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BRASÍLIA
2019
DISPOSITIVO MATERNO E A TENTATIVA LEGISLATIVA DE
CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NA PEC 181A
ABSTRACT
This work deals with the right to life as a constitutional guarantee as well as a discourse established in the jurisprudence
about the beginning of life. The institute of abortion is discussed, the exclusions of the unlawfulness of said crime as a
risk pregnancy for the pregnant woman, in case of rape and in case of pregnancy of an anencephalic fetus, there is still a
judgment in Habeas Corpus of the STF that treated abortion in the first trimester of pregnancy. Lastly, the
Constitutional Amendment Project 181 was proposed, whose purpose was to change the term of maternity leave in the
case of the birth of premature infants. What was at first a commendable change resulting from PEC 181 has become an
affront and a setback of the law, in particular the right of the pregnant woman to put an end to an unwanted pregnancy
resulting from existing exclusions of illegality. The amendments of the project and its approval before a committee
constituted in the Chamber of Deputies are the initiative of men deputies who seek to change the rights already won by
women. It is an affront to women's autonomy, the physical and mental integrity of the pregnant woman, her sexual and
reproductive rights, and a violation of gender equality. The continuation of an unwanted pregnancy brings a series of
harm to the woman, the exclusion of unlawfulness of the crime of abortion represent the minimum of the right
necessary to support the desire and necessity of interruption of such pregnancy. The possibility of approving the current
text of PEC 181 has the power to revert such guarantees already conquered, it is a discourse by deputies mostly men
that has repercussion on the whole population.
1
Renata Lelis Rufino dos Santos, Aluna especial no Mestrado em Psicologia Clínica e Cultura – PPG PsiCC, Mestranda em Direito e
Políticas Públicas pelo UNICEUB, Especialista em Direito Empresarial, Advogada, Email: renata.lelis@gmail.com.
1 INTRODUÇÃO
O presente estudo se propõe a compreender o retrocesso decorrente da possibilidade da
aprovação da Proposta de Emenda Constitucional n. 181 na redação atual, o que representaria um
enorme retrocesso em face dos direitos conquistados até então, principalmente, das mulheres cuja
gravidez pretendem terminar. Idealizando uma maternidade indesejada que está ligada ao
dispositivo materno e a culpabilidade da mulher ao não levar adiante uma gravidez ainda que
decorrente de um crime de estupro.
Espera-se demonstrar a importância da manutenção dos direitos até então instituídos,
principalmente no que tange às excludentes do crime de aborto - gravidez de risco para a gestante,
em caso de estupro e em caso de gravidez de feto anencéfalo. Cada excludente é apontada de forma
individual tendo em vista a justificativa para a ausência de ilicitude em cada caso. Ressalta-se ainda
a necessidade de preservação da autonomia da mulher, de sua integridade física e psíquica, de seus
direitos sexuais e reprodutivos, bem como a proibição do aborto acarreta em uma violação à
igualdade de gênero.
Por fim, é realizada análise da Proposta de Emenda Constitucional cuja redação atual tem o
condão de criminalizar toda e qualquer possibilidade de realização do aborto ao determinar o direito
a vida desde a concepção, o que traz grandes riscos, tendo em vista que, a gravidez indesejada
provavelmente continuará sendo interrompida sem qualquer amparo médico às mulheres, o que
representa um perigo à vida delas.
2 DO DIREITO A VIDA
2
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:.
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Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o
direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)
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Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade,
defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.
idosos. Ainda, o legislador assegura o referido direito no art. 7 o do Estatuto da Criança e do
Adolescente5.
Quanto ao tema, Pontes de Miranda aduziu: “O direito à vida é inato; quem nasce com vida,
tem direito a ela” (Pontes de Miranda, 1971). Carmem Lúcia sobre o tema dispôs: “O direito à vida
é a substância em torno da qual todos os direitos se conjugam, se desdobram, se somam para que o
sistema fique mais e mais próximo da idéia concretizável de justiça social.” (Antunes Rocha, 1998)
O direito à vida está associado ao direito de conservação da vida. O indivíduo pode usufruir
de sua vida mas não pode dela dispor, de forma que somente é justificado qualquer tipo de ação
lesiva contra a vida em casos de legítima defesa e estado de necessidade.
Ainda, o direito à vida está ligado a dignidade. Ou seja, o direito à vida não é apenas o
direito de sobreviver, mas de viver dignamente. A dignidade da pessoa humana é considerada de
valor pré-constituinte e de hierarquia supraconstitucional. (Mendes, Coelho e Branco, 2008).
O cerne da questão sobre o inicio da vida recai sobre se o início da vida se daria no
momento da concepção de forma que, o feto seria uma pessoa a partir da concepção, sendo qualquer
ameaça a seu direito à vida uma agressão à vida humana ou no caso do aborto um assassinato da
vida humana. Se adotado tal entendimento o feto seria portador de direitos, entre eles o interesse de
permanecer vivo e de proteção de seus interesses básicos. No sentido dispôs Dworkin: “A vida
humana tem um valor intrínseco e inato; a vida humana é sagrada em si mesma, o caráter sagrado
da vida humana começa quando a vida biológica se inicia, ainda antes de que a criatura à qual essa
vida é intrínseca tenha movimento, sensação, interesse ou direitos próprios.” (Dworkin, 2009)
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Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que
permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência..
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Art. 2o A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do
nascituro.
O Magno Texto Federal não dispõe sobre o início da vida humana ou o preciso instante em
que ela começa. Não faz de todo e qualquer estágio da vida humana um autonomizado bem
jurídico, mas da vida que já é própria de uma concreta pessoa, porque nativiva (teoria
"natalista", em contraposição às teorias "concepcionista" ou da "personalidade
condicional"). E, quando se reporta a "direitos da pessoa humana" e até a "direitos e
garantias individuais" como cláusula pétrea, está falando de direitos e garantias do
indivíduo-pessoa, que se faz destinatário dos direitos fundamentais "à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade", entre outros direitos e garantias igualmente
distinguidos com o timbre da fundamentalidade (como direito à saúde e ao planejamento
familiar). Mutismo constitucional hermeneuticamente significante de transpasse de poder
normativo para a legislação ordinária. A potencialidade de algo para se tornar pessoa
humana já é meritória o bastante para acobertá-la, infraconstitucionalmente, contra
tentativas levianas ou frívolas de obstar sua natural continuidade fisiológica. Mas as três
realidades não se confundem: o embrião é o embrião, o feto é o feto e a pessoa humana é a
pessoa humana. Donde não existir pessoa humana embrionária, mas embrião de pessoa
humana. O embrião referido na Lei de Biossegurança (in vitro apenas) não é uma vida a
caminho de outra vida virginalmente nova, porquanto lhe faltam possibilidades de ganhar
as primeiras terminações nervosas, sem as quais o ser humano não tem factibilidade como
projeto de vida autônoma e irrepetível. O Direito infraconstitucional protege por modo
variado cada etapa do desenvolvimento biológico do ser humano. Os momentos da vida
humana anteriores ao nascimento devem ser objeto de proteção pelo direito comum. O
embrião pré-implanto é um bem a ser protegido, mas não uma pessoa no sentido biográfico
a que se refere a Constituição. (ADI 3.510, 2008)
De acordo com o trecho acima colacionado, referente ao julgamento da ADI 3.510 que
tratava da Lei da Biossegurança pesquisa de células tronco embrionárias, determinou-se que um
embrião ainda que juridicamente tutelado não se trata ainda de uma pessoa.
Dessa forma o direito à vida do individuo nascido com vida não recai sobre o embrião ainda
não nascido. Tal diferenciação é importante, tendo em vista a análise do ponto a seguir que trata do
instituto do aborto.
3 ABORTO NO BRASIL
Trata-se de tema polêmico que cria divisões na sociedade em movimentos pró e contra o
aborto. Tais divisões decorrem da problemática decorrente de se o feto tem direito à vida ainda
dentro do útero.
Destaca Dworkin que a sociedade acha vergonhoso que alguma forma especifica de cultura
humana morra ou esteja em vias de desaparecer. Aduz que a vida é valiosa no sentido subjetivo,
instrumental e intrinsecamente valiosa. O valor da vida de uma pessoa é instrumental quando a
avaliamos em termos do quanto o fato de ela estar viva serve aos interesses dos outros. (Dworkin,
2009)
Aduz o referido autor que a convicção da maioria das pessoas sobre o aborto surge do
princípio de que a vida humana, inclusive a vida de um embrião recém-formado, é inviolável.
Aponta que a ideia de que os seres humanos são especiais entre as demais criações da natureza é
apresentada para justificar porque seria horrível que a vida humana fosse eliminada. Cada ser
humano é desenvolvido e é produto da criação natural e do tipo de força humana criadora e
deliberativa que reverenciamos ao reverenciar a arte. (Dworkin, 2009)
A idéia de que cada vida humana é inviolável tem raízes em duas bases do sagrado que se
combinam e se influenciam quais sejam a criação humana e a criação natural, assim, qualquer
criatura humana, ainda que seja um embrião é um triunfo da criação divina ou evolutiva, seria um
milagre da reprodução humana. Ressalta que a vida de um único organismo humano exige respeito
e proteção e que o horror diante da destruição da vida humana reflete o sentimento comum e
inarticulado da importância intrínseca de cada uma dessas dimensões do investimento feito.
(Dworkin, 2009)
No que tange a métrica do desrespeito destaca-se que o feto é uma pessoa com direito à vida
e que qualquer aborto implica uma perda de vida humana e, portanto, é, em si mesmo, vergonhoso e
condenável. Aponta que se a vida humana fosse medida apenas em termos cronológicos, um aborto
em fase inicial seria um insulto à vida humana, no entanto, a maioria das pessoas defende que
quanto mais avançada a gravidez mais reprovável seria o aborto, tendo em vista que seria mais
difícil e mais moralmente condenável. (Dworkin, 2009)
No que se refere ao humano e divino destaca o autor que a frustração não é decorrente
apenas da perda, mas também que compromete a inviolabilidade da vida humana. Uma vez
começada a vida humana há divergência quanto a questão se a morte prematura passível de ser
evitável é sempre a mais grave frustração de vida possível. (Dworkin, 2009)
Destaca o autor, ainda exceções conservadoras em que o aborto seria moralmente
permissível como na possibilidade de salvar a mãe e no caso de gravidez decorrente de estupro,
tendo em vista que exigir que a mulher avance na gravidez decorrente da concepção de uma criança
em tamanha agressão é destrutivo para sua realização pessoal pois frustra sua escolha quanto a
reprodução. Destaca ainda que não haveria distinção e, portanto, possibilidade do aborto ainda que
em situações especiais como estupro e risco para a mãe, caso o feto fosse uma pessoa com direitos e
interesses próprios pois tal pessoa seria inocente a despeito de qual fosse a natureza ou a intensidade
da culpa de sua mãe. (Dworkin, 2009)
No Brasil o Aborto é medida tipificada como crime 7, no entanto, o próprio Código Penal
prevê hipóteses de exclusão de ilicitude decorrente da prática de aborto 8 que coincidem com as
possibilidades moralmente aceitas apontadas por Dworkin. Ainda, por meio de construção
jurisprudencial foi incluída a possibilidade de prática do aborto decorrente de gestação de feto
anencéfalo. Tais possibilidades serão tratadas nos sub tópicos a seguir.
7
Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento; Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho
provoque: (Vide ADPF 54) Pena - detenção, de um a três anos. Aborto provocado por terceiro Art. 125 - Provocar aborto, sem o
consentimento da gestante: Pena - reclusão, de três a dez anos. Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: (Vide
ADPF 54) Pena - reclusão, de um a quatro anos. Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de
quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência; Forma
qualificada Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto ou
dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas
causas, lhe sobrevém a morte.
8
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54) Aborto necessário I - se não há outro meio de salvar a vida
da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de
consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Tal possibilidade se justifica em face da razoabilidade decorrente de que não se pode impor
a mulher o perigo de prosseguir numa gestação que pode lhe comprometer a saúde física.
Devidamente comprovado o risco, deve ter a gestante o direito de optar pela interrupção da
gestação. Dessa forma, tem-se a valorização do direito da mulher decorrente da CF em face
do direito do feto.
O crime de estupro decorre da violência que obriga uma pessoa a manter contato sexual
físico bem como participar de outras relações sexuais com uso de mecanismo que anule ou limite a
vontade pessoal.
Apontou, ainda, que as mulheres vítimas de violência apresentam consequências além das
imediatas decorrente do ato de violência como cicatrizes em sua vida sexual, afetiva e profissional,
e a continuidade da gravidez pode acarretar na lembrança da violência e do agressor que, ainda que
desconhecido, deixa marcas profundas no desenvolvimento da pessoa havendo agravante quando se
trata de violência decorrente de pessoas conhecidas. (Nunes, 2014)
A decisão pelo aborto pode não ser fácil em nenhum dos casos, tendo em vista que a mulher
vítima da violência tenha temor do julgamento social e do preconceito por parte dos profissionais
que a atenderão nos serviços de saúde faz com que essas mulheres não busquem a ajuda de outras
pessoas e também não busquem a atenção em saúde para o tratamento necessário. (Nunes, 2014)
Em entrevistas com vítimas foram detectadas as sensações advindas do trauma decorrente da
violência, como cheiro do agressor, tentativas de eliminar qualquer vestígio da violência:
Eu não sei explicar. É ... a minha cabeça tá totalmente sem... Eu to totalmente sem chão,
sem saber o que pensar. Que depois do que aconteceu. Quando eu descobri meu único
pensamento era tirar e tentar viver novamente. Mas eu não consegui. (Ana-E1)
Eu tinha muita vontade de morrer. Eu queria morrer. Muito, muita vontade de morrer.
Muito nojo. De tomar banho eu sentia muito nojo. De me tocar, de... Era assim uma coisa
assim que parecia que eu tava assim sempre muito suja. Muito suja. Parecia assim que por
mais que eu tomasse banho. Por mais que ninguém tivesse vendo, mas eu sentia. As
pessoas me olhavam às vezes eu achava assim que tava suja, que aquela pessoa tava com
nojo de mim e ninguém nem sabia da história e eu achava que tinham nojo de mim. E eu
sentia muita vontade de sumir. De morrer, de sumir, de sair [...] Eu tinha ciência que
ninguém sabia de nada. Só quem sabia era minha mãe, isso eu sempre tive muita ciência,
mas pra mim as pessoas já estavam me olhando, me julgando, assim, sabe? Sei lá. É muito
difícil explicar assim com palavras. Mas era como se a pessoa me olhasse e soubesse de
tudo que tinha acontecido comigo. Eu não conseguia encarar a pessoa. Olhar a pessoa assim
nos olhos. Tá entendendo? Pra mim aquela pessoa tinha visto, tinha ouvido falar ou
qualquer coisa do tipo [...] (Bruna-EUn)
“Me senti humilhada, destruída como pessoa, completamente impotente diante de situação
que eu não queria, mas também não podia fazer nada pra que não fosse acontecer... aquele
momento... [...] Senti um nojo daquilo. Nojo. Nojo. Um nojo tão grande, tão grande... que
eu comecei a sentir esse nojo também do meu corpo, não só daquele momento, mas depois
que aconteceu aquilo, eu sentia um nojo, uma rejeição do meu próprio corpo... [...] (Clara-
E1) (Nunes, 2014)
Quanto à gestação, as vítimas relataram:
Eu me sinto horrível. Eu me sinto mal com tudo. Eu tô carregando uma vida que eu não
sinto nada por ela. Que até tem momentos que eu chego até a ter raiva. Eu me sinto mal por
não gostar dela [...] Eu me sinto mal por eu tá me modificando totalmente por uma coisa
que eu não desejo ter, que eu não planejei. Eu vendo meu corpo se transformando, a minha
vida.... Eu sinto muito uma revolta. Se eu pudesse eu tiraria com minhas próprias mãos.
Mas eu não posso<choro>. Eu não consigo aceitar. Cada dia fica mais difícil. (Ana-E1)
Então, quando eu senti que eu tinha assim uma coisa. Eu sei que é uma criança. Eu sei que
era um ser, mas eu sempre senti como se fosse uma coisa. Uma coisa dentro de mim. Uma
coisa ruim, uma coisa podre, uma coisa que fedia, sabe? Às vezes eu passo assim por um
ambiente que tem assim um mau cheiro e às vezes aquele mau cheiro me lembra o mau
cheiro daquele homem, sabe? Então quando soube que eu tinha essa criança ai. Eu sentia
assim aquela coisa ruim. Como se fosse um, Deus que me perdoe, mas um monstro. Eu não
queria. Eu sentia nojo. Eu não queria de jeito nenhum. De jeito nenhum. Nunca quis.
(Bruna-EUn).
[...] além disso ter o pensamento de que eu estava gerando, gestando uma coisa que eu não
queria, fruto daquele dia, daquela... daquele momento terrível, que foi absolutamente ruim,
e do qual eu não... eu nunca podia imaginar num momento desses, viver uma violência
dessas. [...] Foi muito difícil, assim... Foi muito revoltante. (Clara-E1) (Nunes, 2014)
Relataram as vítimas ainda sentimentos de nostalgia:
É horrível. Eu sinto uma grande saudade de como a minha vida era antes. Eu sinto um
desejo tão grande de poder tá em casa. Fazer as minhas coisas como eu fazia antigamente.
Pensar no futuro como eu pensava.(Ana-E1)
Foi horrível. Foi muito horrível porque eu sempre sonhei em casar, em ter família [...] Eu
sempre sonhei que eu ia encontrar o meu príncipe, que eu ia me casar e que eu ia ter filhos.
(Bruna-EUn)
Eu espero um dia poder me amar de novo, assim, de gostar de mim, do meu corpo, de... não
sei, eu queria ter uma família...(Clara-E1)
Só a única coisa que eu tenho certeza é que eu perdi tudo, que todos os meus sonhos foram
embora. (Ana-E1)
Assim, antes eu pensava assim que era por minha causa assim, por ter demonstrado medo,
por ter demonstrado fraqueza, certo. Até mesmo por ter andado, ter no dia que eu tava de
saia, né, que é uma roupa justa né. É uma roupa que chama atenção de um homem né.
Talvez se eu tivesse com uma roupa mais comprida, por exemplo, não tivesse chamado
atenção dele. Sei lá. Aí no início eu me julgava muito que tinha acontecido muito pelos
meus modos, certo. (Bruna-EUn) (Nunes, 2014)
Em face de tais relatos fica evidente a vulnerabilidade da vítima de estupro e o aborto
legalizado no caso representa uma saída, um alivio pequeno de tal sofrimento.
O terceiro caso de aborto legalizado no Brasil refere-se ao de feto anencéfalo. No que tange
à anencefalia, essa se caracteriza pela ausência dos hemisférios cerebrais, o que torna o feto
anencéfalo a representação do sub-humano. Trata-se de fetos que não atingiram o mínimo
desenvolvimento biológico exigido para a entrada na humanitude, seres cuja vida está fadada ao
fracasso. Trata-se de uma ausência de vida associada à imagem de sub-humanidade. (Diniz, 1997)
Aduziu o Ministro Relator Marco Aurélio de Mello que o anencéfalo, tal qual o morto
cerebral, não tem atividade cortical. Ressaltou ainda:
Para fundamentar seu voto o Ministro adotou três fundamentos. O primeiro, cientifico, ao
apontar que no primeiro trimestre de gestação não há formação completa do sistema nervoso
central, portanto não se poderia falar em vida humana, que é marcada pela atividade cerebral. O
segundo, social, decorrente de uma discriminação social tendo em vista que o aborto realizado de
forma insegura pode gerar graves consequências. O terceiro, jurídico, tendo em vista a violação de
diversos princípios e normas. (HC 124.306, 2016)
Ocorre que no tramitar da referida PEC está sofreu alterações, passando de uma louvável
determinação a uma armadilha com a supressão de direitos conquistados pelas mulheres. O voto do
deputado relator Jorge Tadeu Mudalen inclui no texto da PEC o seguinte:
9
XVIII – licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salario com duração de cento e vinte dias, estendendo-se a licença-
maternidade, em caso de nascimento prematuro, à quantidade de dias de internação do recém-nascido, não podendo a licença exceder
a duzentos e quarenta dias. <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1425029&filename=P
EC+181/2015>
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida desde
a concepção, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”.
(Maulen, 2017)
Conforme alterações indicadas acima, a PEC que originalmente foi criada para ampliar
direitos decorrentes da licença gestante nas relações de trabalho em caso de nascimento de filho
prematuro foi transformada em objeto de tentativa de criminalização do aborto em qualquer
circunstância. Tal tentativa está correlacionada ao dispositivo materno, trata-se de proposta de PEC
realizada por homens, que acreditam que a vida de um feto tem mais valor que a autonomia da
mulher e a ideia de que o amor materno é algo espontâneo e maior que todos os outros que
superaria qualquer resistência ou alteraria a vontade da mulher em flagrante afronta a autonomia das
mulheres. (Zanello, 2018)
Assim uma vez que ocorra, caso ocorra, a aprovação da referida PEC nos termos fixados
pelo relator e na emenda a PEC 181 que originou a PEC 181-A , a vida de um feto que ainda não
está formado vale tanto quanto a vida das mulheres. Tal medida obsta o acesso das mulheres
gestantes ao aborto legal, que já existe no caso de violência contra a mulher, no caso de risco de
saúde para mulher e no caso de gestação de feto anencéfalo.
Trata-se de um retrocesso visível nos planos jurídico e ético, a proposta fere direitos
humanos mulheres, fere as liberdades individuais das mulheres, desrespeita até mesmo o direito que
todo ser humano, neste caso as mulheres, tem à sua própria integridade física. Trata-se de um
retrocesso de mais de 70 (setenta) anos tendo em vista que o legislador, em 1940, ao editar o
Código Penal, de forma sensata incluiu a possibilidade de aborto em situações altamente gravosas, a
saber, nas hipóteses de gravidez decorrente de estupro e de gravidez com riscos para a gestante.
Além disso se trata de retrocesso também em face da decisão do STF que permitiu o aborto
cometido nas hipóteses de anencefalia do embrião.
No caso do estupro, por exemplo, que foram colacionadas declarações de mulheres vítimas
de tal violência, restou claro nos relatos colacionados a gravidade do ato e a gravidade das
consequências decorrentes do crime de estupro na vida das vítimas.
O texto da PEC 181-A afronta a dignidade da mulher que não pode de forma tão
irresponsável ser objeto de redução ou afronta penalizar ainda mais as vítimas de atrocidades, como
as violências sexuais, é outorgar poder à barbárie. (Zanello, 2018)
É importante ressaltar ainda que a comissão especial da Câmara que analisou a ampliação da
licença maternidade em caso de bebê prematuro e incluiu o direito à vida desde a concepção é
formada por 18 (dezoito) deputados homens que aprovaram seu texto. Trata-se de aprovação por 18
(dezoito) homens que se aprovada - em plenário em conformidade com o tramite para aprovação da
PEC – podem ter decidido o futuro de milhões de mulheres. Chama atenção o fato ainda que após
aprovada pela comissão especial foi comemorada a aprovação aos gritos pelos referidos deputados
que desvirtuaram o objeto da PEC.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ameaça ao direito das mulheres de abortarem em caso de gravidez seja de risco, fruto de
estupro ou de feto anencéfalo é ignorar completamente os efeitos de uma gestação nessas condições
na vida, saúde e dignidade das mulheres que desejam interrupção. Trata-se da coisificação da
mulher, que passa a ser apenas o meio para nascimento dos fetos, trata-se de transformar as
mulheres em meras chocadeiras.
No caso especifico da PEC 181, esta nasceu como uma proposta que buscava ampliar o
direito de mulheres à licença maternidade e se transformou, após passar por uma comissão da
Câmara liderada por homens, em uma pauta que pode restringir o acesso ao aborto ao introduzir na
Constituição que a vida começa na concepção.
Caso aprovada a PEC será criminalizado o aborto em todos os casos. Criará uma
insegurança jurídica porque iguala os direitos do embrião, que não tem atividades cerebrais, ao da
mulher.
Viola ainda o direito à sua integridade física e psíquica que protege os indivíduos contra
interferências indevidas e lesões aos seus corpos e mentes. A integridade física seria abalada em
face das transformações, riscos e consequências da gestação além de se transformar em um
tormento quando indesejada. (HC 124.306, 2016)
Ainda a aprovação da PEC agrava a discriminação social das mulheres pobres, que não têm
acesso a médicos, nem podem se valer do sistema público de saúde para realizar o procedimento
abortivo. Por meio da criminalização, o Estado retira da mulher a possibilidade de submissão a um
procedimento médico seguro, acarretando em uma série de riscos e prejuízos à vida da mulher.
Ainda não se pode falar que o aborto atinge a saúde mental e física das mulheres, argumento
utilizado para impedir a interrupção da gestação indesejada tendo em vista que um aborto se
realizado de forma legal e correta ajuda na saúde da mulher. Além disso conforme Zanello e Porto
apontam: “os métodos e técnicas hoje são acessíveis, baratos e com excelente custo benefício.
Ademais das limitações econômicas ou situacionais, o desejo e a possibilidades de outros projetos
das mulheres, para além da maternidade ou fora dela, ocupam então o palco central, quando se
retiram esses subterfúgios.” (Zanello e Porto, 2019)
O aborto se justifica quando parece inevitável que se o feto vier a nascer levará uma vida
repleta de frustração, mas, também quando as circunstancias familiares forem economicamente
difíceis que venham a tolher seriamente o desenvolvimento de uma vida de forma que as crenças
enraizadas na cultura devem ser superadas.
6 REFERÊNCIAS
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2010.<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP =AC&docID=611723.>
ADPF 54, rel. min. Marco Aurélio de Mello.< http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/
anexo/adpf54.pdf>
AMARAL, Beatriz Helena Ramos. PEC 181 penaliza vítimas de estupro e outorga poder à barbárie.
2017<https://www.conjur.com.br/2017-nov-13/mp-debate-pec-181-penaliza-vitimas-estupro-outorg
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DWORKIN, Ronald. O Domínio da vida: Aborto, Eutanásia e Liberdades Individuais. São Paulo:
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NUNES, Mykaella Cristina Antunes. Gravidez advinda de estupro e seus desfechos : uma análise
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sobre o aborto / Organizadoras Paula Rita Bacellar Gonzaga, Letícia Gonçalves, Claudia Mayorga.
– Belo Horizonte, MG: CRP04, 2019.