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David Magalhães1
Surgem com crescente voracidade comandos legislativos que dão forma a graves
atentados contra o nascituro, diminuindo significativamente a sua protecção. Já não são
apenas os ataques fácticos que os valores essenciais (maxime, a vida humana) sempre
sofreram; trata-se, agora, de uma investida jurídica2.
1
Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Membro da equipa de
trabalho do Proyecto de Excelencia I+D “Bioderecho y Administración: Régimen Jurídico de la Ética y de
los Derechos Fundamentales en las Políticas y Servicios Públicos”, dirigido pelos Senhores Professores
Antonio José Sánchez Sáez e Francisco José Contreras Peláez (Faculdade de Direito da Universidade de
Sevilha), financiado pelo Ministerio de Economía y Competitividad do Reino de Espanha (referência
DER2017-84964-P) e no âmbito do qual foi escrito o presente artigo.
2
Federico Fernández de Buján, “El Derecho a la Vida como Derivación de la Justicia”, in Giovanni
Paolo II: Le Vie della Giustizia. Itinerari per il Terzo Millennio. Omaggio dei Giuristi a Sua Santità nel
XXV Anno di Pontificato, Bardi Editore, Libreria Editrice Vaticana, 2003, 351.
3
Esta arrepiante metáfora deriva das fontes romanas: “partus enim antequam edatur, mulieris
portio est vel viscerum”, como se regista em D.25,4,1,1 (texto retirado de Ulpianus libro 24 ad edictum).
Mas, como indica Federico Fernández de Buján, La Vida. Principio Rector del Derecho, prólogo de Pedro
Laín Entralgo, Editorial Dykinson, Madrid, 1999, 131, o seu significado não era o da desconsideração do
nascituro como víscera. Pelo contrário, o direito romano tutelou a criança ainda não nascida.
4
Doravante, CP.
5
Doravante, Const.
6
Este ponto foi enfatizado pelo Conselheiro Benjamim Rodrigues no voto de vencido que lavrou
no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 617/2006: “O direito à vida humana é protegido pela Constituição
(art.º 24.º, n.º 1) como direito inviolável. O vocábulo “inviolável” só poderá significar que se trata de um
direito que não poderá ser violado em caso algum, mesmo pelo Estado legislador. Nesta óptica, apenas, se
conceberão causas de exclusão que consubstanciem, perante a Constituição, situações de não violação,
como sejam as causas constitucionais de desculpabilização ou de justificação”. Todas as decisões do
Tribunal Constitucional que se citarem foram recolhidas em http://www.tribunalconstitucional.pt.
7
Vd. os Acórdãos nºs 25/84, 85/85 (que se pronunciaram sobre o aborto a pretexto da vida e saúde
da mãe, o aborto eugénico e o aborto resultante de crime sexual), 288/98, 617/2006 e 75/2010 (que
apreciaram a constitucionalidade do aborto a pedido).
8
Cita-se o Acórdão nº 288/98.
9
Assim, expressamente quanto ao direito à vida, Federico Fernández de Buján, “La Protección a
la Vida. Encrucijada entre la Medicina y el Derecho”, in Los Avances del Derecho ante los Avances de la
Medicina, Thomson-Aranzadi, Pamplona, 2008, 59.
10
Acompanham-se Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, 2ª edição,
Coimbra Editora, Coimbra, 2010, art. 24º, VIII, 507. Veja-se, ainda, João Carlos Loureiro, “Aborto:
Algumas Questões Jurídico-Constitucionais (A Propósito de uma Reforma Legislativa)”, in Boletim da
Faculdade de Direito (Universidade de Coimbra), 74, 1998, 346 e ss.
11
Para uma crítica semelhante à jurisprudência do Tribunal Constitucional de Espanha, Federico
Fernández de Buján, La Vida. Principio Rector del Derecho, cit., 120-121, e La Protección a la Vida.
Encrucijada entre la Medicina y el Derecho, cit., 60.
12
Federico Fernández de Buján, La Vida. Principio Rector del Derecho, cit., 162, e El Derecho a
la Vida como Derivación de la Justicia, cit., 351; Tommaso di Gioia, “Il Diritto alla Vita come Presupposto
di Ogni Diritto Fondamentale e come Interesse Primario Superindividuale”, in Giovanni Paolo II: Le Vie
della Giustizia. Itinerari per il Terzo Millennio. Omaggio dei Giuristi a Sua Santità nel XXV Anno di
Pontificato, Bardi Editore, Libreria Editrice Vaticana, 2003, 350.
13
Assim, Jorge Miranda / Rui Medeiros, ob. cit., art. 24º, I, 501; José Joaquim Gomes Canotilho /
Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 4ª edição, Coimbra Editora, Coimbra,
2007, art. 24º, I, 446-447 (Autores que daí não retiram as conclusões que, no nosso modo de ver, se
impõem). Sobre o “direito de nascer, enquanto direito fundante de todos os outros”, leia-se o voto de
vencido exarado pelo Conselheiro Vítor Nunes de Almeida no Acórdão nº 288/98, que, mais à frente, expõe:
“está em causa o bem mais essencial de todos, sem o qual não é possível a existência de vida em comunidade
- a própria vida dos entes comunitários”. Em sentido idêntico, os votos de vencido dos Conselheiros Rui de
Moura Ramos e Benjamim Rodrigues no Acórdão nº 617/2006.
14
Como se expôs, por exemplo, nos votos de vencido do Conselheiro Messias Bento, proferidos
nos Acórdãos nº 25/84 e 288/98.
15
Sendo um direito de “tudo ou nada”, o direito à vida é avesso a operações de concordância
prática: Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição, cit., art. 24º, IV, cit., 502. São fundamentais, a este
propósito, as extensas considerações de João Carlos Loureiro, Aborto: Algumas Questões Jurídico-
Constitucionais, cit., 377 e ss. Sobre a evidente contradição entre o valor da vida do nascituro e o
reconhecimento jurídico do aborto, leia-se, ainda, Tommaso di Gioia, Il Diritto alla Vita come Presupposto
di Ogni Diritto Fondamentale e come Interesse Primario Superindividuale, cit., 350.
16
O voto de vencido do Conselheiro Raul Mateus no Acórdão nº 25/84 apontou, com razão, a falta
de qualquer valor constitucional que legitime o aborto eugénico. Leia-se, ainda, a sua reflexão sobre o
aborto fundado em crimes sexuais: “Há, nesta perspectiva, um efectivo conflito entre o direito à vida do
nascituro e o direito à integridade pessoal da mulher grávida. Importa, porém, observar que a compressão
deste direito da mulher grávida não poderá ultrapassar o período da gravidez e que o momento mais grave
de ataque a esse direito, o momento da violação, já de nenhum modo pode ser evitado. No seu papel de
garantir os direitos fundamentais, de os tutelar equitativamente ainda em caso de conflito entre eles, o
Estado agiu desadequadamente ao anular por completo, e para sempre, um deles, o direito à vida do
nascituro, em favor do direito à integridade pessoal da mulher grávida, direito este que apenas
temporariamente se encontrava diminuído”.
17
A propósito da inconstitucionalidade do aborto por mera vontade, vd. lapidarmente
Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, 166,
nota 241, João Carlos Loureiro, Aborto: Algumas Questões Jurídico-Constitucionais, cit., Jorge Miranda /
Rui Medeiros, Constituição, cit., art. 24º, IX, cit., 508-509, e os votos de vencido dos Conselheiros Paulo
Mota Pinto (Acórdãos nº 288/98 e nº 617/2006) e Rui de Moura Ramos (Acórdão nº 617/2006). Na
jurisprudência alemã, a decisão do Primeiro Senado do Bundesverfassungsgericht, de 25 de Fevereiro de
1975, 1 BvF 1, 2, 3, 4, 5, 6/74, in BVerfGE 39,1.
18
Veja-se o nº 8 do seu voto de vencido no Acórdão nº 288/98. No mesmo sentido, João Carlos
Loureiro, Aborto: Algumas Questões Jurídico-Constitucionais, cit., 342-344. Sem o desenvolvimento
científico de que hoje dispomos e desprovido da panóplia de direitos fundamentais escritos de que a
sociedade hodierna tanto se orgulha, o direito romano já reconhecia que o interesse em o nascituro nascer
não era apenas dos pais, como também da República, o que expressamente dimanava do conservado em
D.37,9,1,15 (extraído de Ulpianus libro 41 ad edictum): “partus enim iste alendus est, qui et si non tantum
parenti, cuius esse dicitur, verum etiam rei publicae nascitur”. Sobre o ponto, Tommaso di Gioia, Il Diritto
alla Vita come Presupposto di Ogni Diritto Fondamentale e come Interesse Primario Superindividuale,
cit., 350.
19
De novo, o voto de vencido do Conselheiro Messias Bento (Acórdão nº 25/84). Vide, igualmente,
o voto de vencido do Conselheiro Paulo Mota Pinto (Acórdão nº 617/2006): “a protecção penal é, apesar
de tudo, a única que se pode revestir de alguma eficácia jurídica”.
20
Sobre o ponto, os votos de vencido do Conselheiro Paulo Mota Pinto (Acórdãos nº 288/98 e nº
617/2006) e, semelhantemente, os votos de vencido dos Conselheiros Benjamim Rodrigues (Acórdão nº
617/2006) e Borges Soeiro (Acórdão nº 75/2010); na doutrina, João Carlos Loureiro, Aborto: Algumas
Questões Jurídico-Constitucionais, cit., 352 e ss., ou Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição, cit., art.
24º, X, cit., 510-511. A propósito do aborto a pedido, a aludida decisão do Bundesverfassungsgericht de 25
de Fevereiro de 1975 determinou que o legislador devia recorrer ao direito penal se não tivesse outro meio
eficaz ao seu alcance para proteger a criança em gestação, mas a posição contrária acabou por prevalecer
dezoito anos depois: veja-se a decisão do Segundo Senado do Bundesverfassungsgericht, de 28 de Maio de
1993, 2 BvF 2/90, 2 BvF 4/92, 2 BvF 5/92, in BVerfGE, 88, 203, que considerou compatíveis com a Lei
Fundamental a despenalização e sua substituição por um sistema de aconselhamento.
21
O Acórdão nº 75/2010 considerou que o sistema de aconselhamento instituído pela Lei nº
16/2007, de 17 de Abril, e regulamentado pela Portaria nº 741-A/2007, de 21 de Junho, não viola a proibição
do défice de protecção. Sobre o ponto, criticamente, Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição, cit., art.
24º, XI, cit., 511-512. A questão do aconselhamento e da sua insuficiência é tratada com pormenor por João
Carlos Loureiro, Aborto: Algumas Questões Jurídico-Constitucionais, ob. cit..
22
Os apoios sociais são concedidos precisamente para reforçar a defesa da vida: Federico
Fernández de Buján, La Vida. Principio Rector del Derecho, cit., 141.
23
A pena de morte para os crimes civis foi abolida em 1 de Julho de 1867, através da Carta de Lei
pela qual D. Luís sanciona o Decreto das Cortes Gerais de 26 de Junho de 1867 que aprova a reforma
penal e das prisões, com abolição da pena de morte.
24
Indicam-se, sem qualquer pretensão de exaustividade: Fernando Araújo, A Procriação Assistida
e o Problema da Santidade da Vida, Livraria Almedina, Coimbra, 1999, 84 e ss.; António Pinto Monteiro,
“Direito a Não Nascer? Anotação ao Acórdão do STJ de 19/06/2001”, in Revista de Legislação e
Jurisprudência, n.º 3933, ano 134, 377 e ss.; Pedro Vaz Patto, “A Vida, um Dano Indemnizável?”, in
Brotéria, 156, Abril de 2003, 327 e ss.; Vanessa Cardoso Correia, “Wrongful Life Action – Comentário ao
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Junho de 2001”, in Lex Medicinae, ano 1 (2004), n.º 2,
125 e ss.; Guilherme de Oliveira, “O Direito do Diagnóstico Pré-Natal”, in Temas de Direito da Medicina,
2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, 219 e ss,; Fernando Pinto Monteiro, “Direito à Não Existência,
Direito a Não Nascer”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977,
II – A Parte Geral do Código e a Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, 131 e
ss.; Paulo Mota Pinto, “Indemnização em Caso de Nascimento Indevido e de Vida Indevida (“Wrongful
Birth” e “Wrongful Life”)”, in Lex Medicinae, ano 4 (2007), n.º 7, 5 e ss.; Manuel Carneiro da Frada, “A
Própria Vida como Dano? Dimensões Civis e Constitucionais de uma Questão-Limite”, in Revista da
Ordem dos Advogados, Ano 68 – Vol. I – Janeiro 2008, 215 e ss.; Marta Nunes Vicente, “Algumas
Reflexões Sobre as Acções de Wrongful Life: a Jurisprudência Perruche”, in Lex Medicinae, Ano 6 (2009),
n.º 11, 117 e ss.; Vera Lúcia Raposo, “As Wrong Actions no Início da Vida (Wrongful Conception, Wrongful
Birth e Wrongful Life) e a Responsabilidade Médica”, in Revista Portuguesa do Dano Corporal (21), 2010,
61 e ss.; Fernando Dias Simões, “Vida Indevida? As Acções por Wrongful Life e a Dignidade da Vida
Humana”, in Tékhne – Revista de Estudos Politécnicos, VIII, 2010, nº13, 187 e ss.; Luís Menezes Leitão,
“O Dano da Vida”, in Cadernos de Direito Privado, Especial 02/Dezembro 2012, 2 e ss.; Luís Duarte
Baptista Manso, “Responsabilidade Civil em Diagnóstico Pré-Natal – O Caso das Acções de Wrongful
Birth”, in Lex Medicinae, ano 9 (2012), n.º 18, 161 e ss.; João Pires da Rosa, “Não Existência – um
Direito?”, in Julgar, n.º 21, 2013, 47 e ss.; Carlos E. Almeida Rodrigues, “A Problemática Inerente às
Wrongful Life Claims – A Sua (Não) Admissibilidade pela Jurisprudência Portuguesa”, in Lex Medicinae,
Ano 10 (2013), n.º 19, 171 e ss.; Vera Lúcia Raposo, “Processos Judiciais Indevidos? (Há Espaço para
Indemnização nas Acções de Wrongful Birth e de Wrongful Life contra Profissionais de Saúde?)”, in Carla
Amado Gomes / Miguel Assis Raimundo / Cláudia Monge (ed.), Responsabilidade na Prestação de
Cuidados de Saúde, ICJP/Faculdade de Direito de Lisboa, 2014 96 e ss.; Sara Elisabete Gonçalves da
Silva, “Vida Indevida (Wrongful Life) e Direito à Não Existência”, in Lusíada. Direito, 14, 2015, 123 e ss.;
José Carlos Vasconcelos / Elsa Sá Carneiro, “Wrongful Birth – A Responsabilidade Médica pela não
Deteção de Malformações no Feto”, in AB Instantia - 2015, Ano III, nº 5, 211 e ss..
25
Além disso, não temos conhecimento de terem sido decididas nos tribunais portugueses acções
por wrongful conception, isto é, em que é pedida indemnização por se ter concebido devido a um erro
médico. Pense-se, ilustrativamente, na vasectomia realizada sem êxito.
26
São excepções Pedro Vaz Patto, A Vida, um Dano Indemnizável?, cit., 333 e ss., Manuel
Carneiro da Frada, A Própria Vida como Dano?, cit., Rui Soares Pereira, A Responsabilidade por Danos
Não Patrimoniais do Incumprimento das Obrigações no Direito Civil Português, Coimbra Editora,
Coimbra, 2009, 298, e Mafalda Miranda Barbosa, “Entre a Instrumentalização da Mulher e a Coisificação
do Filho. Questões Ético-Jurídicas em Torno da Maternidade de Substituição”, in Boletim da Faculdade de
Direito (Universidade de Coimbra), 94-I, 2018, 302-305.
27
Processo 9434/06.6TBMTS.P1. A jurisprudência dos tribunais comuns foi colhida em
www.dgsi.pt.
28
Processo 9434/06.6TBMTS.P1.S1, com um voto de vencido quanto a este aspecto.
29
Processo 1212/08.4TBBCL.G2.S1.
30
A respeito da decisão da Relação de Guimarães, vd. o ponto 1.4 do Acórdão do Tribunal
Constitucional nº 55/2016 (que será analisado infra 3.).
31
Acórdão do STJ de 19 de Junho de 2001 (Processo 01A1008) e os já citados Acórdãos do STJ
de 17 de Janeiro de 2013 (neste ponto com o voto de vencido de João Pires da Rosa) e de 12 de Março de
2015, e da Relação do Porto de 1 de Março de 2012. Em sentido concordante, cf., nomeadamente, a
desenvolvida argumentação de Manuel Carneiro da Frada, A Própria Vida como Dano?, cit., 223 e ss. (que
aduz – na p. 227 – o importante argumento de que o art. 69º CC não permite a renúncia à capacidade jurídica
e, portanto, também não permitirá renunciar à personalidade).
Vanessa Cardoso Correia, ob. cit., 129, tenta inverter os dados do problema e identifica a violação
de um “direito a nascer saudável” (itálico nosso). Ora, não tendo a doença sido provocada ao nascituro, a
indemnização pelo nascimento não saudável só pode passar por ressarcir os danos que sobrevieram do que,
devido ao diagnóstico incorrecto, não se fez para que a criança nascesse saudável (por exemplo, tratamentos
fetais atempados) e não os danos advindos do não se fez para a liquidar, pois nesta hipótese, com o
comportamento alternativo (ou seja, um diagnóstico correcto), o bebé não teria nascido e nem se poderia
cogitar qualquer nascimento saudável…
32
Apontam-se, a título de exemplo, os citados trabalhos de Guilherme de Oliveira, Vanessa
Cardoso Correia, Paulo Mota Pinto, Vera Lúcia Raposo, Dias Simões, Menezes Leitão, Pires da Rosa ou
Sara Gonçalves da Silva.
33
410 U.S. 113 (1973).
34
Não nos deteremos aprofundadamente no estudo do acórdão Roe. Bastará lembrar que, por sete
votos contra dois, o Supreme Court decidiu que o nascituro não era protegido pela Constituição dos Estados
Unidos e que, por isso, o direito à privacidade (right to privacy) que se desentranharia da XIV Emenda
abrangeria um direito da mulher ao aborto. Assim, determinou-se a inconstitucionalidade da criminalização
do aborto até aos três meses de gravidez; do final do primeiro trimestre até à viabilidade do feto fora do
“The appellee and certain amici argue that the fetus is a “person” within the
language and meaning of the Fourteenth Amendment. In support of this, they
outline at length and in detail the well-known facts of fetal development. If this
suggestion of personhood is established, the appellant's case, of course, collapses,
for the fetus’ right to life would then be guaranteed specifically by the
Amendment”35.
Porque ninguém nega que a vida do nascituro é tutelada pelo art. 24º/1 Const.,
existe uma “alteridade do embrião e do feto relativamente à mãe” (tão pertinentemente
assinalada por Cardoso da Costa36) e o aborto não assume o carácter de mero assunto
privado. Logo, não pode haver na Constituição portuguesa um “direito ao aborto” 37 e,
logicamente, também não pode ele existir na legislação ordinária. O art. 142º CP,
nomeadamente, afasta a punibilidade do aborto mas não pode consagrar um direito a
abortar38. E, por isso, a lesão da vida pré-natal durante o período de não punibilidade do
aborto não deixa de ser civilmente ilícita39.
ventre materno, os poderes públicos poderiam regular o aborto somente para protecção da saúde materna;
atingida a viabilidade, o aborto poderia ser proibido, excepto se fosse necessário para proteger a vida ou a
saúde da mãe. O essencial da decisão Roe, isto é, a existência de um direito a abortar fundado no direito à
privacidade, foi mantido pela decisão Planned Parenthood v. Casey, 505 U.S. 833 (1992), tomada por cinco
votos contra quatro.
Também o Supremo Tribunal do Canadá considerou inconstitucional, por cinco votos contra dois,
a criminalização do aborto, por violação do direito à segurança pessoal consagrado na secção 7 da Canadian
Charter of Rights and Freedoms – decisão R. v. Morgentaler, [1988] 1 SCR 30.
35
410 U.S. 113, 156-157. Acrescente-se que, tendo decidido no referido acórdão R. v. Morgentaler
que abortar voluntariamente faz parte do direito à segurança pessoal, o Supremo Tribunal canadiano
considerou que o pai não podia impedir a mãe de fazer um aborto porque “in Anglo‑Canadian law, a foetus
must be born alive to enjoy rights” – decisão Tremblay v. Daigle, [1989] 2 SCR 530.
36
Recorde-se o seu voto de vencido no Acórdão nº 288/98.
37
Neste sentido: João Carlos Loureiro, Aborto: Algumas Questões Jurídico-Constitucionais, cit.,
384; Rui Soares Pereira, A Responsabilidade por Danos Não Patrimoniais do Incumprimento das
Obrigações, cit.; José Joaquim Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição, cit., art. 24º, VI, 449;
Mafalda Miranda Barbosa, Entre a Instrumentalização, 280-282. São incompreensíveis, pois, a invocação
do “direito à autodeterminação” (Acórdão da Relação do Porto de 1 de Março de 2012) ou de uma
“faculdade dos pais interromperem a gravidez” (Acórdão do STJ de 12 de Março de 2015).
38
Mafalda Miranda Barbosa, Entre a Instrumentalização, 282 e 301-302.
39
Deste modo, Manuel Carneiro da Frada, Manuel Carneiro da FRADA, “A Protecção Juscivil da
Vida Pré-Natal. Sobre o Estatuto Jurídico do Embrião”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 70 –
Vol. I/IV – Jan./Dez. 2010, 303.
40
João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10ª ed., Almedina, Coimbra, 2000,
540, nota 2.
41
Manuel Carneiro da Frada, A Própria Vida como Dano?, cit., 224: “na nossa ordem jurídica
não existe qualquer “direito” ao aborto. Apenas ocorre que nalguns casos se encontra estabelecida a não
punibilidade do aborto”. Veja-se, ainda, Mafalda Miranda Barbosa, “Em Busca da Congruência Perdida
em Matéria de Proteção da Vida do Nascituro. A Perspetiva do Direito Civil”, in Boletim da Faculdade de
Direito (Universidade de Coimbra), 92-I, 2016, 37 e ss. Discorda-se da colocação do problema feita por
Paulo Mota Pinto, Indemnização, cit., 14.
42
Veja-se já o artigo seminal de Manuel da Costa Andrade, “O Aborto como Problema de Política
Criminal”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 39 – Vol. II – Maio-Agosto 1979, 293 e ss. Esta visão
remete a punição (ou não) do aborto para a opção do poder legislativo e suas estratégias de prevenção do
crime, negando-se a existência de incriminações constitucionalmente obrigatórias. É de meridiana clareza
que na prática foi endossada pelo Tribunal Constitucional entre 1984 e 2016, mas, como anteriormente se
expôs, depara com escolhos de monta: sendo a vida do nascituro um bem jurídico constitucionalmente
protegido, como se poderá dispensar a intervenção punitiva do direito penal se ela é a única forma de tutela
com alguma efectividade jurídica de dissuasão? E como fica o princípio da proporcionalidade quando se
admite uma total discricionariedade punitiva do legislador, ao ponto de se sancionar criminalmente o furto
de uma cadeira ou a destruição de ovos de espécies cinegéticas (art. 30º/1 da Lei da Caça - Lei nº 173/99,
de 21 de Setembro), mas deixando-se incólume a morte de um ser humano só porque a alguém é
conveniente que ele não viva?
43
Não poderá ser diferente o raciocínio se, ao invés daquilo que é inculcado pelo teor do art. 142º
CP, este não contivesse causas de exclusão da punibilidade mas causas de exclusão da ilicitude, como
prefere Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2ª ed., Coimbra
Editora, Coimbra, 2012, antes do art. 142º, §§ 26 e ss., e art. 142º, § 2, 267-268: qualquer das opções não
pode alicerçar um “direito ao aborto” que a Constituição exclui, não estando preenchida a hipótese do
exercício de um direito como causa justificativa (art. 31º/2, a) CP). O próprio Autor aponta abundante
doutrina no sentido de que, mesmo constituindo causas de exclusão da ilicitude, trata-se de comportamentos
justificados por uma renúncia do direito penal a neles intervir. Sobre as causas justificativas como
faculdades de agir (e não direitos subjectivos), João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral,
cit., 553.
Embora não acolha a pretensão por wrongful birth porque a vida humana nunca poderá ser um
dano, Pedro Vaz Patto, A Vida, um Dano Indemnizável?, cit., 335-336, afirma que, como o art. 142º CP
contém causas de exclusão da ilicitude, “será ilícito, à face do regime jurídico-penal português vigente,
privar alguém do direito de recorrer ao aborto terapêutico”. Parece-nos que o Autor, acertando na solução,
falha parcialmente na fundamentação: perante a impossibilidade constitucional do “direito ao aborto”,
nunca se poderá colocar a questão da ilicitude da actuação do prestador do diagnóstico, visto que não há
direito violado.
44
Assim, Manuel Carneiro da Frada, A Própria Vida como Dano?, cit., 233.
45
Tal obrigação é completamente independente do problema do aborto, que não constitui a
finalidade do diagnóstico pré-natal. Acompanha-se Manuel Carneiro da Frada, A Própria Vida como
Dano?, cit., 224, e (embora apenas neste ponto) Vanessa Cardoso Correia, ob. cit., 129.
46
V.g., por lesão do direito à integridade física do nascituro. Imagine-se que a mãe confia no
diagnóstico errado e não recorre às terapêuticas fetais adequadas, nascendo a criança com problemas de
que não padeceria ou padeceria menos intensamente.
47
Em sentido contrário: Paulo Mota Pinto, Indemnização, cit., 16, para quem a violação da
liberdade reprodutiva (negativa) dos pais e o não cumprimento do dever profissional resultante das leges
artis permitem basear este tipo de acções; Luís Duarte Baptista Manso, Responsabilidade Civil em
Diagnóstico Pré-Natal, cit., 176.
48
Manuel Carneiro da Frada, A Própria Vida como Dano?, cit., 227-230.
49
Decisões do Segundo Senado do Bundesverfassungsgericht, de 28 de Maio de 1993, cit., § 258
(proferida, como já se observou, a propósito da despenalização do aborto; a decisão teve dois votos de
vencido, que qualificaram o tratamento desta concreta questão como um obiter dictum, qualificação que o
Bundesgerichtshof endossou e, assim, continuou a decidir em sentido contrário – Benedikt Wanke,
Schadensersatz für Kindesunterhalt, Duncker & Humblot, Berlim, 1998, 142), e de 22 de Outubro de 1997,
1 BvR 307/94, in BVerfGE, 96, 409.
Contra, além da jurisprudência do Bundesgerichtshof, a decisão do Primeiro Senado do
Bundesverfassungsgericht, de 12 de Novembro de 1997, 1 BvR 479/92, in BVerfGE, 96, 375, que se
escudou numa alegada diferença entre o dano da existência da criança (algo que seria inadmissível) e os
danos patrimoniais com o sustento dela (cuja indemnização não violaria a dignidade humana). Esta
distinção revela-se especiosa, pois o sustento e o cuidar da criança são dimensões fundamentais da sua
existência como ser humano e dela não podem ser separados – assim, por exemplo, Eduard Picker,
“Schadensersatz für das unerwünschte Kind ("Wrongful birth") – Medizinischer Fortschritt als
zivilisatorischer Rückschritt?”, in Archiv für die civilistische Praxis, 195, 1995, 515 e ss., e Andreas Roth,
“Kindesunterhalt als Schaden”, in Neue Juristische Wochenschrift, 37, 1995, 2399-2400.
Para o panorama do direito alemão vd. ilustrativamente: Benedikt Wanke, Schadensersatz für
Kindesunterhalt, cit., 136 e ss.; Basil S. Markesinis / Hannes Unberath, The German Law of Torts. A
Comparative Treatise, 4ª edição, Bloomsbury, Oxford and Portland, Oregon, 2002, 48-49; Bénédict
Winiger / Helmut Koziol / Bernhard A. Koch / Reinhard Zimmermann (ed.), Digest of European Tort Law,
II, Walter de Gruyter, Berlim / Boston, 2011, 905-907.
50
Vide, na doutrina portuguesa, Manuel Carneiro da Frada, A Própria Vida como Dano?, cit., 244
e ss., e Pedro Vaz Patto, “A Vida, um Dano Indemnizável?”, cit., 336-337: “por imperativo do princípio da
dignidade da pessoa humana, esse nascimento não pode representar um dano (…) É inaceitável, por
imperativo do princípio da dignidade da pessoa humana, que, como tal, possa dar origem a uma
indemnização, seja por danos patrimoniais, seja por danos não patrimoniais. É inaceitável considerar que
os pais estariam numa situação melhor, em termos morais, emotivos ou patrimoniais, se o filho não tivesse
nascido e que tal facto deva ser coberto por uma indemnização”. Em sentido idêntico, as considerações de
Mafalda Miranda Barbosa, Entre a Instrumentalização, 304.
51
Federico Fernández de Buján, La Protección a la Vida. Encrucijada entre la Medicina y el
Derecho, cit., 59.
52
Vd., a título exemplificativo, as exposições de Paulo Mota Pinto, Indemnização, cit., 20, e João
Pires da Rosa, Não Existência – um Direito?, cit., 52 e ss.
53
Manuel Carneiro da Frada, A Própria Vida como Dano?, cit., 230: “As considerações
precedentes permitem descortinar que, onde as acções por vida deficiente não são um expediente, eivado
de oportunismo, destinado a obter uma vantagem patrimonial do sujeito à custa do médico, elas se destinam
em boa verdade a cobrir necessidades que podem efectivamente existir e ser inclusivamente graves, a impor
a atenção da ordem jurídica. Nestes casos, a alegação pelo sujeito de que a vida própria é um dano não deve
ser tomada à letra: de facto, ela será para ele apenas uma condição necessária da pretensão de imputar ao
médico a cobertura das necessidades que experimenta enquanto deficiente. Ultrapassa-se porém, com isso,
o tema da vida em si mesma como dano. Nesta medida – avance-se desde já – a vida como dano é um falso
problema”.
54
Manuel Carneiro da Frada, A Própria Vida como Dano?, cit., 230 e ss. e 240 e ss.
55
Fonte: http://news.bbc.co.uk/2/hi/europe/1028648.stm.
Sem conceder nas críticas que se fizeram à sua jurisprudência, há que reconhecer
que, até 2016, o Tribunal Constitucional louvavelmente não acolhia o “direito ao aborto”.
Aceitava-se como conforme à Constituição que o legislador ordinário não punisse
criminalmente o aborto, mas nunca se proibiu a punição (com base, designadamente, num
direito fundamental da mulher). No já citado Acórdão nº 617/2006, a propósito do
referendo que se realizaria em 2007, o Tribunal decidiu que não era inconstitucional uma
eventual rejeição popular da despenalização do aborto a pedido, o que não seria possível
se a lei fundamental contivesse um “direito ao aborto”, pois são proibidas as alterações
constitucionais por via de referendo (art.115º/4,a) Const.). E a mesma decisão afirmou
hipoteticamente, num obiter dictum sobre as outras situações de aborto não punido, que
apenas a “sua não relevância excludente da responsabilidade poderia afrontar princípios
constitucionais, como os princípios da culpa e da necessidade da pena”56. O que
demonstra que, quando muito, se entendia que os princípios constitucionais em matéria
criminal poderiam exigir o afastamento da punição em certas situações (v.g., se o agente
actuasse ao abrigo de uma causa de exclusão da culpa).
Nem poderia o Tribunal ter procedido de outra forma, para ser coerente com a sua
afirmação da vida uterina como bem constitucionalmente tutelado (embora, na sua
construção, não exigindo a intervenção do direito penal). Como decidiram os Supremos
Tribunais norte-americano e canadiano, um “direito ao aborto” só é pensável na falta de
tutela constitucional do nascituro. Por isso, o Tribunal Constitucional expressamente
recusava seguir o caminho da decisão Roe:
“A segunda posição decorre da assunção de que, nessa fase, o Estado pode alhear-
se do destino do feto, sem que se lhe imponha, em relação a esse período, qualquer
56
Ponto 35 do Acórdão nº 617/2006: “A não despenalização não implica qualquer alteração do
sistema vigente. E este, tal como está configurado no artigo 142.º, n.º 1, do Código Penal, permite uma
ponderação de valores que exclui a incriminação em situações de grave lesão de direitos da mulher grávida,
como a sua vida e saúde, a sua dignidade pessoal (aborto ético) ou mesmo as suas condições psíquicas e
materiais de maternidade (aborto eugénico), cuja não relevância excludente da responsabilidade poderia
afrontar princípios constitucionais, como os princípios da culpa e da necessidade da pena. A isto acresce
que o sistema penal contém, nomeadamente, causas de desculpa que sempre deverão impedir a punição,
em situações de não censurabilidade devido a grave conflito existencial”.
57
Acórdão do Tribunal Constitucional nº 75/2010. No voto de vencido que exarou neste aresto, a
Conselheira Maria Lúcia Amaral chamou a atenção para a ruptura com a jurisprudência constitucional até
então produzida se fosse seguido o paradigma da decisão Roe:
“De acordo com este modelo paradigmático - que é o do Roe vs. Wade - a não punibilidade do
acto de interrupção da gravidez (num certo período de tempo) depende apenas de uma e só de uma
condição: a vontade da gestante. Por isso mesmo, na sua privacy, tal vontade é e deve ser
preservada de quaisquer juízos externos "pressionantes" de condutas. Não é, porém, esse o
paradigma de que parto; nem é tão pouco esse o paradigma de que parte o próprio Tribunal na
formulação do seu juízo, já que tal implicaria, quer uma ruptura - que expressamente se recusou -
com todo o lastro jurisprudencial anterior, quer uma diversa equação inicial do problema que havia
a resolver”.
Também Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição, cit., art. 24º, VII, cit., 506-507, constatavam
a rejeição da perspectiva Roe v. Wade pelo Tribunal Constitucional.
58
Recordem-se o “direito à autodeterminação” invocado pelo Acórdão da Relação do Porto de 1
de Março de 2012 e a “faculdade dos pais interromperem a gravidez” do Acórdão do STJ de 12 de Março
de 2015.
59
São palavras do próprio Acórdão.
60
O que era perfeitamente possível à luz do nº 5 do art. 51º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro
(que disciplina a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional): “O Tribunal só pode
declarar a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de normas cuja apreciação tenha sido requerida, mas pode
fazê-lo com fundamentação na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja
violação foi invocada”.
61
Cf. William C. Duncan, “Statutory Responses to “Wrongful Birth” and “Wrongful Life”
Actions”, in Life and Learning. XIV Proceedings of the Fourteenth University Faculty for Life Conference
at the University of St. Thomas Law School, Washington D. C., 2004, 3 e ss.
62
Art. 14º/4 (aplicável ex vi art. 8º/8) da Lei da Procriação Medicamente Assistida, aprovada pela
Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho, alterada na parte que aqui interessa pela Lei nº 17/2016, de 20 de Junho, e
pela Lei nº 25/2016, de 22 de Agosto.
63
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 225/2018, nºs 45 e 46:
“…as referências às disposições sobre IVG contidas no referido artigo 8.º, n.º 10, da LPMA não
permitem assegurar que em todas as circunstâncias que, de acordo com a lei vigente, excluem a
ilicitude da IVG realizada por escolha da mulher grávida (…), a gestante também o possa fazer,
sozinha e sem penalizações, num estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido.
Deste modo, a limitação à revogabilidade do seu consentimento estatuída no artigo 14.º, n.º 4, da
mesma Lei, aplicável por força das remissões constantes dos seus artigos 8.º, n.º 8, e 14.º, n.º 5,
abre espaço para uma intervenção condicionadora dos beneficiários neste domínio.
Mais importante ainda é verificar que todas as situações de facto antes consideradas em que a IVG
não é punível - opção da mulher grávida até às 10 semanas, perigo de vida ou perigo para a saúde
física ou psíquica da mulher grávida ou risco grave de que o nascituro venha a sofrer, de forma
incurável, de grave doença ou malformação congénita - representam circunstâncias atendíveis e
justificativas de uma mudança de ideias da gestante de substituição quanto à sua gravidez,
designadamente no sentido de não querer levá-la até ao fim. No quadro da gestação de substituição,
dir-se-á que a opção de realizar uma IVG, nos casos e nos termos em que a lei geral a admite,
corresponde a uma garantia essencial da efetividade do direito ao desenvolvimento da
personalidade da gestante. Mas essa opção, devido à impossibilidade de revogação do
consentimento, não se encontra salvaguardada em toda a sua amplitude (…)
Ora, tal limite à revogação do consentimento, não se revelando inadequado nem desnecessário à
proteção do projeto parental dos beneficiários e dos seus interesses e expectativas, apresenta-se,
todavia, excessivo, pelo sacrifício que impõe a um direito fundamental da gestante de substituição.
(…) as obrigações contratualmente assumidas e consentidas a priori, podem a partir de um dado
momento deixar de corresponder à vontade da gestante, de modo tal que o respetivo cumprimento
64
Federico Fernández de Buján, La Vida. Principio Rector del Derecho, cit., 142-143.
65
A. Castanheira Neves, “A Revolução e o Direito. A Situação de Crise e o Sentido do Direito no
Actual Processo Revolucionário”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 36, Jan.-Dez. 1976, 38-39.