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RESPONSABILIDADE POR VIDAS E NASCIMENTOS

“INDEVIDOS” E DIREITO FUNDAMENTAL AO ABORTO? A


DIGNIDADE HUMANA NUMA ENCRUZILHADA

David Magalhães1

Sumário: 1. A não punibilidade do aborto. Um atentado legislativo à vida


humana, com o beneplácito do Tribunal Constitucional; 2. As pretensões
indemnizatórias por wrongful birth e wrongful life: inadmissibilidade dogmática
e axiológica; 3. Justificação das pretensões indemnizatórias por wrongful birth
através de um “direito fundamental ao aborto”. Os Acórdãos do Tribunal
Constitucional nºs 55/2016 e 225/2018 como verdadeiros Roe v. Wade à
portuguesa; 4. A dignidade humana numa encruzilhada

1. A não punibilidade do aborto. Um atentado legislativo à vida humana, com


o beneplácito do Tribunal Constitucional

Surgem com crescente voracidade comandos legislativos que dão forma a graves
atentados contra o nascituro, diminuindo significativamente a sua protecção. Já não são
apenas os ataques fácticos que os valores essenciais (maxime, a vida humana) sempre
sofreram; trata-se, agora, de uma investida jurídica2.

1
Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Membro da equipa de
trabalho do Proyecto de Excelencia I+D “Bioderecho y Administración: Régimen Jurídico de la Ética y de
los Derechos Fundamentales en las Políticas y Servicios Públicos”, dirigido pelos Senhores Professores
Antonio José Sánchez Sáez e Francisco José Contreras Peláez (Faculdade de Direito da Universidade de
Sevilha), financiado pelo Ministerio de Economía y Competitividad do Reino de Espanha (referência
DER2017-84964-P) e no âmbito do qual foi escrito o presente artigo.
2
Federico Fernández de Buján, “El Derecho a la Vida como Derivación de la Justicia”, in Giovanni
Paolo II: Le Vie della Giustizia. Itinerari per il Terzo Millennio. Omaggio dei Giuristi a Sua Santità nel
XXV Anno di Pontificato, Bardi Editore, Libreria Editrice Vaticana, 2003, 351.

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Entre esses ataques destaca-se a não punibilidade do aborto. A tutela penal da vida
intra-uterina tem sido severamente limitada pelas sucessivas intervenções de um
legislador para quem, em várias hipóteses, a criança que ainda não nasceu não passa de
uma víscera que a mãe pode tranquilamente extirpar3. Com efeito, o crime de aborto
(terminologia presente nos arts. 140º e 141º do Código Penal4) metamorfoseia-se
eufemisticamente em “interrupção da gravidez não punível”, para os efeitos do art. 142º
CP. Esta disposição foi o resultado de uma senda gradual de não punição do aborto em
numerosas circunstâncias, introduzida pela Lei nº 6/84, de 11 de Maio, continuada pela
Lei nº 90/97, de 30 de Julho, e amplamente dilatada pela Lei nº 16/2007, de 17 de Abril,
que admitiu abortos por mera vontade da grávida nas primeiras dez semanas de gravidez.
Assim, nos termos do nº 1 do aludido art. 142º, não é punível o aborto quando:
- Constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível
lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida (alínea a));
- Se mostrar indicado para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão
para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida e for realizada nas
primeiras 12 semanas de gravidez (alínea b));
- Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma
incurável, de grave doença ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24
semanas de gravidez, excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que o
aborto poderá ser praticado a todo o tempo (alínea c)). Ou seja, o aborto eugénico;
- A gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação
sexual e a interrupção for realizada nas primeiras 16 semanas (alínea d));
- For realizado, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez (alínea
e)).
Portanto, apesar de o art. 24º/1 da Constituição5 consagrar a inviolabilidade da
vida humana6, para o nascituro está bem longe de ser assim e a sua aniquilação é tratada

3
Esta arrepiante metáfora deriva das fontes romanas: “partus enim antequam edatur, mulieris
portio est vel viscerum”, como se regista em D.25,4,1,1 (texto retirado de Ulpianus libro 24 ad edictum).
Mas, como indica Federico Fernández de Buján, La Vida. Principio Rector del Derecho, prólogo de Pedro
Laín Entralgo, Editorial Dykinson, Madrid, 1999, 131, o seu significado não era o da desconsideração do
nascituro como víscera. Pelo contrário, o direito romano tutelou a criança ainda não nascida.
4
Doravante, CP.
5
Doravante, Const.
6
Este ponto foi enfatizado pelo Conselheiro Benjamim Rodrigues no voto de vencido que lavrou
no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 617/2006: “O direito à vida humana é protegido pela Constituição
(art.º 24.º, n.º 1) como direito inviolável. O vocábulo “inviolável” só poderá significar que se trata de um
direito que não poderá ser violado em caso algum, mesmo pelo Estado legislador. Nesta óptica, apenas, se

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com indiferença pela lei penal portuguesa em vastas situações. Na verdade, o Tribunal
Constitucional decidiu sistematicamente, embora sempre por escassa maioria, que a
despenalização do aborto – e mesmo do aborto a pedido – não violava o bem
constitucional da vida humana, embora reconhecendo que este abrange a pessoa não
nascida7. Como fundamentação foram apontadas:
- A suposta diferença entre a protecção da vida humana como bem jurídico e o
direito fundamental à vida “individualmente subjectivado em cada ser humano já
nascido”8;
- A existência de um conflito de bens jurídicos que permitiria sacrifícios da vida
uterina, cuja protecção constitucional não seria tão exigente por se basear, tão-só, no bem
jurídico da vida e não num direito subjectivo à vida;
- A margem de discricionariedade para proteger o nascituro por outros meios que
não a criminalização do aborto, por alegadamente não ser imposta ao legislador ordinário
a tutela penal.
Esta posição prevalecente no Tribunal Constitucional não pode senão suscitar
perplexidade. Afigura-se incompreensível que, tendo os direitos fundamentais uma dupla
natureza subjectiva e objectiva9, a sua vertente objectiva enquanto bens jurídicos e
princípios axiológicos conformadores da ordem jurídica sirva para enfraquecer ou
eliminar a dimensão de direitos subjectivos. Pelo contrário, a faceta objectiva tem como
finalidade reforçar a dimensão subjectiva e impõe ao legislador deveres de a defender e
promover10. Diga-se, em todo o caso, que a garantia da vida do nascituro reconhecida
pelo Tribunal seria suficiente para a proteger de ataques legislativos11.

conceberão causas de exclusão que consubstanciem, perante a Constituição, situações de não violação,
como sejam as causas constitucionais de desculpabilização ou de justificação”. Todas as decisões do
Tribunal Constitucional que se citarem foram recolhidas em http://www.tribunalconstitucional.pt.
7
Vd. os Acórdãos nºs 25/84, 85/85 (que se pronunciaram sobre o aborto a pretexto da vida e saúde
da mãe, o aborto eugénico e o aborto resultante de crime sexual), 288/98, 617/2006 e 75/2010 (que
apreciaram a constitucionalidade do aborto a pedido).
8
Cita-se o Acórdão nº 288/98.
9
Assim, expressamente quanto ao direito à vida, Federico Fernández de Buján, “La Protección a
la Vida. Encrucijada entre la Medicina y el Derecho”, in Los Avances del Derecho ante los Avances de la
Medicina, Thomson-Aranzadi, Pamplona, 2008, 59.
10
Acompanham-se Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, 2ª edição,
Coimbra Editora, Coimbra, 2010, art. 24º, VIII, 507. Veja-se, ainda, João Carlos Loureiro, “Aborto:
Algumas Questões Jurídico-Constitucionais (A Propósito de uma Reforma Legislativa)”, in Boletim da
Faculdade de Direito (Universidade de Coimbra), 74, 1998, 346 e ss.
11
Para uma crítica semelhante à jurisprudência do Tribunal Constitucional de Espanha, Federico
Fernández de Buján, La Vida. Principio Rector del Derecho, cit., 120-121, e La Protección a la Vida.
Encrucijada entre la Medicina y el Derecho, cit., 60.

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Com efeito, a vida é um prius condicionante de tudo o resto12, afigurando-se como
o bem jurídico basilar sem o qual os outros não se podem desenvolver13. Por isso, em
caso algum haverá pena de morte (art. 24º/2 Const.) e a declaração do estado de sítio ou
do estado de emergência nunca poderão afectar o direito à vida (art. 19º/6 Const.)14. É
difícil, pois, entender uma jurisprudência que se baseia numa suposta concordância
prática para suprimir um valor como a vida humana, onde se joga um “tudo ou nada”15 –
o que atinge o paroxismo com a aceitação do aborto eugénico e a pedido. Não se consegue
vislumbrar na Constituição portuguesa qualquer direito fundamental que legitime a morte
de uma pessoa por ser doente (e considerada um estorvo...)16 ou porque, pura e
simplesmente, a mãe quer que ela morra17. Os direitos ao desenvolvimento da
personalidade, à intimidade da vida privada (art. 26º/1 Const.) ou à maternidade

12
Federico Fernández de Buján, La Vida. Principio Rector del Derecho, cit., 162, e El Derecho a
la Vida como Derivación de la Justicia, cit., 351; Tommaso di Gioia, “Il Diritto alla Vita come Presupposto
di Ogni Diritto Fondamentale e come Interesse Primario Superindividuale”, in Giovanni Paolo II: Le Vie
della Giustizia. Itinerari per il Terzo Millennio. Omaggio dei Giuristi a Sua Santità nel XXV Anno di
Pontificato, Bardi Editore, Libreria Editrice Vaticana, 2003, 350.
13
Assim, Jorge Miranda / Rui Medeiros, ob. cit., art. 24º, I, 501; José Joaquim Gomes Canotilho /
Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 4ª edição, Coimbra Editora, Coimbra,
2007, art. 24º, I, 446-447 (Autores que daí não retiram as conclusões que, no nosso modo de ver, se
impõem). Sobre o “direito de nascer, enquanto direito fundante de todos os outros”, leia-se o voto de
vencido exarado pelo Conselheiro Vítor Nunes de Almeida no Acórdão nº 288/98, que, mais à frente, expõe:
“está em causa o bem mais essencial de todos, sem o qual não é possível a existência de vida em comunidade
- a própria vida dos entes comunitários”. Em sentido idêntico, os votos de vencido dos Conselheiros Rui de
Moura Ramos e Benjamim Rodrigues no Acórdão nº 617/2006.
14
Como se expôs, por exemplo, nos votos de vencido do Conselheiro Messias Bento, proferidos
nos Acórdãos nº 25/84 e 288/98.
15
Sendo um direito de “tudo ou nada”, o direito à vida é avesso a operações de concordância
prática: Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição, cit., art. 24º, IV, cit., 502. São fundamentais, a este
propósito, as extensas considerações de João Carlos Loureiro, Aborto: Algumas Questões Jurídico-
Constitucionais, cit., 377 e ss. Sobre a evidente contradição entre o valor da vida do nascituro e o
reconhecimento jurídico do aborto, leia-se, ainda, Tommaso di Gioia, Il Diritto alla Vita come Presupposto
di Ogni Diritto Fondamentale e come Interesse Primario Superindividuale, cit., 350.
16
O voto de vencido do Conselheiro Raul Mateus no Acórdão nº 25/84 apontou, com razão, a falta
de qualquer valor constitucional que legitime o aborto eugénico. Leia-se, ainda, a sua reflexão sobre o
aborto fundado em crimes sexuais: “Há, nesta perspectiva, um efectivo conflito entre o direito à vida do
nascituro e o direito à integridade pessoal da mulher grávida. Importa, porém, observar que a compressão
deste direito da mulher grávida não poderá ultrapassar o período da gravidez e que o momento mais grave
de ataque a esse direito, o momento da violação, já de nenhum modo pode ser evitado. No seu papel de
garantir os direitos fundamentais, de os tutelar equitativamente ainda em caso de conflito entre eles, o
Estado agiu desadequadamente ao anular por completo, e para sempre, um deles, o direito à vida do
nascituro, em favor do direito à integridade pessoal da mulher grávida, direito este que apenas
temporariamente se encontrava diminuído”.
17
A propósito da inconstitucionalidade do aborto por mera vontade, vd. lapidarmente
Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, 166,
nota 241, João Carlos Loureiro, Aborto: Algumas Questões Jurídico-Constitucionais, cit., Jorge Miranda /
Rui Medeiros, Constituição, cit., art. 24º, IX, cit., 508-509, e os votos de vencido dos Conselheiros Paulo
Mota Pinto (Acórdãos nº 288/98 e nº 617/2006) e Rui de Moura Ramos (Acórdão nº 617/2006). Na
jurisprudência alemã, a decisão do Primeiro Senado do Bundesverfassungsgericht, de 25 de Fevereiro de
1975, 1 BvF 1, 2, 3, 4, 5, 6/74, in BVerfGE 39,1.

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consciente (art. 67º/1,d) Const.) não passam, como é óbvio, pela liquidação da vida alheia,
como se fosse um puro assunto privado. Com efeito, em toda esta matéria existe uma
“indiscutível dimensão social”, justamente sublinhada em 1998 pelo então Presidente do
Tribunal, Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa:

“… à protecção reconhecida pela Constituição à vida intra-uterina não é


admissível (seguramente não o é na nossa tradição cultural) contrapor um direito
da mulher à privacidade ou a dispor do seu próprio corpo, como manifestação,
este último, do seu direito ao desenvolvimento da personalidade, ou ainda o direito
ao exercício de uma maternidade consciente. Na protecção constitucional da vida
intra-uterina, nos termos antes enunciados, vai implicado o reconhecimento de
uma alteridade do embrião e do feto relativamente à mãe, e mesmo de uma
identidade pessoal em devir, diferente da desta, o que significa que a gravidez, e
a sua eventual interrupção voluntária, não podem reconduzir-se exclusiva e
simplesmente ao foro individual e íntimo da mulher, e deixado na livre
disponibilidade do exercício daqueles direitos. Trata-se antes, sim, de algo que
assume uma indiscutível dimensão social”18.

Também é falível o argumento da não imposição constitucional de criminalização.


Para o nascituro, o direito penal revela-se “a única forma minimamente eficaz” de
proteger a sua existência perante a mãe19: sem ele a vida uterina não é tutelada, numa
clara violação do princípio de proibição do défice de protecção de um direito
constitucionalmente consagrado (Untermaßverbot)20. “Medidas de educação sexual que

18
Veja-se o nº 8 do seu voto de vencido no Acórdão nº 288/98. No mesmo sentido, João Carlos
Loureiro, Aborto: Algumas Questões Jurídico-Constitucionais, cit., 342-344. Sem o desenvolvimento
científico de que hoje dispomos e desprovido da panóplia de direitos fundamentais escritos de que a
sociedade hodierna tanto se orgulha, o direito romano já reconhecia que o interesse em o nascituro nascer
não era apenas dos pais, como também da República, o que expressamente dimanava do conservado em
D.37,9,1,15 (extraído de Ulpianus libro 41 ad edictum): “partus enim iste alendus est, qui et si non tantum
parenti, cuius esse dicitur, verum etiam rei publicae nascitur”. Sobre o ponto, Tommaso di Gioia, Il Diritto
alla Vita come Presupposto di Ogni Diritto Fondamentale e come Interesse Primario Superindividuale,
cit., 350.
19
De novo, o voto de vencido do Conselheiro Messias Bento (Acórdão nº 25/84). Vide, igualmente,
o voto de vencido do Conselheiro Paulo Mota Pinto (Acórdão nº 617/2006): “a protecção penal é, apesar
de tudo, a única que se pode revestir de alguma eficácia jurídica”.
20
Sobre o ponto, os votos de vencido do Conselheiro Paulo Mota Pinto (Acórdãos nº 288/98 e nº
617/2006) e, semelhantemente, os votos de vencido dos Conselheiros Benjamim Rodrigues (Acórdão nº
617/2006) e Borges Soeiro (Acórdão nº 75/2010); na doutrina, João Carlos Loureiro, Aborto: Algumas
Questões Jurídico-Constitucionais, cit., 352 e ss., ou Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição, cit., art.
24º, X, cit., 510-511. A propósito do aborto a pedido, a aludida decisão do Bundesverfassungsgericht de 25

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previnam os casos de gravidez indesejada, medidas de aconselhamento, de facilidades
laborais e de apoio económico e social que ajudem a mulher a assumir a gravidez e a
desejar levá-la a termo”, apontadas pelo Acórdão nº 85/85 como alternativas à tutela penal
da vida do nascituro, não têm qualquer eficácia jurídica de dissuasão e, por isso, são
irrelevantes como protecção21. Como é óbvio, as providências sociais servem para
auxiliar a efectiva paternidade e maternidade, o que decorre do art. 68º Const. (epigrafado
Paternidade e maternidade), violando-se o seu sentido quando são usadas como recurso
argumentativo para diminuir a protecção da vida da criança22.
Que o direito penal tem um papel imperativo nesta matéria decorre, até, de um
juízo de proporcionalidade assente em outras criminalizações a que procede o legislador
ordinário, que não pode a seu bel-talante proteger o menos e desproteger o mais. Como
bem afirmou o Conselheiro Vítor Nunes de Almeida ao votar vencido no Acórdão nº
288/98,

“seria, de facto, algo de contraditório e substancialmente intolerável se a ordem


penal protegesse o património e não entendesse proteger o bem jurídico da vida,
em qualquer das suas formas ou estádios. Ao invés do decidido no Acórdão,
entendo que existe uma imposição constitucional no sentido de criminalizar os
actos que ponham em causa a vida humana, desde a concepção…”.

No fundo, verifica-se – com o beneplácito do Tribunal Constitucional – uma pena


de morte de índole privada, decidida pela mãe e executada pelo médico. A punição capital
que, dada a sua dureza, o ordenamento jurídico português proscreve desde 1867 até para

de Fevereiro de 1975 determinou que o legislador devia recorrer ao direito penal se não tivesse outro meio
eficaz ao seu alcance para proteger a criança em gestação, mas a posição contrária acabou por prevalecer
dezoito anos depois: veja-se a decisão do Segundo Senado do Bundesverfassungsgericht, de 28 de Maio de
1993, 2 BvF 2/90, 2 BvF 4/92, 2 BvF 5/92, in BVerfGE, 88, 203, que considerou compatíveis com a Lei
Fundamental a despenalização e sua substituição por um sistema de aconselhamento.
21
O Acórdão nº 75/2010 considerou que o sistema de aconselhamento instituído pela Lei nº
16/2007, de 17 de Abril, e regulamentado pela Portaria nº 741-A/2007, de 21 de Junho, não viola a proibição
do défice de protecção. Sobre o ponto, criticamente, Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição, cit., art.
24º, XI, cit., 511-512. A questão do aconselhamento e da sua insuficiência é tratada com pormenor por João
Carlos Loureiro, Aborto: Algumas Questões Jurídico-Constitucionais, ob. cit..
22
Os apoios sociais são concedidos precisamente para reforçar a defesa da vida: Federico
Fernández de Buján, La Vida. Principio Rector del Derecho, cit., 141.

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os mais sanguinários homicidas23, é admitida para um inocente que ainda está em
gestação.

2. As pretensões indemnizatórias por wrongful birth e wrongful life:


inadmissibilidade dogmática e axiológica

A não punição do aborto – especialmente do aborto eugénico (alínea c) do art.


142º/1 CP) – não podia deixar de ter como consequência o problema das acções de
responsabilidade médica baseadas em wrongful birth (nascimento indevido) e wrongful
life (vida indevida). A doutrina portuguesa já se debruçou largamente sobre a questão24,

23
A pena de morte para os crimes civis foi abolida em 1 de Julho de 1867, através da Carta de Lei
pela qual D. Luís sanciona o Decreto das Cortes Gerais de 26 de Junho de 1867 que aprova a reforma
penal e das prisões, com abolição da pena de morte.
24
Indicam-se, sem qualquer pretensão de exaustividade: Fernando Araújo, A Procriação Assistida
e o Problema da Santidade da Vida, Livraria Almedina, Coimbra, 1999, 84 e ss.; António Pinto Monteiro,
“Direito a Não Nascer? Anotação ao Acórdão do STJ de 19/06/2001”, in Revista de Legislação e
Jurisprudência, n.º 3933, ano 134, 377 e ss.; Pedro Vaz Patto, “A Vida, um Dano Indemnizável?”, in
Brotéria, 156, Abril de 2003, 327 e ss.; Vanessa Cardoso Correia, “Wrongful Life Action – Comentário ao
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Junho de 2001”, in Lex Medicinae, ano 1 (2004), n.º 2,
125 e ss.; Guilherme de Oliveira, “O Direito do Diagnóstico Pré-Natal”, in Temas de Direito da Medicina,
2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, 219 e ss,; Fernando Pinto Monteiro, “Direito à Não Existência,
Direito a Não Nascer”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977,
II – A Parte Geral do Código e a Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, 131 e
ss.; Paulo Mota Pinto, “Indemnização em Caso de Nascimento Indevido e de Vida Indevida (“Wrongful
Birth” e “Wrongful Life”)”, in Lex Medicinae, ano 4 (2007), n.º 7, 5 e ss.; Manuel Carneiro da Frada, “A
Própria Vida como Dano? Dimensões Civis e Constitucionais de uma Questão-Limite”, in Revista da
Ordem dos Advogados, Ano 68 – Vol. I – Janeiro 2008, 215 e ss.; Marta Nunes Vicente, “Algumas
Reflexões Sobre as Acções de Wrongful Life: a Jurisprudência Perruche”, in Lex Medicinae, Ano 6 (2009),
n.º 11, 117 e ss.; Vera Lúcia Raposo, “As Wrong Actions no Início da Vida (Wrongful Conception, Wrongful
Birth e Wrongful Life) e a Responsabilidade Médica”, in Revista Portuguesa do Dano Corporal (21), 2010,
61 e ss.; Fernando Dias Simões, “Vida Indevida? As Acções por Wrongful Life e a Dignidade da Vida
Humana”, in Tékhne – Revista de Estudos Politécnicos, VIII, 2010, nº13, 187 e ss.; Luís Menezes Leitão,
“O Dano da Vida”, in Cadernos de Direito Privado, Especial 02/Dezembro 2012, 2 e ss.; Luís Duarte
Baptista Manso, “Responsabilidade Civil em Diagnóstico Pré-Natal – O Caso das Acções de Wrongful
Birth”, in Lex Medicinae, ano 9 (2012), n.º 18, 161 e ss.; João Pires da Rosa, “Não Existência – um
Direito?”, in Julgar, n.º 21, 2013, 47 e ss.; Carlos E. Almeida Rodrigues, “A Problemática Inerente às
Wrongful Life Claims – A Sua (Não) Admissibilidade pela Jurisprudência Portuguesa”, in Lex Medicinae,
Ano 10 (2013), n.º 19, 171 e ss.; Vera Lúcia Raposo, “Processos Judiciais Indevidos? (Há Espaço para
Indemnização nas Acções de Wrongful Birth e de Wrongful Life contra Profissionais de Saúde?)”, in Carla
Amado Gomes / Miguel Assis Raimundo / Cláudia Monge (ed.), Responsabilidade na Prestação de
Cuidados de Saúde, ICJP/Faculdade de Direito de Lisboa, 2014 96 e ss.; Sara Elisabete Gonçalves da
Silva, “Vida Indevida (Wrongful Life) e Direito à Não Existência”, in Lusíada. Direito, 14, 2015, 123 e ss.;
José Carlos Vasconcelos / Elsa Sá Carneiro, “Wrongful Birth – A Responsabilidade Médica pela não
Deteção de Malformações no Feto”, in AB Instantia - 2015, Ano III, nº 5, 211 e ss..

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sendo a actividade jurisprudencial comparativamente escassa25. Mas, apesar dessa
escassez, divisam-se já certas linhas de força.
As pretensões indemnizatórias por wrongful birth têm obtido provimento, com
generalizado aplauso doutrinal26. Trata-se, aqui, dos supostos danos sofridos pelos
progenitores que não recorreram ao aborto por terem obtido um diagnóstico médico que
erradamente não identificava os problemas de saúde do nascituro. O Acórdão da Relação
do Porto de 1 de Março de 201227 apontou a existência da violação de um direito à
autodeterminação da grávida, que por não abortar sofrera o dano de ter um filho
deficiente. Em consequência, concedeu-se uma indemnização equivalente à diferença
entre as despesas de sustento e educação de uma criança saudável e as que se suportam
com uma criança deficiente. O Acórdão do STJ de 17 de Janeiro de 2013 confirmou esse
juízo: “se é certo não existir um «autêntico direito a interromper a gravidez», como
aduzem os Réus nas suas conclusões de recurso, certo também se torna que a lei concede
a possibilidade da interrupção da gravidez” 28.
Volvidos dois anos, o Acórdão do STJ de 12 de Março de 2015 seguiu a mesma
posição: “O nexo de causalidade entre a ausência de comunicação do resultado de um
exame, o que configura erro de diagnóstico, e a deficiência verificada na criança, que
poderia ter culminado na faculdade dos pais interromperem a gravidez e obstar ao seu
nascimento, constitui o pressuposto determinante da responsabilidade civil médica em
apreço”29. Foi assim revogado um Acórdão proferido em 3 de Julho de 2014 pelo Tribunal
da Relação de Guimarães, que tinha decidido não haver nexo de causalidade, pois não
fora o diagnóstico que provocara a deficiência à criança, além de o aborto não ser um
meio de planeamento familiar, nem a vida um prejuízo30.

25
Além disso, não temos conhecimento de terem sido decididas nos tribunais portugueses acções
por wrongful conception, isto é, em que é pedida indemnização por se ter concebido devido a um erro
médico. Pense-se, ilustrativamente, na vasectomia realizada sem êxito.
26
São excepções Pedro Vaz Patto, A Vida, um Dano Indemnizável?, cit., 333 e ss., Manuel
Carneiro da Frada, A Própria Vida como Dano?, cit., Rui Soares Pereira, A Responsabilidade por Danos
Não Patrimoniais do Incumprimento das Obrigações no Direito Civil Português, Coimbra Editora,
Coimbra, 2009, 298, e Mafalda Miranda Barbosa, “Entre a Instrumentalização da Mulher e a Coisificação
do Filho. Questões Ético-Jurídicas em Torno da Maternidade de Substituição”, in Boletim da Faculdade de
Direito (Universidade de Coimbra), 94-I, 2018, 302-305.
27
Processo 9434/06.6TBMTS.P1. A jurisprudência dos tribunais comuns foi colhida em
www.dgsi.pt.
28
Processo 9434/06.6TBMTS.P1.S1, com um voto de vencido quanto a este aspecto.
29
Processo 1212/08.4TBBCL.G2.S1.
30
A respeito da decisão da Relação de Guimarães, vd. o ponto 1.4 do Acórdão do Tribunal
Constitucional nº 55/2016 (que será analisado infra 3.).

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Por seu turno, os tribunais não concedem indemnizações por wrongful life, isto é,
pelos danos sofridos por quem nasceu com certos problemas de saúde que não foram
detectados atempadamente, o que teria conduzido a uma decisão de não se abortar.
Aceitar semelhante pretensão seria admitir um direito a não nascer, inexistente no
ordenamento jurídico português – que, pelo contrário, consagra o direito à vida (art. 24º/1
Const.)31. Ainda assim, sectores da doutrina defendem que, tal como se aceitam por
wrongful birth, também as pretensões por wrongful life deviam ser acolhidas32.
Embora aplaudamos inteiramente a argumentação que nega as indemnizações por
wrongful life, cremos que o ressarcimento de danos por um alegado wrongful birth não
faz sentido. Sendo pressuposto da responsabilidade civil os danos serem produzidos
ilicitamente, ou seja, em violação de um direito subjectivo ou de uma disposição legal
destinada a proteger interesses alheios (art. 483º/1 CC), não se vislumbra que forma de
ilicitude estará presente quando não se optou pelo aborto devido a um diagnóstico que
não revelou uma doença do nascituro.
Comecemos pela hipótese da ilicitude por violação de um direito subjectivo. Para
a construção jurídica do wrongful birth ser admissível, seria necessário que existisse no
ordenamento português um “direito ao aborto”, nos moldes traçados pelo Supreme Court
norte-americano na polémica decisão Roe versus Wade33, o que acarretaria a
inconstitucionalidade da punição criminal do aborto, pelo menos até certa fase da
gravidez34. Recorde-se, contudo, que a ausência de protecção do nascituro foi o

31
Acórdão do STJ de 19 de Junho de 2001 (Processo 01A1008) e os já citados Acórdãos do STJ
de 17 de Janeiro de 2013 (neste ponto com o voto de vencido de João Pires da Rosa) e de 12 de Março de
2015, e da Relação do Porto de 1 de Março de 2012. Em sentido concordante, cf., nomeadamente, a
desenvolvida argumentação de Manuel Carneiro da Frada, A Própria Vida como Dano?, cit., 223 e ss. (que
aduz – na p. 227 – o importante argumento de que o art. 69º CC não permite a renúncia à capacidade jurídica
e, portanto, também não permitirá renunciar à personalidade).
Vanessa Cardoso Correia, ob. cit., 129, tenta inverter os dados do problema e identifica a violação
de um “direito a nascer saudável” (itálico nosso). Ora, não tendo a doença sido provocada ao nascituro, a
indemnização pelo nascimento não saudável só pode passar por ressarcir os danos que sobrevieram do que,
devido ao diagnóstico incorrecto, não se fez para que a criança nascesse saudável (por exemplo, tratamentos
fetais atempados) e não os danos advindos do não se fez para a liquidar, pois nesta hipótese, com o
comportamento alternativo (ou seja, um diagnóstico correcto), o bebé não teria nascido e nem se poderia
cogitar qualquer nascimento saudável…
32
Apontam-se, a título de exemplo, os citados trabalhos de Guilherme de Oliveira, Vanessa
Cardoso Correia, Paulo Mota Pinto, Vera Lúcia Raposo, Dias Simões, Menezes Leitão, Pires da Rosa ou
Sara Gonçalves da Silva.
33
410 U.S. 113 (1973).
34
Não nos deteremos aprofundadamente no estudo do acórdão Roe. Bastará lembrar que, por sete
votos contra dois, o Supreme Court decidiu que o nascituro não era protegido pela Constituição dos Estados
Unidos e que, por isso, o direito à privacidade (right to privacy) que se desentranharia da XIV Emenda
abrangeria um direito da mulher ao aborto. Assim, determinou-se a inconstitucionalidade da criminalização
do aborto até aos três meses de gravidez; do final do primeiro trimestre até à viabilidade do feto fora do

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 1131


pressuposto capital da decisão Roe, na qual se reconheceu que o resultado alcançado se
tornaria inviável se o feto fosse protegido:

“The appellee and certain amici argue that the fetus is a “person” within the
language and meaning of the Fourteenth Amendment. In support of this, they
outline at length and in detail the well-known facts of fetal development. If this
suggestion of personhood is established, the appellant's case, of course, collapses,
for the fetus’ right to life would then be guaranteed specifically by the
Amendment”35.

Porque ninguém nega que a vida do nascituro é tutelada pelo art. 24º/1 Const.,
existe uma “alteridade do embrião e do feto relativamente à mãe” (tão pertinentemente
assinalada por Cardoso da Costa36) e o aborto não assume o carácter de mero assunto
privado. Logo, não pode haver na Constituição portuguesa um “direito ao aborto” 37 e,
logicamente, também não pode ele existir na legislação ordinária. O art. 142º CP,
nomeadamente, afasta a punibilidade do aborto mas não pode consagrar um direito a
abortar38. E, por isso, a lesão da vida pré-natal durante o período de não punibilidade do
aborto não deixa de ser civilmente ilícita39.

ventre materno, os poderes públicos poderiam regular o aborto somente para protecção da saúde materna;
atingida a viabilidade, o aborto poderia ser proibido, excepto se fosse necessário para proteger a vida ou a
saúde da mãe. O essencial da decisão Roe, isto é, a existência de um direito a abortar fundado no direito à
privacidade, foi mantido pela decisão Planned Parenthood v. Casey, 505 U.S. 833 (1992), tomada por cinco
votos contra quatro.
Também o Supremo Tribunal do Canadá considerou inconstitucional, por cinco votos contra dois,
a criminalização do aborto, por violação do direito à segurança pessoal consagrado na secção 7 da Canadian
Charter of Rights and Freedoms – decisão R. v. Morgentaler, [1988] 1 SCR 30.
35
410 U.S. 113, 156-157. Acrescente-se que, tendo decidido no referido acórdão R. v. Morgentaler
que abortar voluntariamente faz parte do direito à segurança pessoal, o Supremo Tribunal canadiano
considerou que o pai não podia impedir a mãe de fazer um aborto porque “in Anglo‑Canadian law, a foetus
must be born alive to enjoy rights” – decisão Tremblay v. Daigle, [1989] 2 SCR 530.
36
Recorde-se o seu voto de vencido no Acórdão nº 288/98.
37
Neste sentido: João Carlos Loureiro, Aborto: Algumas Questões Jurídico-Constitucionais, cit.,
384; Rui Soares Pereira, A Responsabilidade por Danos Não Patrimoniais do Incumprimento das
Obrigações, cit.; José Joaquim Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição, cit., art. 24º, VI, 449;
Mafalda Miranda Barbosa, Entre a Instrumentalização, 280-282. São incompreensíveis, pois, a invocação
do “direito à autodeterminação” (Acórdão da Relação do Porto de 1 de Março de 2012) ou de uma
“faculdade dos pais interromperem a gravidez” (Acórdão do STJ de 12 de Março de 2015).
38
Mafalda Miranda Barbosa, Entre a Instrumentalização, 282 e 301-302.
39
Deste modo, Manuel Carneiro da Frada, Manuel Carneiro da FRADA, “A Protecção Juscivil da
Vida Pré-Natal. Sobre o Estatuto Jurídico do Embrião”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 70 –
Vol. I/IV – Jan./Dez. 2010, 303.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 1132


Portanto, a outra forma de ilicitude – a violação de uma disposição legal destinada
a proteger interesses alheios – também não se verifica. Na lição de Antunes Varela, “o
que conta não é o efeito da norma violada, mas o seu fim ou conteúdo. Não basta que a
norma aproveite ao particular, é preciso que ela tenha também em vista a protecção
dele”40. O art. 142º CP visa apenas a impunidade de quem aborta e não a protecção de um
interesse de abortar41; a norma pode ter como efeito permitir à grávida o aborto, mas o
seu fim e conteúdo consistem, tão-só, em tornar impune a conduta, dentro de uma certa
política criminal42. Nem outra coisa seria compatível com a impossibilidade
constitucional de um “direito ao aborto” ou de interesses em abortar, face à tutela da vida
humana intra-uterina43. Note-se, aliás, que o Acórdão do STJ de 17 de Janeiro de 2013
admitiu que esse direito não existe e contornou a questão com a possibilidade legal de

40
João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10ª ed., Almedina, Coimbra, 2000,
540, nota 2.
41
Manuel Carneiro da Frada, A Própria Vida como Dano?, cit., 224: “na nossa ordem jurídica
não existe qualquer “direito” ao aborto. Apenas ocorre que nalguns casos se encontra estabelecida a não
punibilidade do aborto”. Veja-se, ainda, Mafalda Miranda Barbosa, “Em Busca da Congruência Perdida
em Matéria de Proteção da Vida do Nascituro. A Perspetiva do Direito Civil”, in Boletim da Faculdade de
Direito (Universidade de Coimbra), 92-I, 2016, 37 e ss. Discorda-se da colocação do problema feita por
Paulo Mota Pinto, Indemnização, cit., 14.
42
Veja-se já o artigo seminal de Manuel da Costa Andrade, “O Aborto como Problema de Política
Criminal”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 39 – Vol. II – Maio-Agosto 1979, 293 e ss. Esta visão
remete a punição (ou não) do aborto para a opção do poder legislativo e suas estratégias de prevenção do
crime, negando-se a existência de incriminações constitucionalmente obrigatórias. É de meridiana clareza
que na prática foi endossada pelo Tribunal Constitucional entre 1984 e 2016, mas, como anteriormente se
expôs, depara com escolhos de monta: sendo a vida do nascituro um bem jurídico constitucionalmente
protegido, como se poderá dispensar a intervenção punitiva do direito penal se ela é a única forma de tutela
com alguma efectividade jurídica de dissuasão? E como fica o princípio da proporcionalidade quando se
admite uma total discricionariedade punitiva do legislador, ao ponto de se sancionar criminalmente o furto
de uma cadeira ou a destruição de ovos de espécies cinegéticas (art. 30º/1 da Lei da Caça - Lei nº 173/99,
de 21 de Setembro), mas deixando-se incólume a morte de um ser humano só porque a alguém é
conveniente que ele não viva?
43
Não poderá ser diferente o raciocínio se, ao invés daquilo que é inculcado pelo teor do art. 142º
CP, este não contivesse causas de exclusão da punibilidade mas causas de exclusão da ilicitude, como
prefere Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2ª ed., Coimbra
Editora, Coimbra, 2012, antes do art. 142º, §§ 26 e ss., e art. 142º, § 2, 267-268: qualquer das opções não
pode alicerçar um “direito ao aborto” que a Constituição exclui, não estando preenchida a hipótese do
exercício de um direito como causa justificativa (art. 31º/2, a) CP). O próprio Autor aponta abundante
doutrina no sentido de que, mesmo constituindo causas de exclusão da ilicitude, trata-se de comportamentos
justificados por uma renúncia do direito penal a neles intervir. Sobre as causas justificativas como
faculdades de agir (e não direitos subjectivos), João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral,
cit., 553.
Embora não acolha a pretensão por wrongful birth porque a vida humana nunca poderá ser um
dano, Pedro Vaz Patto, A Vida, um Dano Indemnizável?, cit., 335-336, afirma que, como o art. 142º CP
contém causas de exclusão da ilicitude, “será ilícito, à face do regime jurídico-penal português vigente,
privar alguém do direito de recorrer ao aborto terapêutico”. Parece-nos que o Autor, acertando na solução,
falha parcialmente na fundamentação: perante a impossibilidade constitucional do “direito ao aborto”,
nunca se poderá colocar a questão da ilicitude da actuação do prestador do diagnóstico, visto que não há
direito violado.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 1133


interromper a gravidez. Mas o argumento não convence, porque a possibilidade foi fruto
de uma simples despenalização – esta, sim, o objectivo da lei.
Até da inadmissibilidade das pretensões baseadas numa wrongful life decorre
também que o “direito ao aborto” e as indemnizações por wrongful birth estão vedados
no ordenamento português. Como têm entendido os tribunais, a ninguém cabe o direito a
não nascer e, por isso, não pode pedir o ressarcimento de danos pela vida que, com um
correcto diagnóstico médico, teria sido suprimida na fase uterina. Ora, se o próprio titular
do direito à vida não pode ser indemnizado por não ter sido abortado, muito menos outros
poderão invocar os danos provocados por essa vida. Servindo o direito à vida para impedir
indemnizações ao próprio, por maioria de razão também as impede a terceiros, que
certamente não serão melhores juízes do carácter indevido da vida alheia do que o titular
dela. É um ponto que merece reflexão e que parece ter sido esquecido pela jurisprudência:
se não há direito do próprio a não nascer, não faz sentido o direito de outrem a que ele
não nasça44.
Claro que existe um dever de fazer correctamente o diagnóstico médico e o
prestador desse serviço, ao violar o direito (de crédito) a um relatório rigoroso, pode ser
responsabilizado civil e disciplinarmente pelo cumprimento defeituoso45. Mas entre os
eventuais danos indemnizáveis46 não se conta o “nascimento indevido” por não se ter
abortado. A tutela da vida do nascituro e a concomitante inexistência do “direito ao
aborto” não permitem considerar, em caso algum, que uma pessoa não devia ter nascido47.
Na realidade, é notória a inviabilidade dogmática da indemnização de um dano
constituído pela vida da pessoa que não foi abortada. Se o peticionante alega que se
tratava de um vida que devia ter sido suprimida, não pode pretender uma indemnização
para a prossecução dessa mesma vida, pois segundo o art. 562º CC, “quem estiver
obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse

44
Assim, Manuel Carneiro da Frada, A Própria Vida como Dano?, cit., 233.
45
Tal obrigação é completamente independente do problema do aborto, que não constitui a
finalidade do diagnóstico pré-natal. Acompanha-se Manuel Carneiro da Frada, A Própria Vida como
Dano?, cit., 224, e (embora apenas neste ponto) Vanessa Cardoso Correia, ob. cit., 129.
46
V.g., por lesão do direito à integridade física do nascituro. Imagine-se que a mãe confia no
diagnóstico errado e não recorre às terapêuticas fetais adequadas, nascendo a criança com problemas de
que não padeceria ou padeceria menos intensamente.
47
Em sentido contrário: Paulo Mota Pinto, Indemnização, cit., 16, para quem a violação da
liberdade reprodutiva (negativa) dos pais e o não cumprimento do dever profissional resultante das leges
artis permitem basear este tipo de acções; Luís Duarte Baptista Manso, Responsabilidade Civil em
Diagnóstico Pré-Natal, cit., 176.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 1134


verificado o evento que obriga à reparação”. Não se pode pedir a reconstituição de uma
situação que não é a que existiria se não ocorresse o evento48.
Aduza-se que qualificar a existência de alguém como um “dano” é contrário à
própria dignidade humana (arts. 1º e 26º/3 Const.), como já decidiu a jurisprudência
constitucional alemã49, não sendo muitos os exemplos mais vivos de desprezo e
rebaixamento jurídicos de uma pessoa50 – sobre quem se conclui que era melhor nem
ter vivido, pois o wrongful birth baseia-se sempre em não ter sido suprimida uma vida.
Sendo a dignidade humana o objectivo para que convergem todos os direitos, como
bem ensina Federico Fernández de Buján51, parece óbvio que jamais se poderá
reconhecer um direito (in casu, de indemnização) cujo pressuposto é o de que uma
vida humana se revela tão indigna que não devia ter ocorrido.
É patente uma tentativa de contornar a questão apresentando as pretensões
wrongful como um auxílio à criança deficiente para suportar com “dignidade” a vida

48
Manuel Carneiro da Frada, A Própria Vida como Dano?, cit., 227-230.
49
Decisões do Segundo Senado do Bundesverfassungsgericht, de 28 de Maio de 1993, cit., § 258
(proferida, como já se observou, a propósito da despenalização do aborto; a decisão teve dois votos de
vencido, que qualificaram o tratamento desta concreta questão como um obiter dictum, qualificação que o
Bundesgerichtshof endossou e, assim, continuou a decidir em sentido contrário – Benedikt Wanke,
Schadensersatz für Kindesunterhalt, Duncker & Humblot, Berlim, 1998, 142), e de 22 de Outubro de 1997,
1 BvR 307/94, in BVerfGE, 96, 409.
Contra, além da jurisprudência do Bundesgerichtshof, a decisão do Primeiro Senado do
Bundesverfassungsgericht, de 12 de Novembro de 1997, 1 BvR 479/92, in BVerfGE, 96, 375, que se
escudou numa alegada diferença entre o dano da existência da criança (algo que seria inadmissível) e os
danos patrimoniais com o sustento dela (cuja indemnização não violaria a dignidade humana). Esta
distinção revela-se especiosa, pois o sustento e o cuidar da criança são dimensões fundamentais da sua
existência como ser humano e dela não podem ser separados – assim, por exemplo, Eduard Picker,
“Schadensersatz für das unerwünschte Kind ("Wrongful birth") – Medizinischer Fortschritt als
zivilisatorischer Rückschritt?”, in Archiv für die civilistische Praxis, 195, 1995, 515 e ss., e Andreas Roth,
“Kindesunterhalt als Schaden”, in Neue Juristische Wochenschrift, 37, 1995, 2399-2400.
Para o panorama do direito alemão vd. ilustrativamente: Benedikt Wanke, Schadensersatz für
Kindesunterhalt, cit., 136 e ss.; Basil S. Markesinis / Hannes Unberath, The German Law of Torts. A
Comparative Treatise, 4ª edição, Bloomsbury, Oxford and Portland, Oregon, 2002, 48-49; Bénédict
Winiger / Helmut Koziol / Bernhard A. Koch / Reinhard Zimmermann (ed.), Digest of European Tort Law,
II, Walter de Gruyter, Berlim / Boston, 2011, 905-907.
50
Vide, na doutrina portuguesa, Manuel Carneiro da Frada, A Própria Vida como Dano?, cit., 244
e ss., e Pedro Vaz Patto, “A Vida, um Dano Indemnizável?”, cit., 336-337: “por imperativo do princípio da
dignidade da pessoa humana, esse nascimento não pode representar um dano (…) É inaceitável, por
imperativo do princípio da dignidade da pessoa humana, que, como tal, possa dar origem a uma
indemnização, seja por danos patrimoniais, seja por danos não patrimoniais. É inaceitável considerar que
os pais estariam numa situação melhor, em termos morais, emotivos ou patrimoniais, se o filho não tivesse
nascido e que tal facto deva ser coberto por uma indemnização”. Em sentido idêntico, as considerações de
Mafalda Miranda Barbosa, Entre a Instrumentalização, 304.
51
Federico Fernández de Buján, La Protección a la Vida. Encrucijada entre la Medicina y el
Derecho, cit., 59.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 1135


doente ou aos pais que têm de viver com os problemas da deficiência do filho52. Mas este
dourar a pílula não passa de uma distorção dos valores do ordenamento (em especial a
dignidade humana) e do instituto da responsabilidade civil. Por um lado, a alternativa
vista como lícita e indicada à sociedade como preferível é a não existência de uma pessoa
só porque é doente, o que per se se mostra monstruoso e nega o valor da vida doente,
considerada indigna e menor perante as outras vidas. Por outro lado, se o que realmente
se pretende é a satisfação das necessidades dos deficientes (e, então, a questão do aborto
nem deveria ser chamada à colação)53, tal não passa pela responsabilização de quem não
lhes provocou a deficiência, mas pelos instrumentos de segurança social54. Estes são
aplicáveis, aliás, a todos os que sofram de deficiência, na qualidade de pessoas que têm o
direito de ser ajudadas pelo Estado dada a sua situação (art. 71º Const., relativo aos
Cidadãos portadores de deficiência) e não como fardos que, por erro, não foram
eliminados.
A aceitação de acções por wrongful birth pode mesmo conduzir a resultados
perversos e impedir nascimentos de crianças sadias. Com o receio de pesadas
responsabilizações, haverá o impulso de, perante a mais pequena dúvida, se diagnosticar
sempre uma doença que fundamente o aborto eugénico, pois se, afinal, a criança era
saudável, o erro de diagnóstico passará incólume graças ao possível, e até previsível,
aborto que se seguirá. A propósito da decisão Perruche, proferida pela Cour de Cassation
em 2000 e que admitiu a pretensão por wrongful life, a conceituada geneticista francesa
Ségolène Aymé manifestou precisamente esta preocupação: “This will push my
colleagues to decide more often to terminate pregnancies when they are unsure about the
health status of the child. And this is a very common situation”55.

52
Vd., a título exemplificativo, as exposições de Paulo Mota Pinto, Indemnização, cit., 20, e João
Pires da Rosa, Não Existência – um Direito?, cit., 52 e ss.
53
Manuel Carneiro da Frada, A Própria Vida como Dano?, cit., 230: “As considerações
precedentes permitem descortinar que, onde as acções por vida deficiente não são um expediente, eivado
de oportunismo, destinado a obter uma vantagem patrimonial do sujeito à custa do médico, elas se destinam
em boa verdade a cobrir necessidades que podem efectivamente existir e ser inclusivamente graves, a impor
a atenção da ordem jurídica. Nestes casos, a alegação pelo sujeito de que a vida própria é um dano não deve
ser tomada à letra: de facto, ela será para ele apenas uma condição necessária da pretensão de imputar ao
médico a cobertura das necessidades que experimenta enquanto deficiente. Ultrapassa-se porém, com isso,
o tema da vida em si mesma como dano. Nesta medida – avance-se desde já – a vida como dano é um falso
problema”.
54
Manuel Carneiro da Frada, A Própria Vida como Dano?, cit., 230 e ss. e 240 e ss.
55
Fonte: http://news.bbc.co.uk/2/hi/europe/1028648.stm.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 1136


3. Justificação das pretensões indemnizatórias por wrongful birth através de um
“direito fundamental ao aborto”. Os Acórdãos do Tribunal Constitucional
nºs 55/2016 e 225/2018 como verdadeiros Roe v. Wade à portuguesa

Sem conceder nas críticas que se fizeram à sua jurisprudência, há que reconhecer
que, até 2016, o Tribunal Constitucional louvavelmente não acolhia o “direito ao aborto”.
Aceitava-se como conforme à Constituição que o legislador ordinário não punisse
criminalmente o aborto, mas nunca se proibiu a punição (com base, designadamente, num
direito fundamental da mulher). No já citado Acórdão nº 617/2006, a propósito do
referendo que se realizaria em 2007, o Tribunal decidiu que não era inconstitucional uma
eventual rejeição popular da despenalização do aborto a pedido, o que não seria possível
se a lei fundamental contivesse um “direito ao aborto”, pois são proibidas as alterações
constitucionais por via de referendo (art.115º/4,a) Const.). E a mesma decisão afirmou
hipoteticamente, num obiter dictum sobre as outras situações de aborto não punido, que
apenas a “sua não relevância excludente da responsabilidade poderia afrontar princípios
constitucionais, como os princípios da culpa e da necessidade da pena”56. O que
demonstra que, quando muito, se entendia que os princípios constitucionais em matéria
criminal poderiam exigir o afastamento da punição em certas situações (v.g., se o agente
actuasse ao abrigo de uma causa de exclusão da culpa).
Nem poderia o Tribunal ter procedido de outra forma, para ser coerente com a sua
afirmação da vida uterina como bem constitucionalmente tutelado (embora, na sua
construção, não exigindo a intervenção do direito penal). Como decidiram os Supremos
Tribunais norte-americano e canadiano, um “direito ao aborto” só é pensável na falta de
tutela constitucional do nascituro. Por isso, o Tribunal Constitucional expressamente
recusava seguir o caminho da decisão Roe:

“A segunda posição decorre da assunção de que, nessa fase, o Estado pode alhear-
se do destino do feto, sem que se lhe imponha, em relação a esse período, qualquer

56
Ponto 35 do Acórdão nº 617/2006: “A não despenalização não implica qualquer alteração do
sistema vigente. E este, tal como está configurado no artigo 142.º, n.º 1, do Código Penal, permite uma
ponderação de valores que exclui a incriminação em situações de grave lesão de direitos da mulher grávida,
como a sua vida e saúde, a sua dignidade pessoal (aborto ético) ou mesmo as suas condições psíquicas e
materiais de maternidade (aborto eugénico), cuja não relevância excludente da responsabilidade poderia
afrontar princípios constitucionais, como os princípios da culpa e da necessidade da pena. A isto acresce
que o sistema penal contém, nomeadamente, causas de desculpa que sempre deverão impedir a punição,
em situações de não censurabilidade devido a grave conflito existencial”.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 1137


dever de emissão de normas de protecção. Ainda não haveria, nessa fase, qualquer
conflito entre bens constitucionalmente protegidos, pelo que a decisão da gestante
em abortar, do seu estrito foro pessoal, seria livre e incondicionada - como ainda
hoje se reconhece, malgrado todas as contestações, no sistema jurídico norte-
americano, na sequência da jurisprudência firmada pelo Supreme Court, no caso
Roe v. Wade, de 1973. Também esta solução não merece acolhimento. O Tribunal
perfilha o entendimento contrário de que a vida intra-uterina é um bem digno de
tutela em todas as fases pré-natais, sem prejuízo de admitir diferentes níveis e
formas de protecção, em correspondência com a progressiva formação do novo
ente”57.

Com o Acórdão nº 55/2016, tudo mudou de figura. Ao ser chamado a pronunciar-


se sobre a constitucionalidade dos arts. 483º, 798º e 799º CC, interpretados no sentido de
admitirem a indemnização por wrongful birth, o Tribunal Constitucional determinou que
a “a atribuição de uma indemnização em nada interfere com o direito à vida, não sendo
expressão ou negação da sua tutela”. E, seguindo os tribunais comuns58 mas numa
alteração radical do rumo que sempre tinha feito vencimento entre os juízes do Palácio
Ratton, acrescentou-se:

“… está (esteve) apenas em causa o direito dos progenitores se


autodeterminarem nas suas opções reprodutivas, dentro do universo de
possibilidades lícitas a tal respeito, direito irremediavelmente afetado pela falta de
prestação de uma informação adequada por parte dos Recorrentes, sendo esta (a

57
Acórdão do Tribunal Constitucional nº 75/2010. No voto de vencido que exarou neste aresto, a
Conselheira Maria Lúcia Amaral chamou a atenção para a ruptura com a jurisprudência constitucional até
então produzida se fosse seguido o paradigma da decisão Roe:
“De acordo com este modelo paradigmático - que é o do Roe vs. Wade - a não punibilidade do
acto de interrupção da gravidez (num certo período de tempo) depende apenas de uma e só de uma
condição: a vontade da gestante. Por isso mesmo, na sua privacy, tal vontade é e deve ser
preservada de quaisquer juízos externos "pressionantes" de condutas. Não é, porém, esse o
paradigma de que parto; nem é tão pouco esse o paradigma de que parte o próprio Tribunal na
formulação do seu juízo, já que tal implicaria, quer uma ruptura - que expressamente se recusou -
com todo o lastro jurisprudencial anterior, quer uma diversa equação inicial do problema que havia
a resolver”.
Também Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição, cit., art. 24º, VII, cit., 506-507, constatavam
a rejeição da perspectiva Roe v. Wade pelo Tribunal Constitucional.
58
Recordem-se o “direito à autodeterminação” invocado pelo Acórdão da Relação do Porto de 1
de Março de 2012 e a “faculdade dos pais interromperem a gravidez” do Acórdão do STJ de 12 de Março
de 2015.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 1138


informação) contratualmente devida e situando-se o direito à indemnização,
apenas, no quadro da reparação do dano decorrente do incumprimento da
prestação devida”.

É, verdadeiramente, um “direito ao aborto”, escorado no “direito à


autodeterminação das opções reprodutivas”, pois considera-se que não prestar
correctamente uma informação que levaria à decisão de abortar é ferir um direito, de tal
modo que se pode exigir indemnização. Não há outra forma de o qualificar: trata-se de
um autêntico “direito fundamental ao aborto”, que o Tribunal Constitucional criou para
validar as pretensões por wrongful birth.
Como se tinha quedado nas vascas da não exigência de punibilidade do aborto, a
sua jurisprudência anterior (já de si contraditória com a protecção constitucional da vida
uterina) era imprestável para fundamentar pretensões indemnizatórias, que exigem a lesão
de direitos ou interesses protegidos. O Tribunal precisava de dar mais um passo para
encontrar “um respaldo constitucional bastante à tutela indemnizatória concedida aos
Recorridos”59 e acabou por o dar. Fê-lo, lamentavelmente, contra a própria Constituição
– da qual não deflui qualquer “direito ao aborto”, sob pena de contradição com a
inviolabilidade da vida do nascituro. E sem sequer se ter colocado, como se faz na
Alemanha, a questão da violação da dignidade da pessoa humana, tratada como um erro
e um dano60.
Sendo a base da construção o “direito dos progenitores se autodeterminarem nas
suas opções reprodutivas”, logicamente foram exautoradas as decisões prévias quando
admitiam a não punição do aborto como opção legislativa que podia ser revertida. Não se
pode punir criminalmente uma conduta que constitui o exercício de um direito
constitucionalmente consagrado. E isto não apenas quanto ao aborto eugénico, pois a
autodeterminação das opções reprodutivas vale para qualquer aborto voluntário (e até,
por maioria de razão, para o aborto a pedido). É um sub-reptício Roe v. Wade à
portuguesa.

59
São palavras do próprio Acórdão.
60
O que era perfeitamente possível à luz do nº 5 do art. 51º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro
(que disciplina a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional): “O Tribunal só pode
declarar a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de normas cuja apreciação tenha sido requerida, mas pode
fazê-lo com fundamentação na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja
violação foi invocada”.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 1139


Perante este cenário judicialmente imposto, seria essencial que se lhe pusesse
travão enquanto é tempo, como já se fez em vários estados federados norte-americanos,
proibindo-se pretensões do género. Apesar do “direito ao aborto” imposto pelo acórdão
Roe, os tribunais têm considerado que tais providências legislativas não o ferem61. Em
França, as pretensões por wrongful life estão vedadas pelo art. L114-5, alínea 1, do Code
de l’Action Sociale et des Familles, em clara reacção à decisão Perruche.
Mas, ao invés, a trilha Roe v. Wade aberta pelo Acórdão nº 55/2016 foi
aprofundada pelo Acórdão nº 225/2018, proferido a propósito dos “contratos de gestação
de substituição” – o fenómeno vulgarmente conhecido como “barrigas de aluguer”. Como
o consentimento dos contraentes (isto é, o casal beneficiário e a gestante) deixava de ser
livremente revogável desde o início dos processos terapêuticos62, tal irrevogabilidade foi
declarada inconstitucional por coarctar a possibilidade de abortar a pedido, o que segundo
o Tribunal violaria os direitos da gestante à autodeterminação e ao desenvolvimento da
personalidade. É, mais uma vez, um “direito fundamental ao aborto”, que até assume
carácter indisponível, pois não pode ser restringido por força de acordo celebrado com o
casal beneficiário63.

61
Cf. William C. Duncan, “Statutory Responses to “Wrongful Birth” and “Wrongful Life”
Actions”, in Life and Learning. XIV Proceedings of the Fourteenth University Faculty for Life Conference
at the University of St. Thomas Law School, Washington D. C., 2004, 3 e ss.
62
Art. 14º/4 (aplicável ex vi art. 8º/8) da Lei da Procriação Medicamente Assistida, aprovada pela
Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho, alterada na parte que aqui interessa pela Lei nº 17/2016, de 20 de Junho, e
pela Lei nº 25/2016, de 22 de Agosto.
63
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 225/2018, nºs 45 e 46:
“…as referências às disposições sobre IVG contidas no referido artigo 8.º, n.º 10, da LPMA não
permitem assegurar que em todas as circunstâncias que, de acordo com a lei vigente, excluem a
ilicitude da IVG realizada por escolha da mulher grávida (…), a gestante também o possa fazer,
sozinha e sem penalizações, num estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido.
Deste modo, a limitação à revogabilidade do seu consentimento estatuída no artigo 14.º, n.º 4, da
mesma Lei, aplicável por força das remissões constantes dos seus artigos 8.º, n.º 8, e 14.º, n.º 5,
abre espaço para uma intervenção condicionadora dos beneficiários neste domínio.
Mais importante ainda é verificar que todas as situações de facto antes consideradas em que a IVG
não é punível - opção da mulher grávida até às 10 semanas, perigo de vida ou perigo para a saúde
física ou psíquica da mulher grávida ou risco grave de que o nascituro venha a sofrer, de forma
incurável, de grave doença ou malformação congénita - representam circunstâncias atendíveis e
justificativas de uma mudança de ideias da gestante de substituição quanto à sua gravidez,
designadamente no sentido de não querer levá-la até ao fim. No quadro da gestação de substituição,
dir-se-á que a opção de realizar uma IVG, nos casos e nos termos em que a lei geral a admite,
corresponde a uma garantia essencial da efetividade do direito ao desenvolvimento da
personalidade da gestante. Mas essa opção, devido à impossibilidade de revogação do
consentimento, não se encontra salvaguardada em toda a sua amplitude (…)
Ora, tal limite à revogação do consentimento, não se revelando inadequado nem desnecessário à
proteção do projeto parental dos beneficiários e dos seus interesses e expectativas, apresenta-se,
todavia, excessivo, pelo sacrifício que impõe a um direito fundamental da gestante de substituição.
(…) as obrigações contratualmente assumidas e consentidas a priori, podem a partir de um dado
momento deixar de corresponder à vontade da gestante, de modo tal que o respetivo cumprimento

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 1140


A propósito do wrongful birth, o Acórdão nº 55/2016 já expendera uma
argumentação cuja latitude em muito ultrapassava a questão sub iudice do aborto
eugénico. Com a decisão de 2018, todas as situações de aborto não punível do art. 142º
CP foram expressamente abrangidas pelo novel “direito ao aborto”. E, de novo, se
desconsiderou em absoluto o direito à vida da criança ainda não nascida.
Apesar de o Acórdão sobre a gestação de substituição ter sido generosamente
temperado com a referência à “dignidade humana” de quem quer abortar, ao bebé e à sua
ineliminável condição de ser humano não se reconheceu qualquer dignidade, reforçando-
se insuportavelmente a condição da criança como objecto descartável, pois o único
fundamento de protecção da sua existência são os direitos da gestante e não os seus
próprios direitos – o que não deixa de ser efeito da lógica Roe v. Wade que o Tribunal
Constitucional encetou nos últimos anos e que, sem qualquer base, conferiu um direito de
disposição da vida de outra pessoa.

4. A dignidade humana numa encruzilhada

deixe de traduzir uma afirmação da sua liberdade de ação e autodeterminação. O consentimento


inicial deixa, assim, de ser atual, por razões atendíveis
Nestas circunstâncias, forçar o cumprimento de tais obrigações - no caso ora considerado,
condicionar de algum modo o abandono do projeto parental que deixou de ser partilhado pela
gestante com o objetivo de que o mesmo seja levado até ao parto - implicaria instrumentalizar a
gestante ao mesmo projeto parental, interferindo gravemente com a sua capacidade de
autodeterminação e, em última análise, com a sua dignidade pessoal. O quadro em que a gestante,
no exercício do seu direito ao desenvolvimento da personalidade, consentiu na gestação de
substituição mostra-se alterado em termos tais, que a prossecução da mesma gestação já não traduz
uma manifestação de tal direito. Porém, e como referido, esse é o pressuposto fundamental da
legitimidade da intervenção e participação da gestante de substituição: na ausência de vontade
positiva atual, a sua participação degrada-se em instrumento ao serviço da vontade dos
beneficiários. Daí a importância de acautelar a permanência de tal vontade ao longo de todo o
processo, o que só é possível mediante a admissão da livre revogabilidade do consentimento da
gestante até ao cumprimento integral de todas as obrigações essenciais do contrato de gestação de
substituição.
(…) Confrontando o peso das expectativas dos beneficiários protegidas pela irrevogabilidade do
consentimento da gestante, com o sacrifício, momentaneamente quase total, do direito
fundamental ao desenvolvimento da personalidade desta última determinado por tal
irrevogabilidade, sempre que estejam em causa as citadas situações, a desproporção é manifesta.
Os inconvenientes e frustrações dos primeiros não justificam a instrumentalização da segunda em
ordem a evitá-los. A verificar-se tal instrumentalização, seria violado o dito direito fundamental
da gestante, interpretado à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. E, a única garantia de
que tal não suceda, é, como referido anteriormente, salvaguardar a possibilidade de a gestante
revogar o seu consentimento para além do início dos processos terapêuticos de PMA.
Deste modo, a limitação à revogabilidade do consentimento da gestante estabelecida em
consequência das remissões dos artigos 8.º, n.º 8, e 14.º, n.º 5, da LPMA para o n.º 4 deste último,
é inconstitucional por restringir desproporcionadamente o respetivo direito ao desenvolvimento da
personalidade, interpretado à luz do princípio da dignidade da pessoa humana (artigos 1.º e 26.º,
n.º 1, em conjugação com o artigo 18.º, n.º 2, todos da Constituição)”.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 1141


Os vários desrespeitos pela vida humana não nascida e a sua paulatina aceitação social
tiveram como óbvia raiz comum a despenalização do aborto64, chegando-se ao ponto de
perspectivar a pessoa como um dano indemnizável quando não se tenham criado as
condições ideais para a suprimir. A existência de um ser humano como um dano…
Ao admitir a despenalização do aborto que o legislador engendrou, o Tribunal
Constitucional deu azo a algo tão arrepiante (e também dogmaticamente inadmissível)
como a responsabilidade por nascimentos “indevidos”. E, numa espiral hermenêutica
desumanizante, serviu-se daquilo que potenciara para criar – à guisa de justificação ex
post – um “direito fundamental ao aborto”.
Se levarmos a sério a “dignidade da pessoa humana” que baseia a República
portuguesa (art. 1º Const.), toda a pessoa, em quaisquer circunstâncias, tem valor apenas
por si mesma e não pela (in)utilidade que nela outrem encontre. O que basta para negar
validade jurídica ao aborto e às responsabilidades por vidas e nascimentos que o diktat
do poder público considere “indevidos”. O caminho a tomar na encruzilhada torna-se,
assim, claro. A ninguém se reconhece a condição de digno se a sua vida for relativa,
porque dependente do juízo de outrem, como ressalta da magistral reflexão de Castanheira
Neves:

“A dimensão pessoal postula o valor da pessoa humana e exige o respeito


incondicional da sua dignidade. Dignidade da pessoa a considerar em si e por si,
que o mesmo é dizer a respeitar para além e independentemente dos contextos
integrantes e das situações sociais em que ela concretamente se insira. Assim, se
o homem é sempre membro de uma comunidade, de um grupo, de uma classe, o
que ele é em dignidade e valor não se reduz a esses modos de existência
comunitária ou social. Será por isso inválido, e inadmissível, o sacrifício desse
seu valor e dignidade pessoal a benefício simplesmente da comunidade, do grupo,
da classe. Por outras palavras, o sujeito portador do valor absoluto não é a
comunidade ou a classe, mas o homem pessoal, embora existencial e socialmente
em comunidade e na classe. Pelo que o juízo que histórico-socialmente mereça
uma determinada comunidade, um certo grupo ou uma certa classe não poderá

64
Federico Fernández de Buján, La Vida. Principio Rector del Derecho, cit., 142-143.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 1142


implicar um juízo idêntico sobre um dos membros considerado pessoalmente – a
sua dignidade e responsabilidade pessoais não se confundem com o mérito e o
demérito, o papel e a responsabilidade histórico-sociais da comunidade, do grupo
ou classe de que se faça parte.
E postula mais a dimensão pessoal. Postula ainda a possibilidade da sua
realização, a possibilidade da realização pessoal quer em si, quer perante os
outros” 65.

65
A. Castanheira Neves, “A Revolução e o Direito. A Situação de Crise e o Sentido do Direito no
Actual Processo Revolucionário”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 36, Jan.-Dez. 1976, 38-39.

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