoria da espécie in-
teligível, devido a seu modo de conceber a espécie: ele era de opi-
nião que esta fosse um corpúsculo vagante, uma imagem material
difusa no espaço e que atinge o órgão sensorial, tal como a entendeu
Malebranche que, por isso, a ridicularizou. Seguia-se, pois, a mani-
festa impossibilidade de admitir que uma espécie assim constituída
pudesse entrar como intermediário cognoscitivo no campo espiritu-
al: para Henrique, de fato, a espécie inteligível permanecia, apesar
de tudo, no âmbito da materialidade e da sensibilidade. Não era
pensável, por isso, que estivesse apta a atuar o intelecto possível,
cujo sujeito, por consenso comum, é o universal370 .
Em substituição à espécie inteligível, Henrique elaborou a
doutrina do 'fantasma universal', ou seja, explicou a formação de
nossos conceitos reportando-lhes a origem ao fantasma, o qual é
colocado em condição de não manifestar-se com todas suas parti-
cularidades, torna-se uma representação esmaecida e, por isso, ca-
paz de fazer conhecer uma multidão de objetos. Nisto consistiria,
para ele, o verdadeiro universal de Aristóteles.
Durando, por sua vez, havia colocado o problema nos se-
guintes termos: a ação do intelecto agente é supérflua, pois não se
vê como possa dar lugar à espécie inteligível mediante um influxo
dele sobre o fantasma. Não se pode pensar que o intelecto agente
modifique o fantasma, introduzindo neste algo de novo, visto que o
particular não se torna universal com um ou mais acréscimos. Nem
se pode dizer que o intelecto agente dá lugar à espécie inteligível
subtraindo algo ao fantasma, pois para tirar algo da representação
fantástica, mesmo que só idealmente, o intelecto agente deveria co-
nhecê-la, enquanto por definição ele não conhece nada. Disto segue-

' 1"Quodl IV, q 14 (Opew Theolog,w IX, pp 366-370), Quodl V, q 14 (Ope,a Theolog,w
IX, pp. 536-538)

235
se que a posição da espécie universal e a do intelecto agente, de
qualquer parte que sejam considerados, resultam injustificáveis 371•
A recusa da espécie inteligível e de sua função de determi-
nante do conhecimento foi posta explicitamente também por Pedro
Auréolo. Segundo seu modo de ver, não se pode admitir nenhum
tipo de intermediário entre as coisas e o intelecto, pois todo o ser
intencional que compete ao objeto do conhecimento é um produto
original da potência intelectiva e não pertence à espécie inteligí-
vel372.
A herança destes pensadores foi recolhida por Ockham, que
lhes deu uma forma sistemática com relação à concepção global do
homem e de suas atividades, procurando satisfazer as instâncias da
verificação empírica e, ao mesmo tempo, não ofender o patrimônio
das verdades reveladas.
A posição dele, a nível psicológico, pode ser assim resumida:
a razão humana não é capaz de chegar a conhecimentos definitivos e
completos, isto é, não é capaz de, por si só, desvelar o verdadeiro
vulto do homem, sua natureza íntima e sua estrutura. Por isso, a in-
dagação racional é completada com o dado revelado, do qual ex-
traímos quais são os constitutivos intrínsecos de cada homem. Por
outro lado, no que se refere ao processo cognitivo, o único critério
válido é o da análise da experiência, sob a guia do princípio de eco-
nomia.
As conseqüências mais importantes desta visão psicológica
referem-se à ética: exatamente porque foge da razão humana a ver-
dadeira natureza do homem, dever-se-á dizer que a razão não é·ca-
paz de estabelecer, por si só, qual seja o fim verdadeiro do agir hu-
mano e quais as normas que presidem a este fim. Portanto, não será
possível uma fundamentação filosófica da ética.

171 Durando de São Porcmno, ln I Sent, d 2, q 5; pp 27-28


172Pe.,iro Aureolo, ln li Sent, d 12, q 1, a 2, p 154, ln I Sent, d 9, q 1, pp. 319-320

236
VIII

A ÉTICA

1. A liberdade

A ética ockhamista gira toda ao redor da liberdade, ao redor


de um modo característico de compreender a liberdade, modo este
que se avizinha muito da sensibilidade da antropologia moderna.
A nível filosófico, Ockham define a liberdade como ausência
de necessidade. Ela consiste em uma certa indiferença, em uma
certa contingência, devido à qual a vontade permanece indetermina-
da ante seu objeto e pode, por isso, agir ou não agir, querer uma
coisa ou o seu contrário. Através da liberdade, os seres que a possu-
em distinguem-se daqueles que agem por necessidade de natureza,
isto é, à base de um estímulo mesistível, interno ou externo 373 .
Estas afirmações consideram a liberdade como ausência de
coerção, como possibilidade de escolha ante o objeto, sendo ela en-
tão chamada também de livre-arbítrio, poder dos contrários, inde-
terminismo, termos estes que querem indicar, todos eles, a capaci-
dade própria do homem de responder de uma maneira não predeter-
minável univocamente a uma solicitação situacional.
Mas há um outro aspecto da liberdade: aquele pelo qual a
vontade sente-se livre ante si mesma, livre para agir ou não agir. A
vontade livre pode, sem que intervenha modificação alguma no in-
telecto, ou na própria vontade, ou fora dela, querer ou não querer

' 7\,L1bertas
est quaedam md1fferent1aet contmgenlla, et d1stmgmtur contra pnnc1pmm acl!vum
naturale Et s1c utuntur ph1losoph1hbertate et voluntate» (ln I Sent, 1, 6, Opera Theo/ogiw I,
p 501) '

237
esta ou aquela coisa, isto é, pode continuar a querê-la ou pode de-
sistir.
Pode-se falar de liberdade como autodeterminação da vonta-
de, quando nenhuma outra coisa além da vontade concorre sob o
aspecto de causa para determinar sua ação: a vontade permanece
assim como capaz d e por-se em ato por s1 mesma·374 .
0 O
A

Poder-se-ia objetar que deste modo acaba-se por dizer que a


vontade pode passar por si só da potência ao ato, e isto seria contra
o princípio aristotélico, devido ao qual ,nada passa da potência ao
ato sem que seja determinado por uma causa externa já em ato. Se-
gundo Ockham, porém, este princípio é válido somente quando refe-
rido a agentes naturais, corpóreos ou incorpóreos, mas não vale
para a vontade livre. Pode bem acontecer que o objeto seja conheci-
do pelo intelecto e apresentado por este à vontade, e podem estar
presentes todas as condições requeridas para uma ação, inclusive o
concurso divino normal, mas a vontade pode não colocar a ação
mesma, ou pode colocá-la sem ser determinada por influências es-
tranhas, e nisto consiste a sua liberdade radical' 75 •
Liberdade é um termo conotativo, que designa a vontade, ou
seja, a característica de uma natureza racional, enquanto é capaz de
produzir efeito opostos 376 , o que quer dizer que a liberdade não se
distingue da vontade, com a qual forma uma só coisa. Por conse-
qüência, a vontade configura-se essencialmente como uma potência
ativa, pois se fosse uma potência passiva, levada à ação pelo objeto

174 <<Yoluntashbere potes! velle al1qmd et non velle III tantum quod volente ahqmd operan,
nulla facta mutat10ne c1rca mtellectum vel clfca 1psam pnmam opeiatlonem voluntat1s et ems
actum nec etlam facta ahqua mutat10ne clfca quodcumque extra, potes! 1psa destruere 1llud vel-
le quod habet, et ahum effectum contranum 1lh de novo producere, vel potest aequahter 11lum
eundem effectum m se contmuare et ahum non producere de novo, Jta quod aequahter se habet
ad producere et non producere, qma nulla mutat1011efacta praevm potes! producere et potes!
non producere Aequahter etlam se habet ad effectus contranos, qma potes! causare dllectJonem
ahcums vel odmm» (Expos1tw m /1bros phy.11w1wn Anstotelt.<, II, 8, Opera Ph1/osoph1ca IV,
pp 319-320)
175 Quodl I, q 16 (Opera Theolog1ca IX, pp 87-89), fll IV Sent, 16 (Opera Theolog1w VII,

pp 357-359), ln IV Selll, 15 (Opeta Theolo1wa VII, pp 331-337)


176 «Voluntas propne est iat1onahs quae valei ad opposJta» (/11 IV Sent, 16, Opera Theologtw

VII, p 358)

238
conhecido e não dispondo de uma autonomia de iniciativa, então não
se poderia falar de liberdade da vontade.
Examinando o âmbito da práxis, Ockham define o intelecto
prático como aquela faculdade na qual se situa o conhecimento das
coisas que estão em nosso poder, isto é, daquelas coisas que o ho-
mem pode livremente fazer ou não fazer. Ora, a nossa livre iniciati-
va abraça todos aqueles atos que somos livres de realizar ou de não
realizar, sejam atos internos de querer e conhecer, sejam atos exter-
nos, entrando tanto uns como outros no âmbito da práxis. Mas a
primeira coisa que se encontra em poder do homem é a vontade, e
nada se encontra em poder dele a não ser mediante a vontade 377 .
Portanto, a qualificação de práxis refere-se em primeiro lugar
à vontade, mas o âmbito da vontade coincide, por sua vez, com o
âmbito da moralidade, visto que não tem sentido falar de moralidade
dos atos, se estes não dependem, de algum modo, da vontade e, por
isso, não são atos livres. Disto deve-se concluir que somente os atos
livres abrem espaço para a categoria da moralidade e também que o
âmbito da práxis coincide, em certo sentido, com o da moralidade.
Ockham acrescenta uma explicação a respeito: é verdade que so-
mente os atos livres podem ser qualificados como atos morais, con-
tudo, para estabelecer a moralidade concreta, positiva ou negativa,
do ato, não basta que este seja livre, mas deve-se levar em conside-
ração também outros fatores, isto é, a sua conformidade ou não-
conformidade ante a norma objetiva representada pela reta razão, e
outras circunstâncias de intenção, modo e conveniência com os
quais o ato fot posto 378 .
Afirmando explicitamente uma conexão natural entre o co-
nhecer e o querer, nosso autor apresenta um importante esclareci-
mento, que o une aos pensadores escolásticos que o precederam.
Quando sustenta que para a constituição do ato moral é decisiva a

177 «Prax1s pnmo d1C1tmde actu voluntat1s, cum 1psa s1t pmno m potestate nostra, et nulla aha
sit m potestate nostia ms1 mediante ea» (/11/ Sent, P1ol, 10, Opera Theolog1w I, p. 292)
17x«D1co quod 'moiale' acc1p1tu1 1 a r g e pio actibus humams qu1 ,ubmcent voluntall ab-

solute Mugis s t r 1 e t e p10 monbu, s1ve act1bus sub1ectts potestall voluntalls secundum
natmale d1ctamen ial!oms et secundum altas c1rcunstantms» (Quodl II, q. 14, Opera Theolo-
1;1w IX, pp 176-177)

239
contribuição do intelecto, do natura/e dictamen rationis, acaba
subscrevendo o famoso adágio escolástico: nihil volitum quin prae-
cognitum, ou seja, o querer é sempre precedido pelo conhecer.
Duns Scotus havia proposto uma explicação punctual sobre o
modo como se deve entender esta conexão natural entre conhecer e
querer: a expenência interna atesta que, ante qualquer objeto, a
vontade permanece livre, visto que, por quanto sejam claros, unívo-
cos e indiscutíveis os ditames da razão, não podem jamais ser de tal
monta a ponto de determinar necessariamente a vontade a agir em
conformidade com eles. Se a vontade recebesse um impulso deter-
minante do intelecto, desapareceria a indeterminação dela, e esta in-
determinação é a raiz última de sua liberdade ou capacidade de au-
todeterminação.
Mesmo assim, para Scotus, não deixa de ser verdade que os
ditames da razão exercem uma influência decisiva sobre a vontade,
excluindo-se, porém, que tenham a função de causa determinante 379.
Mas os escolásticos costumavam estender suas reflexões so-
bre a vontade também a um outro problema: aquele da relação entre
vontade e fim último, e perguntavam-se se a vontade permanece in-
determinada também ante o fim último, isto é, ante Deus, tal como é
conhecido pela intuição perfeita, própria da visão beatífica.
A esta pergunta, as respostas dadas por santo Tomás e por
Duns Scotus foram divergentes. Para santo Tomás, o homem é livre
na escolha dos meios que levam ao fim último, mas não é livre ante
o fim último, quando o conhece adequadamente em si e diretamente.
A vontade é livre somente quando os ditames da razão a respeito do
fim último não se impõem com a força das verdades absolutamente
evidentes380. Duns Scotus discordava da posição tomista, sustentan-
do, de sua parte, que, se é verdade que ante o fim último conhecido
intuitivamente a vontade humana não possui a liberdade de escolha,
contudo, ela conserva a liberdade radical de recusar-se a querer. Na
visão beatífica, a vontade humana não poderá escolher entre Deus e
outra coisa, mas poderá escolher entre querer e não querer a

179 Bettom, Dum Swto , pp 127-130


18ºTomás de Aqumo, Summa theolo/!,1(/C, 1, 82, l

240
Deus 381 . Scotus pensava que assim salvava a liberdade da vontade,
a qual, para ser verdadeiramente livre, deve estar sempre em condi-
ção de subtrair-se às solicitações do intelecto, mesmo quando o in-
telecto vê o bem absoluto.
Interessa agora ver a tomada de posição de Ockham quanto a
estas questões. Ele não afrontou sistematicamente o problema, to-
davia, seu pensamento constrói-se por um número elevado de afir-
mações, que encontramos em suas obras, recolhidas por Garvens e
analisadas por Bettoni 382.
Inicialmente Ockham sustenta que em nossa vontade não se
dá uma inclinação natural ao bem infinito383 . Com esta afirmação,
exclui que só um bem infinito seja apto a colocar-se como fim últi-
mo da vontade. Enquanto os escolásticos precedentes sustentavam
que a vontade humana é naturalmente levada em direção a um bem
infinito e que, por isso, não pode aquietar seu desejo de felicidade
senão na posse de Deus, Ockham é de opinião que a vontade tem
um fim último, mas não é dito que este fim último seja Deus, po-
dendo ser a felicidade em geral.
Ante a felicidade em geral, pois, a vontade do homem perma-
nece sempre livre, isto é, não é verdade que o homem tenda necessa-
riamente para a felicidade: a experiência atesta que o homem pode
também renunciar à felicidade384 .

181 «Voluntas s1cdetenmnatur ad volendum beat1tud111em et ad nolendum m1senam, quod s1 eh-


ciat ahquem actum c!fca 1sta ob1ecta, necessano et dete1m111atumehc1t actum volend1 respectu
beat1tud1111s,
et nolend11espectu m1se11ae,non tmnen absolute deternunatur ad unum actum eh-
c1endum vel ahum» (Ordmatto Swtt, IV, d1st 49, q 10, n 9, ed Vives, XXJ, p 333)
182 A Garvens, Dte G1u11dlaie11de, Etl11k W1/he/m.1· von Ockham, «Franz St», 21 (1934),
243-273, 360-408 Cfr E Betto111,li problema dei fme ultmw nel pens1ero dt Ockham, 111
Studw med,aeva/,a et 111a1wlopc11P Ca,olo Bahl OFM septuaies1mum explent1 annum d1-
cata, Romae 1971, pp 227-247 Outtos estudos recentes sobre o pensamento ético de Ockham
Hochstetter, Vwtor mundt , L Vereecke, L'obl1gation mora/e selon Gu,//aume d'Ockham,
«La vie spmtuelle» (suppl ), 45 (1958), 123-143, I Boh, An Exammation of Ockham's Arete-
ftl Log1L, «A1ch1vfur Gesch1chte der Ph1losoph1e»,45 (1963), 259-268, M1ethke, Olkhams
Weg , pp 300-347
18 \,Non est 111
voluntate 111chnat10naturahs 111bonum 111fi111tum111tens1ve»(Quodl VII, q 14,
Opera Theolog,w IX, p 754)
184 «Voluntas contmgenter et hbere - modo expostto - tiu1tur fine ultimo estenso m umversah,

quia scihcet d1hgere beatitudmem polest et non dthgere, et potes! appetere s1b1beat1tud111em
et
non appetere» (/11l Sent, I, 6, Opern Theoloitw 1, p 503)

241
Para confirmar esta tese, Ockham argumenta da seguinte ma-
neira: todos concordam em admitir que a vontade pode sempre não
querer aquilo que o intelecto lhe mostra que não é o caso de querer.
Ora, há pessoas que concluíram que a felicidade é uma utopia, por-
que, por exemplo, convenceram-se que a condição atual do homem é
definitiva, ou que é inútil aspirar a uma felicidade maior que aquela
que se tem e que, portanto, a gente deve contentar-se com as poucas
alegrias da vida terrena. Da existência de homens que renunciam a
procurar a felicidade, porque a julgam impossível, conclui-se que a
vontade não quer necessariamente a felicidade385 .
Deste modo, Ockham supera a distinção escolástica entre fim
último de direito e fim último de fato: seu apelo constante à experi-
ência fá-lo concluir que se existem homens que não tendem para o
fim último de direito, isto quer dizer que a vontade pode orientar-se
para um fim último que, na realidade, não é o último fim, isto é, que
a vontade permanece livre. A tal propósito pode-se observar que se
é admissível que o último fim conhecido só em geral não exerce so-
bre a vontade uma atração irresistível, contudo é difícil conceder
que a mesma coisa aconteça quando o último fim é conhecido intui-
tivamente. Será que também neste caso a vontade permanece livre
de querê-lo ou não querê-lo? Ante tal pergunta, Ockham não hesita
em responder afirmativamente, dizendo que a vontade, tal como é, a
menos que seJa colocada em uma situação imprevisível por uma in-
tervenção extraordinária de Deus, pode sempre recusar-se a abraçar
o fim último, sob qualquer modo que este lhe seja apresentado 386 .
Enquanto livre, a vontade permanece indeterminada e, portanto, ca-
paz de autodeterminar-se ante qualquer objeto. Seja qual for a força
persuasiva das razões do mtelecto, ele não está apto a determinar a
vontade, nem mesmo quando se trata do sumo bem, colhido em toda
sua clareza.

mlb1dem
,x6«D1co quod finem ulnmum, s1ve ostendetur m geneiah s1ve 111part1culan, s1ve 111via s1ve m
patna, potest absolute voluntas eum velle vel 11011 velle vel nolle» (Ibidem, Opera Theolog,w
I, p 506) Cfr ln IV Sent, 16 (Opera Theo!og1w VII, pp 350-355)

242
2. O problema do finalismo

Uma das provas usadas por Ockham para negar que a vonta-
de tenda naturalmente para um bem infinito parte da afirmação de
que não há argumentos válidos para demonstrar que existe um tal
bem infinito. Pela pura razão, não podemos excluir que um bem in-
finito seja um absurdo. Pretender, pois, demonstrar que a vontade
tende para um tal bem, seria o mesmo que querer provar que ela
tende para o impossível387 • Conseqüentemente, não possui nenbum
valor a tese de Duns Scotus, segundo a qual a vontade do homem
pode ser saciada somente por um bem infinito, pois para Ockham
também um bem finito pode saciar a sede de felicidade própria do
homem, o qual, aliás, pode também renunciar à felicidade.
Estas afirmações contêm uma tomada de posição importante.
A filosofia, segundo o modo de ver do mestre inglês, não está apta a
demonstrar que o fim último do homem consiste na visão beatífica,
isto que, que o fim último coincide com Deus. Tudo o que sabemos
com certeza sobre a existência e sobre a natureza do fim último e
sobre o ato com o qual a vontade o possuirá, é-nos ensinado pela
revelação 388 • De fato, a uma tal noção de fim último não se pode
chegar nem mesmo indiretamente, demonstrando que Deus é a causa
final do universo.
Ockham julga inaceitável a posição daqueles pensadores que,
seguindo Aristóteles, concebem o mundo como um cosmos formado
por inumeráveis seres ordenados uns aos outros e, como tal, porta-
dor e revelador de um ordenamento a uma meta prees!abelecida, que
é o último fim do universo, identificado com Deus. O finalismo do
universo não pode ser resultado nem da evidência que se segue a al-
guma proposição anteriormente demonstrada, nem da experiência 389 •

'H 7 «Qum non potest p10ba11ahquod bonum mfimtum esse S1111tl1ter non potest proban quod
voluntas mchnatur ad volendum bonum mfimtum, non plus quam quod mchnatur ad volendum
1111poss1btleEt hoc dtceret unus mfidehs» (Quod/ III, q 1, Opern Theolog,w IX, p. 208)
,HHISellf, 1, 4 (Opera Theo/og,w I, pp 433-434)
'H 9 «D1cerem, s1 nullam auctontatem rec1perem, quod non potest proban ex pe1 se nous nec per
expenenl!am quod qmhbet effectus habeat causam !inalem nec d1st111ctamnec 111d1stmctamab

243
Antes de mais nada, o finalismo não se deduz como um corolário
das proposições precedentemente demonstradas. Ockham provou
que é necessário chegar a uma causa eficiente que conserva no ser o
universo, mas do fato que todas as coisas, sem exceção, devem a
um Deus assim entendido o seu comparecimento na cena do mundo
e seu continuar a existir, não se é autorizado a concluir que aquele
Deus seja também o fim ao qual elas tendem. A afirmação do fina-
lismo, aliás, não pode ser adquirida à base da experiência, porque o
comportamento das coisas não é tal a ponto de constranger-nos a
admitir que elas agem em vista de um fim.
Na acepção mais exata do termo, o fim ou causa final é
aquela coisa que é amada e desejada eficazmente pelo agente e por
amor da qual o efeito se produz. Segundo esta definição de fim, que
é a mais rigorosa, pode-se falar de finalismo somente quando se tem
a ver com agentes dotados de inteligência e de vontade. Numa outra
acepção, entende-se por fim aquele coisa que, segundo o curso nor-
mal da natureza, é o resultado da ação de um agente, como se ela
fosse prevista e desejada por tal agente. Se tomamos o termo fim
nesta segunda acepção, pode-se dizer que também os seres inanima-
dos agem em vista de um fim, embora nenhum ser dotado de pen-
samento regule ou provoque os movimentos deles390 .
Para Ockham, contudo, pelo fato que um agente chegue sem-
pre a um certo objetivo, não se deve necessariamente concluir que
aquele agente age em vista daquele objetivo. Tal conclusão é justifi-
cada no caso em que o agente é dotado de inteligência e de vontade,

effic1ente, qum non potest proba11 suffic1enter quod qmhbet effectus habeat ahquarn causam fi-
nalem Ex hoc 1pso quod ahqmd est causa effic1ens, non seqmtur quod est fims, nec converso»
(Quorl/ IV, q 1, Ope1a Theolol{tw IX, pp 295-296)
190 «Propter autem dieta A 1 1 s t o t e 1 1 s oportet scire quod fims, quarnv1s apud e u m

multiphclter acc1pmtur, tamen ad praesens duphciter acc1p1tm uno modo p r o p r I e , et s1c


fims d1c1tur ahqmd mtentum vel des1deratum vel amatum propte1 quod agens ag1t Et s1c natu-
ralm pure manunata, s1 non moventur nec dmguntur ab ahquo agente a propos1to, non habent
causam finalem nec finem A 1 1 o m o d o acc1p1tu1fims vel causa finahs pro Jllo quod
secundum communem cursum naturae, 111s1 unpedmtur, seqmtm ad operauonem altenus et eo-
dem modo seqmtm ac s1 esset prnesc1tum vel des1deiatum ab agente Et isto modo fims repen-
tur m mammatls, etlam pos1to quod a nullo cognoscente regantm vel moveantu1 Et s1c loqmtur
P h 1 1 o s o p h u s de causa finah II Phys1corum versus finem Et 1deo pomt m natura fi-
nem, qum eodem modo fit s1cut s1 fie1et ab arte» (Summu/a p/11/0,\0phwe naturalt.,, li, 6, Ope-
,a Ph1/osop/11w VI, pp 229-230)

244
que lhe permitem fixar-se de antemão um fim, depois de havê-lo es-
colhido entre outros fins possíveis. No caso dos agentes naturais,
isto não acontece e, por isso, a regularidade que se encontra na na-
tureza não é explicada através do finalismo, e sim pelo determinis-
mo, isto é, reportando-se ao fato de que a natureza das coisas é a
única causa do fato que um agente produz sempre o mesmo efei-
t o391 . p ort anto, o ç1ato de que nao
- so, os agentes naturais,
· mas tam-
bém os agentes livres, no ato mesmo de emergir do nada, encon-
trem-se por sua natureza ordenados a um fim que eles evidente-
mente não puderam pré-fixar, pode ser conhecido só se o criador de
tais seres o manifestar, ele que os chama do nada ao ser e os inscre-
ve em uma ordem precisa, que é a natureza. Isto não quer dizer, de
resto, que o fim ao qual todas as criaturas, sem exceção, são orde-
nadas, seja o seu fim: trata-se antes do fim entendido por seu cria-
dor.
Portanto, não é possível conhecer o fim último das coisas, o
fim para o qual foram criadas, se para tanto se parte de sua nature-
za ou de seu comportamento. Podemos saber que cada coisa tende
para um fim último só se Deus o revela. Filosoficamente chegamos
à conclusão que Deus pode ser o fim último das criaturas dotadas
de liberdade, do homem, por exemplo, que pode eleger a Deus como
fim supremo de sua vida, mas pode também não elegê-lo.
Sem a revelação, o homem ignoraria qual é o seu fim último
e, por isso, não seria capaz de estabelecer em que coisa consiste seu
verdadeiro bem, para o qual deve fazer convergir sua atividade li-
vre. A pergunta filosófica sobre a natureza do ser livre e sobre a
natureza dos seres que o circundam não é suficiente para indicar ao
homem qual seja o termo daquele multifonne dinamismo que perva-
de todos os seres do universo. Somente com os recursos da razão, o
homem não consegue dar um sentido nem à aventura de sua existên-
cia, nem à aventura cósmica em geral. Assim, se esvaece para ara-
zão a possibilidade de dar um significado preciso ao imperativo
formal constitutivo da moralidade: faze o bem e evita o mal.

'"' «lnammata sunt mere agenua ex necess1tate naturae mh1l propne mtendentm» (lb,dem,
Opem Plulosoph1w VI, p 228)

245
Como conclusão, segundo Ockham, a ordem moral não pode
ter uma fundamentação filosófica, mas apenas uma fundamentação
teológica 392 . À primeira vista, a tese ockhamista pode parecer como
uma tomada de posição inovadora, que se destaca completamente do
pensamento dos escolásticos. Na realidade, Ockham não se distan-
cia muito daquilo que foi o pensamento de seus predecessores. De
fato, recordando as considerações com as quais santo Tomás, são
Boaventura e Duns Scotus demonstram a necessidade ou a provi-
dencialidade da revelação, constata-se que elas se centralizam na in-
capacidade da filosofia em oferecer uma solução satisfatória ao
problema da vida.
Entre os argumentos de santo Tomás, de uma parte, e os de
são Boaventura e de Duns Scotus de outra, encontra-se esta única
diferença substancial: enquanto Tomás admite que, sem a tragédia
do pecado original, a razão estaria em condições de instruir-se de
modo conveniente a respeito das verdades e das normas às quais o
homem deve ater-se para chegar à perfeição e à felicidade que lhe é
conatural, para Boaventura e Duns Scotus a hipótese de uma per-
feição e felicidade naturais do homem não tem sentido e é impropo-
ní vel. Por isso, em ambos os casos, a filosofia não está em condi-
ções de elaborar, a respeito da vida, uma solução isenta de erros e
de maneira perfeita e completa, embora relativa.
Afirmando a insuficiência de uma fundamentação filosófica
da ética, Guilherme atém-se, sem dizê-lo, às conclusões de Boa-
ventura e Duns Scotus e as julga válidas por três motivos funda-
mentais. A primeira·e mais importante razão é aquela que acabamos
de analisar, isto é, que, de fato, Aristóteles e seus comentadores não
chegaram a afirmar qual seja o fim último do homem e, por isso,
não é verossímil que tal fim possa ser apreendido na pesquisa filosó-
fica. Ockham reafirma aqui a convicção, expressa mais vezes em
suas obras, de que a razão humana dificilmente pode ir além de-
onde chegou Aristóteles. Para além deste só é licito prosseguir sob a
guia da revelação, em virtude do princípio da onipotência teológica.
Ainda uma vez é oportuno notar qual seJa exatamente a posição do

mTal é a conclusão a que chega Bettom no artigo li problema dei f111e


ult111w , pp 243-244

246
mestre inglês. Guilherme não diz que a razão humana demonstra
que Deus não é o fim último do homem; afirma simplesmente que a
razão humana não é capaz de estabelecer com exatidão qual seja o
fim do homem. Ela dispõe de argumentos prováveis, que lhe permi-
tem concluir que Deus pode ser o fim último das criaturas livres,
mas não que seja necessariamente. Não há, pois, nenhum conflito
entre as verdades da razão e as da fé.
A contraprova da correção da tese que sublinha a insuficiên-
cia da fundamentação filosófica da moral é data pelo segundo dos
três motivos, que mostra como as argumentações com as quais os
mestres mais autorizados da escolástica do século XIII creram ha-
ver chegado a demonstrar que Deus é o fim último do homem, são
argumentações débeis, provas persuasivas, mas não apodícticas.
O terceiro motivo é dato, invés, por aquilo que podemos
chamar a aplicação do princípio de economia em âmbito teológico:
como é uma verdade de fé que Deus é o fim último do homem, não é
pensável que tal verdade possa tornar-se objeto de demonstração. Se
o homem pudesse chegar com o auxílio só da razão a demonstrar tal
verdade, teria sido inútil que Deus lha revelasse diretamente, pois é
contraditório que Deus aja inutilmente ou que faça as coisas duas
vezes393 .
Como já observamos a respeito da espiritualidade e da imor-
talidade da alma, Ockham recusa-se a admitir que a teologia possa
ser uma ciência ao nível das demais, isto é, capaz de demonstrar
analiticamente suas conclusões, e isto porque se a revelação tivesse
conteúdos atingíveis pela razão, então seria inúti1394 .

' 9 \,Quod talts fruillo est nob1s poss1b1ltsnon potest naturahter proban, videtur, qma phdosoph1

mvestlgantes d1hgente1 qms s1t fims ultmms operum humanorum non potuerunt ad 11Iumfinem
attmgere, 1g1turnon est veris1m1lequod hoc poss1t natmaltter proban. Praeterea, ornnes rat10nes
adductae ad probandum hoc sunt solubtles, 1g1tur non potest ilia conclus10 naturaliter proban
Piaeterea, secundum omnes Sanctos, ad tenendum talem finem nob1s esse posstbilem requ1ritur
fides, sed s1 posset naturahter proban non esset fides necessana» (/11/ Sent., 1, 4, Opera Theo-
log1ca I, p. 433)
194 /b,, Prol. (Opern Theolog1ca I, pp 183-206) «Uuum theologm quae de commum lege ha-

betur a theologis s1t sc1ent1apropne dieta» Pai a a anáhse da questão, se a teologia é ou não é
uma c1ênc1averdadeira e própna, remeto ao volume de R. Guelluy, Philosoph1e et théolo,:1e
. chez G111/laumed'Ockhom, Louvam-Pans 1947

247
3. A norma objetiva da moralidade

Ao ensinar que o fim último do homem é Deus, a revelação


diz que Deus deve ser amado porque é o sumo bem, isto é, deve ser
amado de modo absoluto, em si e por si, com um amor perfeitíssi-
mo, chamado por Ockham de amor de amizade. De fato, existe no
homem uma inclinação natural para amar a qualquer um desinteres-
sadamente, isto é, com este amor puríssimo ou de amizade. Pois
bem, a revelação nos faz saber que o ser digno de tornar-se objeto
de um tal amor é somente Deus, porque só ele é nosso fim último,
definitivo no sentido de que não relac10nável a nada, enquanto tudo
o mais a ele se relaciona 395 .
A afirmação que Deus deve ser amado deste modo comporta
uma outra afirmação: que em todo e qualquer caso é necessário
obedecer a Deus. O homem, em qualquer circunstância de tempo e
de lugar em que se encontre, é obngado a submeter-se à vontade di-
vina. O ato de amor de Deus, que se concretiza em um ato de obedi-
ência aos seus mandamentos, configura-se como intrinsecamente
bom e torna-se imperativo moral absoluto, invariável, válido sempre
e em qualquer lugar. Acrescentando então que aquele ato de amor
de Deus não só não pode ser mau, enquanto não pode não ser con-
forme ao mandamento de Deus, mas é o princípio de todos os atos
bons, Ockham acaba dizendo que o amor de Deus ou a intenção de
agir em conformidade com os mandamentos divinos, constitui o
fundamento ou a essência da moralidade, e que exatamente nisto ~ ·
colocada a discriminação que distingue um ato positivamente bom
de um ato mau ou moralmente indiferente 396 .

195 <<lllosolo est fruendum quod non est ad ahud ordmab!le, se<lomne ahud a Deo est ad Deum

tamquam ad finem 01dmab1le 1g1tur nullo aho a Deo est fruendum» (ln I Sent, 1, 4, Opera
Theologica I, p 441).
196 «Actus quo d1hg1tur Deus supe1 omma propte1 se, est hu1usmod1, nam 1ste actus s,c est v1rtu-

osus quod non potest esse v1t1osus, nec potest 1ste actus cau5a11a voluntate creata ms1 s1t vutuo-
sus, tum qma qmhbet pro loco et tempore obhgatu1 ad d1hgendum Deum super omma, et per
conseguens 1ste actus non potest esse v1t1osus, tum qu1a 1ste actus est prunus ommum actuum
bonorum» (Quodl III, q 14, Opel(I Theolog,w IX, pp 255-256) «Sola cantas d1v1d1tmter
fihos regm et perd1t10111s» (/11IV Sellf, 11, Opew Theolog1w VII, p 214)

248
O imperativo categórico: faze o bem e evita o mal, converte-
se assim no imperativo: age sempre em conformidade com a vontade
de Deus. Também para Ockham, portanto, a lei moral possui um
fundamento objetivo, qual seja, o direito de Deus de colocar-se
como fim último de todas as criaturas, seja do homem, seja do uni-
verso. Tal direito não se funda em um mandamento positivo de sua
vontade soberana, mas sobre a natureza mesma de Deus, isto é, so-
bre o fato que somente ao ser divino pertence a prerrogativa de não
ser relacionável a nada outro, que não a si mesmo.
Certamente, Ockham faz da vontade divina a primeira regra
diretiva à qual compete estabelecer o que é bem e o que é maI397 •
Por ela, aquilo que Deus quer é bom e justo. Mas com isto Ockham
não pretende afirmar que a vontade divina aja arbitrariamente. Quer
dizer apenas que a vontade divina não precisa receber diretivas de
fora, não pode ser aquietada por alguém ou por alguma coisa que de
fora a instrua a distinguir o bem e o mal, visto que é impensável que
Deus possa querer o mal.
Além disso, poder-se-ia falar de arbitrarismo divino e, conse-
qüentemente, de positivismo ético, somente se o Venerabilis Incep-
tor admitisse alguma distinção entre intelecto e vontade em Deus.
Ora, pelo contrário, ele sublinha que a absoluta simplicidade de
Deus impede-nos de admitir nele qualquer distinção entre essência,
intelecto e vontade398 , o que se prova pelo fato de que nem mesmo
no homem o intelecto e a vontade, enquanto potências, se destin-
guem, mas pode-se falar de diversidade só entre o ato de conhecer e
o de querer399 . Por isso, levando em conta estes pressupostos siste-
máticos, a afirmação que a vontade divina é a primeira regra direti-
va é convertível com esta outra: a essência e o intelecto divinos são
a primeira regra diretiva. Se, pois, é verdade que não apenas o que-
rer de Deus cai sobre um objeto diverso da essência divina, entra-se
de imediato no âmbito do contingente e do criável, sobre o qual pai-

197 Cfr Quaestume.< vanae, q 8 (Opew Theoloi:u·a VIII, pp 409-410)

'"\<[ln Deo] nulla pemtus est d1stmct10mtcr essenllam ct voluntatem nec mter voluntatem et
mtellcctum» (ln/ Se/1/, 45, umca, Opera Theoloi:1ca IV, p 664).
' 99 Cfr ln l Se/1/, 1, 2 (Opeta Theoloi:1w 1, p 396)

249
ra sobranceira a vontade libérrima de Deus. Contudo, é igualmente
verdadeiro que, antes de serem cnadas, as coisas foram ideadas e
produzidas no mtelecto divino. O pensamento de Deus, do qual as
coisas tomam seu significado ideal, é também a norma do ser e do
agir delas, visto que a vontade divina regula-se pelo pensamento de
Deus, com o qual identifica-se. A liberdade de Deus não pode ser
entendida como um arbítrio verdadeiro e próprio, porque existem
vínculos: Deus não pode querer, nem prescrever, aquilo que inclui
contradição 400 .
Deus se comporta sempre sapientemente. Com isto está dito
que o intelecto de Deus guia e dirige a vontade. De potentia ordi-
nata ele pode fazer tudo aquilo que não contradiz quanto quis posi-
tivamente. É este atual e positivo querer de Deus que é racional e
ordenado, visto que, em Deus, intelecto e vontade coincidem.
Colocando na vontade divina o fundamento último da morali-
dade, Ockham não prospecta o agir moral como um submeter-se à
lei imposta por uma vontade impessoal, mas como a aceitação de
uma lei ditada por uma pessoa, na qual sabedoria, bondade e justiça
identificam-se. As afirmações ockhamistas, com isso, acabam ali-
nhando-se com as teses comuns dos escolásticos, ao dizerem que o
fundamento último da moralidade é Deus, ou 'a lei eterna'.

4. O ódio a Deus

Contra a validade desta interpretação, que recusa à ética


ockhamista a qualificação de positivismo moral, pode-se aduzir a
objeção que Ockham admite explicitamente a possibilidade que
Deus mande a alguém que o odeie, e que tal ato, realizado em obe-
diência a um mandamento divmo, seria sem dúvida um ato meritó-
rio 401.

4ºº«Omne quod non mcludit contrad1cuonem, nec malum culpae, potest fien a Deo» (ln li
Sent, 19, Opera Theolog1w V, p 342) Cfr ln I Sent, 35. 5 (Ope,a Theolog1w IV, pp 504-
505), Quodl VI, q 1 (Ope,a Theolog1w IX, pp 585-589)
-1oiln IV Sent, 16 (Ope1a Theolog,w VII, pp 340-361), Quodl III, q 14 (Ope,a Theolog1u,
IX, pp 253-257)

250
A objeção é sena: a hipótese da meritoriedade do ódio a
Deus, quando ordenado pela vontade divina, acaba tirando todo va-
lor à outra afirmação ockhamista, segundo a qual a vontade divina
está submetida a uma lei, isto é, à necessidade de evitar a contradi-
ção.
Trata-se aqui de colocar de acordo Ockham consigo mesmo,
e para tal fim são avançadas algumas observações preliminares.
Inicialmente, a possibilidade que Deus mande que uma cria-
tura o odeie é colocada por nosso autor para resolver um problema
metafísico, precisamente o problema da cooperação de Deus na ati-
vidade das causas segundas. Na necessidade de livrar de qualquer
culpa a Deus que, na qualidade de causa eficiente primeira, presta o
seu concurso à ação pecaminosa da criatura, Ockham julga que
pode valer-se de sua doutrina ética, segundo a qual a bondade ou a
malícia de um ato não pertencem ao ato em si, mas modificam a
própria razão de ser pela obrigação que uma criatura tem de agir em
conformidade com a lei de Deus. E como Deus não possui obriga-
ções ou débitos para com ninguém, Ockham está convencido que a
atividade de Deus está além do bem e do mal e não cai sob a catego-
ria da moralidade.
Ora, a partir do momento em que um homem pode impor a
um outro que cometa atos de ódio contra Deus, somos constrangi-
dos a admitir que Deus seria a causa primeira e o homem a causa
segunda de uma tal ordem. Somente deste ponto de vista, isto é,
atendo-se somente à razão lógica do discurso, não parece contradi-
tória a possibilidade que Deus ordene o ódio a si mesmo402 • Mas
quando admitiu a possibilidade lógica, Guilherme não se deu conta
que caiu em contradição com quanto havia afirmado anteriormente,
isto é, que Deus não pode jamais querer o contraditório. Ockham
ensina que Deus é o fim último da criatura e, por isso, deve ser
amado sempre e acima de toda coisa. Pois bem, com a hipotética
ordem do ódio a Deus, a vontade divina ordenaria à criatura duas
coisas que se excluem: ordenaria que obedecesse a ele e, portanto,

402 «Deus potest praec1perequod voluntas creata odiai eum, 1g1turvoluntas creata potes! hoc fa-
cere» (ln IV Sem, 16, Ope,a Theolog1w VII, p 352)

251
que o amasse com fim último, e ao mesmo tempo que o odiasse. E
esta é uma contradição manifesta, que se traduz também em um ab-
surdo psicológico, observado pelo próprio Ockham que, nos Quo-
dlibeta, sublinha como a ordem hipotética colocaria a criatura em
conflito e em contradição consigo mesma, devendo amar e, ao mes-
mo tempo, odiar a Deus 403 •
Ockham, porém, não percebeu que, em uma semelhante hi-
pótese, é Deus mesmo que, antes que a criatura, entraria em conflito
ou em contradição consigo mesmo. Fugiu a nosso autor que o ab-
surdo psicológico é precedido por um absurdo ético, qual seja o de
que Deus possa querer o contraditório. Fazendo a hipótese do ódio a
Deus, no desejo de sair de uma dificuldade surgida em âmbito meta-
físico, ele não se percebeu que com uma só frase cancelava posições
fundamentais da própria ética.
Trata-se, evidentemente, de um desenvolvimento falho do
problema, e, como tal, não deve ser considerado como decisivo com
relação à fundamentação ockhamista da ética404.
De fato, já demonstramos que Deus não pode ordenar o ódio
a si mesmo, sem contradizer-se. Portanto, estamos diante de um di-
lema: ou Ockham, ao formular a hipótese incriminada, queria cons-
cientemente renegar suas declarações programáticas relativas ao ab-
surdo como limite da onipotência de Deus, ou, na preocupação de
encontrar um caminho de saída para resolver a dificuldade ante à
qual se encontrava, não se deu conta que se enredava em outra difi-
culdade maior.

401 «Stdtcts quod Deus potest pt aectpere quod pro ahquo tempore non dthgatur tpse, qma potest
praec1pe1equod mtellectus s1t stc mtentus ctrca studtum et voluntas s1m1hter,ut mhil posslt pro
1110tempore de Deo cog1tme Respondeo s1 Deus posset hoc praectpere, stcut vtdetur quod
potest sme contradtcttone, dtco tunc quod voluntas non potest pto tunc talem actum ehcere;
qma ex hoc tpso quod talem actum ehceret, Deum d1hgeret super omma, et per conseguens 1m-
pleret praeceptum dtvmum, quta hoc est dthgere Deum super omnía dthgere qmdqutd Deus
vult dthgi, et ex hoc tpso quod s1c dthgeret, non faceret praeceptum dtvmum per causam, et per
conseguens stc dthgendo, Deum d1hge1et et non dthgeret, face1et praeceptum Det et non face-
ret» (Quodl III, q. 14, Ope,a Theo/og,ca IX, pp 256-257)
404 São deste parecer quase todos os estudiosos mms tecentes do pensamento éttco de Ockham.

Cfr Boehner, OPW, pp XL!X-L, Hochstetter, Vwtor Mu11d1 ., p 16, W Koelmel, Das Na-
turretht bet W Ockham, «Franz St », 35 (1953), 39-85.

252
Como nada nos autoriza a pensar que, com aquela hipótese,
ele desejasse cancelar outros pontos sólidos de seu sistema, como a
exclusão do absurdo no âmbito da onipotência divina, não nos resta
senão supor que ele tenha feito um passo em falso. Estamos con-
vencidos, pois, que Ockham não renunciou à afirmação de que
Deus, ao ditar suas ordens, não se abandona ao arbítrio, mas em
cada caso regula-se, ou melhor, atém-se às normas de sua sabedoria
infinita.
Assim sendo, permanece válida a tese de que, mesmo se para
Ockham, à raiz da ordem moral, que encontra seu fundamento em
Deus, encontra-se a vontade divina, trata-se todavia de uma vontade
. compenetrada de racionalidade, uma vontade respeitadora das leis
imutáveis do ser e do conhecer. Deste ponto de vista, podemos con-
cluir que a ética de Ockham concorda substancialmente com a ética
escolástica. O que distingue o pensamento de Ockham daquele dos
grandes mestres do século XIII é a tese sobre a impossibilidade de
fundamentar filosoficamente a ordem moral: este é o seu erro, e não
aquele de haver ensinado um positivismo moral. Ensinando que so-
mente a teologia está em posição de fazer-nos conhecer qual é o úl-
timo e imutável fundamento da lei moral, e recusando claramente o
naturalismo ético de Aristóteles, para quem o agir moral coincide
com o agir segundo a natureza, Ockham coloca a essência da mora-
lidade no agir em conformidade com o querer divino: a essência da
moralidade é o amor, o amor do último fim; não um amor entendido
em sentido lato, como inclinação ou tendência natural, mas entendi-
do em seu significado rigoroso de adesão consciente e livre a alguém
ou a alguma coisa bem precisa.
Disto provêm as múltiplas delimitações com que Ockham
procurou delinear o conceito de liberdade e precisar todas as impli-
cações.
Se a moralidade se resolve em um ato de amor, em uma
aceitação livre do último fim indicado por Deus ao homem, torna-se
ainda mais importante deixar claro que o homem, também ante este
supremo dom de Deus, conserve intata sua liberdade, isto é, sua ca-
pacidade de autodeterminar-se a querer ou a não querer. E é exata-
mente esta redução explícita da bondade moral ao amor, e da malí-

253
eia à recusa do amor, que nos fornece a idéia chave para captar o
espírito do ensinamento de Ockham a respeito de outros componen-
tes do ato moral.

5. A norma subjetiva

As condições objetivas da moralidade de um ato são a liber-


dade e a destinação ao fim último, de tal forma que um ato moral
deve resolver-se em um ato de amor a Deus e, por conseqüência, em
um ato livre de adesão à vontade divina.
Resta o problema de determinar se a ação que hic et nunc
estamos a ponto de realizar é boa ou má, se realiza ou não a condi-
ção fundamental de aproximar-se ou afastar-se do último fim. À di-
ferença da vontade divina, a vontade humana não é a 'primeira re-
gra diretiva', não está necessariamente em harmonia com a lei su-
prema do ser e está sempre exposta ao risco de querer aquilo que é
intrinsecamente contraditório 405 .
Esta falibilidade, esta debilidade da vontade humana, devido
à qual não possui em si a garantia de agir sempre e em todo caso
racionalmente, faz surgir a necessidade de que a vontade seja go-
vernada por alguma outra regra diretiva, extrínseca a ela, conhecida
e proposta pelo intelecto406 . É este o motivo pelo qual a ordem mo-
ral, em sentido rigoroso, é constituída por comportamentos e por
atos sujeitos à potência da vontade, segundo o juízo natural da reta
razão e segundo as outras circunstâncias 407 . Diremos que esta é a
razão pela qual a nossa vontade só se autodeterminada após uma
conveniente deliberação.

405 Quaestwnes vanae, q 8 (Opera Theo/og1w VIII. pp 409-410)


4'l6 «Adhoc quod actus rectus ehciatur a voluntate necessano requmtur ahqua recta ratio m m-
tellectu» (lb1dem, Opera Theolol{tca VIII, p 409)
407 «D1co quod 'morale' acc1p1tur I a 1 g e pro acubus humams qu1 subiacent voluntall ab-

solute , mag1s s t r 1 e t e pw moribus s1ve act1bus sub1ect1spotestall voluntaus secundum


naturale d1ctamen ralloms et secundum altas Clfcumstantlas» (Quod/. li, q 14, Opera Theolo-
g1ca IX, pp 176-177)

254
A reta razão, que, segundo Ockham, assiste à vontade e se
propõe a esta como guia natural quando de ação, nada mais é que a
consciência moral ou a 'prudência' dos escolásticos 408 .
Da estreita complementaridade operativa entre a vontade e a
reta razão segue-se que um ato, para ser moralmente bom, deve ser
cumprido segundo a consciência. Um ato não é verdadeiramente
moral se à moralidade objetiva não se acrescenta aquela subjetiva
ou formal. Não basta que um ato seja objetivamente bom ou mau,
pois para que uma ação boa seja de fato boa, deve ser querida por-
que se sabe que é boa, e vice-versa, para que uma ação má constitua
pecado, deve ser querida, sabendo-se que é uma ação pecaminosa.
Surge aqui uma pergunta: de qual fonte a reta razão assume
as indicações que hic et nunc sugere à vontade para iluminá-la a
respeito da bondade ou da malícia da ação que está a ponto de reali-
zar? A este respeito, os escolásticos ensinavam que a obrigação da
consciência é de aplicar aos casos concretos os supremos princípios
e os axiomas éticos naturalmente impressos na alma do homem.
Para alguns pensadores, tais axiomas eram inatos, isto é, presentes
ao espírito em virtude da iluminação divina (iluminação moral);
para outros, ao contrário, eram conhecidos de todos no sentido que
eram formuláveis com estrema facilidade pela razão. Tais princípios
eram o objeto da sindéresis, que se configurava assim como o ftm-
damento imutável do qual recebem seus valores todos os juízos prá-
ticos pronunciados pela consciência.
A doutrina da sindéresis baseava-se, por sua vez, sobre uma
concepção de homem, entendido como imagem de Deus, como a cri-
atura que, em virtude de suas capacidades racionais, reflete em si a
verdade de Deus com os primeiros princípios teóricos e a santidade
divina com os primeiros princípios práticos. Nos escritos de
Ockham não existe sinais desta doutrina da sindéresis. Garvens
atribui esta ausência ao fato de que no sistema filosófico dele desa-
parecera a concepção de homem como imagem de Deus 409 . Pode-se

40"«Rectaautem iatto est prudentta m actu vel m hab1tu» (/11 Ili Sei//., 12, Opera Theolog1ca
VI, p 422)
""'Gmvens, D,e G1u11dlage11 der Et/11~ , p 375

255
dizer também que se trata de uma conseqüência de seu modo de en-
tender os conceitos universais: tendo negado todo valor às essências
universais, Guilherme encontra-se na impossibilidade de ancorar a
consciência na essência do homem e de considerar os imperativos
éticos como manifestação necessária e óbvia das tendências profun-
das da sua natureza.
Todavia, também Ockham admite a existência de princípios
éticos supremos, que regulam e fundamentam, na qualidade de pre-
missas, os juízos práticos particulares da consciência. Ancorados na
razão, estes princípios universais regulam todo possível ato huma-
no. Eles dizem, por exemplo: deve-se fazer o bem e evitar o mal, ou:
é necessário seguir os ditames da consciência ou da reta razão4 10.
Trata-se de regras meramente formais, válidas para cada
conduta possível, e que prescrevem como se deve agir, mas não in-
dicam o que se deve fazer concretamente. Ora, saber que se deve fa-
zer somente o que é honesto ou que se deve amar somente o que é
bem, não serve para nada se se ignora o que é o honesto e que coisa
é o bem. O conhecimento espontâneo e habitual de tais princípios
não é, pois, suficiente para justificar a afirmação de que existe uma
lei moral natural: para poder afirmá-lo, seria necessário que a razão
estivesse apta a indicar em que consiste o honesto que se deve fazer
e o bem que se deve amar.
Sabemos já que, segundo Ockham, somente a revelação é ca-
paz de dar a conhecer com segurança ao homem a existência de um
bem supremo e imutável, de um bem a ser querido e de um mal a
evitar-se a todo o custo, e isto porque só pela revelação o homem
sabe que tende para um fim último e que tal fim último coincide
com a posse beatífica de Deus. Somente sobre a base da revelação,
por conseguinte, a reta razão estará apta para tornar conhecido à
vontade que o imperativo ético supremo, fundamento de todos os
possíveis preceitos morais, é que Deus deve ser amado sobre todas

41 º«Vntutes morales omnes connectuntur m qmbusdam p1mc1pns umversahbus, puta 'omne


honestum est fac1endum', 'mnne bonum d1hgendum', 'omne d1ctatum a 1ecta ratione est fac1-
endum', quae possunt esse maimes et mmmes m syllog1smo practico concludente conclus1onem
parttculaiem» (Quae•tumes va11ae,q 7, a 3, Ope,a Theologlla Vlll, p 347) Cf1 Quodl II,
q 14 (Ope,a Theologtw IX, pp 176-178)

256
as coisas. Portanto, a passagem de uma ética formal e abstrata para
uma ética de conteúdo acontece somente pela mediação da fé. Se-
gue-se, então, que o dever principal da consciência (ou reta razão) é
o de aplicar a lei divina aos casos práticos, e de sugerir à vontade as
coisas que de momento em momento deve querer para não contrari-
ar sua natureza de potência que possui como objeto o bem.
Como conclusão, a razão diz ao homem que deve existir uma
lei moral, pois impõe-lhe que faça o bem e evite o mal, mas somente
a revelação fá-lo conhecer o conteúdo de tal lei, aquele de amar a
Deus sobre todas as coisas e de amar todas as coisas em vista de
Deus.
Depois de haver fixado que o ato moral nasce de uma colabo-
ração entre o intelecto prático e a vontade, Ockham precisa os mo-
dos e as leis que regulam esta simbiose operativa. Inicialmente, os
ditames do intelecto prático, que se exprimem através da voz e das
solicitações da consciência, não são obrigatórios nos confrontos
com a vontade, a qual conserva sempre a possibilidade de não ouvir
a consciência, ou de fazer o contrário daquilo que a consciência
aconselha, ou de abster-se de agir. A liberdade da vontade é uma
condição à qual não se pode renunciar, constituindo um dado evi-
dente da consciência, indemonstrável com argumentos científicos,
mas documentável a partir da experiência interna. Todo homem ex-
perimenta a possibilidade de refutar os ditames do intelecto, e se as-
sim não fosse, isto é, se a vontade se encontrasse na impossibilidade
de subtrair-se às imposições da consciência, a experiência do peca-
do tomar-se-ia fisicamente impossível411 •
Mas Ockham faz uma consideração ulterior: exatamente por-
que se encontra em poder da vontade aceitar ou não as conclusões
da reta razão ou da prudência, em ordem ao agir, é necessário afir-
mar que também a reta razão e as diretivas que ela propõe à vonta-
de são objeto do ato de querer. E com isto, nosso autor quer dizer
que a livre decisão da vontade de efetuar uma ação virtuosa implica
também a livre decisão de reconhecer como válidos os motivos pelos

411 «Nonest tahs connex10 mte1 mtellectum et voluntatem qum voluntas posslt m oppos1tum m-
d1cat1ab mtellcctu, ah ter non posset peccmc» (/11 Ili Sent, 11, Ope,a Theolog1ca VI, p 355).

257
quais a consc1encia a aconseIha ou Ihe prescreve412 . N outras pa 1a-
• ºA •

vras, Ockham afirma que decidir fazer uma ação em resposta aos
ditames da reta razão significa querer aquilo que a reta ra,zão pres-
creve, pelo motivo que o prescreve. A primeira conseqüência que se
segue é que a reta razão e, portanto, o mtelecto, reveste-se da im-
portância de causa eficiente parcial do ato volitivo. Esta especifica-
ção tem sua importância do ponto de vista histórico, porque mostra
mais uma vez quão grande seja o débito de Ockham para com Duns
Scotus, o qual havia aplicado também ao caso da colaboração entre
conhecer e querer a sua teoria das causas eficientes parciais, teoria
tão importante para resolver os problemas psicológicos, a começar
por aquele relativo à parte que cabe respectivamente ao sujeito e ao
objeto na determinação dos atos de conhecimento4 13•
Nosso autor sustenta a mesma tese quando diz que o intelec-
to, por apresentar em suas motivações à vontade o objeto ou a ação
do querer, concorre para o surgimento do ato livre, assumindo para
tanto o papel de causa eficiente parcial, não podendo ser ato virtuo-
so, ou moralmente bom, caso falte esta integração da vontade com a
reta razão, ou seja, com o juízo último prático da consciência 414 .
É necessária uma colaboração entre intelecto e vontade, fim-
dada sobre o fato de que se quer somente aquilo que é conhecido e
que o ato livre deve ser sempre um ato responsável, razão pela qual
deve ser preparado e introduzido pela mediação operante da razão.
Refletindo-se então como o papel principal da reta razão seja o de
tornar conhecido à vontade se a ação que está para ser praticada é

412 «Nullusactus est perfecte v1rtuosus, ms1 voluntas per 11lumactum veht d1ctatum a recta iatl-
one p10pter hoc, quod est d1ctatum a recta ratmne, qma s1 vellet d1ctatum a ratmne, non qma
d1ctatum, sed qum delectabtle vel p10pte1 aham causam, mm vellet 11ludd1ctatum SI solum esset
ostensum pe1 apprehens1onem sme 1ecta iallone, et per conseguens 11leactus non esse! vlrtuo-
sus, qma non hceietur conform1ter ratmm rectae» (Quae.1tumes vwwe, q VII, a IV, Opera
Theofog,w VIII, p 395)
~"Cfr Bettom, Duns Swto , pp 153-168. B Bonansea, Dut1.1Swtus Vofuntansm, m J
Duns Swtus 1265-1965, Washmgton 1965, pp 83-120
414 «Reqmratur prudentm tamquam ob1ectum partmle et causa effic1ens partmhs 1psms actus

v1rtuos1 Cum prudentm actuahs necessano requuatur ad actum v1rtuosum et est ahquo modo
pnor, seqmtur quod actus pmdentiae s1t ve1e causa effic1ens essentmhter et necessano requisita
ad actum v1rtuosum, 1ta essentmhter s1cul voluntas necessano 1equmtm tamquam causa effic1-
ens ad hoc quod actus s1t v1rtuosus vel me11to11us»(Q11ae11w11es varwe, q VIII, Opera Theo-
fog1ca VIII, pp 415-417)

258
ordenada ou proibida por Deus; e pensando-se no fato de que a
vontade deve decidir querer ou não querer uma coisa pelo motivo
que lhe é prescrito pela razão, percebe-se que a conclusão é esta: o
agir moral resume-se no querer ou não querer obedecer a Deus e,
portanto, em definitivo, resume-se em um ato de amor ou de não-
amor a Deus. A pura obediência a Deus é dada por um ato de amor
pela reta intenção de amor a Deus. Deus é o fim último de todas as
nossas ações morais, e o fim é aquilo que sempre se ama.
Um discurso análogo àquele da relação vontade-intelecto é
feito a respeito das circunstâncias de tempo e de lugar que acompa-
nham concretamente as nossas ações e concorrem para a qualifica-
ção moral delas. Não se pode querer seriamente uma ação, sem que-
rer ao mesmo tempo todos os elementos que a constituem em sua
concretude de evento historicamente determinado. Por isso, o ato de
vontade com o qual alguém decide a amar a Deus e ater-se em tudo
à sua vontade ficaria incompleto, se na vontade de fazer tal ou tal
ação não se indicasse para um tempo e um lugar bem determinados.
Conclui-se, pois, que a vontade de amar a Deus implica a vontade
de seguir a própria consciência e a de fazê-lo nas devidas circuns-
tâncias.
É esta a razão pela qual Ockham ensina que se o fim último é
o objeto principal do querer, os motivos que induzem a querer uma
coisa e as circunstâncias nas quais a decisão é concretizada configu-
ram-se como objetos parciais e secundários do querer: se a vontade
de praticar um ato importa também a vontade de colocá-lo em de-
terminadas circunstâncias de tempo e de lugar, conclui-se que
aquelas circunstâncias, enquanto queridas, concorrem a determinar
o ato de querer na qualidade de causas eficientes parciais 415 •

41 '<,Omnes cncumstanuae actus voluntatts sunt ob1ecta partiaha 1lhus actus Exemplum: s1
enim ad hoc quod actus voluntalls quo ahqm~ vult orare Deum s1t perfecte virtuosus reqmran-
tur de necess1tate 1stae cncumstantiae quod vellt 01are propter honorem Dei, secundum rectum
dtctamen rattoms. m tempore statuto, puta dte dommtco, m loco debtlo, puta m ecclesta, tunc
tste actus stc vlrtuosus habet honmem Dei pio ob1ecto pnncipah, actum orandt pro ob1ecto
conunum, rectam rattonem, dtem donumcum et ecclesiam pro ob1ect1ssecundams et parttah-
bus, 1ta quod 1espectu actus voluntaus 1stae cucumstanuae sunt obtecta et causae effecuvae
pmtlales respectu 1lhus actus» (ln III Se/li, 11, Operu TheoloKlllt VI, pp 381-382)

259
6. O voluntarismo de Ockham

A análise de Ockham, relativa à gênese do ato moral, deve ser


avaliada no interior de todo seu pensamento. Assim, inicialmente,
encontramos nela um claro reflexo de sua mentalidade filosófica
também sobre o plano da ética: as mesmas razões pelas quais havia-
se recusado a atribuir qualquer envergadura realística aos universais
e que o haviam feito tomar como ilegítima e infundada a opimão de
quem distingue, nas realidades existentes, elementos universalizá-
veis e elementos individuantes, estas mesmas razões impediram-no
também de dar peso à distinção entre atos abstratamente· considera-
dos e concretamente considerados. A seu juízo, um ato de vontade é
verdadeiramente tal somente quando, juntamente com o fim que se
quer atingir, são queridas as circunstâncias de tempo e de lugar que
conferem ao ato volitivo individualidade e concretude.
Podemos dizer que, para Ockham, a vontade de fazer o bem
ou de fazer algo é uma abstração pura e simples. De um homem
deve-se dizer que tende para seu fim último somente quando coloca,
hic et nunc, este ou aquele ato mandado por Deus, com a intenção
de obedecer a Deus, no modo prescrito por Deus. Como a existência
da humanidade resolve-se na existência dos homens em carne e
osso, assim também a vontade do fim existe na medida em que toma
consistência e exprime-se em atos singulares e circunstanciados.
Caso não se dêem atos que não sejam perfeitamente circuns-
tanciados, compreende-se como Ockham afirme que a moralidade
de um ato depende em tudo e por tudo da vontade, enquanto so-
mente a vontade possui a responsabilidade dos motivos e das demais
circunstâncias que concorrem a construir o ato naquela concretude
que não pode deixar de ter. Para justificar tal afirmação não existe
senão um caminho: chamar a atenção para o fato de que no mo-
mento mesmo no qual se quer uma ação, querem-se também o últi-
mo juízo prático que a ela se refere e as circunstâncias de tempo e
de lugar nas quais a mesma ação se realizará concretamente. Negar
a isto comportaria a negação da existência de atos intrinsecamente
bons ou maus, e implicaria também que um ato, em si ainda não

260
determinado como bom ou moral, possa tomar-se bom em virtude
de qualquer coisa (o fim e as circunstâncias) que não depende de
nossa vontade416 • Na tentativa de precisar melhor a contribuição do
objeto e das circunstâncias na constituição do ato moral, Duns
Scotus havia formulado a estrutura do ato moral como análoga
àquela de um corpo e àquela de uma definição lógica. Como a reali-
dade de um corpo resulta de um elemento potencial e de um ele-
mento formal e como a definição de uma coisa é obtida indicando o
gênero próximo e a diferença específica, assim a bondade moral de
um ato resulta de uma bondade genérica e de uma bondade específi-
ca: a primeira é tomada do objeto, e a segunda, das circunstâncias.
Entre a primeira e a segunda bondade existe uma relação de potên-
cia para ato, análoga àquela que se estabelece entre matéria e forma
no plano da realidade, entre gênero próximo e diferença específica
no plano lógico417 •
Esta doutrina scotista, segundo Ockham, possui o inconveni-
ente de formular, como possível, a existência de atos que não são
em si nem bons, nem maus, e que se qualificam moralmente só em
virtude das circunstâncias418 • O erro da opinião scotista, dito de ou-
tra maneira, consiste em recolocar, no plano operativo, a tese rea-
lista, pela qual, no ato singular e concreto, tal como no indivíduo,
distingue-se uma parte potencial e universal de outra parte individu-
alizante. Como a natureza comum das coisas individualiza-se em
virtude de um fato extrínseco a ela, a heceidade, assim, segundo
Duns Scotus, a essência de um ato, moralmente neutra em si mes-
ma, atualizar-se-ia como boa ou como má em virtude de alguma

416 «Mehor et fort1or rallo ad probandum rallonem rectam s1ve prudenllam esse ob1ectum actus
v1rtuos1 est haec qum ahter sequerentur duo mconvementm P r 1 m u m est quod nullus
actus esset mtnnsece et necessario v1rtuosus sed solum contmgenter, cums oppos1tum prius
probatum est S e e u n d u m , quod de actu non virtuoso fieret v1rtuosus per ahqmd mere
naturale quod non est m potestate nostra» (Quaestumes vanae, q VII, a IV; Opera Theo/og1-
ca VIII, p 398)
417 Ordmatw Scott, II, d. 7, q umca, n 11, ed Vives, XII, pp 386-387 Cfr Bettom, Duns

Scoto . . , pp 256-257
418 ,<I o a n n e s emm pomt quod substanlia actus v1rtuos1et v1t1os1potes! esse eadem, sed d1-

c1tur esse v1rtuosus propter conform1tatem ad cucumstantias reqms1tas quas non pomt esse ob1-
ecta partmha actus v1rtuos1 ldeo per e u m bomtas add1t super substanliam actus respectum
conform1tat1s ad omnes ctrcumstanlias» (ln Ili Sem , 11, Opera Theolog1ca VI, p 387)

261
coisa que lhe sobrevém de fora e, portanto, em virtude de fatores
não contemplados pela vontade. Na realidade, as coisas não são as-
sim: a ação é boa ou má no momento mesmo em que procede da
vontade, e isto porque, na opinião de Ockham, não se pode querer
praticar uma ação sem querê-la praticar por um dado fim e em de-
terminadas circunstâncias. Da vontade não procedem se não atos
completamente bons ou completamente maus, tal como da vontade
criadora de Deus não procedem essências genéricas ou específicas,
mas somente indivíduos.
Um ato que seja somente qualificável como ato, e não como
este ato bom ou este ato mau, é uma abstração, como é puro con-
ceito aquele de brancura que não seja esta ou aquela brancura 4 19•
Com isto não está prejudicada a existência de atos moral-
mente indiferentes. Indiferente, na verdade, é aquele ato de vontade
que termina em um objeto conveniente, enquanto ordenável ao fim, é
conforme com os ditames da reta razão, mas é querido sem fazer al-
guma referência ao fim e sem dar atenção alguma às indicações da
reta razão.
É fácil mostrar como as operações, tanto internas como ex-
ternas, que o homem realizar enquanto ser natural, enquadram-se na
categoria de atos moralmente indiferentes. Ir à igreja, por exemplo,
pode ser uma ação boa ou má, segundo o fim com que se vai. O
mesmo se pode dizer da aplicação ao estudo. Pelo contrário, um ato
que seja intrinsecamente bom, isto é, moralmente bom pelo só fato
de ser aquele ato, é bom necessariamente, no sentido de que é ab-
surdo não só que se torne mau, mas também que seja louvável em
algum caso e em outro não o seja. As mesmas observações valem

419 «Actus v1rtuosus et v1t10susse habent ad actum m commum s1cut haec albedo ad albedmem
m commum Qma s1cut haec albedo est de se haec et non per ahqmd extnnsecum s1b1,1ta actus
virtuosus, qm optlmo est v1rtuosus et pnmo 1mputab1hs, est de se formahter et mtrinsece v1rtuo-
sus, qma haec substanua actus est haec bomtas actus mtnnsece et non extnnsece Et smúhter de
actu v1t10so,haec substanua actus est haec mahtm actus Et ab 1stls duobus potest abstrah1 con-
ceptus actus m commum, s1cut ab hac albedme et Ilia potest abstrah1 conceptus albedmis S 1
q u a e r a s unde actus habet bonitatem suam vel mahuam, d 1 e o quod ab e1sdem a qm-
bus habet substanuam actus, qma ab ob1ecto commum et ommbus circumstantns tamquam a
causis mulus partiahbus quae omnes s1mul posltae facmnt unam causam totalem» (ln III Sent.,
11; Opera Theolog,ca VI, p 388)

262
para um ato intrinsecamente mau, isto é, imoral pelo simples fato de
ser aquele ato.
É importante sublinhar como, para Ockham, somente os atos
de vontade gozam desta propriedade de ser intrinsecamente bons ou
maus, enquanto todos os atos do homem, internos e externos, que
procedem imediata e diretamente de potências outras que não a
vontade, são por própria natureza moralmente neutros, visto que se
qualificam no plano moral com referência à vontade boa ou má de
quem os coloca.
Ora, o quesito acerca da existência de atos moralmente indi-
ferentes refere-se precisamente aos atos de vontade, isto é, pergunta-
se se é suficiente que um ato proceda direta e imediatamente da
vontade para que seja ipso facto bom ou mau, ou se não pode
acontecer que também um ato da vontade seja moralmente indife-
rente. A resposta de Ockham diz que também um ato de vontade
pode ser insignificante no plano ético, e para comprovar apela para
a experiência: uma pessoa pode sentir uma vivíssima simpatia por
outra pessoa, independentemente de toda consideração moral, e sim
pelo simples fato que se trata daquela pessoa. Neste caso, deve-se
admitir que se ama de modo absoluto aquela pessoa, fazendo termi-
nar o ato de vontade nela e não em alguma circunstância boa ou má.
Do ponto de vista moral, tal ato é neutro, isto é, não é bom, nem
mau. Se, porém, em um segundo momento, começa-se a querer bem
àquela pessoa por amor de Deus, segundo os critérios da razão, e
respeitando as devidas circunstâncias, o novo ato de amor não será
mais moralmente indiferente, mas será perfeita e intrinsecamente
virtuoso420 .
Contudo, não se deverá dizer que se trata de um mesmo ato
que, de moralmente indiferente, transformou-se em virtuoso. Antes
dever-se-á dizer que ao primeiro ato de amor acrescentou-se um
novo ato, um outro ato de amor reflexo, distinto do precedente, que
era um ato de amor espontâneo.
As especificações sobre os atos morais indiferentes oferecem
uma confirmação ulterior do papel importante conferido po~

42 º/n III Sent, I l (Ope,a Theolog1w VI, pp 383-388)

263
Ockham à vontade, visto que somente no interior dela, em confor-
midade com a linha doutrinal agostiniana e franciscana, é que se de-
cide o valor ou o não-valor dos atos. Um ato é bom ou mau não por
sua conformidade com a reta razão ou porque é colocado nas devi-
das circunstâncias de tempo e de lugar, mas somente porque a con-
formidade à razão e o respeito às circunstâncias são compreendidos
e queridos. Das últimas considerações deduzimos que nem mesmo o
objeto no qual termina o ato possui uma importância decisiva na
determinação da bondade ou da malícia do ato. Querer uma coisa
conveniente à nossa natureza não basta para qualificar moralmente
nosso agir: por quanto sejam convenientes do ponto de vista da or-
dem natural, as ações que efetuamos não possuem, por si, um signi-
ficado ético verdadeiro e próprio, mas são moralmente neutras. Do
ponto de vista ético, são boas somente as ações às quais damos o si-
gnificado de um testemunho do amor a Deus, e são más aquele efe-
tuadas com o ânimo de recusar a obediência que uma criatura deve
a seu criador. Afirmando que o ato de amar a Deus é o princípio de
todos os atos bons, Ockham pretende dizer que são moralmente po-
sitivos somente os atos que o homem pratica em vista do fim último,
que consiste no gozo de Deus na visão beatífica.
Aristóteles havia colocado no agir segundo a natureza o fim-
damento da lei moral. Uma semelhante posição é inadequada com
referência á revelação, a qual proclama que não basta ao homem ser
homem para ser feliz; a felicidade plena, segura e completa o ho-
mem a alcança somente unindo-se a Deus mediante o conhecimento
e o amor.

264
IX
,
O PENSAMENTO POLITICO

1. Os fatos históricos precedentes

Na Alemanha, após a morte de Henrique VII, os príncipes


eleitores não conseguiram chegar a um acordo para eleger o suces-
sor. A maioria deu seu voto para Luís de Wittelsbach, duque da
Baviera, enquanto a minoria votou em Frederico de Habsburgo, du-
que da Áustria. Ambos os eleitos foram coroados no mesmo ano de
1314: Luís em Aachen (Aquisgrana), conforme a tradição, mas pe-
los arcebispos de Mainz (Mogúncia) e de Trier (Tréveris), que não
possuíam o título idôneo; Frederico, pelo contrário, foi coroado em
Bonn, por mãos do arcebispo de Colônia: era regular o prelado con-
sacrante, mas a localidade não estava conforme à tradição.
Disso surgiu uma longa guerra civil, que durou bem sete
anos421, e em cujo desenrolar foram envolvidos múltiplos interesses
também fora da Alemanha, sobretudo aqueles do papado, que devia
fazer valer seu prestígio de árbitro supremo na eleição do impera-
dor. Na realidade, o prestígio da Santa Sé havia caído muito baixo
durante os dois penosos anos do interregno que se concluiu com a
eleição de João XXII, em 1316. Homem de caráter enérgico e im-
pulsivo, o novo papa dedicou-se logo ao restabelecimento, ao menos
na aparência, do prestígio do papado, e no ano mesmo de sua elei-

a exposição pormenonzada veJam-se· C Muller, Der Kampf Ludwig',f des Bayern m1t
421 Para

der rom1sthen Curie, Tubmgen 1879-1880, F Bock, Re1ch.f1deeund Natwnabtaaten vom


Untergang des a/ten Re,ches bis zur Kund,gung des deut.(th-engl1schen Bundmsses 1m
Jahre 1341, Munchen 1943

265
ção fez comunicar a Luís da Baviera e a Frederico da Áustria que
nenhum dos dois podia reivindicar para si o título de imperador,
antes que o papa decidisse a respeito.
Em março de 1317, João XXII emanou uma bula, na qual
declarava que o império estava vacante e que, conforme a tradição,
o próprio papa tomara-se vigário imperial. Por isso, ordenava a to-
dos os que na Itália haviam recebido poderes do imperador, a não
exercê-los, sob pena de excomunhão.
Nenhum dos dois eleitos submeteu-se aos desejos do pontífi-
ce, antes, pe!o contrário, a luta estendeu-se, tomou-se sanguinolenta
e resolveu-se com a vitória de Luís da Baviera sobre o rival Frederi-
co, que foi debelado e feito pnsione1ro na batalha de Mühldorf (28
de setembro de 1322)422 .
Os gibelinos lombardos encontravam-se então sob pressão do
exército guelfo, reforçado por mercenários papais, e vislumbraram a
salvação na vitória de Luís da Baviera. Ao pedido de auxílio deles,
Luís respondeu nomeando (março de 1323) como seu vigário na
Itália a Berthold de Marstetten, chamado Berthold de Neiffen 423 .
João XXII, percebendo o tamanho todo do perigo que repre-
sentava a luta já não mais limitada aos gibelinos, mas que trazia a
campo também o Bávaro, tomou posição com uma bula (8 de outu-
bro de 1323), na qual reafirmava a prerrogativa do papado de ser
árbitro e juiz das eleições imperiais. Apegando-se a este direito, o
papa obrigava, sob pena de excomunhão, ao autonomeado impera-
dor a desistir dentro de três meses do governo do império e a revo-
gar todos os atos emanados. Enfim, o papa proibia a qualquer um,
eclesiástico ou leigo, de prestar obediência a Luís como rei424 .
Em resposta a este ato de acusação, que fora fixado nas por-
tas da catedral de A vinhão, a dieta de Nürenberg (18 de dezembro
de 1323) pronunciou-se a favor da legitimidade de Luís, o qual, ten-

422 Cfr W Erben, D,e SlhlaLht be, Muhldorf, 28 September 1322, Graz-W1en-Le1pz1g1923
42 'Cfr a b1bhografia da nota 421 Cfr também F Bock, Natwna/staatl,che Regungen ,n lta-
Ili bis Johann
1,en be1 dei! gue/fisch-glubellm1.nhe1Z Au.1e11umdenet1111zgenvon !1Z110Le1Z1
XXII, «Quellen und Forschungen», 33 (1944), 1-48
424 0 texto da bula está editado m Monume11ta Ge1ma11we H1.1tonla, Conslltut1ones et Alia

pubhw, V, n 792, p 616

266
do sido eleito pela maioria dos príncipes eleitores, e tendo sido co-
roado em Aachen, tornara-se possuidor do título, mesmo que sem a
aprovação do papal
Transcorrido o término de três meses previsto na bula papal,
em 23 de março de 1324, em Avinhão, foi emanado o bando de ex-
comunhão contra Luís e contra quem lhe houvesse prestado obedi-
ência 425. A resposta imperial à excomunhão é conhecida na história
como o "apelo de Sachsenhausen", nome proveniente da cidade na
qual foi publicada em 22 de maio de 1324, na sede da ordem teu-
tônica426.Nela, João XXII é acusado de ser um inimigo da paz e
fautor de discórdias e de escândalos; reprova-se-lhe o facciosismo
na distribuição de cargos, o abuso do poder espiritual e o abuso do
dinheiro recolhido para as cruzadas contra os infiéis e que acabou
sendo utilizado para fazer guerras aos súditos fiéis. Mas a acusação
mais grave levantada contra o pontífice é a de heresia: sua tomada
de posição na questão da pobreza é contrária ao ensinamento orto-
doxo da Igreja. Por isso o imperador, na qualidade de defensor da
Igreja, julgando herético o papa reinante, convoca "o padre João"
para o juízo de um concílio geral.
Em 24 de junho de 1324, Marsílio de Pádua, mestre na uni-
versidade de Paris, conclui seu escrito, intitulado Defensor pacis,
dedicado a Luís da Baviera. Trata-se de um acontecimento muito
importante, porque a obra de Marsílio indica uma tomada original
de posição na luta entre o império e o papado, pois nela encontra-
mos uma sincera adesão às reivindicações contidas no apelo de
Sachsenhausen. Mas o livro não se limita ao conflito contingente,
pois o ideal pelo qual Marsílio propugna é o da paz universal, ftm-
damento indispensável para o bem-estar do estado.
Marsílio volta-se para os cidadãos de todos os organismos
políticos existentes, não para justificar a autoridade do imperador,

425/b,,
n 881, p 692
nn 909-910, p 722 Cf1 também J Schwalm, D1e Appel/atwnen Konigs Ludw,gs des
426 /b,,

Bayem von 1324, Weimar 1906

267
mas para convencê-los com argumentos científicos de como se pode
manter a paz, ou seja, a independência 427 .
Dada a importância da obra para conhecer e avaliar o pen-
samento político de Ockham, é útil recordar os principais temas
cont1·dos no D,+:
e1 ensor pacis. 42s .
Na primeira das três partes, ou dictiones, Marsílio trata da
teoria do estado, e nela segue muito de perto a Aristóteles. De todo
aristotélicos são a teoria da origem natural e não-contratual do esta-
do, da transformação da sociedade elementar - a conjugal e a fami-
liar - em outras sempre mais complexas e o conceito de autarquia
ou de suficiência do estado. Depois de examinar as várias formas de
governo, Marsílio afasta-se de Aristóteles a respeito da lei: enquanto
o Estagirita havia admitido que, se fosse encontrado um prfucipe de
excepcionais qualidades morais e intelectuais, a lei haveria de tor-
nar-se supérflua, pois que ele mesmo a personificaria, Marsílio nega
que um homem, por bom e sábio que seja, possa agir em casos par-
ticulares sem o preceito legislativo429. Mas a quem cabe fazer a lei?
Marsílio responde que a lei é feita pelo povo, considerado ou como
"o corpo inteiro dos cidadãos", ou como a sua "parte prevalente"
(pars valentior), que exprime a própria vontade na assembléia ge-
ral. Uma outra função exercida pelo povo, em nome da soberania
popular, é a eleição do princeps, cuja esfera de ação é vasta, mas
deve ser sempre, na medida do possível, determinada pela lei e, por
. 1ador pnmelfo,
tanto, pe 1o 1eg1s . . que e, o povo·430 . Quanto a' ...
1orma de
governo, Marsílio opta pela monarquia eletiva simples, na qual não
existe direito de origem para os herdeiros. Mais importante que a
forma de governo é a unidade do estado431 . Esta unidade é necessá-

427 Cfr C Pmcm, Mawlw, Tonno 1967 (Pubbhcaz10111dell'lstttuto d1 Sc1enze Poht:Jche dell'U-
mve1s1tàd1 T011110),p 55 Nesta obia podem-se enconum exaunentes notícias b10gráficas e b1-
bhográficas sobre Marsího, além de uma exposição crítica completa do conteúdo dos escntos
mms1hanos Um outro estudo recente sobre Mm·sího é o de G De Lagm·de, La na1ssa11ce de
/'espnt !atque au dédtn du Moye11Âge Ili. Le «Defensor Paus», Louvmn-Pans 1970
428 Ed1ções críticas do Defensor Paus C W P1ev1té-Orton, Cmnbudge 1928, R Scholz, Han-

nover 1932-33 C Vasoh responsab1hzou-se por uma edição 1tahana // «Dtfensore dei/a pa-
ce», Tonno 1960 [J A C R de Souza fez a uadução pma o pmtuguês, Petrópohs, 1997]
429 Defensor PaCIS, I, 2
41"Ibt, 1, 12-13
411 /bt, 1, 17

268
ria, mas está constantemente ameaçada pelas discórdias e às causas
de discórdia elencadas por Aristóteles, junta-se uma nova, repre-
sentada pelo papado.
Com isto chegamos à segunda dictio, que trata das relações
entre a Igreja e o Estado. Marsího resolve a questão fundamental de
toda a Idade Média, a das relações entre o poder temporal e o poder
religioso, com um golpe bem claro: subordina a Igreja ao Estado e
suprime toda a diferença substancial entre eclesiásticos e leigos 432 .
Antes dele, nenhum pensador chegara a tanto, ficando sempre limi-
tado à coordenação harmônica dos dois poderes. Marsílio sublinha,
além disso, como o fundamento da autoridade eclesiástica deve ser
procurado, também ele, na soberania popular. A Igreja - concebida
como universitas fidelium - sofreu, diz ele, um processo de trans-
formação em sua constituição: da primitiva comunidade de fiéis,
passou-se a uma aristocracia de bispos e, enfim, a uma monarquia
absoluta com a supremacia do papa. A respeito da hierarquia ecle-
siástica, Marsílio afirma que padres e bispos devem ser nomeados
pela universitas fidelium, a qual possm também o poder de destituí-
los. Suas funções resumem-se na cura das almas, na pregação da
doutrina cristã, e na administração dos sacramentos 433 . Nega, além
disso, a supremacia do bispo de Roma, entre outros motivos porque
não julga fundamentada a vinda de são Pedro à cidade eterna. Não
contesta, porém, ao pontífice aquela supremacia de fato que adqui-
riu durante os séculos, de origem puramente humana e que é atri-
buída principalmente à importância da cidade de Roma e à submis-
são voluntária das demais igrejas. As funções do pontífice são limi-
tadas à presidência do concílio e ao juízo sobre a oportunidade de
sua convocação 434 . Órgão supremo da Igreja é o concílio, que deve-
~ia ser a assembléia da universitas fidelium, mas que na prática
deve compor-se de delegados, devendo nele participar não só os
eclesiásticos, mas também os leigos, contanto que tenham um certo
grau de cultura.

412 /b,, II, 2-4


411 /b,, II, 6, 9, 14, 16, 19.
414 /bi, II, 21

269
Quanto ao problema da liberdade religiosa, Marsílio segue
uma linha de tolerância: ninguém pode ser coagido a professar a re-
ligião cristã, nem a seguir-lhe os preceitos. Mas nem por isso julga
que a heresia deve ficar impune: a heresia é um crime político e, por
isso, o estado, para além da questão religiosa, deve tomar providên-
cias contra os hereges em nome da ordem pública 435 • Também a
questão da propriedade eclesiástica é discutida amplamente no De-
fensor pacis. Marsílio admite que Cristo e os apóstolos tenham
exercido o direito de pobreza, mas julga que se o clero desejasse
conformar-se escrupulosamente à máxima pobreza evangélica, não
deveria possuir riquezas a não ser para distribuí-las aos pobres 436 •
Na terceira e última dictio são apresentadas sugestões e nor-
mas práticas, tiradas das premissas expostas nas partes precedentes.
Segundo o parecer dos estudiosos de Marsílio, dois são os
componentes a recordar, para explicar o humus histórico do qual
surgiram as· novas idéias da obra: a sua experiência comunal em
Pádua, sua terra natal, e a experiência de um tipo totalmente dife-
rente, amadurecida durante a residência em Paris, capital de uma
monarquia aberta ao estado absoluto437 •
Em Pádua, Marsílio pode formar uma idéia clara das atribui-
ções da soberania legislativa à universitas civium, da submissão dos
governantes às leis e da defesa da autonomia e da laicidade da civi-
tas. Em Paris, pelo contrário, o poder do governante identificava-se
com aquele do legislador, e o monarca assumia uma figura total-
mente diferente da do podestà eleito e controlado pelos cidadãos.
Isto não impediu a Marsílio de ver em tal figura do poder soberano
e ilimitado um defensor mais capaz da paz, da justiça e da laicidade
do estado.
O ideal de Marsílio não é unversalístico, isto é, é diverso da
aspiração à monarquia imperial de Dante e de santo Tomás. Segui-
do os dois conceitos de cidade e de estado têm para ele uma equiva-

435 lbi,
II, 10
416/b,,II, 13-14 Percebe-se aqui o mfluxo do movimento religioso dos franciscanos esp1ritmus,
dos gurus Marsího conheceu um dos cabeças mms intransigentes, Hubertmo de Casale.
417Cfr a ampla Introdução de C Vasoli à edição 1tahana do Defensor pac1,f, com as md1cações
b1bhográficas sob1e o argumento, pp 15-23

270
lência substancial, demonstrando assim que está inserido na pers-
pectiva particularista das comunas e das nações, que naquele mo-
mento histórico era dominante. Todas as organizações sociais afas-
tam-se de fins universalistas: tanto com a cidade como com o reino,
todos os homens aspiram naturalmente a chegar a uma 'vida sufici-
ente'438na paz e na concórdia. Este é um ponto importante, pois ve-
remos como Oékham está distante de uma tal empostação de pen-
samento, e como, portanto, são falhas certas tradições historiográfi-
cas que apresentam a Ockham como um partidário fiel das posições
marsilianas.
Concluída a composição do Defensor pacis, Marsílio, junta-
mente com seu amigo, João de Jandun, colocou-se sob a proteção do
imperador. Neste entrementes, de Avinhão veio a resposta (11 de
julho de 1324) ao apelo de Sachsenhausen, e nela declarava-se de-
posto o imperador. Ante uma ruptura que se tornava sempre mais
clara, de um lado e de outro faziam-se os cálculos. Para criar novos
aliados, João XXII favorecia os projetos de quem aspirava elevar ao
cargo de imperador a Carlos IV (1294-1328), rei da França. De sua
parte, Luís reforçava suas posições acertando-se com Frederico, que
mantinha prisioneiro, e dando hospedagem a todos os adversários do
papa. Quando se sentiu seguro de suas posições na Alemanha, o
Bávaro decidiu dar uma resposta afirmativa aos gibelinos italianos
que imploravam seu auxílio. Em uma dieta solene realizada em
Trento (10 de janeiro de 1327), gibelinos, franciscanos rebeldes e
foragidos de várias cidades guelfas uniram-se a Luís para declarar
herético o "padre João". Luís deixou-se convencer que devia co-
mandar o levante gibelino na Itália e assim, no dia 17 de maio, che-
gou a Milão, onde foi coroado com a coroa de ferro. Prosseguiu
pela Itália central, até Roma, onde, em janeiro de 1328, foi coroado
em São Pedro por Sciarra Colonna, em nome do povo romano.
Entrementes o papa, através de bula, havia tomado providên-
cias para declarar herético a Luís e para confutar as teses do Defen-
sor pacis.

418 Defen.wr pac,s, I, 4, 2

271
A estadia do Bávaro em Roma foi breve, porque o entusias-
mo inicial dos romanos apagou-se em pouco tempo sob a pressão
guelfa. Por isso, dirigiu-se para a Itália central e em Pisa deu-se o
encontro do imperador com os franciscanos fugitivos de A vinhão,
entre os quais sabemos que se encontrava Guilherme de Ockham.
Poucos meses depois, Luís, com todo seu séquito, de antiga e de
nova aquisição, retornou à Alemanha e fixou residência em Muni-
que (fevereiro de 1330), Os escritos de caráter mais político de
Ockham vieram à luz durante esta permanência em Munique, de
1330 até a morte no convento dos frades menores, onde foram redi-
gidas também as outras obras polêmicas contra as teorias teológicas
dos pontífices que naqueles anos sucederam-se na direção da Igreja.
Em Mumque encontrava-se também Marsílio. As teses de sua
célebre obra não obtiveram, porém, muito sucesso na Alemanha. O
exame do pensamento político ockhamista mostra as divergências
entre os dois pensadores. Sem dúvida, Ockham conheceu o Defen-
sor pacis: antes de iniciar a redação do Dialogus, havia-se esforça-
do em recolher todos os escritos dos adversários do papa e, na ter-
ceira parte da obra, diz que finalmente conseguiu ter em mãos o
texto marsiliano 439 . Contudo, está fora de discussão que Ockham
ateve-se a um linha de pensamento político e eclesiológico toda sua,
distante tanto das posições teocráticas dos defensores da supremacia
papal, quanto das teses de Marsílio, que pregava a subordinação da
Igreja ao Estado.
Como já tivemos ocasião de precisar ao tratar das obras,
Ockham desenvolve seu pensamento político em quatro escritos
fundamentais: o Dialogus, primeira e terceira partes; as Octo
quaestiones; o Breviloquium e o De lmperatorum et Pontificum
potestate. Os primeiros dois contêm uma exposição direta do pen-
samento do autor, limitando-se ele a apresentar numerosas soluções,
aquelas todas que possuem um certo crédito, sem manifestar por
qual delas ele se inclina, declarando-se convencido de contribuir de

419 L Baudry, Guillaume d'Ocwm , pp 163 ss

272
tal modo para o crescimento e a difusão da verdade440 . Muito mais
lineares e substanciais na exposição são os outros dois tratados, nos
quais Ockham dá a conhecer seu pensamento político. Por isso, jul-
gamos oportuno seguir a exposição do Breviloquium e do De /mpe-
ratorum et Pontificum potestate, reportando-nos às outras duas
obras, mais vastas, sempre que seja necessária uma complementa-
ção ou um esclarecimento.

2. A crítica da tese hierocrática sobre a plenitude do


poder

A tese dos teólogos, que nos tempos de Ockham defendiam as


pretensões hierocráticas dos pontífices, assumidas também por João
XXIl contra Luís da Baviera, é exposta diversas vezes pelo próprio
Ockham no curso de suas obras políticas. Os mais célebres fautores
da hierocracia, cujas obras chegaram até nós, são Egídio Roma-
no441,Álvaro Pelaio442e Tiago de Viterbo443 , que se alinharam com
as posições da célebre bula Unam sanctam de Bonifácio VIII. Ao
papa é reconhecido o poder de legislar tanto na esfera do espiritual
quanto na do temporal, sem limites a não ser os representados pelo
direito natural e pela lei divina positiva. Estes teólogos não preten-
diam, porém, que coubesse à Igreja governar diretamente os povos.
A Igreja, em via ordinária, deveria deixar ao imperador e aos reis o
ofício de dispor no âmbito de seus territórios os ordenamentos mais
conformes com o bem comum, devendo eles, porém, reconhecer que
a autoridade era-lhes delegada pelo pontífice, o qual, por isso, tinha
conseqüentemente o direito de controlá-los e de julgar sobre a digni-

440 «Qmd autem sentiam de praed1ctts non express1, qma hoc, ut puto, nequaquam ventatt pro-
desset» (Octo quae.wones, q 8, e 8, ed. S1kes, m Guillelmi de Ockham Opera po/1hw, I, p.
221)
441Egíd10 Romano, De eccleswstlw potestate (1301 ), ed Ox1lia-Boffito, Flrenze 1908 [trad.

portuguesa de C P Goldman e L. A De Bom, Sobre o poder ecle.nástno, Petrópohs. 1989)


442 Alvaro Pela10, De Statu et Planctu Eccleswe, Lyon 1517 Sobre Pela10 veJa-se a exaunente

monografia de Nicolas lung, Alvwo Pelayo, Pans 1931


443 Tiago de Vlterbo, De regmune clm.wano, cfr A -X Arqmlhere, Le plu.~ anc1en traité de

l'Église, falques de V1terbo De regmune chn.wmw, Pans 1926

273
dade da conduta deles. Reservando a si o direito de consagrar os
reis e os imperadores, a Igreja queria afirmar com isto que só por
sua aprovação e bênção é que o poder deles se tomava legítimo.
Os argumentos de razão alegados em defesa das teses hiero-
cráticas nos primeiros decênios do século XIV são tomados de dois
fundamentos principais: aquele da subordinação do imperfeito ao
perfeito (subordinação do corpo à alma, dos bens temporais aos es-
pirituais), e aquele da desejada unidade na vida social. Ockham não
dedica atenção a estes argumentos racionais, de inspiração aristoté-
lica, mas discute e critica a fundo os argumentos teológicos. Em
primeiro lugar encontra-se o passo do Evangelho de Mateus, no
qual Cristo promete a Pedro as chaves do reino do céu: "Tudo o que
ligares sobre a terra, será ligado também no céu; e tudo o que não
ligares sobre a terra, também não será ligado no céu"444 . As chaves
de que fala o texto eva_ngélico,à luz de uma exegese alegórica, tor-
nam-se o símbolo do duplo poder, religioso e civil, transmitido por
Cristo a Pedro e a seus sucessores.
Além disso, os curialistas apelavam para o fato de que Cristo
possuiu a plenitude do poder, quer no campo espiritual, quer no
temporal. Portanto, também seus vigários gerais, isto é, os papas,
possuem tal plenitude do poder.
A autoridade do papa, enfim, é tal que em alguns casos ele
pode agir até mesmo contra a praxe normal que se delimita pela
equidade natural. Ele pode, por exemplo, confiar a crianças a cura
das alma e, assim sendo, então, com maior razão, goza ele de todos
os poderes relativos àquelas competências de âmbito espiritual e
temporal que não são regulamentadas pela lei divina ou pela lei na-
tural445.
Ockham esforça-se por refutar um a um os argumentos dos
curialistas, com uma crítica como sempre punctual e implacável.
Parte de uma constatação preliminar: a teoria da plenitude dos po-
deres pontifícios é contrária ao espírito que distingue a lei evangéli-

444 Mt 16. 18-19


445 Brev,/oqu1um,
11,2. ed Baud1y, pp 17-18 [Tiad pm1uguesa de L A De Bom, B1ev,/ó-
quw sobre o pnnupado t11iimco, Petlópohs 1988]

274
ca da lei mosaica, porque a lei evangélica é uma lei de liberdade.
Não que a lei evangélica libere os súditos de toda obrigação, mas
sua normatividade é de um gênero totalmente diferente com relação
às minuciosas prescrições rituais, litúrgicas e sociais da lei mosaica.
Atribuindo-se ao pontífice a plenitude dos poderes, no sentido preci-
sado pelos curialistas, o povo cristão estaria exposto ao risco de
tornar-se enredado por uma quantidade de prescrições arbitrárias ou
ao menos não exigidas pelo bem comum, mas sugeridas somente
pela preocupação do papa em salvaguardar a própria autoridade e
as próprias prerrogativas. Direitos e autonomias políticas e admi-
nistrativas, consolidados pela tradição, estariam sob ameaça de se-
rem cancelados pelo arbítrio papal, pois o papa poderia, por exem-
plo, por sua própria iniciativa e sem motivos objetivamente válidos,
privar o rei da França, ou qualquer outro rei, de seu reino, tal como
o patrão pode privar um escravo de sua morada446 , tendo como re-
sultado que todos os cristãos, sem distinção de origem, acabariam
encontrando-se ante o pontífice em uma situação igual à do escravo
ante o patrão.
A teoria em questão leva a conseqüências ulteriores monstru-
osas: o papa, por exemplo, teria a faculdade de abolir ou modificar
qualquer lei canônica ou civil, tendo como resultado que toda a ins-
tituição, todo o ordenamento eclesiástico ou civil estaria inseguro e
tornar-se-ia efêmero, e a vida da Igreja e da sociedade civil passari-
am a depender da vontade, ou melhor, do arbítrio do pontífice. Uma
tal hipótese é tão intolerável ao olhos de Ockham, que não hesita em
qualificá-la como herética447.

446B1ev1/oqumm, II, 3, ed Baudry, p 20 A escolha do exemplo do rei da França, que perdena


o d1re1tode defender suas prerrogativas reais, não foi feita pm acaso De fato, os precedentes da
controvérsia entre Flhpe, o Belo, e Bomfácm VIII, por demais vivos na memóna de todos,
prestavam-se por demais paia md1car os pengos que as nações estavam correndo se houvesse o
reconhecimento da plenitude de poderes do papa A paixão com que o povo francês se havia
lançado ao lado de seu rei testemunhava a p10funda aversão que suscitava na conSCJência do
povo c11stão a teona cunahsta Apontando, enfim, para as 1mphcações que a tese mcnminada
rep1esentava para toda autondade secular, mesmo que Já consohdada, como a monarquia fran-
cesa, Ockham dá-nos a entender que combalia tal tese sobretudo levado pela preocupação de
não querer colocar em pengo a legiturudade do poder em geral, e o 1eal e o 1mpenal em parti-
cular
447/bulem

275
Estas considerações preliminares, centralizadas no tema da
liberdade cristã, não têm como meta tão somente tirar todo funda-
mento às ingerências políticas do pontífice, mas sublinham a neces-
sidade de limitar o poder papal também na esfera do espiritual. De
fato, acontece que o cabeça da Igreja não tem somente direitos, mas
também deveres em suas relações com o povo de Deus e que, reci-
procamente, a obediência dos fiéis não é tão absoluta a ponto de ex-
cluir um certo controle sobre o modo com o qual o pontífice governa
a Igreja. Com isso é admitida a idéia de que o exercício do poder e
do magistério eclesiástico seja submetido ao controle da Igreja uni-
versal.
Depois destas considerações, Ockham passa a rebater dire-
tamente os argumentos curialistas.
O poder conferido por Cristo a Pedro não é entendido como
um poder dominativo, e sim como um cargo de serviço, de pai e de
pastor espiritual. Além disso, conciliar-se-iam muito mal as relações
que o pontífice mantém com os fiéis na qualidade de pai e de pastor
espiritual, com as relações que o papa deveria manter com eles na
qualidade de soberano temporal448 . Era coisa tão evidente, que até
mesmo os curialistas mais intransigentes admitiam a conveniência
que o papa delegasse aos soberanos o ofício de governar os povos.
Quanto ao argumento invocado pelos curialistas, relativo às
prerrogativas reais que competem por natureza a Cristo e por ele te-
riam sido transmitidas a seu vigário na terra, Ockham julga-o sem
valor. Em primeiro lugar, resulta dos Evangelhos que Cristo recu-
sou sempre imiscuir-se em assuntos terrenos. Os adversários contra-
argumentavam dizendo que Cristo renunciou a fazer valer seus di-
reitos reais a fim de ensinar-nos a humildade. Ockham rebatia di-
zendo que Cristo não podia transmitir a seu vigário os direitos aos
quais ele mesmo havia abdicado para dedicar-se totalmente à sua
missão espiritual. Certamente, enquanto é filho de Deus, pertence a
Cristo todo o universo, mas a partir do momento em que quis fazer-
se homem, semelhante em tudo a nós, não lhe cabe o domínio sobre

II, 4-8, pp 22-31. A mesma doutnna do De lmperato111met Pont,fiwm potestate, 6, ed


448 /bi,

Brampton, p 12

276
todas as coisas, como não cabe a nenhum de nós449 • E mesmo se
Cristo tivesse possuído o poder temporal, nem por isto tal poder ca-
beria ao pontífice, pois nem tudo o que cabe a Cristo cabe ao papa,
podendo-se dar como exemplo o fato de que este último nada pode a
respeito da instituição de sacramentos450 .
Aos últimos argumentos dos curialistas, Ockham responde
assim: do fato que o papa não está vinculado às leis positivas não se
segue que possui pleno poder a respeito de qualquer legislação po-
sitiva. Vemos, em verdade, que um rei não está sujeito às leis de um
outro rei, mas nem por isso pode abofü tais leis.
Além disso, do fato que o papa pode agir contra a praxe da
justiça natural, confiando, por exemplo, a cura de alma a crianças,
não se segue que tenha a plenitude dos poderes. Agir contra a praxe
da justiça natural não é entendido como um agir contra a reta razãó,
mas como agir contra o comportamento manifesto habitualmente
por quem possui o uso da razão, e isto o pode fazer também o impe-
rador.
De resto, não é verdade que o papa pode confiar a cura de
almas a crianças ou a pessoas desprovidas do uso da razão: o que
pode fazer é atribuir a eles os benefícios provenientes dos encargos
de quem está na cura de almas451 •
Posto isso, Ockham passa a desmantelar as premissas teóri-
cas subentendidas nas conclusões dos curialistas. A primeira delas é
que o fim da lei em geral, e dos ordenamentos políticos e sociais, é o
bem comum. A segunda é que somente a Igreja, por mandato de
Cristo, indica aos homens qual é seu bem supremo e universal, isto
é, a vida eterna, e fornece a eles os meios aptos para atingir tal fim.
A terceira premissa da tese hierocrática, enfim, sustenta que a auto-
ridade civil não tem competência necessária para conduzir os pró-
prios súditos ao verdadeiro bem e não pode colocar à disposição
deles quanto é necessário para obtê-lo. De fato, a autoridade civil
pode ordenar as relações sociais para a obtenção dos bens inferio-

449 Brev1/oqu1um, II, 9, p 32.


4511/b,, II, 22; pp 64-65.
451 !bt, II, 24, pp. 66-67

277
res, como a paz e a prosperidade terrenas, bens que, uma vez pos-
suídos, acabam induzindo os homens a esquecer-se do fim último.
Portanto, o exercício do poder por parte de qualquer autoridade di-
ferente daquela espiritual resulta em dano e, como conclusão última,
revela-se ilegítimo. Ao máximo, e por razões de conveniência, a
Igreja poderá tolerar que de fato existam outros legisladores e go-
vernantes, mas não poderá jamais reconhecer a autoridade deles
como autônoma e independente sob o aspecto jurídico.
Sem dúvida, Ockham não subscreve estas premissas das teo-
rias curialistas, mas as rejeita seguindo um estranho procedimento,
na medida em que parte não das primeiras, e sim das últimas.

3. Poder e propriedade

O primeiro ponto que Ockham procura esclarecer é um dado


de fato, isto é, a existência de um verdadeiro e legítimo poder, inde-
pendente da autoridade religiosa estabelecida por Deus. A Sagrada
Escritura, à qual ele apela, não deixa dúvida a respeito. No Génesis,
Abraão saúda o rei de Sodoma com expressões inequívocas de re-
conhecimento de sua soberania; ainda o mesmo Abraão atribui aos
egípcios o domínio e a propriedade da terra do Egito e, enfim, ele
ainda oferece em propriedade a Abimelec parte de seu rebanho. Os
infiéis, por sua vez, afirmam, sem serem desaprovados pelo hagió-
grafo, seu direito a exercer toda espécie de poder sobre as coisas:
nos livros de Esdras e de Isaías fala-se de Ciro, como de um verda-
deiro soberano querido por Deus. Idêntica conclusão a respeito da
existência de um verdadeiro domínio e uma autêntica jurisdição
junto aos infiéis, transparece de muitas passagens do Evangelho:
Cristo manda dar a César o que é de César e não diz jamais que as
autoridades dos gentios são ilegíttmas452 .
Se, de outra parte, examinam-se as conseqüências que deri-
vam da opinião dos teólogos da cúria, segundo a qual somente o
batismo ou o pertencer à Igreja tornam legítimos o direito de propri-

452 /bi, III, 1-3, pp 68-81

278
edade e o exercício do poder, vê-se como elas são muito graves e
desastrosas, por parecerem razoáveis. Em primeiro lugar, nenhum
rei ou príncipe cristão, que herdou bens e poderes de antepassados
infiéis, os possuiria legitimamente. Os filhos dos cristãos, de outra
parte, na medida em que nascem fora 'da Igreja, seriam incapazes de
aceder aos direitos de sucessão, e nem poderiam adquirir tais direi-
tos em conseqüência do batismo, visto que o batismo, enquanto sa-
cramento, confere a graça e não direitos civis. Mas existe mais: os
infiéis seriam incapazes de exercer uma forma qualquer de autori-
dade sobre os próprios filhos e as próprias esposas, pois quem está
privado de todo domínio e jurisdição sobre coisas temporais não
possui nem mesmo título para atribuir-se direitos de superioridade
sobre pessoas, visto que estas possuem uma dignidade muito supe-
rior às coisas inanimadas453 . Ockham conclui que, para tirar o ftm-
damento a conseqüências tão absurdas, é necessário admitir que
também fora da Igreja existe um verdadeiro poder ordenado. Como
também os infiéis são objeto da providência divina, que doa a eles a
vida e todos os bens necessários para conservá-la, não se vê como
se possa negar que eles sejam legitimamente investidos do poder de
domínio e jurisdição sobre as coisas temporais. Dados revelados e
argumentos de razão obrigam, pois, segundo Ockham, a reconhecer
não somente a existência, mas também a legitimidade dos ordena-
mentos sociais e políticos estabelecidos e consolidados junto aos
povos pagãos. Por isso, não é somente insensata, mas mesmo heré-
tica a sentença de quantos se iludem em defender a verdade cristã,
ensinando que a única fonte de direitos e de poderes sobre pessoas e
sobre coisas é a Igreja, e que, por conseqüência, carece de funda-
mento todo poder não delegado pelo pontífice454 •
Mas Ockham não podia deter-se nisto. Depois de haver de-
monstrado a inaceitabilidade da fundação do poder civil proposta
pelos adversários, apresenta sua própria teoria, mais aceitável do
ponto de visto filosófico e mais conforme com os ensinamentm; da
Sagrada Escritura.

45 '/bi, III, 5, pp 82-83


454 /bi, III, 6, p 84

279
O procedimento que usa, para chegar a esta nova fundação,
baseia-se em uma conjunção inicial do conceito de propriedade com
aquele de poder ou autoridade. Na verdade, em todas suas obras
Ockham se exprime de modo a fazer entender que, a seu modo de
ver, o direito de propriedade e o direito de ser constituído como au-
toridade, a posse dos bens materiais e a habilidade de exercer qual-
quer poder, são dois aspectos indistinguíveis de um único poder.
Guilherme julga impossível distinguir o exercício da autoridade do
exercício da propriedade: a aparência de autoridade de uma pessoa
deve apoiar-se sempre sobre uma vistosa base econômica455 • A in-
terdependência entre propriedade e autoridade é um dado tão rele-
vante aos olhos de Ockham, que ele acaba por considerar obrigação
precípua do príncipe a defesa da justiça e, decisivamente, do direito
de propriedade 456 . É exatamente nesta conexão entre autoridade e
propriedade, na inseparabilidade entre direitos sobre coisas e direi-
tos sobre pessoas, que se encontra a razão por que Ockham, que-
rendo fundar a autonomia do poder civil, começa a demonstrar que
também o direito de propriedade não possui um caráter sagrado,
mas encontra sua origem em uma instituição humana.
No estado de inocência da humanidade, o Criador deu a Adão
ç Eva e a todos os seus descendentes a faculdade ou o poder de dis-
por de todas as coisas para a própria utilidade. É esta a primeira
acepção que Ockham confere à palavra dominium, entendido como
direito dos homens de servir-se de modo racional das coisas inani-
madas, das plantas e dos animais inferiores, no modo e na medida
necessários para suprir não somente as estritas necessidades vitais,

455 Uma documentação abundante é apresentada por De Lagarde, La na1s.rnna , IV, pp 195-
199.
456 De Lagarde observa a respeito "O do1111mu111
de Ockham é, portanto, mais amplo que o con-
ceito moderno de propnedade É um conJunto de dtre1tos sobre as coISas e sobre as pessoas.
compreende 'coisas, posses, honranas, hberdade ', cuJa característica é a de serem
'apropnadas' É preciso reconhecer que este modo de conceber o dorrumum tem pelo menos o
ménto de ser htstoncamente aceitável, enquanto muitas relações de autoridade que se estabele-
ciam ao tempo de Ockham são efetivmnente classificadas daquele modo Esta confusão entre
autondade e propriedade, recorrente sob sua pena, confusão que toma tão impermeável seu dis-
curso ao nosso modo atual de pensar, espelhava, pois, as condições reais de sua época" (/b1, p
196)

280
mas também para tornar sempre mais digna e cômoda a existência
sobre esta terra 457 .
Surge aqui uma pergunta: pelo fato de haver dado este poder
a todo o gênero humano como conjunto, e não a pessoas particula-
res, significa que Deus impôs aos homens a comunidade de bens e,
por conseqüência, que proibiu o instituto da propriedade privada?
De Lagarde 458 observa como o problema surgiu nos medie-
vais através da leitura de um texto de Isidoro de Sevilha, o qual
sustentava que a posse comum está fundada no direito natural e que,
por isso, o ordenamento econômico ideal é aquele comunitário. Se-
gundo santo Tomás, Isidoro queria simplesmente afirmar que por
sua natureza o homem tem o direito de dispor para si de todos os
bens terrenos que encontra no universo. Tomás excluía, portanto,
que a comunidade de glebas seja imposta por força do direito natu-
ral: o regime comunitário, de fato, não é congênito ao homem, como
o demonstrou Aristóteles contra Platão. Parecer contrário havia sido
expresso por Duns Scotus e Francisco Meyronnes, os quais susten-
tavam que no estado de inocência o regime comunitário de bens era
obrigatório, e que o instituto de propriedade privada é uma conse-
qüência do pecado. O homem pecador pode cair em toda a espécie
de paixão e de desejos desordenados e não está mais apto a mode-
rar-se e a respeitar os direitos dos outros. Para colocar um freio às
desordens provocadas pela posse em comum dos bens, Deus dispen-
sou o homem da obrigação primitiva e permitiu-lhe a divisão dos
bens. Diversa é a opinião de Ockham, que mantém em um caminho
intermediário. Concede a Duns Scotus que, perdurando o estado de
justiça original, os homens não teriam sentido necessidade de recor-
rer à divisão dos bens para salvaguardar a paz e a ordem pública.
Mas nega que Deus tenha imposto a eles a adoção de um regime
comunitário. Deus deu aos homens simplesmente o poder de dispor
do uso dos bens temporais para própria utilidade, deixando a eles a

457 «Dedlte1 [Deus a Adão] potestatem pro se et postens sms d1sponend1 de terrenis quae rano
recta d1ctavent esse necessana, exped1ent1a,decentia vel utIIia non solum ad v1vendum, sed eu-
am ad bene v1vendum» (B1ev1/oquwm, III, 7, p 86)
458 De Lagarde, La nai.mmce , IV, p 208

281
liberdade de estabelecer, sobre a base do reto uso da razão, a con-
veniência de recorrer ou não à divisão dos bens. Por isso Ockham
pode afirmar que não é contrário à vontade divina o instituto da
propriedade privada, que ele define como 'domímo próprio', para
distingui-lo da acepção precedente, referente ao domínio comum459 •
Com isto Ockham avizinha-se de santo Tomás: embora não reco-
nheça que a propriedade privada é de direito natural e, portanto, de-
cisivamente, prescrita por Deus, contudo admite que ao menos o
poder de recorrer a ela foi concedido ao homem diretamente por
Deus. A instituição da propriedade privada é, porém, de origem
humana, pois sugerida ao homem pela razão como única via para
pôr remédio à cupidez e à avareza desencadeadas no coração do
homem após o pecado460 . De fato, após o pecado os homens não se
encontravam mais em condição de exercer aquele domínio racional
sobre os bens terrenos, tal como Deus lhes havia concedido, e então
a razão humana, para manter este uso, recorreu à regulamentação
através da lei.
A posição ockhamista a respeito da origem humana da pro-
priedade privada é a explícita em todas suas obras políticas, quer no
Opus nonagmta · d"ierum461, como no D"ia l ogus462e no Brevi·z o-
• 463
quium
A João XXII, que defendia a origem divina, e portanto natu-
ral da propriedade privada, e atribuía à iniciativa humana somente o
dever de colocar o carimbo da lei positiva na distribuição que se su-
cedera dos bens, Ockham replica que as instituições humanas não se
limitaram a dar um valor legal à divisão das posses, mas são elas
que criaram a posse. Outros pensadores, pelo contrário, julgavam
que Deus houvesse estabelecido para os homens o domínio em co-
mum sobre todas as coisas, e os homens dep01s teriam, por própria

mo domímo p1óp110é defimdo como a «Potestas app10p11and1rem ahquam temporalem ahcm


um personae vel aliem colleg10 specmh vel ahqmbus cert1s persoms» (Brev,/oqwum, III, 7, p
86)
4 f'ºIb1de111,
pp 86-87
461 0pus nonagmta d1e1u111, cap 14, m Ope1a po/,tl(a, II, pp 431-440
462 D,alogus, III, 2, 1 3, e 6, p 933
461 Brev1/oqu1u111, III, 9-10, pp 88-90

282
iniciativa, chegado a um acordo para repartir os bens entre si.
Ockham refuta também esta opinião, que qualifica como inaceitável
também pelas conseqüências que dela derivam. De fato, neste caso
ninguém teria podido apropriar-se legitimamente de uma coisa qual-
quer sem o consentimento da comunidade464• Guilherme, pelo con-
trário, é de opinião que não houve jamais uma institucionalização da
posse comunitária dos bens, nem antes, nem depois do pecado origi-
nal; aconteceu simplesmente que, após o pecado, a razão fez os ho-
mens compreender que, para exercer de uma maneira conveniente
aquele direito de servir-se dos bens terrenos, recebido em conjunto
de Deus, não restava mais que um caminho, aquele de dividi-los en-
tre eles465• Mas isto não aconteceu, repitamos, em virtude de urna
concessão ou de uma dispensa da parte de Deus, mas simplesmente
devido às decisões da razão de regular o exercício do domínio dos
bens, conferido por Deus ao gênero humano. Cada indivíduo possui,
pois, o direito de tomar posse das coisas de ninguém (porque res
nullius est primi occupantis) e de comprar ou de receber em doação
os bens já possuídos por outros. De tal direito não deve prestar
contas a ninguém, e este direito é inalienável e sancionado por todas
as leis civis.
Esta enérgica defesa do direito de propriedade não é, contudo,
tão coerente e compacta como parece à primeira vista. Chegado a
este ponto do discurso em todos seus escritos políticos, Guilherme
sente-se no dever de dar sua interpretação a um texto de santo
Agostinho, citado por Graciano, afirmando que por vontade divina
todas as coisas pertencem aos justos (jure divino cuncta justorum
sunt). A expressão é tomada de uma carta de Agostinho, endereçada
ao bispo donatista Vicente de Cartena. Referindo-se às medidas to-
madas pelo imperador contra os seguidores daquela seita, medidas
que, na maioria dos casos, se traduziram no confisco dos bens,
Agostinho sustenta que os donatistas não possuem o direito de rei-
vindicar a propriedade de tais bens, nem ante os homens, visto que o
imperador tirou-lhes a posses, nem ante Deus, porque os hereges

464Opus 11mwg1111a d1erum, cap 14. II, pp 437-439


465 D,alogus, III, 2, 1 2, cc 21-28, pp 919-924

283
não são homens justos. E acrescenta, para esclarecer, a expressão
que se tornou famosa: "jure divino cuncta justorum sunt" 466 • É cla-
ro que a frase de Agostinho parece dar razão àqueles teólogos que
reivindicavam somente para os cristãos o direito de possuir bens
temporais e, por conseqüência, a capacidade de assumir a responsa-
bilidade do poder.
Ockham, como bom medieval, não está disposto a declarar-se
contra santo Agostinho e, por isso, procura interpretar o texto a seu
modo. Para dar razão a Agostinho, sem negar quanto havia afirma-
do sobre o direito dos infiéis de serem considerados proprietários e
investidos de poderes legítimos, distingue entre o plano moral e o
plano jurídico. No plano moral, infiéis e pecadores são indignos
tanto de possmr como de governar; no plano jurídico, pelo contrá-
rio, as coisas correm de outro modo: mesmo um homem indigno
pode ser legítimo possuidor de bens e detentor de cargos de coman-
do, pois a lei foi estabelecida pelos homens sem levar em considera-
ção a situação moral das pessoas, situação esta, aliás, que foge do
controle da lei.
A norma agostiniana, pela qual tudo pertence aos fiéis, tena
valor também no plano jurídico, se a Escritura negasse explicita-
mente ao infiel e ao pecador a capacidade de possuir e de exercer
qualquer forma de autoridade. Mas, desde que a Escritura, como se
viu, reconhece como legítimos proprietários e detentores de poderes
políticos também aos infiéis, isto quer dizer que Deus, na sua be-
nignidade, tolera que homens moralmente indignos exerçam legiti-
mamente direitos e poderes jurisd1c1onais. Se tal é o comportamento
de Deus, ninguém pode presumir de contestar aos infiéis e aos peca-
dores o gozo daquilo que Deus lhes concedeu 467 .
As bases do direito de propnedade são muito sólidas, a ponto
que nenhuma autondade pode tirar de uma pessoa os bens dos quais
esta chegou legitimamente à posse, a menos que, acrescenta
Ockham, exista para tanto uma causa, ou a pessoa tenha cometido

466 AHamman, La dollrrne de l'Éghse et de l'État chez Ocklwm, Pans 1942, pp 110-112
467 Brevdoqutum,111,
12-13,pp 92-96 Lagarde(la11m.11a11ce ,IV,pp 213-214)eHamman
(La dourrne , p 112) estão de ac01do em Julgar engenhosa a solução ockham1sta

284
um crime468• Mas também esta restrição deve ser esclarecida, pois à
luz de quanto foi visto acima, deve-se excluir que uma pessoa perca
o direito de possuir devido a pecados pessoais ou por culpas que
atingem sua moral privada. O caso só se aplica quando houver cul-
pa ou inadimplência verificadas no foro externo, que tenham im-
portância no plano jurídico e que de algum modo lesem o bem co-
mum. Com esta restrição do direito de propriedade, Ockham mostra
haver entrevisto aquilo que hoje :vem definido como a função social
da propriedade privada.
Recapitulando, pode-se dizer que o pensamento de Ockham
sobre o tema é o seguinte: a origem do direito de propriedade é divi-
na e humana conjuntamente. Divina, enquanto a raiz do poder de
apropriar-se dos bens está constituída pela faculdade concedida por
Deus ao homem para dispor de todas as coisas que julgar úteis a seu
bem-estar; humana, enquanto Deus deixou ao homem a faculdade
de decidir em vista das circunstâncias e graças à experiência, se é
mais conveniente a comunidade ou a divisão dos bens.
Mas então, que resposta dá Guilh~rme à pergunta, se o di-
reito de propriedade é um direito natural ou não?
A resposta exige urna distinção. Se, ao dizer que a proprieda-
de é de direito natural, entende-se dizer que o único regime econô-
mico conforme à natureza humana é aquele de propriedade privada,
devemos dizer que para Ockham não é assim. Se, invés, com tal
afirmação entende-se dizer que a divisão dos bens está conforme
com a razão e não repousa sobre o arbítrio ou sobre a violência,
então devemos dizer que o regime de propriedade privada é de di-
reito natural, porque, embora seja de instituição humana, todavia
surgiu devido aos ditames da razão, como aquele regime que melhor
garante a paz social e provê o bem comum. Em outros termos: a
propriedade privada tem urna origem divina, e portanto natural, não
imediatamente, mas só pela mediação da razão humana.

468 «Possuntahqm tam fideles quam mfideles pro culpa vel ex causa tah potestate pnvari ut 1p-
sam sc1hcet extra artlculum necessllatls non valcant hc1te exerccre» (Brev1/oqu1um, 111,p 88)

285
4. Origem e legitimidade do poder civil

A íntima conexão estabelecida por Guilherme entre proprie-


dade e autoridade, entre direito de posse e direito de governar, faz
pensar que tenha elaborado uma Justificação do poder civil paralela
àquela utilizada para esclarecer a fundamentação da propriedade
privada.
Mas neste problema Ockham devena ajustar contas com as
teonas e, mais ainda, com as convicções difundidas entre seus con-
temporâneos. Em primeiro lugar, não podia ignorar a teona radical
de Marsílio de Pádua, para quem a soberania popular era a fonte de
todo poder, tanto civil como eclesiástico. Contra Marsílio haviam-se
alinhado tanto os defensores do pontífice quanto os do império: uns
e outros rebelavam-se com a idéia de que a autoridade civil não de-
rivasse de Deus. Curialistas e imperiahstas consideravam intangível
a afinnação de são Paulo, ao dizer que todo o poder vem de Deus.
Também Ockham, em um primeiro momento, não ousou re-
futar a tese da origem divina imediata do poder civil, e no Dialogus
afirma que tal tese pode ser aceita tal como pode também ser rejei-
tada469.Nas obras posteriores, todavia, enuncia sempre mais clara-
mente a convicção de que o poder civil deriva de Deus, mas não
imediatamente. No Breviloquium, bem como depois nas Octo
quaestiones, afronta diretamente o problema e esclarece seu pensa-
mento a respeito. Observa então que há duas maneiras de interpretar
a afirmação paulina de que todo poder vem de Deus. O primeiro
modo é o de dizer que Deus designou direta e explicitamente alguém
para tomar em mãos as rédeas do poder de uma nação ou da huma-
nidade toda. Esta explicação é recusada por Ockham, porque, a seu
modo de ver, não goza de fundamento algum na Sagrada Escritura.
O fato de que a Escritura refira casos nos quais Deus designou de
modo claro e manifesto algum personagem (como Moisés, por
exemplo) para o governo de seu povo, não é sobrevalorizado: trata-
se sempre de casos excepcionais pelas circunstâncias e modos nos
quais tais fatos se desenvolveram.

469 Dralogus, III, 2, 1 1, e 26, p 899

286
Uma segunda interpretação das palavras paulinas pode ser
esta: o poder derivaria somente de Deus, mas mediante a interven-
ção de uma criatura ou de um homem, podendo tal intervenção ser a
designação feita pela comunidade de diversos modos (por eleição ou
por hereditariedade). Ockham julga sem fundamento também esta
posição: não há nada na Escritura que possa fazer pensar em uma
intervenção direta de Deus quando uma comunidade de homens ele-
ge ou delega uma pessoa para exercer o comando.
Exclui-se, além do mais, que a experiência ou o raciocínio
possam servir de ajuda a este respeito. Da historia resulta somente
que o poder civil surgiu pela vontade dos homens, tanto no caso do
império, como em outros tipos de govemo470 . Contudo, ele não re-
nuncia a salvar o princípio da origem divina do poder, mas o faz se-
guindo um caminho próprio, análogo àquele seguido para dar um
fundamento divino ao direito de propriedade. Deus não impôs ao
gênero humano a obrigação de ter superiores na esfera do temporal,
mas deixou aos homens a faculdade de instituir alguma forma de
poder, de dar-se um chefe, quando as circunstâncias assim o vies-
sem a exigir471 • Tal poder humano de constituir autoridade a si
mesmo explicitou-se quando surgiu a necessidade da autoridade,
isto é, quando a instituição do poder civil revelou-se ser o único
modo.possível para garantir o desenvolvimento pacífico e ordenado
da convivência humana.
O pensamento de Ockham resume-se, portanto, dizendo que
compete à razão do homem o dever de individuar a conveniência de
instituir a autoridade, mas foi Deus que deu ao homem a razão para
procurar as coisas necessárias e úteis para viver de modo ordenado
e pacífico. Em última análise, dever-se-á dizer que a instituição da
autoridade, tal como a da propriedade privada, enquanto determina-
da pela razão, deriva de Deus, mas só de modo indireto.

470 Brev1/oquium IV, 5-7, pp 109-113


471«Potestas appropnand1 res temporales data esta Deo humano genen et propter rallonem
cons1m1lemdata est a Deo, absque mm1steno et cooperatione humana, potestas mslltuend1 rec-
tores habentes Junsd1ct1onem temporalem, qma Junsd1cuo temporahs est de numero Iilorum
quae sunt necessaria et ullha ad bene et pohuce v1vere» (lb1, III, 7, p 87)

287
Tal instituição, porém, não é necessária em sentido absoluto.
Ockham está convencido de que não seria indispensável a criação de
uma autoridade que regulamentasse o desenvolvimento pacífico e
ordenado da convivência humana, quando tal convivência aconte-
cesse entre pessoas dominadas pela razão e não pelas paixões. De
fato, a natureza cria todos os homens iguais, de tal modo que ne-
nhum pode ufanar-se, por própria iniciativa, de ter poderes sobre
um seu semelhante. Além disso, veremos que o dever principal de
quem está constituído como autoridade é o de refrear e punir os
malfeitores, o que traz como conseqüência que em uma comunidade
de homens perfeitos a autoridade é supérflua472•
A única exceção é representada pela autoridade do marido
sobre a mulher e do pai sobre os filhos, pois para ele a autoridade
marital e a paterna são queridas por Deus e pela natureza para o
desenvolvimento daquela sociedade natural que é a famt1ia e, por
isso, devem ser tidas como necessárias, quaisquer que sejam as con-
dições históricas nas quais se possa encontrar a humanidade.
O ensinamento ockhamístico denota em que consideração
Ockham tinha a razão, isto é, a capacidade humana de autocontro-
lar-se e auto-regular-se. O homem não foi obrigado por Deus a ins-
tituir superiores para si, porque recebeu de Deus a razão para re-
gular sua existência. Quando, pois, a razão, após o pecado original,
fez compreender aos homens a conveniência de darem-se autorida-
des, colocou os homens na condição de fazerem precisamente o que
Deus poderia ter prescrito se fosse necessária uma intervenção di-
reta dele. Ora, pelo caminho ordinário, não é necessário que Deus
fale ao homem e o guie diretamente, pois a luz da razão, com a qual
Deus o dotou, é suficiente para garantir a ligação fundamental entre
aquilo que o homem coloca em ato e a vontade de Deus. A origem
do poder civil, como a da propriedade privada, testemunham esta
ordem fundamental do desenvolvimento social, pois originam-se, em
última análise, do fato qu~ Deus deu aos homens a razão para com-
preender como e quanto seria justo e conveniente dar-se uma estru-

472 D,a/ogus, III, 2 1 1, cap 2, p 874, Brev1loqu1um, 111,7, pp 85-87 Cfr. De Lagarde, La
naissance . . , IV, pp. 220 ss

288
tura hierárquica ou um regime privado de propriedade para assegu-
rar o desenvolvimento ordenado das relações sociais.
Após a teoria sobre a origem do poder, vejamos a justificação
filosófica que Ockham apresenta do próprio exercício do poder. Em
outros termos, trata-se de precisar o critério, em força do qual deve-
se julgar se e até que ponto uma pessoa constituída em autoridade a
exerce legitimamente.
Ockham procede aqui excluindo, inicialmente, aquelas que
eram as justificativas mais sagazes da legitimidade do poder473 : não
é verdade que a autoridade se impõe como inelutável conseqüência
do fato de que o homem, por natureza, não pode realizar a si mesmo
fora da sociedade, e não é verdade exatamente porque, segundo
Ockham, a humanidade é somente um conceito, pois existem ho-
mens singulares, e não a natureza humana.
Uma outra justificação do poder civil reportava-se a Aristó-
teles, o qual reivindicava aos mais capazes e mais virtuosos o dever
e o direito de dirigir seus concidadãos. Guilherme declara-se con-
vencido que este é um critério insuficiente, pois pode acontecer que
existam mais pessoas em posse dos dotes supracitados e então deve
intervir a comunidade a fim de fazer uma escolha. Mas esta escolha
pode ser, por vezes, justificada pela necessidade de existir uma pes-
soa constituída em autoridade, e assim pode sempre acontecer que,
em virtude de uma legítima designação, chegue ao poder uma pes-
soa que, à luz das normas ideais da justiça, não seja de todo dig-
na474 _
Nem a exigência da natureza humana, nem os direitos do mé-
rito são portanto justificação válida do poder civil para Ockham. E
devemos acrescentar de imediato que, segundo nosso autor, nem
mesmo a defesa do bem comum legitima por si só o exercício do
poder. O bem comum exige que se reprima a delinqüência e, para
tanto, é certamente necessário que haja uma pessoa investida de
autoridade. Disto Ockham está tão convencido, a ponto de dizer que
se o povo não se percebesse da necessidade de eleger um chefe, ca-

41,Ve1a-se, p01 exemplo, Tomás de Aqumo, Summa theologwe, I, 96, 4


474 Dwlogus, III, 1, 1 2, e 17, pp 801-803

289
paz de reprimir e punir os malfeitores, seria necessário impor-lhe tal
chefe 475 • Se, em vez disso, observamos os dados da experiência,
percebemos logo que é muito difícil encontrar autoridades ou gover-
nos ideais, que na prática sejam guiados exclusivamente pela preo-
cupação do bem comum 476 e, no entanto, Ockham declara-se con-
vencido que todos os governantes que cometem abuso do poder não
perdem todo direito de serem obedecidos, mesmo se, por princípio,
somente os goven:iantes que possuem sempre e somente em mira o
bem comum são verdadeiramente dignos de exercer o mando. Quem
é legitimamente investido do poder, não o perde pelo só fato que
dele abusa, o que significa que a legitimidade do poder não é garan-
tida pela preocupação do bem comum, mas requer uma justificação
ainda superior 477 • Refletindo-se sobre o fato de que para ele a justi-
ficação última da autoridade, que permite a um homem dominar so-
bre os outros, é dada pela faculdade de atribuir-se governantes, fa-
culdade conferida por Deus aos homens por haver deixado à razão
humana o julgar sobre a conveniência de instituir uma autoridade,
parece lógico concluir que, para nosso autor, um poder é legítimo
quando é querido pelo povo. Guilherme é explícito neste sentido 478 ,
a ponto de algum estudioso ter visto em Ockham um defensor do
contrato social 479 • Seu parecer é de que só é legítima a autoridade
aceita por todos os súditos sobre os quais é exercida 480 . É legítimo
aquele príncipe que obteve a aprovação de toda a comunidade sobre
a qual estende sua soberania.
Esta tese está muito próxima da teoria de Marsílio e pode
prestar-se para a interpretação de quem atribui a Ockham uma con-

47 \,Cum talis mnsdict10 vel potestas bono commum debeat expechre, non refert a quo mstltua-
tur, dummodo debite exe1ceatur et nte et nullatenus neghgatur, quae cuncta 1mplentur, s1 nullus
delmquens m eadem communitate pumuonem suprem1 md1c1svel altenus subterfugere queat»
(Octo quaestwnes, q. 3, c 9, I, p l l l)
476 De Imperatorum et Pontifiwm potestate, p 13
477 «S1cut abusus non tolht legitunam potestatem, s1c bonus usus potestatem mJustam non

transmutat injustam» (BrevUoqu1um, IV, 11, p 123)


478 VeJam-se as numerosas citações de De Lagarde, La nwssance , IV, p 228, notas 153-154
479 J· B. MorraJI, Some Notes m1 a Recent /11terpretatum of W,/ham of Ockham's Pohllwl

Ph,/osophy, «Franc. St », 9 (l 949), 358


480 «Univers1tat1 mortahum nullus praefiCJ debet, ms1 per electlonem et consensum eorum»

(D,a/ogus, III, 2, 1 3, c 6, p. 934)

290
cepção perfeitamente democrática do estado, no sentido moderno, e
vê nele um teórico da soberania popular.
Na realidade, não se encontra uma perfeita coerência no inte-
rior dos escritos ockhamistas a respeito desta questão, motivo pelo
qual, antes de chegar a uma conclusão, convém colocar em destaque
algum outro ponto fundamental, que leve a uma interpretação mais
cautelosa. Inicialmente, nos passos nos quais defende os direitos
particulares, Ockham refere-se quase exclusivamente aos direitos
dos imperadores e reís481 . Nesta direção convém ainda observar que
ele se preocupa fundamentalmente em reivindicar as prerrogativas
dos príncipes contra o direito do povo. De fato, depois de haver
afirmado que o príncipe deve seu poder à designação popular ou a
uma praxe tacitamente aprovada pelo povo, apressa-se em acres-
centar que o príncipe, uma vez eleito, não pode mais ser privado do
poder contra sua vontade482 . E existe ainda mais: ele admite que em
qualquer caso o direito do povo de dar-se um chefe pode ser legiti-
mamente abrogado ou suspenso quando, por exemplo, conste que a
maioria é movida por motivos facciosos ou descura seus deveres a
respeito da eleição da autoridade, e também quando as distâncias
são tais, a ponto de tornar impossível uma reunião plenária 483 .
Além do mais, o direito popular de participar das eleições de
quem deve governar não é inalienável, visto que pode ser delegado a
outros, como acontece ordinariamente, pois é conhecido, por exem-
plo, que o direito de fazer leis, existente ordinariamente junto ao
povo, foi deste transferido para o imperador484 .
Mas o fato que impede peremptoriamente de aceitar a tese de
que Ockham foi um defensor da teoria da soberania popular é repre-
sentado pela admissão de que uma autoridade pode obter a própria
legitimidade por diversos caminhos, que vão desde o consenso po-
pular até a hereditariedade, a doação, a compra e venda e a guerra
justa 485 • Sobra, como ponto fixo, a inalienabilidade do direito que o

481 DeLagarde, La naissance , IV, pp 230-231, notas 164-165


482 Brev1/oqu,um, IV, 14, p 125
481 Dialogus, III, 2, l 3, e. 8, p 937
484 /b,, 1 3, e 6, p. 934
485 Cfr Octo quaestrones, q 5, e 6 {I, pp 158-160)

291
povo tem de sacudir o jugo de um rei ou de um imperador que exer-
çam o poder de modo evidentemente irracional486 •
A estas alturas, torna-se difícil fazer um balanço preciso do
pensamento ockhamista a respeito da justificação racional do poder
civil, visto que se detém em sugestões e esboços, que, porém, per-
manecem sempre como tais, sem jamais adquirir linearidade e com-
pletude.
De Lagarde, ao término de sua análise, declara-se insatisfeito
devido a este tergiversar de Ockham, que parte por diversos cami-
nhos e não chega ao término de nenhum. Por isso, aquele autor julga
que nisto se pode ver uma prova do fraco valor filosófico das tenta-
tivas ockhamistas de dar uma fundamentação racional ao poder ci-
vil487.Em verdade, é difícil declarar-se satisfeito com aquilo que
Ockham foi escrevendo em textos por vezes prolixos, sempre cheios
de digressões e exceções.
Contudo, devemos conceder-lhe atenuantes, a primeira das
quais é o caráter prevalentemente polêmico de seus escritos políti-
cos, seguido voltados a conciliar pontos de vista contrastantes e he-
terogêneos, o que ajuda a compreender como seu pensamento possa
ressentir-se de circunspecção e de reflexão. Em segundo lugar,
Guilherme preocupou-se sempre em jamais perder de vista a experi-
ência, de não esquecer jamais os dados do fato por amor aos princí-
pios. Ora, é necessário reconhecer que um pensador que deseja levar
em consideração todas as situações concretas que se apresentam no
decorrer da história e que determinaram como se instaurou o poder
civil em povos por vezes diversos e em contínua evolução, será le-
vado a encontrar alguma justificativa também para eventos que não
se enquadram em determinada teoria, e por isso será constrangido a -
fazer apelo a supressões e exceções, em prejuízo da coerência abs-
trata das doutrinas. À luz destas considerações, cremos que não é
temerário considerar positivamente o fato de que Ockham, entre as
possíveis justificações filosóficas do poder civil propostas por seus
contemporâneos, não se tenha deixado levar a aderir a alguma delas.

486 /b,, q 2, e· 9, pp 87-88


487 De Lagarde, La na,,mmce , IV, pp 233-234

292
Este descontentamento não deve ser debitado somente à intemperan-
ça de seu espírito crítico, pois em boa parte surge de sua incapaci-
dade de enamorar-se de uma teoria até o ponto de esquecer que a
vida concreta rebela-se ante a ameaça de ser enquadrada rigorosa-
mente no esquema de uma interpretação unívoca. Suas muitas ob-
servações críticas, que acabam despedaçando a linha lógica de toda
teoria e colocando à luz o inadequado no momento mesmo no qual
se tenta aplicar a teoria à variedade das situações históricas, denun-
ciam por si mesmas a exigência muito viva em Ockham de estar
com os pés na terra e de não idealizar os fatos, em prejuízo de sua
concretude histórica.
A esta luz, a posição de Ockham apresenta uma tal margem
de progresso a ponto de não fazer necessariamente que se lamente o
fato de que ele, com a despreocupação típica de seu engenho, tenha
sustentado que nem o dever dos homens melhores em colocar ao
serviço da comunidade a sua sabedoria, nem o cuidado do bem co-
mum, nem o princípio da soberania popular são uma justificação
suficiente do direito reconhecido universalmente a certos homens
para ditar leis e governar a coisa pública. Fazendo isto, ele subli-
nhou como se tem necessidade da autoridade, mesmo no caso em
que o eleito não cuida com o empenho desejável do bem comum,
mesmo quando a soberania popular não encontra modo de exprimir-
se.
Convencido de que estados e governos ideais jamais existiram
e jamais existirão sobre a terra, Ockham ofereceu a única justifica-
tiva historicamente possível do poder civil, fundando-a sobre a im-
possibilidade, reconhecida pela razão humana, de o gênero humano
viver em paz e de instaurar relações sociais adequadas, quando não
se delegue a alguém o ,dever de fazer leis e de fazê-las respeitar por
todos.
Este parece ser para ele o fundamento ineliminável do poder
civil, e com isto acaba por convir com Aristóteles e santo Tomás em
colocar na natureza social do homem o fundamento do poder civil,
teoria que subentende a convicção de que o homem não é capaz de
realizar sua humanidade fora do contexto social.

293
Contudo, à diferença de santo Tomás, o mestre inglês não
julga em absoluto impossível que exista uma vida social ordenada
sem que haja autoridade: em uma sociedade de pessoas capazes de
deixar inspirar seu comportamento sempre e somente pelos ditames
da razão, ninguém sentiria necessidade de um legislador e menos
ainda de um guarda das leis, pois cada homem seria lei para si
mesmo. Uma vida civil pacífica e ordenada toma-se impossível sem
o freio da autoridade somente com a entrada do pecado no mundo,
pois o pecado aniquilou o domínio seguro da vontade sobre as pai-
xões, tal como existia no homem no estado paradisíaco.
Se Aristóteles julga conexas com a natureza humana en-
quanto tal as condições próprias do estado atual da humanidade,
pode ser escusado, pois que ignorou a revelação bíblica, mas não é
igualmente escusável o teólogo que adota a terminologia aristotélica
sem modificações e correções. Um cristão pode afirmar que a insti-
tuição do poder civil fundamenta-se sobre uma exigência da nature-
za humana assim como historicamente se oferece à nossa considera-
ção, mas não pode dizer que tal instituição seja uma exigência natu-
ral no sentido rigoroso do termo, isto é, referindo-se à natureza hu-
mana em si, referindo-se ao homem como deveria ser, segundo o
plano originário do criador.

5. As relações entre Estado e Igreja

O motivo dominante de toda a reflexão política de Ockham é


a tentativa de desmantelar a teoria curialista de atribuição de plenos
poderes ao pontífice. O objetivo principal de suas análises é o de
demonstrar a independência do poder civil em geral, e o do impera-
dor em particular, ante a autoridade eclesiástica.
Contudo, não podia ignorar os dados históricos e a praxe se-
cular da Igreja, que se mostrava sempre solícita ante as vicissitudes
da instituição imperial. Depois de haver feito reviver o império no
Ocidente com a criação do Sagrado Império Romano, os pontífices
vigiaram e agiram com intervenções determinantes, por vezes volta-
das a sustentá-lo e restaurá-lo, por vezes visando a impedir que o

294
imperador ultrapassasse seus limites. Os imperadores, de sua parte,
interpretando de modo muito generoso 'sua função de defensores da
Igreja, tentaram seguidamente intrometer-se nos assuntos eclesiásti-
cos, depondo papas e reivindicando excessivos direitos na eleição
dos bispos, pretendendo erigir-se como árbitros das controvérsias
surgidas entre o clero secular e regular, entre grandes feudatários ou
reis e a Santa Sé.
Ockham foi induzido a preocupar-se com as relações entre o
Estado e a Igreja pela exigência de precisar sempre melhor sua de-
fesa da autonomia do Estado e pela de esclarecer no plano teórico
alguns fatos históricos por demais famosos para serem ignorados.
Contudo, jamais tratou do assunto em uma obra sistemática, o que
cria dificuldades para a reconstrução exata de seu pensamento. Para
complicar ainda mais as coisas contribui também o fato de que, en-
quanto nos escritos em que manifesta seu pensamento pessoal
(Breviloquium e De /mperatorum et Pontificum potestate), encon-
tramos muito pouco a respeito das relação entre os dois poderes, ele
dedica muitas páginas ao assunto nos escritos em que se esconde
por trás da análise das opiniões contrastantes, sem jamais declarar
explicitamente a qual delas dirigem-se suas preferências. É o que se
observa nos primeiros capítulos do livro VI da primeira parte do
Dialogus, e nos dois tratados da terceira parte da mesma obra.
Para alguns estudiosos, sobretudo para· oe Lagarde, parece
obrigatório voltar-se aos numerosíssimos passos do Dialogus, na
convicção de que, com um certo intuito crítico, e tendo em conta as
opiniões atribuídas a Ockham por autores do século XV, não é difí-
cil individuar quais teorias gozariam da simpatia dele.
Outros estudiosos, pelo contrário, como Boehner, Morrall e
Hamman, preferiram ater-se ao Breviloquium, ao De lmperatorum
et Pontificum potestate e às Octo quaestiones, que se delongam
muito menos no tema sobre as relações entre os dois poderes, mas
que, em compensação, contêm indicações mais seguras do pensa-
mento ockhamista. O caminho seguido por De Lagarde parece ser o
melhor. Este autor, levando em conta todas as obras ockhamistas,
chega a conclusões bem mais convincentes, das quais transparece

295
como, mesmo no âmbito do pensamento político, Ockham foi um
pensador que colocou em crise muitas posições tradicionais.
No tempo de Ockham, a distinção entre os dois poderes, o
temporal e o espiritual, era admitida pacificamente por todos. O
próprio Ockham não colocou em discussão a existência de dois po-
deres, mas mais que qualquer outro mestre preocupou-se em exami-
nar criticamente a legitimidade da distinção. A variedade das teorias
elaboradas por seus contemporâneos atestava mesmo a necessidade
de uma profunda revisão das idéias a respeito.
Egídio Romano, o porta-voz mais avançado das teorias hie-
rocráticas do tempo, embora reconhecendo que as atribuições e
competências do poder civil são claramente distintas das do poder
espiritual, sustentava que ambos os poderes são reconduzidos a uma
única fonte, ou seja, à autoridade de Deus. Por isso, do momento em
que, por investidura direta de Deus, o papa é o representante mais
qualificado da autoridade divina, toda outra autoridade deve reco-
nhecer que depende da autoridade papal. Isto implica que se, por um
lado, é justo e conveniente que o papa delegue aos príncipes e aos
reis o .governo das coisas temporais e respeite os direitos adquiridos
pelos -lergos em força de tal delegação pontifícia, de outro lado é
igualmente justo que os leigos reconheçam a supremacia do pontífi-
ce e o direito que ele possui de controlar a legitimidade e o exercício
do poder.
Já vimos com quanta decisão Ockham negou a validade desta
teoria. O que não tolerava não eram as interferências do poder espi-
ritual na esfera do poder civil, mas a pretensão de justificar in radi-
ce, afirmando que todos os poderes adquirem sua legitimidade no
poder do papa.
Uma tese radicalmente oposta a esta era sustentada por Mar-
sílio de Pádua, para quem existe tão somente uma autoridade verda-
deira e própria, a secular. O ofício da Igreja é só pastoral, incum-
bindo-lhe o ônus de pregar o Evangelho e regularizar a administra-
ção dos sacramento aos homens que livremente abraçam a fé, en-
quanto escapa de sua missão-o poder de impor leis a todo um povo e
fazê-las respeitar com meios apropriados, poder este reservado ex-
clusivamente à autoridade civil. A autoridade da Igreja é, sem dúvi-

296
da, uma autoridade altíssima, mas de ordem pastoral e moral, des-
provida de todo poder coercitivo.
A tese hierocrática e a tese marsiliana, embora diametral-
mente opostas, convinham em um ponto: no fato que reconduziam
os dois poderes a um só; ao espiritual, segundo os teólogos curia-
listas; ao temporal, segundo Marsílio. Os dois poderes, na verdade,
mais do que distintos são subordinados, de tal modo que o poder
supremo acaba sendo o único.
Ockham não aceita nenhuma das duas teorias. Enquanto, po-
rém, opõe-se com máxima energia contra a tese hierocrática, não
esconde uma certa simpatia por aquela de Marsílio, embora jamais
o manifeste explicitamente 488•
Ele levou em consideração também outras teorias, que procu-
ravam fundar de modo diferente a relação entre os dois poderes,
sendo característica aquela apresentada no século XII por Hugo de
São Vítor e Estêvão de Tournai. De Lagarde resume a posição deles
nos seguintes termos: "Em uma única sociedade, sob um só rei, que
é Cristo, há dois povos: um, voltado à oração e à atividade espiritu-
al, outro, voltado para as atividades civis (desfrute dos bens, repar-
tição dos recursos, justiça terrena, defesa contra os agressores). O
primeiro é formado pela ordem hierárquica dos eclesiásticos, sub-
metidos à jurisdição espiritual. O segundo é formado pela pirâmide
das ordens e dos estados leigos, submetidos à jurisdição temporal.
Duas autoridades agem lado a lado sobre duas categorias de súdi-
tos, nitidamente diferenciados, embora vivendo juntos sobre o mes-
mo território',489• Segundo estes pensadores, a distinção dos poderes
funda-se sobre a distinção das pessoas a governar, que se dividem
em clérigos e leigos.

mEste é o parecer de De Lagarde, que está convencido de que Ockham nutriu uma certa sim-
patia pela teoria mars1hana, visto que Jamais a I efutou categoncamente De resto, o núcleo
central da tese de Marsílio estava constituído pela 1ecusa de atnbutr à lgreJa todo poder coerct-
ttvo ora, se é verdade que Ockham não chega a tanto, é igualmente verdadeuo que ele tende a
restnngu em muno o poder da lgreJa em questões de índole CIVIi e de foro externo (cfr De La-
garde, La naissanw , v, pp 223-225) A teona de Marsího é exposta por Ockham no Dialo-
gus, 1, 1 6, cc 2-3 (m Goldast, pp 508-510) e nas Octo quaestwnes, q. 3, e. 2 (1, pp. 99-101).
489 De Lagarde, La na1ssance , V, pp 225-226

297
Outros teólogos contemporâneos de Ockham, como João de
Paris e Durando de São Porciano, preferiam justificar a existência
dos dois poderes tradicionais baseando-se na diferença de matérias,
mais que sobre a distinção de pessoas. Constatamos, na verdade -
sustentavam eles -, como há ordenamentos que visam ao bem espi-
ritual dos homens, e ordenamentos necessários para prover o bem
material privado e público dos cidadãos de uma cidade ou de um
reino. Os primeiros pertencem à autoridade religiosa, os segundos
entram na competência do poder civil. Os órgãos das duas jurisdi-
ções regulam e julgam os atos das mesmas pessoas, mas uns refe-
rindo-se aos aspectos propriamente morais, e os outros, aos aspec-
tos propriamente jurídicos. De fato, uma má ação é perseguível
tanto como uma ofensa à lei moral, quanto como atentado contra a
boa ordem a ser conservada nas relações humanas.
Também estas duas novas justificações dos poderes jurisdici-
onais existentes na humanidade não satisfazem ao espírito crítico de
Ockham, que se atém aos inconvenientes que tais teorias apresen-
tam490_
A esta altura pergunta-se espontaneamente, qual a fórmula
proposta por Ockham para harmonizar as duas jurisdições. Mas a
interrogação fica sem resposta. Ockham não elabora uma solução
do problema, o que permite concluir que evidentemente ele julga
improvável uma solução teórica capaz de resolver radicalmente as
dificuldades provocadas pela diarquia de poderes em ato dentro da
cristandade. Em lugar de uma fórmula geral e abstrata, preferiu in-
dicar uma via de saída através do exame crítico voltado a estabele-
cer as competências dos dois poderes. Procurou fixar os limites que
eles devem respeitar ordinariamente e o âmbito da ação de cada um,
quando surgem situações excepcionais e extraordinárias.
Ockham declara-se convencido de que o ordenamento hierár-
quico da Igreja é de instituição divina e que, portanto, a autoridade
do papa nas coisas que se referem ao dogma e à moral deriva da in-
vestidura direta de Cristo a Pedro. Depois de Pedro, contudo, o ti-
tular desta autoridade é escolhido pela designação humana, a qual

49 ºDia/ogu.,, Ili, 2, 1 3, e 17, pp. 947-950

298
se verifica de fato com a eleição por parte do colégio dos cardeais,
enquanto em linha de direito a eleição do pontífice cabe ao povo de
Roma.
Portanto, também a autoridade papal é subordinada a um
certo consenso por parte dos homens e por isso, quando legisla no
âmbito dos conselhos evangélicos, ou das opções estritamente indi-
viduais ou em matérias que fogem do âmbito do mero obrigatório, o
papa não pode deixar de levar em conta o consenso tácito ou ex-
presso da comunidade eclesial. Contudo, existem ainda outras coi-
sas: também as definições em matéria de fé e de costumes são de
certo modo sujeitas ao controle vigilante do povo cristão, que não
deixará de fazer-se respeitar caso as definições papais estejam em
contraste com a Escritura ou com as tradições da Igreja universal.
O mesmo é dito a respeito das condenações públicas que o
papa pronuncia contra alguém: a comunidade eclesial tem o direito
de julgar se são temerárias, injustas ou nulas.
A afirmação ockhamista sobre o controle do governo da
Igreja por parte de toda a comunidade eclesial não significa afirma-
ção do princípio da soberania popular ou da superioridade do con-
cílio sobre o papa, pois o que estava no coração do mestre inglês era
a salvaguarda de ambos os aspectos da instituição eclesiástica, o hi-
erárquico e o comunitário. Trata-se de dois momentos essenciais,
que devem ser conciliados não obstante as dificuldades que tal con-
ciliação apresenta.
Ockham está convencido que é a própria revelação que exige
esta salvaguarda, o que é provado por sua concepção de infalibili-
dade na Igreja. Ockham declara que a infalibilidade não pertence de
modo próprio a ninguém, nem a uma instituição nem a um indiví-
duo. Deus, na verdade, não prometeu a infalibilidade a um homem
individual, como o papa, nem mesmo a uma coisa abstrata, como é
a autoridade papal; nem a um colégio restrito, como o concílio geral
e, enfim, nem mesmo a uma pura ficção, como é a idéia de Igreja
universal. Deus, prometendo a infalibilidade, garantiu somente que
a verdade não desaparecerá no seio da comunidade cristã. Se o papa
erra, outras pessoas ficarão fiéis à verdade. Mas nós não podemos
saber quem serão: pode tratar-se de um grupo de bispos, ou de

299
doutores, ou mesmo de simples leigos, ou do concílio geral. Tal é o
sentido da infalibilidade segundo Ockham, para quem é absurdo li-
gá-la a uma estrutura constitucional da Igreja, talvez porque esti-
vesse convencido que seja absurda e danosa a personalização do
coletivo 491 .
Portanto, ele estabelece um controle, isto é, limites ao poder
legislativo e coercitivo do pontífice na esfera propriamente espiritu-
al. Todavia, reconhece que o papa pode legitimamente punir os mal-
feitores, quando a autoridade civil omitir de fazê-lo; pode compor-
tar-se como soberano, quando populações confiem espontaneamente
em sua sabedoria política, ou no caso em que nenhuma outra auto-
ridade se empenhe em impor os ordenamentos civis a um povo to-
mado pela desordem ou a anarquia. Sob tal perspectiva, deve-se ter
como justificação a intervenção do papa no âmbito civil quando, na
qualidade de delegado do povo romano, ele transfere a autoridade
imperial dos imperadores de Constantinopla, então tombados em he-
resia, a Carlos Magno. A iniciativa, em si, deveria ter sido tomada
por pessoas mais qualificadas que o pontífice; somente a negligência
ou descaso delas legitimou a intervenção da autoridade religiosa 492 •
Se examinarmos agora a natureza e as competências ordiná-
rias e extraordinárias do poder imperial, encontramos que, para
Guilherme, o dever essencial da autoridade imperial é o de salva-
guardar e promover a convivência civil, de modo a preservá-la da
desordem, das injustiças, de tudo aquilo que do interior ou do exte-
rior pode ameaçar a paz e a prosperidade dos súditos. O imperador
é o juiz e moderador supremo, ao qual devem ser deferidas todas as
causas que por qualquer título possam perturbar a segurança e a
tranqüilidade pública. Todavia, ele deve ser cristão, porque, em
caso contrário, não estaria apto a prover o bem comum espiritual de
seus súditos 493 • Nisto Ockham parece ainda muito ligado à tradição

491 G. De Lagarde, Ockhom et /e concde l{énéra/, m A/bum Helen Maud Cam, vol 1, Louvam-
Pans 1960, pp. 85-96. Para indicação dos textos veJa-se, do mesmo autor, La na,ssance , V,
pp. 128-164.
492 De /mperarorum et Po11T1ficum potestate, ed cit., p. 23
49 \,Supremus prmctpans s1veJudex non deberet esse summus pontlfex, sed saeculans, laicus et

Christianus Quod _autem deberet esse Chnstmnus, patet ex hoc quod ahter bonum commune

300
medieval que excluía o desinteresse da autoridade civil nos con-
frontos com o bem espiritual dos súditos. Também para Ockham os
valores religiosos são o fundamento de todos os demais valores hu-
manos.
Estando convencido que só a difusão da religião cristã pode
assegurar a obtenção do supremo bem espiritual para a humanida-
de, ele sustenta que hereges, judeus e outros infiéis são incapazes de
exercer a autoridade imperial e que só aos cristãos pertence portanto
o direito de governar os destinos do império universal.
Como, pois, para os medievais, o cristianismo se identifica
com a Igreja católica, segue-se que a cura principal do imperador e
de toda outra autoridade civil deve ser a de vigiar e empenhar-se de
todos os modos para que a Igreja permaneça fiel à sua missão e seja
governada por pastores à altura dos deveres a eles confiados. Na re-
alidade, todos os fiéis devem dedicar-se à glória de Deus e promovê-
la proporcionalmente às suas possibilidades, e por isso não se de-
vem tomar ao pé da letra as prescnções dos canonistas, que proíbem
os leigos de imiscuir-se nos assuntos internos da Igreja494 .
Se cada fiel não pode eximir-se de condividir com o clero, em
uma certa medida, o zelo pelas coisas de Deus, com maior razão
devem preocupar-se com o bom governo da Igreja os imperadores e
príncipes, não no sentido que possam ditar leis dentro dela, mas no
de que devem defendê-la e promover a honra de Deus. Para tanto
são obrigados pelo direito natural, pelos imperativos da razão, da
utilidade pública e da própria Escritura 495 . De fato, os detentores do
poder estão nas melhores condições possíveis para prover eficaz-
mente a defesa dos direitos da verdade cristã confiada por Deus à
sua Igreja, dispondo somente eles dos meios necessários para casti-
gar os rebeldes e heréticos e reduzi-los ao silêncio. Os m?tivos pelos
quais não é preciso dar espaço à heresia a custo de recorrer a meios
coercitivos drásticos são evidentes. Se ninguém tivesse o dever e o

spmtuale non fovere, sed destruere mteretur, quod optlmo pnnc1patm umversilalis mortahum
obvmt et repugnai» (Olto quaestumes, q 3, e 12, 1, p l 16)
494 D,a/ogus, I, 1 6, e l00, p 632
495 VeJam-se as citações em De Lagarde, La nw,sam.e , V, p 241

301
poder de exterminar com qualquer meio a heresia, dever-se-ia admi-
tir que Cristo, depois de haver prometido à Igreja a indefectibilida-
de, não haveria dado ao mesmo tempo um meio adequado para ga-
ranti-la496.Por outro lado, a heresia é o pior dos males, é um grave
atentado à paz pública e, portanto, o próprio direito natural exige
que as autoridades civis intervenham energicamente contra os here-
ges.
Para defender a Igreja não é suficiente combater os hereges
declarados, mas se deve também vigiar para que não surjam e não
se difundam doutrinas perniciosas. Com esta finalidade, se é verda-
de que reis e príncipes, por via ordinária, não devem assumir as
vestes de teólogos, é igualmente verdadeiro que possuem maiores
possibilidades que os simples leigos de instruir-se na religião e, gra-
ças a isto, de exprimir o próprio parecer em controvérsias difíceis.
Acima de tudo, as autoridades civis, tal como o pontífice e os bis-
pos, podem valer-se da ajuda de especialistas na matéria e, então,
quando a uma parte notável dos fiéis as posições doutrinais do pon-
tífice são suspeitas de heresia, as supremas autoridades civis devem
promover um exame adequado497.
Finalmente, imperadores e reis não podem desinteressar-se
por quanto acontece na Igreja, porque, mesmo se foram constituídos
como autoridade pelos homens, todavia, em última análise, recebe-
ram de Deus seu poder e, como conseqüência, mais do que outra
pessoa devem empenhar-se pela causa religiosa. Nada, pois, a admi-
rar se em cada época reis e príncipes tenham promulgado leis para
salvaguardar os direitos da divindade e cominado penas contra
quem ofende a Deus ou as instituições religiosas498. Todas estas
considerações levam logicamente Ockham a ver no imperador um
dos juízes mais qualificados de um papa herético e escandaloso. Na

496Dialogus, I, I 6, e 99, p 626


497 «Et 1deo quoad rehg10nem competlt e1 [ao imperador] d1scerea cathohc1s, non docere, tam-
quam habens praed!cand1officmm, qma habet p11v!legmpotestatls suae, ad quae numstrandum
leg1bus pubhc1s d1V1mtusconstltutus est, nec m quantum solummodo Imperator, sed m quan-
tum lmperator chnstianus est non solum ad adm1mst1andumleg1bussaeculanbus debet mten-
dere, sed e1 mcumb1t haeretlcos elencos, etiam Papam haeret1cum (quando ecclesme potestas
deficit) coercere» (Jb,, I, 1 6, c 100, p 632 [630])
498 /b,, I, I 7, c 55, p 714

302
verdade, há juízes mais qualificados que o imperador: a comunidade
dos fiéis, o concílio geral e o colégio dos cardeais. No caso, porém,
que todos estes órgãos competentes calem, cabe aos leigos, e em
primeiro lugar ao imperador, reduzir à impossibilidade de ser noci-
vo um papa herético e escandaloso de fato, ou tido como tal499 •
Querendo fazer um balanço de tudo quanto Ockham diz a
respeito das relações entre Igreja e Estado, em um primeiro mo-
mento poder-se-ia concluir que sua posição é substancialmente
equilibrada, visto que mantém firme a distinção entre os dois pode-
res e que ao direito do pontífice de intervir ocasionalmente na esfera
do temporal, faz corresponder um igual direito do imperador de in-
tervir, sempre ocasionalmente, na esfera espiritual.
Na realidade, trata-se de uma paridade ou de uma reciproci-
dade apenas aparente. De Lagarde observou muito bem como o
fundamento sobre o qual Ockham coloca a legitimidade da interven-
ção do papa na esfera política é diverso daquele sobre o qual põe a
legitimidade da intervenção do imperador na esfera eclesiástica. A
razão que autoriza o papa a intervir em questões políticas é somente
uma razão de necessidade, que toma consistência no caso em que
nenhum dos juízes naturais do imperador faça o que é seu dever,
enquanto o direito do imperador de submeter a juízo um papa heré-
tico ou escandaloso aparece como uma prerrogativa do ofício de
juiz supremo da cristandade. O fato de que o imperador faça valer
tal prerrogativa só excepcionalmente, não retira dela o caráter de ser
em si mesma regular e ordinária 500 . A principal razão de ser dopo-
der civil, para Ockham, é a de julgar e punir toda a espécie de deli-
to, a começar por aqueles que lesam a honra de Deus e atingem a
pureza da fé. Portanto, quando o imperador intervém nos confrontos
com um papa herético ou que, de algum modo, compromete a reli-
gião, a ordem moral ou a justiça, nada faz de extraordinário, mas
apenas aplica um poder que lhe é próprio, que lhe pertence constitu-
cionalmente.

499 Ibtdem Cfr De Lagarde, La 11w.wmce , V, pp 246-249


5011
lb1,p 239

303
A intervenção do imperador torna-se excepcional somente no
caso em que se assume também o dever de convencer o papa de he-
resia, dever confiado ordinariamente à comunidade eclesial ou ao
concílio geral ou ao colégio dos cardeais. Diverso é o caso do pontí-
fice que se torna culpável de algum delito contra a fé, contra os
costumes ou contra a justiça: nestes casos, o papa cai sob a jurisdi-
ção imperial, como qualquer súdito.
De Lagarde examina alguns textos ockhamistas que vêm a
confirmar sua interpretação, segundo a qual o título que justifica as
intervenções papais na esfera política é diverso daquele que justifica
as intervenções do imperador na esfera eclesiástica. Segundo
Ockham, a organização social atinge sua perfeição quando existe
em seu vértice um único juiz supremo e, a seu juízo, este juiz su-
premo não pode ser o papa, mas o imperador. Portanto, também o
papa deve ser julgado por ele501 . Ora, esta afirmação implica a ne-
gação da existência de dois poderes distintos.
Ockham, porém, jamais quis explicitar esta conseqüência de
suas teorias. Quando procura explicar sobre qual base apóia-se a
realidade histórica das duas jurisdições operantes no seio da cris-
tandade, ele se move sobre estradas diversas. Na terceira parte do
Dialogus, faz a instituição dos tribunais eclesiásticos provir da ne-
cessidade em que se encontrou a Igreja de remediar a insuficiência
ou as negligências dos tribunais civis, que descuravam de perseguir
as ações contrárias à moral e, sobretudo, as contrárias à fé. Se os
juízes seculares tivessem sempre cumprido seu dever, especialmente
nos confrontos com os hereges, não se teria jamais percebido a ne-
cessidade de tribunais eclesiásticos. A Igreja ter-se-ia limitado a as-
sistir nos casos mais difíceis e controversos aos juízes seculares,
que teriam avaliado, caso por caso, se e até que ponto era conveni-
ente ater-se a tais diretivas 502 .
Urna outra explicação é data nas Octo quaestiones, e pode
ser assim resumida: era conveniente que o imperador, por reverência
para com a altíssima dignidade do pontífice, que na esfera espiritual

º
5 1D,a/ogus, III, 2, 1 3, e 17, p 948
º
5 2 De Lagarde, La 1u11.mmce , V, pp 216-217

304
lhe é superior, não só renunciasse a julgar o papa, mas lhe atribuís-
se também um amplo poder coercitivo. O papa exerce, pois, legiti-
mamente o poder jurisdicional, mas este lhe foi concedido pelo im-
perador em vista de sua excepcional dignidade espiritual e não lhe
compete por direito. Por isso, é óbvio que, quando o pontífice se
toma indigno do ofício do qual foi investido, ou quando abusa de
modo grave da concessão, o imperador deve fazer valer sem restri-
ções os seus direitos de juiz supremo 503 .
Ambas as justificações do dato histórico, ou seja, de que a
Igreja exerce um poder jurisdicional verdadeiro e próprio, permitem
concluir que, embora nosso autor não se pronuncie abertamente
contra a distinção tradicional dos dois poderes, e dando assim a im-
pressão que os quer conservar e justificar, todavia, sua reflexão está
orientada toda ela para a anulação da distinção.dos poderes: o poder
jurisdicional exercido pelo papa e pela Igreja in genere configura-se
como uma parte subordinada da jurisdição imperial, que tem o de-
ver de delimitar-lhe o âmbito.
Combatendo com tanta tenacidade as convicções tradicionais
sobre a legitimidade de reconhecer-se à Igreja o poder coercitivo,
Ockham ofereceu muitas flechas à polêmica anti-eclesiástica dos sé-
culos seguintes, mas teve também o mérito de colocar em questão as
concepções exageradamente jurídicas da Igreja, que estavam no
auge em seu tempo, preocupado como estava com a necessidade de
que na Igreja se abrisse espaço para a liberdade evangélica e para as
forças renovadores e verdadeiramente autônomas do Espírito Santo.
Sem dúvida, realizou sua obra com algum exagero e sem
avaliar até o final as conseqüências desagregadoras de algumas de
suas afirmações, inspiradas em retorsões polêmicas da verdade.
Mas isto acontece a todos os que tentam abrir novos caminhos para
a reflexão teológica.
Se formos além dos resultados exegéticos, isto é, de quanto se
descobre na elaboração escrita da concepção que Ockham tinha das

501 «Quamv1s emm 1mperator s11IUdex supremus mulutud1ms fidehum, non tamen est mdex su-
premus petsonae papae m temporahbus, propte1 1eve1enttam officn, quo füng1tur papae propter
quod in spmtuahbus est supenor 1mpe1at01e»(Octo quaestumes, q 2, e 8, 1, p 84)

305
relações Igreja-Estado, e procurarmos compreender o espírito da
afirmação de que entre os dois âmbitos, o espiritual e o civil, há
uma obrigatória e possível interferência, percebemos que na base de
tudo encontra-se uma forte tensão ideal: ele aspirava a um ideal de
sociedade que, dada a época em que viveu, não podia conceber a
não ser como sociedade cristã, na qual todos, clérigos e leigos, par-
ticipam de um duplo poder, espiritual e secular, embora a título di-
verso, e assim fazendo, controlam-se e complementam-se recipro-
camente. Nesta visão, "não haverá mais uma Igreja e um Estado. As
duas palavras não serão mais que duas faces de uma mesma reali-
dade: a comunidade organizada espiritual e civilmente para a salva-
guarda do bem comum temporal e a defesa da fé cristã"504 •

De
5114 Lagarde, La natssance , V, p 264

306
BIBLIOGRAFIA BÁSICA SOBRE OCKHAM

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307
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d'Occam. Paris, 1994.

308
ÍNDICE ONOMÁSTICO

A
Abbagnano, N., 37,131,221,231,232,307.
Adão de Balsham Parv1pontanus, 45.
Agazz1, E., 61.
Agostinho (s.), 177, 194, 283, 284.
Alberto Magno, 175, 176.
Alexandre de Hales, 218.
Alfén, P., 308.
Álvaro Pela10, 273.
Aristóteles, 10, 13, 24, 25, 28, 49, 57, 67, 78, 109, 110, 112, 123, 126-129, 141,
143, 147, 149-151, 158, 162, 165, 168, 170-177, 1769, 180, 182, 183, 185-
187, 189, 190, 194, 197, 199-201, 204-207, 208, 211, 217, 220, 226, 227,
230,232,235,238,243,246,253,264,268,281,289,293,294.
Arquilliere, A -X., 273.
Avicena, 38, 74, 103, 169.
Averróis, 167,175, 177, 179,197,219,220.

B
Bald1ssera, A., 218.
Balic, C., 241.
Baluze, E., 31.
Bannach, K., 308.
Barbaglio, G., 307.
Baudry, L., 14-16, 18-20, 22, 24, 26, 28-30, 32-34, 49, 53, 132, 136, 156, 17,
272,274,275,307.
Baumgartner, A., 22, 23.
Bennet, R. F., 31, 32.
Bento XII, 22, 33, 35.
Bergson, H , 185
Bertoldo de Marstetten, 266.
Bettoni, E., 8,188,218,225,226,240,241,246,258,261.
Boaventura, 188, 191, 192,194,246.
Bock, F., 265, 266.
Boehner, Ph., 11, 14, 22, 24-26, 29-30, 37, 40, 41, 44, 50-52, 58, 61, 63-65, 72,
76,95, 119,131,132,143,231,252,295,307.
Boh, 1., 64, 241.
Bonagrazia de Bergamo, 20, 23, 31.
Bonansea, B., 258.

309
Bonifácio VIII, 273, 275.
Borgnet, A., 176.
Bott:m, F., 308.
Brampton, C. K., 14, 15, 17, 18, 22, 24-26, 28, 32, 35, 36, 276.
Bréh1er, E., 131.
Buescher, G., 307.

e
Carlos IV, 271.
Carlos de Morávia, 35.
Carlos Magno, 300.
Cazzola Palazzo, L., 131.
Clemente VI, 22, 35.
Conrado de Megenberg, 35.
Copleston, F., 73, 224, 225.
Corvmo, F., 28,174, 175, 179, 186,197,198,209.
Courtenay, W., 308.

D
Damiata, M., 308.
Dante Ahghen, 270.
De Andrés, T., 40. 69, 76, 80-84, 126,127,307.
De Boni, L. A., 10, 273, 274
De Lagarde, G., 268,280,281,284,288, 290-292, 295,297,298, 301, 303, 304,
306,307.
Denzmger-Schbnmetzer, 221.
De Rijk, L. M., 44, 45.
De Wulf, M., 131.
Domingos Gnma, 18.
Doncoeur, P., 28, 29.
Duhem, P., 170, 175, 176,199,203.
Durando de São Porciano, 18, 19, 79, 128, 235, 236, 298.

E
Eduardo II, 18.
Eduardo 111,33.
Egídio Romano, 273, 296.
Erben, W ., 266.
Estêvão de Tournm, 297
Estêvão Temp1er, 16, 170, 199.
Eubel, C., 14, 31.
Eudes R1gaud, 218.

310
F
F1hpe, o Belo, 275.
Francisco de Ascoh, 31
Francisco das Marcas, 218,
Francisco de Meyronnes, 27, 281.
Fredenco da Áustna, 265, 266, 271.
Fresher, M., 35.
Fuchs, O., 231.

G
Gabnel Blel, 55.
Gàl, G., 78.
Garvens, A., 241, 255.
Gh1salbert1, A., 7, 9, 1O, 159, 194, 307, 308.
Giacon, C., 30, 128, 131, 163, 307
GIiberto de la Porrée, 124.
Goddu, A., 308.
Godofredo de Fontmnes, 79, 192.
Goldast, M., 14, 16, 31-35, 134,297.
Goldman, C.P., 273.
Graciano, 283.
Gregóno, bispo de Belluno-Feltre, 18.
Guelluy, R.,247, 307
Guilherme de Ware, 218.
Gmral Ot, 21.

H
Hamman, A., 284,295.
Henrique VII, 265.
Hennque de Burwasch, 18.
Hennque de Gand, 79, 85, 98, 100, 128,215,225,235.
Hennque de Harclay, 72, 77.
Hennque de Talhe1m, 31.
Hervée de Nédellec, 72, 128.
Henry, D. P, 44.
Heyneck, V , 7, 24
Hochstetter, E., 28, 37, 72,213,241,252,307.
Hoffmann, F, 18.
Hohn, R., 23.
Hubertmo de Casale, 270.
Hugo de São Vítor, 297

I
Isidoro de Sevilha, 281.

311
J
João XXII, 17, 19, 21, 23, 31-33, 35, 36, 265-267, 271,273,282.
João Buridano, 198.
João de Jandun, 271.
João de Paris (Quidort), 298.
João de la Rochelle, 218.
João Duns Scotus, 9, 16, 56, 57, 69, 74, 85-87, 93, 98, 141, 144, 146-149, 155,
156, 159, 171, 183, 191,192,203,205,206,215,217,218,223,225,226,
240,241,243,246,258,261,281.
João Filopono, 168, 169.
João Lutterell, 17-19.
João Paynhota, 18.
Jung, N., 273.
Junghans, H., 28, 29, 76, 126.

K
Kant, I., 185, 191.
Koch, J., 19.
Koelmel, W., 252,307.

L
Leff, G., 308.
Lelland, J., 30.
Luís da Baviera, 20, 21, 23, 32, 34-36, 265-267, 271-273.

M
Maier, A., 25.
Magg1olo, 183.
Malebranche, 235.
Mans1, G. D., 31.
Mansion, D., 175.
Marcos de Benevento, 24, 28.
Marsího de Pádua, 21, 267-272, 286, 296, 297.
Martin, G., 126,307.
Mateus (s), 274.
Mateus de Acquasparta, 72, 192,194,218.
Matthews, G. B., 65.
Maud Cam, H., 300.
Maurer, A., 55, 57.
McCords, M.,308.
McGrade, A. S., 308
Menges, M., 112, 113, 131, 132, 140.
M1chalsk1,K., 72.
Michon, C., 308.

312
M1ethke, J., 17, 23, 26, 174, 179, 180, 186,187,241,307
Miguel de Cesena, 17, 20. 21, 23, 33.
Mohan, C H , 29
Moody, E A., 37, 51, 52, 65,307
Morrall, J B., 290, 295
Moser, S., 186.
Mulder, W , 14, 35
Muller, C , 36, 265

N
Nicolau de Cusa, 198.

o
Obermann, H A., 307, 308
O'Callaghan, J ., 78.
Offler, H. S., 31-35.
Oxiha-Boffito, 273.

p
Paqué, R , 307
Pascal, B , 155
Paulo (s), 134, 286.
Pegis, A C., 72
Pelzer, A., 19.
Pedro Auréola, 19. 77, 79,128,218,235,236.
Pedro Helyas, 44
Pedro Hispano, 44-46
Pedro João Ohv1, 188, 192, 225.
Pedro Lombarda, 77.
Perner, J . 193
Ptlot, G., 308
P_!nborg J , 307.
Pmcm, C., 268
Platão, 281.
Popp1, A , 207
Porfíno, 13, 25, 50, 115, 117
Prévtte-Orton, C W, 268.
Pnce, R, 47.
Pn~ciano, 44.
Ptolomeu, 184

R
Ra11nundo Bequmi, 18
Ricardo de Mediavilla. 171, 199
Ricardo de São Vítor, 224

313
Richter, V., 25.
R1coeur, P., 84.
R1verso, E., 51 .
Roberto KJ!warbdy, 16.
Rogéno Bacon, 203.

s
Salamuca, J., 37, 61.
Scholz, R., 14, 3-3-36,268.
Schonberger, R., 308.
Schwalm, J., 267.
Sciarra Q:ilonna, 271 .
Sevenno Boéc10, 123,124,224.
Shapiro, H., 167, 186.
Sikes, J. G., 31, 34,273.
"Snape,R. H., 34.
Souza, J. A. C. R., 268.
Sweenney, L., 207.
Swimarsk1, J. J., 47.

T
Tiago de Metz, 128.
Tiago de V1terbo, 273,
Tomás de Aquino, 9, 74, 93, 98, 100, 124, 128, 133, 151, 175, 182, 183, 187,
1-88, 191-193, 205, 206, 219, 223, 232, 234, 240, 246, 270, 281, 282, 289,
293,294.
Tweedale, M., 207.

V
Vanm Rov1gh1, S., 77,218.
Vasa-h, C., 131,268,270, 30-7.
Vereecke, L., 241,308.
Vicente de Cartena, 283.
Vignaux, P., 307.
V11ley, M., 307
Vossenkühl, W., 308

w
Waddmg, L., 30.
Walter Burle1gh, 25, 64.
Walter Chatton, 24, 78.
Webenng, D., 136,307.

z
Zavallom, R., 225

314
"Saiba- se que toda ciência se re-fere a um com-
plexo ou a complexos. E da mesmo formo como os
complexos são conhecidos pela ciência, os incomplexos,
dos quais eles se compõem, constituem o que determi -
nada ciência considera. Ora, acontece que os complexos
conhecidos pela ciência natural não são compostos por
coisas sensíveis, nem por substâncias, mas por inten-
ções ou conceitos da alma comuns a tais coisas. E por
isso, propriamente falando, a ciência natural não é
acerca das coisas sujeitas à corrupção e à geração,
nem acerca dos substâncias naturais ou das coisas
móveis, porque nenhuma delas é sujeito ou pred icado
em nenhuma conclusão conhecida pela ciência natural.
Com efeito, fa lando com r igor, a ciência natural trata
das intenções da alma comuns a tais coisas e que pre -
cisamente as representam, se bem que, em algumas
proposições, ta is conceitos valem por si mesmos. É
isso que proclama Aristóteles ao dizer que a ciência
não se ocupa com as coisas singulares, mas só com as
universais, que representam os próprios singulares"
(Gut1hermede Ockham.Introdução ao Comentár/oà
Fís/cade Ar/stóteles).

EDIPUCRS

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