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Título

• Políticas Educativas em Portugal


Contributos para a História do Sistema Educativo

Coordenação
• João Ruivo
• João Carrega

Nota Explicativa e Preâmbulo


• João Ruivo

Prefácio
• Luciano de Almeida

Entrevistas
• João Ruivo, João Carrega, Vitor Tomé, Jorge Azevedo e Nuno Dias da Silva

Design
• Carine Pires e Rogério Ribeiro
RVJ- Editores

Edição
• RVJ- Editores, Lda / Av. do Brasil n.º 4 r/c - Apartado 262 - 6000-909 Castelo Branco
Tel: 272 324 645 Fax: 272 324 645 www.rvj.pt Email: rvj@rvj.pt

Propriedade
• RVJ- Editores, Lda

Impressão

Tiragem
• 500 Exemplares

ISBN
• 978-989-8289-30-8

Depósito Legal

Data
• Março 2014
Índice
Nota Explicativa
João Ruivo | 9

Preâmbulo à 1ª Edição
Ensino em público, conversas em privado
João Ruivo | 13

Prefácio à 1ª Edição
Sobre a educação e o sistema de ensino em Portugal
Luciano de Almeida | 17

Entrevistas
1- Liderar, é conduzir um projecto
Eduardo Marçal Grilo | 61

2- Novos rumos para o ensino superior


Marcelo Rebelo de Sousa | 75

3- O País não está a formar para o futuro


Odete Santos | 79

4- A ciência faz-se em todo o mundo


Augusto Santos Silva | 85
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5- Avaliação e planeamento estratégico do sistema
Júlio Pedrosa | 97

6- O apertar do cinto é para todos


Pedro Lynce | 103

7-Vivemos uma época anti-portuguesa


Vítor Melícias | 111

8- O Ensino Politécnico tem sido desvalorizado


Guilherme de Oliveira Martins | 119

9- Mais escolas e menos quartéis


Sérgio Godinho | 125

10- As crises de valores não se combatem na bruxa


Vasco Graça Moura | 131

11- Há muita experimentação na educação


António Mega Ferreira | 135

12- Os clássicos da literatura devem voltar à escola


Francisco José Viegas | 141

13- O ensino superior tem de ser gerido por quem sabe


Bagão Félix | 147

14- As escolas vão mudar


Maria de Lurdes Rodrigues | 157

15- Escolas: ensinar a pensar através da experimentação


Sobrinho Simões | 165

16- Querem apagar e reescrever a história


José Barata Moura | 171

17- Reduzidos ao capital da memória


Eduardo Lourenço | 177

18- Difícil é educá-los


Nuno Crato | 185
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19- Portugal deveria fechar uma semana para balanço
Carlos do Carmo | 193

20- Regime das universidades perpetua a mediocridade


Campos e Cunha | 199

21- Ninguém manda na escola


Carlos Fiolhais | 207

22- É urgente reorganizar a rede de ensino superior


Mariano Gago | 215

23- Os jovens têm de ser empreendedores


Eduardo Catroga | 219

24- A escola pública é mais igual


Valter Lemos | 225

25- A educação escolar é um exercício de amnésia programada


João Lobo Antunes | 231

26- Bolonha enferma de uma estratégia economicista


Garcia Pereira | 239

27- A situação do ensino é dramática


Mira Amaral | 245

28- Não há visão de futuro para a educação


David Justino | 251

29- As novas oportunidades do país


Valter Lemos | 259

30- Cortes ameaçam instituições de ensino superior


Pedro Lourtie | 263

31- A educação e o ensino são o portal da vida social


D. Manuel Clemente | 271

32- Há que cortar a direito na educação


Marques Mendes | 275
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33- Faltam incentivos aos bons professores
Silva Lopes | 281

34- Pressão da sociedade exige respostas


Leopoldo Guimarães | 287

35- A democracia pode estar ameaçada


Fernando Rosas | 291

36- Portugal ainda é o país dos vícios privados e virtudes públicas


Isabel Moreira | 299

37- As culpas da academia na crise internacional


Luís Nazaré | 303

38- Somos governados pelo culto da imagem


José Medeiros Ferreira | 307

39- Memórias de Adriano


Adriano Moreira | 311

40- Escola pública corre riscos


Augusto Santos Silva | 321

41- Os cursos superiores têm de ser orientados para a economia


José Gomes Ferreira | 327

42- Corrupção, diz ele!


Paulo Morais | 333

43- Está na hora de sacrificar cursos para salvar instituições


David Justino | 339

44- Quatro planos para a educação


Maria de Lurdes Rodrigues | 345

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Nota Explicativa
A presente obra representa uma segunda edição, revista e aumentada, do livro
Políticas e Políticos da Educação, entretanto esgotado, editado e lançado pela RVJ,
durante a Futurália, em Lisboa, em Março de 2011, e cuja apresentação esteve a cargo
do Professor Doutor Pedro Lourtie.
No espaço de tempo que decorreu desde então, aparentemente curto, os profes-
sores e o Sistema Público de Ensino viram-se confrontados com novas alterações de
política educativa, motivadas pela mudança de governo, em Junho de 2011, o que
conduziu, também, à alteração dos protagonistas responsáveis pela pasta da educa-
ção e, logo, das práticas políticas, resultantes de novas concepções ideológicas que a
alternância governativa proporcionou.
Nos três anos que, entretanto, passaram, podemos afirmar que muito de substan-
cial se modificou na visão governativa do sistema educativo, agora encarado segundo
uma filosofia neo-liberal, elitista, ancorada numa vontade sistémica de redução de
custos, a qualquer preço, independentemente das consequências plasmadas na co-
munidade educativa.
Três anos, dizíamos, em que se assistiu à continuada devassa da escola pública,
democrática e inclusiva, e ao sistemático retrocesso do desenvolvimento da profissio-
nalidade dos docentes.
Durante esse período, o jornal Ensino Magazine continuou, como sempre, a
acompanhar a situação da educação em Portugal e realizou mais um conjunto signi-
ficativo de entrevistas a responsáveis políticos e especialistas, alguns dos quais terão
passado do governo à oposição, e vice-versa, pelo que confronto da alteração de opi-
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niões, entretanto manifestadas, constitui um novo e interessante espólio de análise
crítica. E é precisamente esse novo conjunto de entrevistas que vem dar continuidade
à 1ª edição desta obra, permitindo a sua actualização ao ano de 2014.
Entretanto, somos de opinião que vai levar algum tempo para voltar a erguer a
auto estima dos professores, para recuperar a sua imagem social, o seu estatuto re-
muneratório e para chamar novamente à profissão os melhores e os mais capazes. As
perdas são, em tempo, custo e envolvimento de recursos humanos, incalculáveis. O
tempo, a seu tempo, o dirá.
A conjuntura actual, conjugada com a herdada do anterior governo, revelou-se
propícia à alteração e aumento compulsivo de funções e tarefas cometidas aos docen-
tes, colocando-os na vertigem da desprofissionalização; à divisão da classe, através de
uma estratificação artificial da carreira; à implementação de processos de avaliação
de desempenho administrativos, burocráticos e estigmatizantes; redução artificial de
cargas horárias e alterações aos planos curriculares ao sabor das circunstâncias, pro-
vocando-se, desnecessariamente, o maior desemprego conhecido, até hoje, na classe;
à introdução de novas tecnologias na escola, sem formação antecipada dos interve-
nientes no acto educativo, no que se revelou ser uma insensatez face ao esbanjamento
de dinheiros públicos em negócios e parcerias com empresas privadas…
A escola tendeu para um espaço de desencantos e desencontros, onde os profis-
sionais da educação começaram a ser chamados para reflectirem pouco sobre o acto
educativo e, em substituição, a reunirem muito em redor da aplicação de normativos
e procedimentos de natureza burocrático-administrativa.
Neste quadro, milhares de docentes preferiram solicitar a sua aposentação anteci-
pada, com graves penalizações nas suas pensões, no que constituiu uma desnecessá-
ria sangria de quadros qualificados e experientes. Ou seja: ao abandono precoce das
escolas por parte dos alunos, temos agora que acrescentar o abandono precoce da
profissão por parte dos professores.
E isto tudo, num país que ainda precisa de muita escola e de mais e melhor qua-
lificação dos seus cidadãos. Que desperdício inqualificável formar um docente para
deixá-lo no desemprego ou vê-lo partir para uma aposentação precoce, numa etapa
da sua carreira em que revelava mais controlo, segurança e maturidade….
Mas será que, após este claustrofóbico período, a tutela pode afirmar que temos
mais escola e melhor educação?
Infelizmente a nossa resposta é: não! Nos tempos que ainda correm, as esco-
las fecharam-se num clima organizacional sufocante e megalónimo, os alunos não
melhoraram globalmente, de facto, os seus resultados escolares, os professores não
aperfeiçoaram as suas competências profissionais e a escola não se transformou numa
verdadeira comunidade educativa.
Ou seja: agora temos menos escola e menos escolas, temos menos educação e
menos professores. Entretanto, nesta encruzilhada, o país ganhou a maior taxa de
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desemprego alguma vez vista na profissão docente, e um medíocre sistema de forma-
ção de professores, incapaz de atrair os candidatos mais capazes e mais competentes.
Mas porque a educação e os professores são semente e pão de todos os futuros,
estamos em crer que, uma vez mais, os docentes portugueses irão sabiamente ultra-
passar este difícil instante da sua longa história profissional, e recuperarão o valor
e energia da sua profissionalidade, para bem do desenvolvimento social, cultural e
económico do nosso país.
É que não há Escola contra a Escola. Não há progresso que se trilhe contra os pro-
fissionais da educação. Não há políticas educativas sérias a gosto de birras e conjuntu-
ras que alimentam os pseudo protagonismos de alguns governantes. Não há medidas
que tenham futuro se não galvanizarem na sua aplicação os principais agentes das
mudanças educativas: os educadores e os professores.
O regresso a uma concepção conservadora do papel da escola e da função dos
docentes (aumento do número de alunos por turma, segregação por níveis de
aprendizagem, entre outros) colocam na ordem do dia, e uma vez mais, a defesa da
escola pública.
Todos sabemos, ou julgamos saber, como deve ser e o que deve ter uma esco-
la pública, democtática e inclusiva, que promova a aprendizagem efectiva dos seus
aprendentes e o bem-estar e a profissionalidade dos seus formadores.
Todavia, há uma questão que introduz toda a entropia nestas instituições, e esta
surge quando os governos se deitam a fazer contas sobre quanto custa garantir esses
direitos. Sobretudo, quando os políticos sabem que todo o investimento em educação
só produz efeitos a longo prazo.
Não queremos uma escola pública que seja de baixa qualidade. Pelo contrário,
desejamos uma escola que seja exigente na valorização do conhecimento, e promo-
tora da autonomia pessoal. Uma escola pública, laica e gratuita, que não desista de
uma forte cultura de motivação e de realização de todos os membros da comunidade
escolar. Uma escola pública que reconheça que os seus alunos são também o seu pri-
meiro compromisso, que seja lugar de democracia, dentro e fora da sala de aula, que
se revele enquanto espaço de aprendizagem, e que se envolva no debate, para reflectir
e participar no mundo de hoje.
Formar a geração de amanhã não é tarefa fácil. Mas será certamente inconclusiva
se escrutinarmos a escola e o trabalho dos professores apenas segundo critérios me-
ramente economicistas, baseados numa filosofia de desenvolvimento empresarial e
numa teoria de gestão neoliberal.
A reorganização neoliberal da escola, em que os alunos são vistos como “clientes”,
os professores como “colaboradores”, a aprendizagem como um “produto”, o sucesso
académico como um indicador de “qualidade total”, o planeamento pedagógico como
“acção de empreendedorismo”, a gestão escolar como “direcção corporativa” e os pais
e a comunidade como “stakeholders”, e o investimento como um “custo orçamental”,
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esta reorganização, dizíamos, tem destruído uma boa (e talvez a melhor) parte do
edifício da escola pública, enquanto escola democrática, inclusiva e meritocrática.
O pretenso ideal de fazer funcionar uma escola sem professores reflexivos, activos
e motivados, sem custos e sem autonomia, foi experimentada por todos os sistemas
mais ou menos autocráticos, mais ou menos ditatoriais.
Os resultados também estiveram sempre à vista: no Portugal do início da década
de setenta do século passado, quase metade da população era analfabeta e apenas
sete em cada cem estudantes que terminavam o secundário continuavam estudos na
universidade.
Décadas de investigação científica provaram que todo o desinvestimento na edu-
cação sempre redundou num atraso do desenvolvimento social, cultural e económico
desses países e que as posteriores tentativas de recuperação do “tempo perdido” se
revelaram demasiado lentas e de custos agravados. Portugal, infelizmente, também
conhece essa realidade: quase quarenta anos após a revolução de Abril de 1974,
o nosso país continua a ter níveis de iliteracia elevados, de insucesso e abandono
escolar preocupantes, taxas de diplomados no ensino superior das mais baixas da
comunidade europeia, e a prova é que ainda temos muitos estudantes com mais ha-
bilitações académicas que os seus pais e com avós analfabetos.
Nos últimos anos, os nossos responsáveis pela educação têm preferido a diminui-
ção forçada do défice orçamental, ao espontâneo desenvolvimento e crescimento dos
indicadores que ajudam a definir o conceito constitucional de “escola para todos”.
Mais recentemente, a actual equipa do ME tem dado claros sinais de que prefere o
elitismo à universalização do conhecimento, assim como prefere a “escola académi-
ca” à “escola do desenvolvimento integral”. Tem direito às suas opções e o dever de
aceitar as divergências.
Defender a escola pública, democrática e inclusiva, nesta conjuntura de inexpli-
cável desvario ideológico, é demasiado urgente. Para tal, revela-se necessário que
voltemos a exigir políticas públicas fortes, capazes de criar as condições para que a
escolaridade obrigatória seja, de facto, universal, inclusiva e gratuita e se assuma, sem
tibiezas, que o direito ao sucesso de todos é um direito fundador da democracia e dos
Estados democráticos.
Esperamos que a publicação desta obra abra um novo espaço de diálogo entre
toda a comunidade educativa e, sobretudo, que possa constituir uma ponte de apro-
ximação entre todos aqueles tiveram, têm ou poderão vir a ter a responsabilidade
governativa de traçar os nossos destinos.
João Ruivo
Conselho Científico do Centro de Investigação
em Políticas e Sistemas Educativos (CIPSE)
do Instituto Politécnico de Leiria
(Ex-Vice Presidente do Instituto Politécnico
de Castelo Branco)

12 ›
Preâmbulo à 1ª edição
Ensino em público, conversas em privado

Os textos que aqui se apresentam constituem um conjunto de entrevistas a res-


ponsáveis educativos e líderes de opinião que o mensário Ensino Magazine publicou
nos últimos doze anos (1998/2010).
Trata-se de um importante espólio que permite caracterizar a história recente de
Portugal em matéria educativa e que não podia correr o risco de ficar esquecido no ar-
quivo da memória de velhas e esmaecidas páginas de jornal. Ou seja, o que hoje aqui
se compila, e de novo se traz a público, traduz-se numa preciosa fonte documental de
indiscutível utilidade a todos quantos operam no quadro da investigação educativa,
designadamente na história da educação e do sistema educativo português, no perí-
odo que decorre entre a vertiginosa viragem do milénio e os dias de desencanto e de
alienante ressaca que qualificam o ano da graça de 2011.
Em verdade se diga que os últimos quinze anos de governação marcaram, signi-
ficativamente, o presente e o futuro de Portugal. Para o bem e também para o mal.
Neste turbilhão de alterações, umas consentidas, outras profundamente contestadas,
a escola e os professores estiveram, com demasiada frequência, no centro das aten-
ções da opinião pública e determinaram os destaques da generalidade dos órgãos de
comunicação social e dos fóruns de debate, entretanto proporcionados pela Internet.
Sabemos que as sociedades se constroem com lideranças. Das melhores às mais
desastrosas, todas elas têm o condão de imprimir um cunho que a erosão do tempo
demora a apagar e que determina o destino de pessoas e instituições. O pensamento e
‹ 13
a palavra dos construtores de opinião, rapidamente se transformam em desenho de fu-
turos, sobretudo quando o emissor do discurso acumula o cobiçado poder da decisão.
Nem sempre se descortina o frágil percurso que alia o pensamento e a acção. E,
por idênticas razões, nem sempre se nos revelam com transparência os acontecimen-
tos e as conjunturas que, a jusante, se deixaram contaminar e modelar pela força da
palavra, instrumento da razão que os impulsionou.
Essa indagação é obra para investigadores que, para o efeito, necessitam da insubsti-
tuível achega do registo escrito da palavra, através da qual os governantes, ou os fazedo-
res de opinião, se justificam quanto aos seus modos de agir, de pensar e, até, de sentir.
Ao longo de doze anos o Ensino Magazine foi publicando entrevistas desses mo-
deladores da acção, marcadas todas elas por conjunturas e intencionalidades que,
hoje, à prudente distância da curta história, merecem ser dissecadas pelas sábias me-
todologias dos investigadores da educação.
Cumprindo essa intencionalidade, elas aqui ficam, trabalhadas e expurgadas de cir-
cunstâncias a que o presente retirou significado, no propósito, abertamente assumido,
do convite à sua revisitação, e na intenção de que renasçam num formato mais perdu-
rável, mais divulgável, mais manuseável e, tradicionalmente, mais académico: o livro.
No intuito de contextualizar o conteúdo da obra, desafiámos o Professor Luciano de
Almeida a prefaciá-la. Em boa hora o fizemos e em feliz momento ele aceitou esse desafio.
Luciano de Almeida é um observador e analista do sistema educativo português
de primeiríssima água. É importante que tal facto aqui se registe, não só devido à sua
profunda e positivamente marcante experiência de dirigente institucional (recorde-se
que presidiu ao Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos e ao
Instituto Politécnico de Leiria, num período em que este alcançou um desenvol-
vimento invejável e se transformou numa instituição de referência nacional), mas
ainda porque, enquanto académico, produziu investigação lúcida e profunda sobre
as políticas educativas e sobre a situação actual e as perspectivas de desenvolvimento
do sistema educativo Português. Aliás, para o concretizar, fundou e coordenou o Cen-
tro de Investigação em Políticas e Sistemas Educativos (CIPSE), no enquadramento
proporcionado pelo Instituto de Investigação, Desenvolvimento e Estudos Avançados
(INDEA) do Instituto Politécnico de Leiria.
O leitor, melhor que ninguém, medirá o alcance da sua análise, crítica e constru-
tiva, que precede o corpo desta obra. Passe a imodéstia, e diremos tratar-se de um
texto de rigor e detalhe que confere a este livro uma marca de indiscutível qualidade,
designadamente quanto ao enquadramento que confere a um conjunto de entrevis-
tas, publicadas nas páginas do Ensino Magazine, e que, à partida, não foram obtidas
com a intenção de se materializarem num produto bibliográfico, homogéneo, e de
inquestionável coerência interna.
A criação, em 1998, do Ensino Magazine, também ela fora marcada por uma cir-
cunstância modeladora: durante a década anterior o ensino superior crescera de uma
14 ›
forma exponencial. Aumentara a oferta de cursos, de serviços de apoio administrati-
vo, investigacional, pedagógico, social e cultural. A fixação de docentes, estudantes
e técnicos especializados em terras do Interior revelara-se como uma forte alavanca
do desenvolvimento regional e como força mobilizadora que colocara ao serviço das
regiões uma “massa cinzenta” permanentemente disponível, que se considerava in-
dispensável ao progresso e ao crescimento.
Tratava-se de uma verdadeira revolução cultural, silenciosa, sistemática e persis-
tente, que constituiria uma inequívoca iniciativa de repovoamento regional, já que
permitira radicar, sobretudo no Interior, milhares de jovens que, noutros tempos, se
viam obrigados a migrar para o Litoral, e centenas de técnicos, professores e investi-
gadores que, mesmo à míngua de contrapartidas, se disponibilizaram para ficar com
aquelas populações, ombreando com as suas dificuldades, incertezas, esperanças e
vontades de vencer.
Se mais razões não houvesse, aquelas seriam mais que suficientes para justificar
a criação do Ensino Magazine, jornal mensal, de distribuição gratuita, que se dirigia,
prioritariamente, às escolas, aos docentes, aos estudantes e à comunidade regional
em que estes se inseriam. O Ensino Magazine nascia então como um jornal indepen-
dente dos poderes políticos, económicos e confessionais. Um jornal que privilegiaria
a informação e a partilha da opinião entre pessoas e as suas instituições, consideradas
estas como organismos autónomos, com independência moral e científica perante os
diferentes poderes instituídos. Para tal o, Ensino Magazine contou, e conta, com a
produção jornalística e editorial de uma empresa jovem e de jovens - a RVJ, Editores
-, empresa que detém a propriedade do jornal, e com a visão de futuro que permitiu a
colaboração editorial com semanário Reconquista, associação que ainda hoje perdura
e que já permitiu a ambos os órgãos de comunicação a participação em inúmeros
projectos, alguns de natureza científica, com reconhecimento internacional.
Vivemos numa sociedade que aceleradamente se transforma e internacionaliza.
Atravessamos uma conjuntura em que a escola perdeu a sua capacidade de alavancar
a promoção social dos aprendentes. No instante, não se vislumbra uma correlação
positiva entre a formação e o emprego. Assistimos a um momento histórico em que
os docentes se revoltam, porque não se revêem na acusação difamatória de inércia e
inoperância. Mas esse dedo acusador, se aponta as escolas e os educadores, visa espe-
cialmente os responsáveis pelas políticas que, nas últimas décadas, não souberam, ou
não quiseram, ou não puderam, colocar o sistema educativo português ao nível dos
seus congéneres europeus.
Todos nós sabemos que, infelizmente, o problema é endémico e se converte, re-
correntemente, em tema de debates, congressos, estudos e artigos de opinião. Porém,
o contínuo alternar de ciclos de investimento e de desinvestimento na educação, a
ausência de uma estratégia concertada que coloque a promoção da escola como uma
das mais urgentes prioridades nacionais, não tem contribuído para uma atempada
‹ 15
busca de soluções e para um esforço de aproximação aos níveis médios dos restantes
países da UE.
A iliteracia das conveniências muito tem ajudado ao silêncio, à omissão e ao so-
lilóquio dos que não fazem, nem deixam fazer. Por isso mesmo, é nossa convicção
que a reposição pública destas entrevistas poderá contribuir para a transparência da
análise e do debate em torno de um período conturbado da história da educação em
Portugal, o qual tem vindo a merecer crescente interesse de estudiosos e de centros
de investigação nacionais e europeus.
Sabe-se que se promove a mudança social e cultural através da troca do conheci-
mento global e ombreando com os que cumprem a tarefa mágica de disponibilizar
os saberes, e dos que têm o direito, o dever e a capacidade de os assimilar, com eles
se enriquecendo.
A escola portuguesa atravessa um momento de grandes desafios, só paralelos às
ameaças que a espreita. Mas nos grandes momentos dilemáticos da acção, os profes-
sores e os educadores sempre revelaram ser possuidores de forças internas que lhes
permitem olhar de frente as oportunidades e, neste particular momento de mudança
de paradigmas, saberão adequar o sistema às condicionantes da sociedade pluridi-
mensional, da economia global e da revolução tranquila que as novas tecnologias da
informação e da comunicação introduziram nos nossos lares e nas salas de aula.
É certo que o futuro está a exigir respostas demasiado rápidas às nossas institui-
ções educativas que, com os tempos, se transformaram em estruturas lentas, rígidas e
quantas vezes pouco sensíveis aos processos de mudança. Mas acreditamos na força e
na energia dos investigadores, dos professores e dos educadores para romperem com
a indiferença e enfrentarem, com optimismo, o futuro que gera a esperança.

João Ruivo
Conselho Científico do Centro de Investigação
em Políticas e Sistemas Educativos (CIPSE)
do Instituto Politécnico de Leiria
(Ex-Vice Presidente do Instituto Politécnico
de Castelo Branco)

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Prefácio à 1ª edição
Sobre a educação e o sistema de ensino em Portugal

A leitura atenta das entrevistas contidas nesta publicação é essencial para


compreender a evolução das políticas de educação em Portugal nos últimos
anos. Ressaltará, de todas elas, a enorme preocupação dos entrevistados pela
necessidade de se recuperar o atraso estrutural do País na educação dos por-
tugueses, do mesmo modo que é evidenciada a ausência de uma estratégia na-
cional para as políticas de educação. Fica patente a existência de reflexões in-
dividuais particularmente lúcidas e estruturadas, mas inexiste um fio condutor
comum que permitisse uma orientação política capaz de sobreviver à alternân-
cia do poder, ou até à simples mudança de ministro, dentro do mesmo quadro
partidário.
O nosso propósito ao escrevermos este Prefácio é dar aos leitores um en-
quadramento da educação em Portugal que permita uma leitura mais rica dos
testemunhos dos entrevistados.
Breve resenha histórica.1 A análise da história do ensino em Portugal, mos-
tra-nos como, durante largos anos, este esteve exclusivamente a cargo da Igreja.
Rómulo de Carvalho 2, anota que a primeira notícia que encontrou relativamen-
te a uma escola no território que Portugal hoje ocupa, respeita à Sé de Braga e é
1 Na evolução histórica até á década de 70, do século passado, seguimos de muito perto vária documentação do Ministério da
Educação que se encontra disponível na respectiva página.
2 Carvalho, Rómulo. (2001). História do Ensino em Portugal desde a Fundação da Nacionalidade até ao Fim do Regime de
Salazar. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 17 e seg.

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a mais antiga em que se fala de uma instituição escolar. Refere-se ao século XI,
anterior portanto à fundação da Nacionalidade, em 1143.
Ainda no século XI foi criada, junto à Sé de Coimbra uma escola, aquela que terá
sido a primeira fundada já no Reino de Portugal. Logo nos primeiros anos da funda-
ção da nação, são referenciados colégios de renome nos mosteiros de Santa Cruz, em
Coimbra e de Alcobaça. Contudo, os estudos gerais só surgiram nos finais do século
XIII, com a fundação da universidade portuguesa, então designada Estudo Geral, em
Lisboa, por D. Dinis, em 1290. No século XVI, foi fundado o Colégio das Artes, em
Coimbra, onde funcionaram, além dos estudos superiores, as escolas menores.
Outras referências surgem na segunda metade do século XVIII, com a criação das
aulas de Gramática Latina, Grego e Retórica, em 28 de Junho de 1759, destinadas
aos estudos preparatórios para os estudos maiores (que hoje corresponderá ao ensino
secundário) a que se seguiram, em 1772, a criação de escolas de ler, escrever e contar
(que hoje corresponderia ao ensino básico).
Ainda em 1772 foram criadas aulas de filosofia nos estudos preparatórios para os
estudos maiores. Aos professores destas escolas foi atribuído o estatuto de funcioná-
rios do Estado. A sua administração foi centralizada no Estado, ficando dependente
do Ministério do Reino.
Poderemos considerar que nesta segunda metade do século XVIII, ainda que dé-
bil, estaremos perante a primeira ideia de rede de ensino oficial gratuito.
Esta organização administrativa manteve-se, no essencial, até 1913, altura em que
pela 1ª República foi criado o Ministério da Instrução Pública, que em 1936 passou
a designar-se por Ministério da Educação Nacional e em 1974, após a Revolução de
Abril, por Ministério da Educação.
No que respeita à estrutura do sistema de ensino, manteve-se no essencial inal-
terado até 1836. O regime liberal aprovou, então, uma nova organização do ensino,
definindo graus ou níveis – primário, secundário liceal, superior e universitário, alar-
gada mais tarde, em 1852, para o ensino técnico-profissional3 . Estes níveis de ensino
manter-se-ão inalterados até 1974.
O ensino obrigatório surge em Portugal em 1835-1836, como afirmação do re-
gime liberal, abrangendo os três primeiros anos do então chamado ensino primário.
Em 1956, o ensino básico obrigatório é alargado para 4 anos para os alunos do sexo
masculino (Decreto-Lei n.º 40 964, de 31 de Dezembro) e em 1960, para os alunos
do sexo feminino (Decreto-Lei n.º 42 994, de 28 de Maio).
Vejamos alguns aspectos relacionados com os diferentes subsistemas e da sua evo-
lução ao longo do tempo.
O ensino pré-escolar. Em 1911, por decreto de 29 de Março, foi criado o “ensino
3 Carvalho, Rómulo. (2001). Op. cit., p. 588 e segs.
O ensino técnico-profissional foi introduzido em Portugal com a criação do Conservatório das Artes e Ofícios de Lisboa em
18 de Novembro de 1836, cujo espólio foi mais tarde integrado no Instituto Industrial de Lisboa, criado por decreto régio de
D. Maria II, em 30 de Dezembro de 1852. Reestruturado em 1869, agrega o ensino comercial e passa a designar-se Instituto
Industrial e Comercial de Lisboa. Os seus formados são designados de Engenheiros Industriais.

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infantil oficial”, hoje designado ensino pré-escolar e em 1919 passa a integrar o en-
sino primário oficial. Em 1926, o ensino infantil oficial é extinto com o fundamento
de que a sua reduzida expressão não justificava a despesa pública realizada. A política
do Estado Novo em matéria de ensino pré-escolar, passa a assentar na valorização
do papel da mãe como educadora, cabendo à Obra Social das Mães pela Educação
Nacional, o apoio às mães na tarefa de educar os filhos.
Só com a Lei n.º 5/73, de 25 de Julho, de Veiga Simão, que aprova a reforma do
sistema educativo, a educação pré-escolar passa a ser parte integrante do sistema
educativo, são definidos os objectivos do ensino pré-escolar e são criadas as Escolas
de Educadores de Infância, destinadas a preparar os respectivos profissionais.
Em 1978, são criados os primeiros jardins-de-infância oficiais do Ministério da
Educação, mas só com a publicação da Lei de Bases do Sistema Educativo – Lei n.º
46/86, de 14 de Outubro – a educação pré-escolar é definitivamente integrada no
sistema de ensino. Em 1995, é elaborado um plano de expansão da rede de estabele-
cimentos de educação pré-escolar e em 1995, o XIII Governo Constitucional estabe-
lece como prioridade política para o período de 1995-1999, o acesso, no ano lectivo
2000/2001, de 90% das crianças com 5 anos de idade.
Em 1997, com a publicação da Lei-Quadro da Educação Pré-Escolar (Lei n.º 5/97,
de 10 de Fevereiro), é criada uma rede nacional de educação pré-escolar, integrando
a rede pública e a rede privada sem fins lucrativos.
O ensino básico. Quanto ao ensino básico, a 1ª República, instaurada a 5 de Ou-
tubro de 1910, considerou tarefa prioritária nacional a resolução do grave problema
do analfabetismo. Em consequência, em Março de 1911, procedeu-se à reforma do
ensino primário, que passou a englobar também o ensino infantil. No âmbito desta
reforma, o ensino primário desenvolvia-se em três graus: elementar, complementar e
superior, apenas sendo obrigatórios os 3 anos do ensino primário elementar.
Com a reforma de 1919, o ensino primário obrigatório passa a 5 anos (dos 5 aos
12 anos). Em 1926, com o golpe militar que marca o início da ditadura, o ensino
primário elementar foi reduzido para 4 anos, destinando-se os 3 primeiros anos a
aprender a ler, escrever e contar e o quarto ano, a transmitir conhecimentos comple-
mentares aos alunos que não prosseguissem estudos.
Em 1936 é suprimido o grau complementar, tendo sido criados nas áreas rurais
os chamados postos escolares, cujo ensino era ministrado por regentes escolares, ti-
tulares de reduzidas habilitações, em regra apenas o ensino primário e um exame de
avaliação para a função.
A superação do analfabetismo deixa de constituir uma prioridade e a taxa de
analfabetismo literal (taxa de analfabetismo de maiores de 6 anos), que em 1920 era
de 66,2%, reduzia-se lentamente para 61,8% em 1930, para 49,0% em 1940 e para
40,4 % em 19504 .
4 INE. (1976). A População de Portugal. Lisboa: INE. Caderno 2.

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Em 1950, é lançado o Plano de Educação Popular, destinado a combater o anal-
fabetismo. Mais tarde, em 1956, no âmbito da reforma do ensino primário, assinada
pelo ministro da Educação Nacional, Leite Pinto, a escolaridade obrigatória aumenta
para 4 anos, para os alunos do sexo masculino e em 1960, por decreto-lei de 28 de
Maio, assinado igualmente por Leite Pinto, alarga-se também para quatro anos para
os alunos do sexo feminino, ficando assim generalizada a obrigatoriedade escolar de
quatro anos5. Na mesma data, em 1960, a taxa de analfabetismo desce para 32,1% e
em 1970, para os 26,6 %.
A escolaridade obrigatória foi alargada para seis anos, quatro anos depois, por
decreto-lei de 9 de Julho de 1964, do então ministro da Educação Nacional, Galvão
Teles. Para os alunos que se matricularam a partir do ano lectivo 1964/65, o ensino
primário passou a ser de seis anos, dividindo-se em dois ciclos: elementar de dois
anos e complementar, com dois anos.
Na mesma altura é implementada a Telescola, destinada ao ensino nos meios ru-
rais, ensino ministrado pela televisão que mais tarde, a partir do ano lectivo 1972/73,
já com o ministro Veiga Simão, dá lugar aos postos oficiais de Telescola, então criados,
com professores monitores habilitados com o curso do ensino secundário, curso do
magistério primário ou habilitação superior.
No ano lectivo 1967/68 é criado o ciclo preparatório do ensino secundário, que
substitui os dois primeiros anos do ensino liceal e do ensino técnico-profissional.
Note-se que o ciclo preparatório do ensino secundário destina-se, essencialmente, as
zonas urbanas e o ciclo complementar do ensino primário e o ciclo preparatório da
Telescola às zonas suburbanas e rurais.
Com a aprovação da Lei n.º 5/73, de 25 de Julho, que corporizaria a Reforma Veiga
Simão, pretendia-se uma profunda alteração da estrutura do ensino básico, alargando-
se a escolaridade obrigatória para 8 anos, os 4 primeiros ministrados em escolas pri-
márias e os quatro últimos, em escolas preparatórias. Com a Lei n.º 5/73 o legislador
visava, como anteriormente se referiu, uma ambiciosa reforma do sistema de ensino
que tinha presente, pela primeira vez, o conceito de democratização do ensino6 .
O 25 de Abril de 1974 veio encontrar um processo de reforma ainda na sua fase
inicial e os tempos conturbados que se viveram, até ao 25 de Novembro, impediram
a implementação da Lei. Na sequência da revolução de 25 de Abril, é abandonado
o alargamento da escolaridade obrigatória para 8 anos, preconizado na Lei n.º 5/73,
estabelecendo-se como prioridade efectiva, assegurar a universalidade da escolarida-
de obrigatória de 6 anos, que passará a incluir o ensino primário, de quatro anos e
o ensino preparatório, de dois anos, mantendo-se as três modalidades em que já era
ministrado: ciclo complementar primário (extinto em 1979), ensino preparatório e
ensino preparatório TV.
5 Carvalho, Rómulo. (2001). Op. cit., p. 796.
6 Arroteia, Jorge. (1990). Sistema de ensino e mobilidade social: reflexões sobre o caso português. Em: A Sociologia e a Socie-
dade Portuguesa na Viragem do Século. Actas do I Congresso de Sociologia Lisboa: Fragmentos. Vol. I, pp. 67-68.
20 ›
Nos anos seguintes, entre 1979 e 1981 assistir-se-á a uma profunda reformulação
dos conteúdos e métodos pedagógicos, tendo, igualmente sido construídas cerca de
15.000 salas de aulas, até 1981.
Em 1986, com a publicação da Lei de Bases do Sistema Educativo, é alargada a
escolaridade obrigatória para 9 anos, abrangendo as crianças que tendo completado
seis anos até 15 de Setembro, se inscreveram no primeiro ano de escolaridade a partir
do ano lectivo 1987/88.
Com a referida publicação da Lei de Bases do Sistema Educativo, o ensino básico
compreende três ciclos sequenciais: o primeiro de 4 anos proporciona uma aprendi-
zagem globalizante com um único professor; o segundo, com 2 anos de escolaridade,
proporciona uma aprendizagem organizada por áreas pluridisciplinares, cada uma a
cargo de um ou mais professores; o terceiro, de 3 anos de escolaridade, organizado
por disciplinas ou grupos de disciplinas, cada uma a cargo de um professor.
O ensino secundário. Em Portugal podemos situar o início da história do ensino
secundário no século XIII, altura em que o ensino era ministrado nos mosteiros, não
podendo falar-se, até à criação das escolas menores, no século XV, numa verdadeira
distinção entre o ensino secundário e o ensino superior. No século XVIII com a Refor-
ma Pombalina, e como consequência da extinção das ordens religiosas em Portugal,
que determinou igualmente a extinção dos colégios religiosos e dos seminários, foram
criadas várias escolas para substituir as extintas, ficando, então, a Universidade de
Coimbra, encarregada de ministrar os estudos menores.
A reforma de João Franco, nos finais do século XIX, alterou o até então curso se-
cundário de 6 anos, constituído por um curso geral de 4 e um curso complementar
de 2, organizado em duas áreas: letras e ciências; por um curso de sete anos, organi-
zado de modo uniforme para todos os alunos, fazendo cessar a divisão pelas áreas de
letras e ciências.
Já, através do Decreto n.º 36 507/47, de 17 de Setembro, a duração do curso
complementar, então denominado 3º ciclo, é fixada em 2 anos e visava fundamental-
mente preparar os alunos para o acesso ao ensino superior.
Paralelamente, são reorganizados os cursos de técnicos, com vários níveis de for-
mação, o mais longo de seis anos (Decreto n.º 37 029/48, de 25 de Agosto).
A organização curricular, no essencial, manter-se-ia inalterada até à Reforma
Veiga Simão.
A Revolução do 25 de Abril veio, como já se referiu, interromper um processo
de reforma que estava a dar os seus primeiros passos. O ensino era então ministrado
nos Liceus, especialmente destinados a alunos que pretendiam prosseguir estudos
superiores, e nas Escolas Comerciais e Industriais, especialmente vocacionadas para
preparar os alunos para ingressar na vida activa no domínio do comércio e da indús-
tria, embora existisse a possibilidade de permeabilidade entre os dois tipos de ensino.
O espírito igualitário que atravessou a Revolução, fundado num objectivo social de
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igualdade de oportunidades, viria a ser responsável pela extinção do ensino técnico-
profissional, até então ministrado nas Escolas Comerciais e Industriais.
Na verdade, após o 25 de Abril, as duas principais alterações verificadas no
ensino secundário foram a unificação do curso geral, correspondente ao 3º ciclo
do ensino básico e a criação de cursos complementares de via única, eliminando-
se em 1978, com a entrada em vigor da nova estrutura curricular, (Despacho Nor-
mativo n.º 140-A/78, de 22 de Junho) a distinção entre o ensino liceal e o ensino
técnico-profissional, o que foi feito através da extinção deste último.
A evolução do ensino secundário pós-25 de Abril estará intrinsecamente li-
gada à problemática do acesso ao ensino superior. Após o 25 de Abril de 1974,
as nossas universidades atravessaram uma fase de grave convulsão interna, a que
nos referiremos mais à frente, resultante em boa medida da “compressão” a que
foram sujeitas nos finais dos anos sessenta e início dos anos 70, que ficou conhe-
cida como a crise académica.
Naquelas circunstâncias, foram suspensas as matrículas no ensino superior
para o ano lectivo 1974/1975, tendo sido criado o chamado “serviço cívico” obri-
gatório, para os alunos que pretendessem ingressar no ensino superior (Decreto-
Lei n.º 363/75, de 11 de Julho), substituído mais tarde pelo chamado “ano prope-
dêutico” (Decreto-Lei n.º 491/77, de 23 de Novembro, rectificado com alterações
pela Lei n.º 33/78, de 22 de Junho), cujo curriculum, constituído por cinco dis-
ciplinas, visava uma preparação adicional para o acesso ao ensino superior, fun-
cionando por via televisiva, em regime de ensino a distância, tendo o apoio de
centros instalados em setenta escolas secundárias.
O ano propedêutico veio a desaparecer com a criação do 12º ano de esco-
laridade, em 1980, (Decreto-Lei n.º 240/80, de 19 de Julho) destinado, numa
primeira fase, apenas aos alunos que pretendessem prosseguir o ensino superior.
Com a aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei n.º 46/86), o
curso do ensino secundário passa a ter a duração de 3 anos passando a ter cursos
predominantemente orientados para o prosseguimento de estudos (os cursos ge-
rais) e cursos predominantemente orientados para a vida activa (os cursos profis-
sionais e os cursos tecnológicos), embora sendo garantida a permeabilidade entre
os cursos orientados para o prosseguimento de estudos superiores e os orientados
para a vida activa. Com a entrada em vigor dos planos curriculares aprovados
pelo Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de Agosto, que regulamenta a Lei de Bases do
Sistema Educativo, o ensino secundário é alargado para três anos, sendo, que até
então, se terminava o ensino secundário com a conclusão do 11º ano.
No ano lectivo 2004/05 entraram em vigor novos planos curriculares para o
ensino secundário, no quadro de uma reforma, que tem como objectivos anun-
ciados adequar as formações de nível secundário às mudanças sociais e às neces-
sidades de desenvolvimento de Portugal.
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O ensino superior. A universidade portuguesa, como anteriormente se referiu,
designada inicialmente por Estudos Gerais, com os cursos de Artes, Direito Canóni-
co, Direito Civil, Medicina e Teologia, foi fundada em 1290, em Lisboa, por el-rei D.
Dinis, seguindo o movimento europeu da época que dava origem às fundações de
Bolonha, Paris, Oxford e Salamanca7. Existiriam já à época, e desde o século XII em
Coimbra e Alcobaça, duas importantes escolas religiosas. A sede da primeira Univer-
sidade portuguesa foi sendo sucessivamente mudada entre Lisboa, Coimbra e Évora,
tendo-se fixado definitivamente em Coimbra, em 1537, por decisão de D. João III8 .
Em Agosto de 17729 , com a Reforma Pombalina, a Universidade sofre uma profunda
renovação, através da criação de novas estruturas de administração e gestão, do acolhi-
mento de professores estrangeiros e da ida de muitos professores portugueses que vão
ensinar para o estrangeiro.
Em 1837, no reinado de D. Maria I, são criadas as Escolas Politécnicas de Lisboa e
Porto e as Escolas Médico-Cirúrgicas, também nas mesmas cidades.
A história da Universidade Portuguesa até à 1ª República confunde-se com a história
da universidade criada por D. Dinis, já que será a única universidade pública até 1911.
Em 19 de Abril de 1911, é publicado no Diário da República um decreto com força de
Lei, que aprova as bases da Constituição Universitária que, no seu artigo 2º, determina
que “As universidades do Estado são três: a antiga Universidade de Coimbra, a nova Uni-
versidade de Lisboa e a nova Universidade do Porto”. O mesmo diploma legal procede à
reforma da Universidade de Coimbra. O país passa então a dispor de três universidades.
Segundo Vítor Crespo10, em 1910/11, frequentavam a Universidade de Coimbra
(então a única) 1 246 alunos e em 1926, frequentavam as três universidades 4 117
alunos, a que deveriam juntar-se os alunos das Escolas Médico-Cirúrgicas, das Esco-
las Politécnicas e do Curso Superior de Letras, cujo número não se conhece.
Só em 1930 a rede de universidades portuguesas é alargada com a criação da Uni-
versidade Técnica de Lisboa (Decreto-Lei n.º 19 081, de 2 de Dezembro de 1930).
Através do Decreto-Lei n.º 44 530, de 21de Agosto de 1962, por iniciativa dos
ministros da Educação Nacional, Lopes de Almeida, e do Ultramar, Adriano Moreira,
“são criados nas províncias de Angola e de Moçambique os estudos gerais universitá-
rios, integrados na Universidade Portuguesa”, ficando sujeitos à dupla tutela dos dois
ministérios. Face à dinâmica e ao sucesso dos Estudos Gerais11 , pelo Decreto-Lei n.º
47 790, de 23 de Dezembro de 1968, passaram a designar-se Universidade de Luanda
e Universidade de Lourenço Marques, respectivamente, tendo produzido, primeiro,
naquelas então colónias portuguesas e, depois, após o 25 de Abril com a vinda dos
seus professores para Portugal, um enorme impacto.
7 Ferreira, José Gomes. (2002). A Universidade portuguesa: Perspectiva, situação e prospectiva, Cartagena das Índias: Alfa-
ACRO. Policopiado.
8 Carvalho, Rómulo de. (2001). Ibidem, p. 182.
9 Ibidem, p. 453.
10 Crespo, Vítor. (1993). Uma Universidade para os Anos 2000. Lisboa: Editorial Inquérito, 1993, p. 47.
11 Crespo, Vítor. (1993). Ibidem, p. 73.

‹ 23
Nos finais da década de 60 foi produzido, por decisão de 21 de Novembro de
1959 do então Ministro Leite Pinto, um importante documento em cooperação com
a OCDE de análise ao sistema educativo português, o Projecto Regional do Mediter-
râneo, Evolução da Estrutura Escolar Portuguesa, que conjuntamente com outros
estudos produzidos no Ministério da Educação terá encontrado eco no IV Plano de
Fomento12 e segundo o referido autor13 , estará na origem da “larga expansão de es-
tabelecimentos de ensino superior, acompanhada da sua diversificação” que se seguirá.
Em 1972, através do Decreto-Lei n.º 552/72, de 15 de Dezembro, é cria-
do o Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), por
reconversão do Instituto de Estudos Sociais, do Ministério das Corporações e
Previdência Social.
Em 1973 iremos assistir a um segundo momento significativo de expansão
da rede de ensino superior – o primeiro fora em 1911 com a criação das Uni-
versidades de Lisboa e Porto, passando Portugal de uma para três Universidades
– sob a égide de Veiga Simão.
O movimento de expansão da rede de ensino superior corresponde à concretiza-
ção possível, pelo ministro, da política relativa ao ensino superior que havia traçado e
fora aprovada pela Lei n.º 5/73, de 25 de Julho. Com efeito, dezassete dias depois da
publicação da Lei n.º 5/73, através do Decreto-Lei n.º 402/73, de 11 de Agosto, são
criadas a Universidade Nova de Lisboa, a Universidade de Aveiro, a Universidade do
Minho e o Instituto Universitário de Évora. São, ainda, criados o Instituto Politécnico
da Covilhã, o Instituto Politécnico de Faro, o Instituto Politécnico de Leiria, o Insti-
tuto Politécnico de Setúbal, o Instituto Politécnico de Tomar e o Instituto Politécnico
de Vila Real. São, também, criadas as Escolas Normais Superiores de Beja, Bragança,
Castelo Branco, Funchal, Guarda, Lisboa, Ponta Delgada, Portalegre e Viseu. As co-
missões instaladoras das novas instituições universitárias foram nomeadas em finais
de 1973 e nos dois primeiros meses de 2004, tendo os respectivos reitores tomado
posse, nas seguintes datas: Universidade Nova de Lisboa, em 10 de Setembro de
1973, Universidade de Aveiro, em 15 de Dezembro de 1973, Instituto Universitário
de Évora, em 4 de Janeiro de 1974 e Universidade do Minho, em 17 de Fevereiro
de 1974. O mesmo havendo sucedido em alguns Institutos Politécnicos e Escolas
Normais Superiores.
A expansão da rede pública de estabelecimentos de ensino superior, iniciada nos
princípios da década de 70 conheceu um forte incremento até 2000.
Em 199414 existiam em Portugal 13 universidades públicas, com 44 Faculdades
que não correspondiam à totalidade das suas unidades orgânicas, (seis delas orga-
nizaram-se em departamentos, a Universidade Aberta (vocacionada para o ensino a
distância) e um Instituto Universitário não integrado. Existiam, ainda 14 institutos
12 Imprensa Nacional-Casa da Moeda. (1973). Projecto do IV Plano de Fomento. Lisboa: INCM.
13 Crespo, Vítor. (1993). Ibidem, p. 85.
14 Fonte: Direcção Geral do Ensino Superior. (1994). Guia de Acesso ao Ensino Superior Público. Lisboa: DGES.
24 ›
politécnicos com 47 escolas superiores neles integradas, a Universidade do Algarve
com seis escolas de ensino politécnico, e 31 escolas não integradas (das quais 22 eram
escolas superiores de enfermagem).
Na mesma data, no sector privado15, estavam em funcionamento 8 universidades
(pertencentes a 5 entidades diferentes) e 97 outros estabelecimentos.
Em 2001-200216, a rede pública de ensino superior alargara-se para 14 universi-
dades, às quais correspondem 112 unidades funcionais, com designação de faculda-
de instituto ou escola, 1 instituto universitário não integrado, 4 escolas militares ou
policiais e 4 pólos universitários; em relação ao ensino politécnico, para 15 institutos
politécnicos, 78 escolas superiores, 11 escolas superiores de enfermagem não integra-
das, 10 escolas superiores integradas em universidades e 3 pólos politécnicos.
No ensino privado 16 universidades, 16 unidades funcionais de ensino, 2 institu-
tos politécnicos, 34 escolas universitárias não integradas, 2 escolas superiores politéc-
nicas integradas em universidades e 61 unidades funcionais. Assim, entre 1994/1995
o número de estabelecimentos públicos de ensino superior subiu de 132 para 208 e
o privado de 104 para 138, representando no conjunto do ensino superior público
e privado um aumento de 236 para 346. Ou seja, entre o ano lectivo 1994/1995, o
número de estabelecimentos de ensino superior públicos cresceu 57,5 %, o privado
e cooperativo, 32,6 % e no seu conjunto 46,6 %. No período de 2002 a 2005 apenas
foi criada uma nova escola politécnica (Escola Superior de Design, Gestão e Tecnolo-
gia de Produção Aveiro - Norte, na Universidade de Aveiro). A partir de então não foi
permitido o alargamento da rede pública de instituições de ensino superior.
Comparando a rede de estabelecimentos de ensino superior portuguesa com um
grupo de países europeus com população idêntica (8 a 10,55 milhões de habitantes,
no qual se inclui Portugal, bem como a Áustria, a Bélgica, a Grécia, a Hungria, a Re-
pública Checa e a Suécia) verificamos que o número de instituições por milhão de
habitantes, excluindo Portugal, varia entre o mínimo de 3,41, na Grécia, e o máximo
8,98, na Bélgica. Portugal apresenta 17,45 instituições por milhão de habitantes.
O Sistema Educativo Português na Constituição da República Portuguesa.
Vejamos o que a Constituição da República Portuguesa (CRP) preconiza nos domí-
nios da educação. Esta garante a todos os cidadãos o direito à educação e à cultura
(artigo 73º, n.º 1), estabelecendo que incumbe ao Estado “promover a democrati-
zação da educação e as demais condições para que a educação, realizada através da
escola e de outros meios formativos, contribua para a igualdade de oportunidades, a
superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da
personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de
responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida
colectiva” (artigo 73º, n.º 2).
15 Fonte: Direcção Geral do Ensino Superior. (1994). Guia de Acesso ao Ensino Superior Privado e Cooperativo. Lisboa:
DGES.
16 Fonte: DGES, 2005.

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No artigo 74º, n.º1, proclama-se que “todos têm direito ao ensino com garantia do
direito à igualdade de oportunidade de acesso e êxito escolar”.
Uma pequena reflexão prévia sobre as disposições constitucionais que referimos.
Em primeiro lugar, o Estado tem a obrigação constitucional de assegurar a todos
os cidadãos o direito de acesso à educação, quer através da escola, quer de outros
meios formativos adequados para o efeito, garantindo assim, o acesso universal dos
cidadãos à educação.
Em segundo lugar, de acordo com o n.º 2 do artigo 73º, é obrigação do Estado a
promoção da democratização da educação (como garantia do direito de todos à edu-
cação – n.º 1, 1ª parte), para que a educação contribua para: a igualdade de oportuni-
dades dos cidadãos; a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais; o
desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mú-
tua de solidariedade e de responsabilidade; o progresso social e para a participação
democrática na vida colectiva.
Ou seja, através da educação, que cabe à Escola, mas também a outros meios
formativos adequados, o Estado visa criar condições para a realização integral do
cidadão, individualmente considerado e visa, simultaneamente, criar condições para
a sua plena integração e participação na vida colectiva.
A concretização do princípio da democratização da educação envolve necessaria-
mente uma dimensão de desconcentração e de descentralização territorial, levando a
todo o território os serviços educativos (artigo 267º, nºs 1 e 2 da CRP); a democratiza-
ção da educação realiza-se através da implementação dos princípios da desconcentra-
ção e da descentralização17. A descentralização de competências entre os vários níveis
da administração da educação – central, regional e local – envolvendo quatro princípios
fundamentais: autonomização institucional da função administrativa, descentralização
funcional, descentralização territorial e desconcentração territorial18, ligando-se ainda,
segundo Costa19, necessariamente à autonomia de que será óbvio pressuposto.
O n.º 1 do artigo 74º da CRP determina que “todos têm direito ao ensino com
garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar”. O direito
ao ensino significa constitucionalmente, em primeiro lugar, um direito de acesso à
escola20, comportando este direito dois direitos de diferente natureza, a liberdade de
ingressar nas escolas, não podendo o Estado por restringir ou colocar obstáculos no
acesso à escola pública, e, um direito à criação de escolas públicas em número su-
ficiente para garantir a realização do direito de acesso à escola Pública. O direito ao
ensino, significa, em segundo lugar, o direito à igualdade de oportunidades de acesso
17 Costa, Jorge Adelino. (1991). Gestão Escolar. Participação. Autonomia. Projecto Educativo. Lisboa: Texto Editora, p. 42.
18 Fernandes, A. Sousa. (1988). A distribuição de competências entre a administração central, regional, local e institucional
da educação escolar segundo a Lei de Bases do Sistema Educativo. Em: Comissão da Reforma do Sistema Educativo. Lisboa:
GEP, Ministério da Educação, pp. 107-113.
19 Costa, Jorge Adelino. (1991). Op. Cit., p. 43.
20 Canotilho, J. J. Gomes e Moreira, Vital. (2007). CRP Constituição da República Portuguesa, anotada, Coimbra: Coimbra
Editora, p. 896.

26 ›
e êxito escolar, que há-de realizar-se quanto à igualdade de oportunidades de acesso
através da criação de condições efectivas, que permitam a possibilidade a cada aluno,
individualmente considerado, de frequentar a escola, e, quanto à igualdade de opor-
tunidades de êxito escolar que passa pela generalização do pré-escolar e por acções no
plano dos conteúdos do ensino e dos métodos de avaliação e do apoio escolar. Trata-
se, no domínio do ensino, de dar corpo ao princípio da democratização do ensino
(artigo 73º, n.º2).
O n.º 2 do artigo 74º da CRP comete ao Estado um conjunto de obrigações no âm-
bito da realização da política de ensino: assegurar o ensino básico universal e gratuito;
criar um sistema público e desenvolver o próprio Estado o sistema geral de educação
pré-escolar – deve notar-se que a CRP diz expressamente “o sistema” e não um sistema;
garantir a educação permanente; eliminar o analfabetismo; garantir a todos os cidadãos,
de acordo com as suas capacidades, o acesso aos graus mais elevados do ensino, da
investigação científica e da criação artística; estabelecer progressivamente a gratuitidade
de todos os graus de ensino; inserir as escolas nas comunidades que servem e estabele-
cer a interligação do ensino e das actividades económicas, sociais e culturais.
A mesma disposição constitucional comete, ainda, ao Estado a obrigação de: pro-
mover e apoiar o acesso ao ensino dos cidadãos portadores de deficiência; apoiar o
ensino especial, sempre que necessário; proteger e valorizar a língua gestual portu-
guesa; assegurar aos filhos dos emigrantes o ensino da língua portuguesa e o acesso
à cultura portuguesa; assegurar aos filhos dos emigrantes apoio adequado para efec-
tivação do direito ao ensino.
Tendo em vista o cumprimento das obrigações constitucionais cometidas ao Es-
tado, a Constituição determina que o Estado “criará uma rede de estabelecimentos
públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população” (artigo 75º, n.º 1).
Ou seja, o direito ao ensino, com garantia do direito à igualdade de oportunidades de
acesso e êxito escolar, deve ser assegurado: por uma rede de estabelecimentos públi-
cos de ensino; por uma rede que cubra as necessidades da população.
O preceito constitucional não pode deixar de ser entendido como obrigando o
Estado em relação a todos os níveis de ensino (desde o pré-escolar ao superior), a
criar uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que seja ela própria bastante
para dar resposta às necessidades de formação de toda a população.
Tal preceito não pode deixar de entender-se como significando que a rede pública
de estabelecimentos de ensino tem que ser capaz de assegurar uma cobertura total de
tais necessidades, situando-se o ensino particular e cooperativo – que nos termos do
n.º 2 do referido artigo 75º, o Estado reconhece e fiscaliza – na esfera do direito dos
cidadãos à liberdade de escolher o estabelecimento de ensino em que desejem apren-
der, seja ele público ou privado. Ou seja, o Estado deve criar e manter uma rede de es-
tabelecimentos públicos de ensino capaz de assegurar a democratização da educação
no domínio da educação pré-escolar, básica, secundária e superior. Essa rede deve,
‹ 27
ainda, ser capaz de assegurar a educação permanente dos cidadãos e a educação de
todos os cidadãos, que em razão de deficiência física ou de qualquer outra situação,
vejam dificultado acesso ao ensino – alíneas g) a j) do n.º 2 do artigo 74º.
A dimensão territorial da rede que a CRP obriga o Estado a criar, não é limitada pelas
fronteiras nacionais, mas pelas fronteiras que resultam da diáspora portuguesa, como
não pode deixar de se concluir pela obrigação cometida ao Estado de assegurar aos
filhos dos emigrantes o ensino da língua portuguesa e o acesso à cultura portuguesa,
obrigação que igualmente deve ser satisfeita através do sistema nacional de educação.
Do artigo 74º da CRP decorrem, em síntese, no que se refere à realização do di-
reito dos cidadãos ao ensino, os seguintes aspectos fundamentais que devem estar
presentes na construção e desenvolvimento do sistema educativo português: todos os
cidadãos têm direito à educação; o direito constitucional à educação abrange, nome-
adamente, a educação pré-escolar, básica, secundária, superior, a formação ao longo
da vida, a educação especial, a língua gestual portuguesa e a aprendizagem da língua
e cultura portuguesas pelos filhos dos emigrantes; o ensino básico é universal, obriga-
tório e gratuito; em relação aos demais níveis de ensino deve estabelecer-se progressi-
vamente a sua gratuitidade; a educação dos cidadãos deve ser assegurada através de
um sistema educativo assente numa rede de estabelecimentos públicos em todos os
níveis de ensino; a rede de estabelecimentos públicos de ensino deve ser adequada
de modo a assegurar a cobertura das necessidades de formação de toda a população.
A dimensão territorial da rede de estabelecimentos públicos não se mede pelo
território nacional mas pelos cidadãos que são destinatários dos serviços públicos que
essa rede deve constitucionalmente assegurar.
O sistema de ensino, no sentido específico em que é referido nos artigos 46º, n.º
1 e 164º, alínea i) da Constituição da República, abrange todas as escolas de todos os
graus, públicas, particulares e cooperativas que se integram no âmbito definido pelos
artigos 74º a 77º, servindo as finalidades integradoras de garantia da liberdade e do
direito à educação21. Neste sentido, e seguindo a classificação de Cabanas22, Portugal
tem, no domínio da sua política educativa e na perspectiva da liberdade de ensino,
um sistema de ensino misto, no sentido em que o sistema de ensino é constituído por
uma rede pública e por uma rede privada, afastando-se assim quer do monopólio
estatal, quer do liberalismo total.
Insere-se no princípio do direito ao ensino o direito de acesso ao ensino superior
consagrado no artigo 76º n.º1 da CRP, reportando-se aqui ao mais alto nível de edu-
cação – a educação superior. O direito de acesso ao ensino superior deve ser visto,
ainda, como uma concretização da igualdade de oportunidades.
O número 2 do artigo 76 consagra a autonomia da universidade. Nos termos
deste preceito constitucional, as universidades gozam de autonomia estatutária,
21 Miranda, Jorge e Medeiros, Rui. (2005). Constituição Portuguesa Anotada. Coimbra: Coimbra Editora, pp.733-741.
22 Cabanas, J. M. Quintana. (1989). Sociologia de la Educación. Madrid: Ed. Dykinson, p. 314.

28 ›
cientifica, pedagógica, administrativa e financeira, sem prejuízo, diz a Constituição,
de adequada avaliação da qualidade de ensino. O sentido e alcance da autonomia
universitária e o alargamento desta e do seu conceito às demais instituições de en-
sino superior público, nomeadamente aos institutos politécnicos, será objecto de
estudo em capítulo próprio.
O direito de participação democrática no ensino vem regulado no artigo 77º, n.º
1 da CRP. Este preceito consagra constitucionalmente o direito de participação dos
professores e alunos na gestão das escolas, e o direito à participação das associações
de professores, de alunos, de pais, das comunidades e das instituições de carácter
científico na definição da política de ensino, subordinando essa participação, em am-
bos os casos aos termos que vierem a ser fixados por lei de execução. A subordinação
da participação dos professores e alunos na gestão democrática da escola aos termos
que a lei vier a fixar, não pode deixar de significar que a norma constitucional não
é directamente aplicável, carecendo de ser previamente regulamentada. Por outro
lado, o “direito de participar” na gestão democrática das escolas, não pode deixar de
ser entendido como constitucionalmente não lhes cabendo em exclusivo a gestão23.
Participam, o que significa que na gestão da escola intervêm outras entidades, além
das referidas no número 2 do referido artigo 77º, nomeadamente o Estado, através
do Governo.
O direito de participação dos alunos deve, ainda, ter em conta a sua idade. Não
faria sentido, como referem os autores que vimos citando, que nos jardins-de-infância
e nas escolas do 1º e 2º Ciclos do ensino básico, pelo menos, os alunos participassem
directamente na gestão, já fazendo sentido que participassem em sua representação
os pais; por outro lado, nas escolas universitárias, o direito de participação, conjuga-
do com o grau de autonomia de que gozam (artigo 76º, n.º 2), exige a participação
directa dos alunos.
Como referem Miranda e Medeiros, olhando especialmente para o direito de
participação de professores e alunos na gestão das escolas, “tal direito é simulta-
neamente um corolário da liberdade de aprender e de ensinar” (artigo 43º, n.º 1),
constitui um exercício de liberdade24 e é um veículo de realização do direito à edu-
cação, pois a educação deve «contribuir para a participação democrática na vida
colectiva» (artigo 73º, n.º 2) ”.
Deve assinalar-se que, enquanto direito constitucional, o direito de participação
na gestão não é extensível aos funcionários não docentes das escolas, sem prejuízo da
lei geral o poder vir a prever. Como referem, ainda, Miranda e Medeiros25 o direito
de participação das associações de professores, de alunos, de pais, das comunidades
e das instituições de carácter científico na definição da política de ensino é “menos
23 Miranda, Jorge e Medeiros, Rui. (2005). Op. cit.
24 Machado, J. Batista. (1982). Participação e Descentralização – Democratização e Neutralidade na Constituição de 76.
Coimbra: Livraria Almedina, p. 63.
25 Miranda, Jorge e Medeiros, Rui (2005). Op. cit.

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intenso” que o direito de participação dos professores e dos alunos na gestão das
escolas, já que a Constituição estabelece que a lei regulará as “formas de participa-
ção”, não poderá, porém, ser de tal forma restringido que perca o significado da sua
consagração constitucional.
As afirmações anteriormente expressas realçam o que será o sistema educativo
português, tendo em conta as obrigações constitucionais do Estado em matéria da
realização do direito dos cidadãos à educação e o instrumento através do qual a deve
assegurar (uma rede de estabelecimentos públicos de ensino), que analisaremos neste
capítulo, ainda que sucintamente. Fá-lo-emos nos termos em que a CRP (artigo 73º,
n.º 2) o define, ou seja, a escola e outros meios formativos, o que só pode significar
que o sistema educativo português abrange a educação pré-escolar, a educação esco-
lar e a educação extra-escolar.
O sistema educativo português em três décadas de regime democrático. Os
dados anteriormente referidos, confirmam como a política educativa portuguesa tem
sofrido percalços sucessivos ao sabor das alternâncias partidárias no poder.
No Relatório da OCDE, sobre “Exame das Políticas Nacionais de Educação”26, re-
flectindo esta tendência portuguesa nas vicissitudes da evolução da política educativa
portuguesa, no período de 1794 a 1984, escrevia: a “última década caracterizou-se,
em Portugal, por muitas iniciativas educativas incompletas. É como se arquitectos com
concepções radicalmente diferentes tivessem sido nomeados, em sucessão rápida, para
um mesmo projecto. Cada arquitecto, antes de ser substituído, teria tido o tempo exac-
tamente suficiente para apresentar um projecto de grande envergadura (e, por vezes,
para derrubar, ou pelo menos, minar, qualquer estrutura já existente que lhe fizesse
obstáculo). Os projectos assim concebidos escapam ao peso da responsabilidade seja de
quem for (…). Para o sistema educativo português, o resultado tem sido uma dispari-
dade notória entre as intenções e a sua realização, assim como a acumulação de graves
problemas de ordem prática (…)”.
Assim continuou a suceder desde então. Iniciam-se “reformas” que o Governo
subsequente interrompe sem avaliação, lançando a sua “reforma” que virá a ser in-
terrompida por uma nova “reforma”, igualmente interrompida sem avaliação pelo
Governo que se lhe seguir e, assim, sucessivamente. Veio a suceder com a Lei n.º
26/2000, aprovada na Assembleia da República pelo Partido Socialista, que foi revo-
gada pela Lei n.º 1/2003, aprovada na Assembleia pela maioria PSD/PP. Por sua vez
revogada pela Lei n.º 49/2005, aprovada agora no Parlamento, pela maioria socialista.
Esta prática pode, ainda, ser ilustrada com o XV Governo Constitucional, de Du-
rão Barroso, que logo anunciou no seu Programa a intenção de suspender e sem pre-
via avaliação a “reforma” então em curso promovida pelo anterior Governo.
A política educativa portuguesa não se libertou, ainda, como vimos, dessa ca-
racterística que a OCDE de forma exemplar denunciou. A estabilidade tem, no es-
26 OCDE. (1984). Exame da política educativa de Portugal pela OCDE. Lisboa: GEP/ME, p. 26.

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sencial, coincidido com os períodos de Governos que vão para além da duração de
uma legislatura, como sucedeu com os Governos de Cavaco Silva e de António Gu-
terres, períodos em que é possível assinalar progressos notórios na consolidação e
desenvolvimento do sistema educativo, como de algum modo se conclui pela análise
que fizemos anteriormente. Não deixa, aliás, de ser curioso assinalar que os grandes
movimentos de expansão do sistema público de ensino superior precederam ou se
sucederam imediatamente a períodos eleitorais. Foi assim em 1979, com as eleições
intercalares para a Assembleia da Republica, em 1985 e 1986, com as eleições legisla-
tivas e autárquicas, em 1994 e mais tarde 1999, de novo com as eleições legislativas.
Esta situação pode, também, ajudar a explicar, por exemplo, a razão porque a
expansão da rede de estabelecimentos de ensino superior prosseguiu mesmo quando
já não era possível ignorar a redução, a muito curto prazo, do número de alunos.
Estrutura geral do sistema educativo na Lei n.º 46/86, de 14 de Outubro, com
as alterações introduzidas em 1997, pela Lei n.º 115/97, de 19 de Setembro e
em 2005, pela Lei n.º 49/2005. O sistema público. Como vimos, o sistema educa-
tivo em Portugal em geral está marcado desde a década de 70 por três documentos
legislativos fundamentais: a Lei n.º 5/73, de 25 de Julho, a Constituição da República
Portuguesa, e a Lei n.º 46/86, de 14 de Outubro, com as alterações que lhe foram
introduzidas pela Lei n.º 115/97, de 19 de Setembro e, mais recentemente, pela Lei
n.º 49/2005, de 30 de Agosto.
Ao debruçarmo-nos sobre o sistema educativo português e alguns dos aspectos
mais significativos da sua evolução nos últimos 30 anos, não podemos deixar de
ter presente alguns dos princípios fundamentais que o enformam, consequência do
regime democrático instaurado após o 25 de Abril e consagrados pelos normativos
constitucionais a que se subordinou a LBSE e demais legislação complementar.
Logo a partir de 1980 foram várias as iniciativas e tentativas dos Governos para
aprovar uma Lei de Bases da Educação que sucedesse à Lei n.º 5/73 de Veiga Simão27,
nunca regulamentada, mas que de algum modo serviu de referência à política edu-
cativa portuguesa nos anos subsequentes à revolução. Tal resultava do imperativo
constitucional mas também, como refere Campos28 da necessidade de clarificar a
organização do sistema de ensino português.
A LBSE, que estabeleceu o quadro geral do sistema educativo (artigo 1º, n.º 1)
obedece a uma sistemática rigorosa, enunciando: no Capítulo I, o seu âmbito de apli-
cação e os princípios a que obedece o sistema educativo; o Capítulo II, dedicado à
organização do sistema; o Capítulo III, aos apoios e complementos educativos; o Ca-
pítulo IV, aos recursos humanos; o Capítulo V, aos recursos materiais; o Capítulo VI,
à administração do sistema educativo, o Capítulo VII ao desenvolvimento e avaliação
do sistema educativo; o Capítulo VIII, ao ensino particular e cooperativo.
27 Matias, José. (2006). Lei de Bases do Sistema Educativo 1986-2006. Lisboa: CNE. Policopiado.
28 Campos, Bártolo Paiva. (1987). Prefácio a Lei de Bases do Sistema educativo – Apresentação e Comentários. Porto: Edições
ASA, p.6

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Façamos uma breve análise do texto legal, dando particular importância aos temas
estruturantes que foram determinantes para a clara definição da reforma educativa
que impulsionaram, como lhes chamou Pires29, referindo-se à estrutura geral do sis-
tema educativo, à estrutura e definição do ensino básico, à organização do ensino
superior, à formação de professores para o ensino básico, à administração do sistema
escolar e ao ensino particular e cooperativo.
No que se reporta aos princípios, eles vêm enunciados no artigo 2º, sob a epígrafe
“Princípios gerais”, e no artigo 3º, sob a epígrafe “Princípios organizativos”. Eles resul-
tam, como já referimos, da própria Constituição da República e poderemos referi-los
sucintamente: a formação integral dos cidadãos; a descentralização e desconcentração
do sistema educativo; o direito de participação; a correcção de assimetrias; a criação
de condições para uma segunda oportunidade educativa; a unidade do sistema (uni-
dade territorial, vertical e horizontal); a organização sequencial progressiva; ou seja,
cada nível de ensino é terminal; a liberdade de ensinar e aprender; a democratização
do acesso ao ensino; sucesso e d ocupação profissional; a coabitação e empregabilida-
de dos saberes e a inserção e integração comunitária.
Como metas fundamentais no horizonte do ano 2000, tendo em vista o desenvol-
vimento da LBSE a médio prazo, Campos30 identificou as seguintes: escolarização de
9 anos, gratuita e universalmente conseguida precedida de oportunidades intencio-
nais de educação de infância; educação tecnológica de base e formação de todos os
jovens para a vida activa; generalização de segundas oportunidades educativas (atra-
vés do ensino recorrente, ensino a distância, formação profissional, ou de quaisquer
outros meios aptos para o efeito); formação de especialistas e investigadores de alto
nível e elevação dos níveis educativos de toda a população.
Num balanço dos efeitos positivos e negativos da aplicação da LBSE, refere Ma-
tias31, como positivos: a clareza do quadro normativo; a sua estabilidade e coerên-
cia organizacional; a escolarização progressiva, tendencialmente universal do ensino
básico, triplicando no ensino secundário e duplicando no superior; o aumento dos
níveis de qualificação dos professores; uma redução significativa do abandono escolar
no ensino básico e uma grande expansão dos equipamentos educativos. Persiste, ne-
gativamente, a manutenção do atraso quantitativo e qualitativo dos índices de quali-
ficação dos portugueses em relação à média da EU-15 e mantêm-se níveis igualmente
preocupantes de insucesso escolar, a que se juntam níveis igualmente elevados de
abandono escolar da população entre os 18 e os 24 anos. O abandono escolar na
população com idade entre os 18 e os 24 anos era em 2006 em Portugal de 40%, se-
gundo dados do EUROSTAT 2006, quando a média da União Europeia era de 17,0%.
Persiste, também, a desigualdade de oportunidades na medida em que o factor
económico e social continua a ser condicionante do sucesso; a “licealização” do cur-
29 Pires, Eurico Lemos. (1987). Lei de Bases do Sistema Educativo – Apresentação e comentários. Porto, ASA.
30 Campos, Bártolo Paiva. (1987). Op. Cit. p. 10 e segs.
31 Matias, José. (2006). Op. Cit. p. 10 e segs.

32 ›
rículo, em prejuízo da formação de componente técnica; a escassa valorização social
e empresarial dos saberes escolares, e a centralização, burocracia e ineficácia da acção
governativa/educativa: a falência dos modos de governação das escolas.
Será importante dedicarmos algumas linhas à problemática da governação das
escolas, já que na sua autonomia residia a confiança de soluções criativas e projectos
próprios que seriam fundamentais para a sua inserção no desenvolvimento das re-
giões em que estavam inseridas e do País (artigo 45º da LBSE). O balanço, porém, é
profundamente crítico e corresponde à continuação de um percurso atribulado que
vem desde os primórdios da revolução de Abril.
A este respeito, Licínio C. Lima32, num balanço sobre a administração da educação
e a autonomia das escolas no pós-25 de Abril, identifica um primeiro período entre
1974 e 1976 (I Governo Constitucional), que denomina de autogestionário, e que
caracteriza por uma autonomia de facto e não de direito, “através de processos de
mobilização e de activismo que afrontaram os poderes centrais”. Este movimento com
origem no afastamento de reitores e directores das escolas, não foi estancado pelo
Decreto-Lei n.º 221/74, de 27 de Maio, que reconheceu os órgãos escolares eleitos
ou a eleger, nem pelo Decreto-lei n.º 735-A/74, de 21 de Dezembro, que tenta travar
as práticas autonómicas e conduzir à normalização do governo das escolas através
de um modelo de gestão único, de três órgãos de gestão eleitos (conselho directivo,
conselho pedagógico e conselho administrativo).
Este processo autogestionário conduziu à situação que o I Governo Constitucional
no seu Programa chamou de “caos total”, contra o qual se propunha reagir.
Em 1976, o Governo procurou pôr termo a esta fase autogestionária através da pu-
blicação do Decreto-Lei n.º 769-A/76, de 23 de Outubro. Permitiu este diploma legal
institucionalizar nas Escolas o princípio da gestão democrática, através da eleição dos seus
órgãos e da criação de um sistema centralizado de administração e governo das escolas33.
Como já foi assinalado, em 1986, Cavaco Silva nomeia a Comissão de Reforma
do Sistema Educativo (CRSE). Esta Comissão, na Proposta Global de Reforma34, que
apresenta em 1988, admitindo a falência do “modelo centralizador” e fundada no
artigo 44º da LBSE, propôs ao Governo que consagrasse na lei uma ampla autonomia
das escolas, nos domínios administrativo e financeiro e da organização e funciona-
mento pedagógico.
O Governo não viria, porém, a seguir no essencial as propostas de descentraliza-
ção defendidas pela Comissão de Reforma, embora o Decreto-Lei n.º 43/89, de 3 de
Fevereiro, (que estabelece o regime jurídico da autonomia da escola), tivesse anuncia-
do como procurando inverter a centralização tradicional da educação através de uma
transferência dos poderes de decisão para os planos regional e local, mantendo-se
32 Lima, Licínio C. (2006). A Educação em Portugal (1986-2006). Lisboa: Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação.
Policopiado.
33 Formosinho, João. (1988). Princípios para organização e administração da escola portuguesa. Em: CRSE, A gestão do
sistema escolar. Lisboa: Ministério da Educação. pp. 53-102.
34 CRSE (1988), Lisboa: Ministério da Educação.

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em vigor a legislação de 1987 (Decreto-Lei n.º 3/87, de 3 de Janeiro), que limitava
fortemente a capacidade de decisão por parte das escolas.
A autonomia das escolas virá a conhecer novo impulso, mais de formulação do
que de práticas, com a publicação do Decreto-Lei n.º 115-A/98, de 4 de Maio, alte-
rado pela Lei n.º 24/99, de 22 de Abril, que aprova o regime de autonomia, adminis-
tração e gestão dos estabelecimentos da educação pré-escolar e dos ensinos básicos e
secundário e que, finalmente, procura romper com o modelo de 1976. No artigo 3º,
n.º 1 do Regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 115-A/89, a autonomia das escolas é
definida “como o poder reconhecido à escola pela administração educativa de tomar
decisões nos domínios estratégico, pedagógico, administrativo, financeiro e organiza-
cional, no quadro do seu projecto educativo e em função das competências e dos meios
que lhe estão consignados”. O “poder reconhecido à escola pela administração edu-
cativa (…) em função dos meios que lhe estão consignados”, meios dependentes das
novas prerrogativas concedidas às escolas que venham a assinar contratos de autono-
mia de primeira fase e, após avaliação, a celebrar contratos de segunda fase, com um
aprofundamento das competências e alargamento dos meios que tinham sido postos
à sua disposição na fase anterior (Decreto-lei n.º 43/89, de 3 de Fevereiro, aplicável
até então apenas às escolas oficiais dos 2º e 3º ciclos do ensino básico e às escolas
secundárias, nos termos do artigo 1º). Infelizmente, até à data, a autonomia continua
por cumprir e não foi ainda celebrado nenhum contrato, pese embora o facto de o
actual Governo defender a transferência de poderes para as escolas e decorrerem ne-
gociações nesse sentido há já dois anos.
Segundo Licínio C. Lima35 (2006, p. 51), a acção do XVII Governo não produ-
ziu até ao momento qualquer ruptura significativa em relação ao ensino pré-escolar,
básico e secundário, prosseguindo no essencial a orientação “racionalista e moder-
nizadora”, em particular no que se refere à extinção de escolas do ensino básico e à
não assinatura de contratos de autonomia, assinalando o reforço pontual do apoio à
construção e adaptação de instalações do ensino básico e da educação de infância,
tendo em vista responder às consequências do encerramento de escolas (despacho
Conjunto n.º 200/2005, de 7 de Março).
O movimento de reorganização da rede escolar, sobretudo do 1.º ciclo do ensino
básico, visa criar uma nova racionalidade na distribuição das escolas pelo país e um
melhor aproveitamento dos recursos docentes e materiais, o que na lógica da cons-
tituição de agrupamentos, adiante referenciados de forma mais detalhada, origina
economias de escala na gestão dos estabelecimentos de ensino e permite romper o
espartilho em que o sistema tem funcionado até agora, visto a competência em maté-
ria de edifícios e equipamentos no 1.º ciclo ser das autarquias e nos restantes ciclos,
caber ao Ministério da Educação. Doravante o que se pretende é uma melhor gestão
do sistema e não qual o agente a quem compete exercê-la, autarquias ou Ministério.
35 Lima, Licínio C. (2006). Op. Cit., p. 51.

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Já no que se reporta ao ensino superior, uma profunda reforma legislativa do sis-
tema de ensino superior público e privado. O primeiro passo foi dado com a revisão
da LBSE, pela Lei n.º 49/05, de 30 de Agosto, que procedeu e está a permitir proceder
a profundas alterações ao regime jurídico do ensino superior.
No ano lectivo 2006/2007, encontravam-se matriculados no ensino não superior
1.669.470 alunos, dos quais 247.244 na educação pré-escolar, 1.084.800 no ensino
básico, 337.446 no ensino secundário.
A educação pré-escolar. O sistema público de educação pré-escolar, previsto na
Constituição da República Portuguesa, foi criado pela Lei n.º 5/77, de 1 de Fevereiro,
que veio revogar expressamente o n.º 2 da base IV e a base V da Lei n.º 5/73, de 25
de Julho, que aprovou a chamada reforma Veiga Simão de 1973, que reintegrara a
educação de infância no sistema educativo, depois de ter sido extinta como ensino
oficial pelo Estado Novo.
Na mesma data, a Lei n.º 6/79, de 1 de Fevereiro, cria as escolas normais de edu-
cadores de infância destinadas a formar os educadores de infância necessários à im-
plementação e desenvolvimento do sistema público de educação pré-escolar, acabado
de criar, entretanto extintas quando em cada distrito entraram em funcionamento as
Escolas Superiores de Educação (Decreto-Lei n.º 101/86, de 17 de Maio).
Porém, como refere Medina Carreira36 se é verdade que o zelo legislativo de que a
educação pré-escolar foi alvo produziu alguns efeitos imediatos – em 1975/76 havia
3 956 crianças no ensino pré-escolar oficial e em 1980/81, 69 016 – depressa se esgo-
taram pois que em 1985/86 havia decrescido para 54 320, recuperando em 1990/91
para os níveis da década anterior, com 69 541 crianças.
O desenvolvimento da educação pré-escolar foi assumido em 1995 como uma
prioridade pelo XIII Governo Constitucional. Em resultado da situação a nível na-
cional e para a inverter, o Ministério da Educação elaborou, em 1995, um Plano de
Expansão da Rede de Estabelecimentos de Educação Pré-Escolar37, assistindo-se des-
de então ao alargamento da rede do sistema público de educação pré-escolar e a um
crescimento constante do número de crianças no sistema.
Um trabalho desenvolvido por Vilarinho38 analisa o papel do Estado na defini-
ção e desenvolvimento da Educação Pré-Escolar, tendo por base o discurso oficial
produzido nos últimos vinte anos (1977/1997), e identifica três períodos: Criação,
Normalização e Expansão (1977-1986) / Retracção (1986-1995) / Revitalização?
(1995-1997). Aquele trabalho permitiu-lhe concluir que, nas décadas de 80 e 90,
o Estado tem reservado para si os papéis de “mobilizador” de diversas iniciativas da
Sociedade Civil e de regulador, desvalorizando o papel de “promotor” directo de jar-
dins-de-infância públicos. Para Vilarinho, a publicação da Lei-Quadro da Educação
36 Carreira, Medina. (1996). O Estado e a Educação. Lisboa: Edições Jornal Público.
37 Ministério da Educação. (2000). A Educação Pré-Escolar e os Cuidados de Infância em Portugal, Relatório Preparatório
para a OCDE. Lisboa: Ministério da Educação.
38 Vilarinho, Mª Emília. (2000). Políticas de Educação Pré-Escolar em Portugal (1977/1997). Lisboa: Instituto de Inovação
Educacional.

‹ 35
Pré-Escolar Lei n.º5/97 de 10 de Fevereiro), reforçou essa perspectiva ao redefinir o
conceito de rede de educação pré-escolar e ao integrar nele os jardins-de-infância das
redes pública e privada, numa relação de complementaridade entre si e ao introduzir
as condições para a intervenção estatal nos estabelecimentos pré-escolares, nomea-
damente através da assunção da tutela pedagógica pelo Ministério da Educação e de
novos mecanismos de avaliação e supervisão.
É no período que Vilarinho denominou de Revitalização? (1995-1997), no
início de 1997, que é aprovada a Lei Quadro da Educação Pré-Escolar, Lei n.º
5/97, de 10 de Fevereiro. De acordo com a Lei a “educação pré-escolar é a pri-
meira etapa da educação básica no processo de educação ao longo da vida, sendo
complementar da família” (artigo 2º) e “destina-se às crianças com idades compre-
endidas entre os três anos e a idade de ingresso no ensino básico” (artigo 3º), sendo
“ministrada em estabelecimentos de educação pré-escolar” (artigo 3º, in fine) e é
gratuita (artigo 16º, n.º 1).
A educação pré-escolar tem por objectivo estimular as capacidades da criança;
favorecer a sua formação, o desenvolvimento equilibrado de todas as suas potencia-
lidades, a integração e participação da criança no meio natural através da sua obser-
vação e compreensão; contribuir para a sua estabilidade e segurança afectivas; desen-
volver a formação moral da criança e o sentido da responsabilidade, associado ao da
liberdade, o desenvolvimento da sua sociabilidade através da integração em grupos
sociais diversos, complementares da família, desenvolver as capacidades de expressão
e comunicação da criança, assim como a imaginação criativa, e estimular a actividade
lúdica; incutir hábitos de higiene e de defesa da saúde pessoal e colectiva; permitir
a despistagem de inadaptações, deficiências ou precocidades, e, promover a melhor
orientação e encaminhamento da criança (artigo 5º, n.º 1 da LBSE).
A educação pré-escolar, conforme estabelece a Lei n.º 5/97,seria assegurada pela
rede de educação pré-escolar, constituída por uma rede pública e uma rede privada,
complementares entre si, (artigo 9º). A complementaridade recíproca das redes (a lei
refere que são “complementares entre si”), visava assegurar a universalidade da oferta
(artigo 9º), o que pressupunha que quer o Estado, quer a iniciativa privada, tenham
o dever de articular, entre si, as suas iniciativas neste domínio.
A Rede Nacional de Educação Pré-Escolar é constituída, assim, por uma rede
pública (49%), que compreendendo os estabelecimentos na dependência directa da
administração pública central e local e uma rede privada (18%), constituída pelos
estabelecimentos particulares e cooperativos e os estabelecimentos sem fins lucrativos
(33%) (rede solidária).
A lei assume, de modo claro, que a educação pré-escolar é complementar da acção
educativa da família, o que significa que reconhece à família o papel principal, acei-
tando o Estado para si uma relação de subsidiariedade em relação à família (artigo 2º).
Em consequência deste princípio a educação pré-escolar é facultativa (artigo 3º, n.º 2).
36 ›
Nos termos do artigo 15º da Lei-Quadro a educação pré-escolar reveste, além de
outras, as modalidades de educação de infância itinerante e animação infantil comuni-
tária, consistindo a primeira na prestação de serviços de educação pré-escolar através
da deslocação regular de um educador a zonas de difícil acesso ou a zonas de reduzido
número de crianças e, a segunda, na realização de actividades adequadas ao desenvol-
vimento de crianças, durante um determinado período do dia, em instalações cedidas
pela comunidade local, residentes em zonas urbanas ou suburbanas carenciadas.
A gratuitidade da educação pré-escolar, garantida pela Lei n.º 5/97, de 10 de Feve-
reiro, teve início no ano lectivo 1997/1998 para as crianças que haviam completado
5 anos de idade, tendo-se alargado progressivamente às demais crianças, até ao ano
lectivo 2000/2001.
A aprovação e publicação do regime jurídico do desenvolvimento e expansão da
educação pré-escolar, através do Decreto-lei n.º 147/97, de 11 de Junho, que defi-
niu, igualmente, o respectivo sistema de organização e financiamento, tinha em vista,
como se refere no respectivo preâmbulo, o objectivo fixado pelo Governo em 1995
de, até ao final do século, elevar a oferta global de educação pré-escolar para 90% das
crianças de 5 anos de idade, 75% das crianças, de 4 anos de idade e 60 % das crianças,
de 3 anos de idade. A taxa de cobertura no continente subiu de 55,5% em 1994 para
71,2% em 200039. Em relação ao mesmo período, regista-se um forte crescimento
do número de crianças em idade pré-escolar que já se encontravam matriculados na
rede nacional, que passou de 172.582 para 219.042, ou seja, no período em análise
o número de crianças em idade pré-escolar que entraram no sistema, cresceu 26,9%.
Parece-nos importante salientar agora que, na educação pré-escolar, segundo o
Ministério da Educação, a taxa de escolarização (alunos com idade própria para fre-
quentar o nível de ensino em que estão matriculados), mais do que sextuplicou,
subindo de 12,6 %, em 1977/1978, para 77,4 % em 2004/2005.
A educação escolar. O ensino básico. Em Portugal, nos termos da LBSE, o en-
sino básico é universal, obrigatório e gratuito e tem a duração de nove anos, nele
ingressando as crianças que completem os 6 anos de idade até 15 de Setembro.
A obrigatoriedade só termina aos 18 anos de idade (os alunos que tenham atingi-
do a idade limite da escolaridade obrigatória sem terem concluído o 3.º ciclo podem
prosseguir estudos, através de diversas modalidades de educação de jovens e adultos).
A gratuitidade abrange as propinas, taxas e emolumentos relacionados com a ma-
trícula, frequência e certificação (artigo 6º). Os alunos podem, ainda, quando neces-
sário, dispor gratuitamente do uso de livros e material escolar, bem como de trans-
porte, alimentação e alojamento.
De acordo com o artigo 8º da LBSE, os três ciclos sequenciais do ensino básico
(vide quadros seguintes), são organizados da seguinte forma: no 1.º ciclo, o ensino
é globalizante, em regime de mono docência, podendo o professor ser apoiado em
39 DAPP, 2000.

‹ 37
áreas especializadas (n.º1/a); no 2.º ciclo, o ensino é organizado por disciplinas e
áreas de estudo de carácter pluridisciplinar de formação básica desenvolvendo-se, em
regra, em regime de professor por área (n.º 2/ b); no 3.º ciclo, o ensino é organizado
segundo um plano curricular unificado, integrando áreas vocacionais diversificadas,
organizado por disciplinas e desenvolvido em regime de um professor por disciplina
ou grupo de disciplinas (n.º 3/c).
Para cada ciclo de estudos, a LBSE estabelece um conjunto de objectivos es-
pecíficos que regula no n.º 2 do artigo 8º: para o 1º ciclo, o desenvolvimento da
linguagem oral, a iniciação e progressivo domínio da leitura e da escrita, a aquisição
das noções essenciais de aritmética e cálculo, do meio físico e social, das expressões
plásticas, dramática, musical e motora (alínea a)); para o 2º ciclo, a formação hu-
manística, artística, física e desportiva, científica e tecnológica, visando desenvol-
ver nos alunos competências para a interpretação critica e criativa da informação,
criando condições para a aquisição de por estes de métodos e instrumentos de tra-
balho e de conhecimento que permitam o prosseguimento da sua formação numa
perspectiva de compreensão e de capacidade de actuar perante a comunidade e os
seus problemas fundamentais (alínea b)); para o 3.º ciclo, aquisição sistemática e
diferenciada da cultura moderna, nas suas mais diversas dimensões, desde a huma-
nística, à literária, artística e física e desportiva, científica e tecnológica, indispensá-
vel ao ingresso na vida activa e ao prosseguimento de estudos (alínea c)).
No que se reporta à avaliação, no ensino básico os alunos são sujeitos à avaliação
sumativa interna. Para conclusão do 3.º ciclo, os alunos são submetidos a uma ava-
liação sumativa externa, através de exames nacionais, nas disciplinas de Português
e Matemática. Aos alunos que completam com sucesso o 3.º ciclo, é atribuído o
diploma do ensino básico.
O ensino básico é assegurado por escolas públicas, particulares e cooperativas.
As escolas públicas estão tipificadas pelo Despacho Normativo n.º 33/ME/91, de
26 de Março, nos termos seguintes: escola do 1.º ciclo do ensino básico (dos 6
aos 10 anos de idade); escola do 1.º ciclo com jardim-de-infância (dos 3 aos 10
anos); escola do 2.º e 3.º Ciclos do ensino básico (dos 10 aos 15 anos); escola
básica integrada – 1.º, 2.º e 3.º Ciclos (dos 6 aos 15 anos); escola básica integrada
com jardim-de-infância (dos 3 aos 15 anos) e escola secundária com o 3.º ciclo
(dos 12 aos 18 anos).
O reordenamento da rede educativa, iniciada em 2000 com a aprovação do
Decreto Regulamentar n.º 12/2000, de 29 de Agosto, veio iniciar um processo de
agrupamento de escolas de educação pré-escolar e do ensino básico, com base em
dinâmicas locais e com o objectivo de anular situações de isolamento e de dispersão
de escolas de pequena dimensão, prevenir a exclusão social e favorecer os alunos
abrangidos pela escolaridade obrigatória, garantindo em simultâneo um percurso
sequencial e articulado entre os vários ciclos de ensino.
38 ›
O reordenamento então iniciado conduziu à constituição de agrupamentos de
escola, que poderemos definir como uma nova unidade organizacional, dotada de
órgãos próprios, que pode agrupar estabelecimentos de educação pré-escolar e de
um ou mais ciclos do ensino básico, numa relação de articulação vertical ou ho-
rizontal, geograficamente próximos e dotados de projectos comuns e articulados.
Segundo dados do Ministério da Educação, no ano lectivo 2005/2006, esta-
vam constituídos 847 agrupamentos de escolas ao nível do continente nacional,
97 dos quais horizontais (constituído por escolas do mesmo ciclo de ensino) e
750 verticais (constituído por jardins de infância e escolas do ensino básico de
diversos ciclos do ensino básico).
A rede educativa, enquanto configuração da organização territorial dos edifícios es-
colares afectos aos estabelecimentos de educação pré-escolar e do ensino básico e se-
cundário, integra 10 092 estabelecimentos de educação pré-escolar e de ensino básico
e secundário, assegurando a cobertura nacional destes níveis de educação e ensino.
Duas notas finais que nos parecem importantes: uma para o insucesso escolar
e outra para as taxas de escolarização do ensino básico.
As elevadas taxas de insucesso escolar são um dos problemas mais preocu-
pantes no que respeita ao ensino básico. Segundo o Gabinete de Informação e
Avaliação do Sistema Educativo (GIASE) do Ministério da Educação, os dados
recolhidos permitem estabelecer uma forte relação entre a dimensão das escolas e
o sucesso escolar: quanto menores e mais isoladas são as escolas, maiores são as
taxas de insucesso escolar, de acordo com este serviço do Ministério.
Foi com base neste estudo que o Ministério da Educação decidiu implementar
a política de encerramento de escolas sem o número de alunos considerado mini-
mamente desejável, com base em dois critérios: as escolas terem um número de
alunos inferior a 10 ou terem um número de alunos inferior a 20 e uma taxa de
aproveitamento inferior à média nacional.
A opção de encerramento visa transferir as crianças para escolas maiores e ir
construindo Centros Escolares, cuja competência cabe às autarquias, onde pos-
sam ser asseguradas melhores condições de acolhimento e de ensino e onde exis-
tam, ou venham a ser construídas, infra-estruturas consideradas indispensáveis,
como sejam cantinas, bibliotecas, pavilhões desportivos e tecnologia multimédia.
De acordo com o Ministério da Educação, este movimento de reorganização da
rede permite a concretização da escola a tempo inteiro, através da criação de con-
dições adequadas para manter o funcionamento do estabelecimento em regime
normal, com aulas de manhã e de tarde, o fornecimento de almoço, o transporte
escolar e a organização de actividades de enriquecimento curricular, facilitando
a socialização entre as crianças, ao mesmo tempo que assegura o acesso a mais e
melhores recursos e contribui para a concretização do princípio constitucional da
igualdade de oportunidades.
‹ 39
Em 2005/2006, de acordo com dados do Ministério da Educação, o processo de
reordenamento da rede do 1.º ciclo levou ao encerramento de 1500 estabelecimentos
em 212 concelhos, tendo sido assegurada a transferência dos cerca de 11 mil alunos
(uma média de 7,3 alunos por escola) para 847 escolas acolhedoras. Até ao fim de
2007, o ME tenciona encerrar, de acordo com os critérios estabelecidos e já anterior-
mente mencionados, pelo menos, mais 900 escolas.
Por último, quanto à taxa de escolarização, de referir que a taxa de escolariza-
ção no 1.º ciclo atingiu os 100%, em 1980/1981, tendo estabilizado neste nível
percentual. No 2.º ciclo, esta taxa praticamente triplicou desde então, registando-
se um aumento de 34,4 % para 86,4%. No 3.º ciclo, a taxa de escolarização efec-
tivamente triplicou, verificando-se uma subida de 27 % para 82,5%. No entanto,
apesar destes consideráveis progressos, a convergência com os níveis europeus
está longe de ser alcançada e nos 2.º e 3.º Ciclos do ensino básico este indicador
estagnou desde 199640.
A educação escolar. O ensino secundário. O Ensino Secundário, tal como é defi-
nido na LBSE, constitui a escolaridade pós-obrigatória e compreende um ciclo único
de três anos (10.º, 11.º e 12.º anos), posterior à conclusão do ensino básico.
Com o ensino secundário, o sistema educativo visa assegurar os seguintes objecti-
vos (artigo 9º da LBSE): assegurar o desenvolvimento do raciocínio, da reflexão e da
curiosidade científica e o aprofundamento dos elementos fundamentais de uma cultura
humanista, artística, cultural, científica e técnica e a sua compreensão de modo que
garantam a adequada preparação do aluno para a inserção na vida activa e para o pros-
seguimento de estudos; formar jovens interessados na resolução dos problemas do país
e sensibilizados para a problemática da comunidade internacional, a partir da realidade
concreta regional e nacional e da assimilação e compreensão dos valores permanentes
da sociedade em geral e da cultura portuguesa em particular; estabelecer um relacio-
namento saudável e natural com a sociedade e favorecer a formação profissional dos
jovens com vista à sua preparação para a vida activa e para a cidadania.
Conforme determina o n.º 3 do artigo 10º, o ensino secundário está organizado
segundo formas diversificadas, contemplando cursos predominantemente orientados
para a inserção na vida activa ou para o prosseguimento de estudos.
As aprendizagens a desenvolver pelos alunos de cada curso de nível secundário têm
como referência os programas das respectivas disciplinas, homologados por despacho do
Ministro da Educação, bem como as orientações fixadas para as áreas não disciplinares.
A evolução do ensino secundário em Portugal, medida pela sua taxa de frequên-
cia, mostra uma evolução positiva da taxa real de escolarização que, em 1985/1986
era de 17, 8%, em 2000/01 se situava em 62,5%, embora a partir deste ano se tenha
verificado uma tendência para a descida embora não acentuada41.
40 GIASE – Direcção de Serviço de Estatísticas, 2006.
41 Números da Educação. GIASE. Ministério da Educação. 2006.

40 ›
No entanto, as taxas de insucesso escolar mantêm-se preocupantes e tornam di-
fícil atingir as metas para a educação incluídas pela União Europeia na sua estratégia
para a educação (Commission of de European Communities, 2006 Report)42, que se
situam na redução para números não superiores a 10% das taxas de abandono escolar
e alcançar uma taxa no ensino secundário de diplomados de 85%, dos cidadãos até
aos 22 anos.
A taxa de transição/conclusão sofre um agravamento significativo quando deixa-
mos de considerar os cursos gerais e os cursos tecnológicos no seu conjunto, para
considerarmos apenas estes. Com efeito, a taxa de transição / conclusão dos cursos
tecnológicos do ensino secundário, apresenta tendências acentuadas de quebra desde
o ano lectivo 1996/1997, em que desceu dos 50%, tendo-se situado em 43%, no ano
lectivo 2004/2005.
A este resultado encontrar-se-á associada a desvalorização social anterior ao 25 de
Abril que recaía sobre o ensino técnico-profissional e conduziu ao desaparecimento
das Escolas Comerciais e Industriais, em nome da igualdade de oportunidades, que
se julgou apenas realizável através de uma via única de que se afastaria uma lógica
discriminatória e que levou praticamente ao desaparecimento do ensino técnico-pro-
fissional em Portugal.
A título comparativo refira-se que em 1994, de acordo com dados da OCDE, a
distribuição dos alunos do ensino secundário entre os cursos gerais e o ensino técnico
profissional, na Alemanha, era de 77,5% para o ensino técnico e de 22,5% para o en-
sino geral (na Áustria, de 77,8% e 22,2%, respectivamente, no Reino Unido de 57,7%
e 42,3%, na vizinha Espanha de 40,9% e 59,1%) e em Portugal, segundo dados do
Ministério da Educação, de 21,5% no ensino técnico-profissional e de 78,5% nos
cursos gerais. Esta era a taxa mais elevada registada em países da UE-15.
Estes dados apontam para o facto de que um dos desafios de Portugal para os pró-
ximos anos se situa no domínio da valorização social do ensino técnico-profissional e
do reforço do seu investimento43. É este o sentido do programa Novas Oportunidades
que aposta no ensino secundário como objectivo de referência para a qualificação
dos jovens e adultos portugueses, considerado como o patamar mínimo para dotar
os cidadãos das competências essenciais à economia do conhecimento, fazendo da
formação inicial apenas o patamar primeiro de uma formação ao longo de toda a vida.
De acordo com os objectivos do Governo pretende-se envolver, nos próximos anos,
mais de 650 mil jovens em cursos técnicos e profissionalizantes, procurando-se que
até 2010 metade do total de vagas ao nível do ensino secundário sejam destinadas a
cursos desta natureza.
42 Em: http : // www.miur.it / Miur / UserFiles / Dossier / Apprendimento % 20 Permanente / CEC-%202006%20-%20PRO-
GRESS%20TOWARDS%20THE%20LISBON%20OBJECTIVES%20IN%20EDUCATION%20AND%20TRAINING%20(Estrat-
ti).pdf
43 Cardim, José Eduardo de Vasconcelos Casqueiro. (2005). Do ensino industrial à formação profissional – as políticas públi-
cas de qualificação em Portugal. Lisboa: UTL- ISCSP, pp. 990 e segs.

‹ 41
A educação escolar. O ensino superior. Os cursos de ensino superior estão organi-
zados de acordo com o processo de Bolonha, nos termos do Decreto-Lei n.º 74/2006
e visam assegurar uma sólida preparação científica, cultural e tecnológica que habilite
para o exercício de actividades profissionais e culturais e o desenvolvimento das ca-
pacidades de concepção, de inovação e de análise crítica.
O ensino superior em Portugal está organizado segundo um modelo binário, ou
seja, em razão da diferente natureza das suas formações, em ensino universitário e
ensino politécnico (artigo 11º da LBSE).
As instituições de ensino superior universitárias e politécnicas, conforme o sector
de propriedade em que se inserem (artigo 82º da Constituição da República Portu-
guesa) podem ser públicas, privadas ou cooperativas44, existindo, ainda, uma univer-
sidade (que se integra no sector privado) instituída ao abrigo da Concordata com a
Santa Sé (artigo 1º da LBSE).
Para se candidatarem ao ensino superior através do concurso nacional, os estudan-
tes devem possuir curso de ensino secundário ou habilitação equivalente, ter realiza-
do as provas de ingresso exigidas para cada par estabelecimento/curso e satisfazer os
pré-requisitos exigidos, quando aplicável. O ingresso em cada instituição de ensino
superior está sujeito a numerus clausus (Decreto-Lei n.º 296-A/98, de 25 de Setembro).
Têm ainda acesso ao ensino superior, os indivíduos maiores de 23 anos que, não
sendo titulares da habilitação de acesso ao ensino superior, façam prova perante o
estabelecimento em que desejem ingressar, através da realização de provas organi-
zadas pelos respectivos estabelecimentos de ensino superior, que possuem capaci-
dade para a sua frequência, (Decreto-Lei n.º 64/2006, de 21 de Março).
No ensino superior são conferidos os graus académicos de licenciatura, mes-
trado e doutoramento. As universidades podem conferir o grau de licenciado,
mestre e doutor e os institutos politécnicos o grau de licenciado e mestre. É
permitida a atribuição de graus conjuntos ou em associação entre duas ou mais
instituições de ensino superior, nos termos da LBSE. No ensino politécnico, o
ciclo de estudos conducente ao grau de licenciado tem, em regra, uma duração
de seis semestres curriculares, correspondentes a 180 créditos, enquanto no en-
sino universitário a sua duração varia entre seis e oito semestres curriculares,
correspondentes a 180 ou 240 créditos. O ciclo de estudos conducente ao grau
de mestre tem uma duração compreendida entre três e quatro semestres curricu-
lares, correspondentes a 90 ou 120 créditos.
A LBSE prevê ainda a possibilidade de serem criados cursos de 1º e 2º Ciclos in-
tegrados (os mestrados integrados), correspondendo o 1º ciclo a 180 créditos e o 2º
a 120 créditos. O grau de doutor é atribuído aos que tenham obtido aprovação nas
unidades curriculares do curso de doutoramento, quando exista, e no acto público de
44 Falarmos do ensino superior privado quando referimos o ensino superior não público, salvo quando fizermos distinção
expressa aos sectores de propriedade privado e ao cooperativo.

42 ›
defesa da tese. Os estabelecimentos de ensino superior podem ainda criar e ministrar
cursos de especialização tecnológica, de ensino pós-secundário não superior.
A democratização do acesso ao ensino superior a que assistimos desde 1974 é
bem visível quando comparamos a evolução do número de alunos matriculados no
ensino superior, desde 1973/1974 até 2003/2004, como demonstram o quadro e
gráfico seguintes. No ano lectivo 1973/1974, estavam matriculados no ensino su-
perior 53.201 alunos número que em 2003/2004 se cifrava em 385.631, já então
em fase se redução45.
O número de alunos inscritos registou uma tendência de crescimento até ao lecti-
vo 2002/2003, ano em que atinge o número máximo, com 395 478, tendo-se inicia-
do a partir de então a redução do número de alunos, que num período de três anos
(2002/03 para 2005/06), foi de 7,1%.
A redução do número de alunos no ensino superior terá tendência para se agravar,
se tivermos em conta a previsão da evolução demográfica para Portugal efectuada
pelo Instituto Nacional de Estatística, que prevê uma redução de 21,7% da popula-
ção, entre 2005 e 2020, no escalão etário dos 20 aos 24 anos.
A educação extra-escolar. Educação e formação de jovens e adultos. A edu-
cação e formação de jovens e adultos é uma via de segunda oportunidade destinada
a indivíduos que não tiveram oportunidade de frequentar a escola na idade normal
ou que a abandonaram precocemente ou que estão em risco de a abandonar. É,
ainda, uma via de formação para todos os que procuram a escola por questões de
natureza profissional ou valorização pessoal, numa perspectiva de aprendizagem
ao longo da vida.
Foi no sentido de proporcionar novas vias para a aprendizagem que foi aprovado
e está em desenvolvimento o programa “Novas Oportunidades” que tem como objec-
tivo alargar ao 12.º ano o referencial mínimo de formação de escolaridade.
O programa “Novas Oportunidades” assenta a sua filosofia no princípio de que
o ensino profissionalizante constitui uma opção efectiva para os jovens, capaz de os
qualificar para o ingresso na vida activa e, ainda na elevação da formação de base da
população activa, contribuindo para que esta adquira novos conhecimentos e com-
petências, alargando a sua empregabilidade. As diferentes modalidades de educação
não só conferem uma certificação escolar e/ou uma qualificação profissional, como
constituem uma outra via de acesso ao ensino pós-secundário não superior e/ou ao
ensino superior.
Estas são, em suma, as características essenciais do sistema educativo português,
bem como da sua evolução temporal. A referência às datas e aos acontecimentos mais
marcantes da sua evolução, sobretudo em data próxima, não esquece muitos outros
contributos, individuais e políticos, que marcaram a sua evolução e que, por não
serem referidos, não devem, no entanto, ser esquecidos.
45 OCES, 2004.

‹ 43
Breve quadro da qualificação da população portuguesa em relação aos obje-
tivos da EU 202046. Neste ponto procuraremos apenas sinalizar os últimos dados
disponíveis de referência relativos à qualificação dos portugueses.
Assim, em 2007 apenas 27% da população portuguesa dos 25 aos 64 anos havia
completado pelo menos o 12o ano, quando a média dos países da OCDE era de 70%.
No que respeita aos cuidados para a primeira infância a taxa de cobertura em Por-
tugal em 2009 é de 34,9%, superior à meta europeia que havia fixado em 33 a percen-
tagem de crianças a acolher em estabelecimentos de cuidados para a primeira infância.
Em contrapartida no que respeita à pré-escolarização dos 4 e 5 anos Portugal tinha
uma taxa de 86,7% em 2010, ainda distante da fixada pela EU 2020, que é de 95%.
No ensino básico as taxas reais de escolarização têm mantido um continuo cres-
cimento, tendo atingido os 100% no 1o ciclo, 90% no 2 o e estando muito próximo
deste valor no 3 o ciclo. A evolução das taxas de transição revela-se globalmente
positiva, situando-se na ordem dos 92% no ensino básico.
Quanto ao ensino secundário embora Portugal apresente uma evolução positiva
no que respeita à percentagem da população que entre os 18 e 0a 24 anos abandona
o sistema educativo e a que na mesma faixa etária conclui, pelo menos, o nível secun-
dário, como referimos anteriormente o afastamento em relação aos países da OCDE é
ainda muito elevado, com reflexos naturais no ensino superior.
No que respeita ao ensino superior a meta da EU 2010 é a de que, pelo menos,
40% da população na faixa etária dos 30 aos 34 anos tenham completado o ensino
superior. Em Portugal em 2008 apenas 21,6% da população desta faixa etária tinha
concluído um grau superior.
Um apontamento sobre os desafios que se colocam às instituições de ensino
superior no decurso desta década. Cremos que se justificará uma nota especial re-
lativa aos desafios que se colocam ao ensino superior na presente década, se tivermos
em conta a importância que é dada pelos entrevistados e o espaço que nas entrevistas
é ocupado pela problemática do ensino superior.
Acompanhando a reflexão que os autores vêm fazendo sobre o papel e evolução do
ensino superior na Europa, entendemos que a transformação mais importante a que as-
sistimos desde o princípio do século XIX nas universidades europeias é provavelmente
aquela que foi desencadeada pelo Processo de Bolonha47. Como refere Mora o modelo
de universidade actual corresponde ao da Universidade Universal, marcada pela uni-
versalização da sua procura (passagem de uma universidade de elites para uma univer-
sidade democratizada) e da sua nova missão (responder aos desafios e necessidades de
uma sociedade globalizada, ao serviço de uma nova sociedade, a do conhecimento).48
46 Conselho Nacional de Educação. (2010). Estado da Educação 2010. Percursos Escolares. Lisboa: Editorial do Ministério da
Educação.
47 European University Association (EUA), Trends IV – European Universities – Implementing Bologna, pag. 8, em: http://
www.crue.org/espaeuro/lastdocs/TrendsIV.pdf.
48 Mora, José-Ginés. (2001). Governance and management in the new university. Tertiary Education and Management, 7, pp.
95-110.

44 ›
Tendo presente a evolução das universidades, antes e depois do Processo de Bolo-
nha, parece-nos ser importante salientar alguns dos traços evolutivos mais relevantes
das instituições de ensino superior europeias.
A universidade medieval, constituída por uma comunidade de professores e alu-
nos, ainda que sob a protecção da Igreja ou dos reis, era uma universidade inde-
pendente. Vivia dos recursos financeiros provenientes dos bens que possuía e dos
pagamentos dos seus alunos. Eram instituições pequenas, de natureza privada e ad-
ministradas pelos próprios membros da comunidade49. Este modelo persistiu até
finais do século XVIII sem alterações significativas.
Com o nascimento do Estado-Nação, no início do século XIX, verifica-se uma
profunda mudança nas Universidades as quais sendo até então privadas, passam para
o domínio do Estado e são obrigadas a enfrentar os novos desafios impostos pela
revolução industrial. De duas tendências diferentes surgem dois novos modelos de
universidades: o alemão (modelo humboldtiano) e o francês (napoleónico).
Em 1808, na Universidade de Berlim, Von Humboldt instituiu os princípios que
vieram a caracterizar o chamado “modelo humboldtiano”, marcado por considerar a
pesquisa a par com o ensino como o objectivo básico da universidade. No modelo
“humboldtiano” as universidades convertem-se em centros de desenvolvimento cien-
tífico, sujeitas ao controlo e financiamento do Estado, dotadas de um grau elevado
de liberdade académica e de um espírito nacionalista acentuado (Magalhães, 2004,
pp. 51 e segs.).
Já o chamado “modelo napoleónico”50, caracterizou-se por uma perca progressiva
do sentido unitário da alta cultura, substituído pela crescente aquisição do conhe-
cimento de carácter profissional, profissionalizante, na linha do espírito positivista
pragmático e utilitarista do Iluminismo. A “universidade napoleónica”, desenvolve-se
em função das necessidades profissionais, assenta numa estrutura fragmentada em
escolas superiores, isoladas entre si e nos seus objectivos práticos. Cumpre a função
de criar a elite necessária ao funcionamento do Estado, não tem autonomia e os
seus docentes são funcionários públicos. O modelo francês de universidade dá clara
primazia ao ensino, embora não negligenciando a investigação (Caraça, Conceição,
Heitor, 1996, p. 31)51.
No Reino Unido, que no início do século XIX tinha seis universidades, o Esta-
do não interveio nas universidades, respeitando as suas características medievais,
e mantendo a natureza privada da sua propriedade. Isso poderá, segundo Mora52
(2004: 939), explicar o facto das universidades “públicas” britânicas, irlandesas e ca-
nadenses continuarem sendo “privadas” do ponto de vista jurídico”. As universidades
49 Magalhães, António M. (2004). A Identidade do Ensino Superior – Política, Conhecimento e Educação Numa Época de
Transição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para Ciência e a Tecnologia, p. 46 e segs.
50 Mora, José-Ginés. (2004). Op. cit., p. 939. Disponível em: http://www.cedes.unicamp.br.
51 Caraça, P. Conceição, M. V. Heitor. (1996). Uma perspectiva sobre a missão das universidades. Análise Social. Lisboa: Insti-
tuto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Vol. XXXI (139), p. 31.
52 Mora, José-Ginés. (2004), Op. cit.

‹ 45
existentes mostravam-se, porém, incapazes de responder às necessidades colocadas
pelo desenvolvimento industrial. Reagindo a essa incapacidade para responder à ne-
cessidade de formação de indivíduos mais qualificados para a indústria, a nobreza e
as autoridades locais de diversas cidades, criaram as chamadas universidades civis
que se expandiram por todo o Reino Unido durante o século XIX. No entanto, a tra-
dição das antigas universidades, possibilitou, que desde o início, nela se instaurassem
Conselhos de Administração formados por não académicos (os cidadãos que haviam
organizados as universidades53). Tais conselhos presididos por um chanceler, nomea-
vam um vice-chanceler, que exercia por delegação todas as decisões de gestão directa
da universidade. A autonomia das universidades britânicas face ao Estado foi sem-
pre muito grande dada a sua natureza privada, ao contrário do que sucedia com as
universidades do continente europeu tradicionalmente dependentes do Estado que
suportava os seus custos.
Outro exemplo, da Irlanda, assenta na iniciativa do Cardeal Newman, fundador
da Universidade de Dublin, que concebeu a sua Universidade como o local do en-
sino do saber universal. Para Newman, a universidade enquanto centro de criação
e difusão do saber e da cultura54 assenta num paradigma da personalidade, ou seja,
mais do que a transmissão do conhecimento, interessa-lhe a formação do carácter e
da personalidade, numa perspectiva que, de acordo com os conceitos contemporâneos,
se pode apelidar de educação liberal55.
A estrutura deste tipo de universidade, segundo os mesmos autores, “é reconhecí-
vel na Universidade de Oxford e na Universidade de Cambridge e corresponde a uma
organização segundo ‘colleges’, onde os estudantes vivem em comunidade uns com os
outros e em convívio com os docentes”.
Os exemplos anteriores pretendem sublinhar que não há, assim, um modelo de
universidade europeia. Existem vários desenvolvimentos dos modelos referidos, com
níveis diversos de autonomia, seja no que concerne ao modelo de organização, de
governo, de financiamento e de autonomia académica.
Esta diversidade mostra, contudo, que a universidade europeia pré-Bolonha pode
ser caracterizada, sucintamente, do seguinte modo: em regra a universidade é pública
(Portugal é segundo dados da OCDE o país europeu com maior número de alunos
no ensino superior privado) na maioria dos países, com excepção para os do modelo
anglo-saxónico, os docentes têm uma relação jurídica de emprego público, embora
no modelo germânico o vínculo se estabeleça directamente entre o professor e a uni-
versidade e no modelo napoleónico entre o Estado e o professor; o financiamento da
educação superior é essencialmente público, seja porque as instituições são públicas,
seja pela reduzida interacção com o tecido produtivo; a autonomia das Universidades
53 Ibidem.
54 Magalhães, António M. (2004) A identidade do Ensino Superior – Política, Conhecimento e Educação Numa Época de Tran-
sição. Lisboa: Fundação Gulbenkian e Fundação para a Ciência e Tecnologia, p. 51.
55 Caraça, P. Conceição, M. V. Heitor (1996). Uma perspectiva sobre a missão das universidades. Análise Social. Lisboa: Insti-
tuto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Vol. XXXI (139), p.31.Op. cit.

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encontra-se definida na Lei (em Portugal consagrada na Constituição da República,
embora em termos a definir na Lei); em regra as instituições de ensino superior são
dirigidas por professores, alunos e funcionários da instituição; nos países que se-
guem o modelo napoleónico (principalmente os do sul da Europa, com excepção de
Portugal) os cursos são relativamente homogéneos, regulados e de carácter nacional,
dificultando a diferenciação das instituições; em regra os cursos de graduação, até
à implementação do Processo de Bolonha, estavam organizados em ciclos de longa
duração (4 a 5 anos) com forte componente académica, com níveis de abandono e
de insucesso muito elevados; a diversidade de modelos dentro de um mesmo sistema
de ensino superior que se encontra em alguns países (países com sistema de ensino
superior binário) nem sempre se traduz em diferente natureza das formações, uma
vez que os objectivos dos cursos e os planos de estudo são idênticos.
Este modelo de instituição de ensino superior que vimos a referir tem vindo a
ser questionado persistentemente pelo poder político europeu e pela sociedade civil
que considera que ele se tem mostrado incapaz de dar resposta aos novos desafios
económicos e sociais que se colocam a uma sociedade, cada vez mais globalizada e
interdependente. As universidades são vistas como instituições que tendem a manter-
se isoladas do contexto externo, tendem a uma rigidez de estrutura, sofrem graves
problemas de eficácia e eficiência externa, tendem a confundir os interesses dos que
nelas trabalham com o interesse público da instituição que a instituição prossegue56.
Este quadro, aos olhos dos responsáveis europeus, parece ser responsável pela per-
ca de competitividade da educação superior europeia no plano internacional e pela
diminuição da sua capacidade para atrair estudantes estrangeiros em relação aos Es-
tados Unidos57.
Os sistemas de educação superior na Europa assentam, também, em modelos
diversificados: alguns países têm sistemas unitários (as instituições têm o mesmo es-
tatuto e missão) e outros países têm sistemas binários (as instituições são classificadas
em universitárias e não universitárias, ou, como em Portugal universitárias e politéc-
nicas) competindo-lhes diferentes missões58, por razões que se prendem mais com as
guerras internas de poder e influência entre as instituições do que com critérios de
racionalidade do sistema59.
Em Portugal, o modelo dominante até ao princípio da década de 70 era o modelo
francês, seguindo a tendência da Península Ibérica; as quatro universidades portu-
guesas então existentes eram, essencialmente, instituições de ensino. A afirmação em
Portugal da universidade de investigação surge a partir do início dos anos 80, tendo-
56 González Ramírez, Teresa. (2005). El Espacio Europeu de Educación Superior: Una Nueva Oportunidad para la Univer-
sidad, In: La Universidad en la Unión Europea – El Espacio Europeo de Educación Superior y su impacto en la docencia, Pilar
Colás Bravo – Juan de Pablos Pons (coords). Málaga: Ediciones ALJIBE.
57 Amaral, Alberto. (2002). Diversificação e Diversidade dos Sistemas de Ensino Superior – O caso português. Lisboa: Conse-
lho Nacional de Educação, p. 85 e segs.
58 Amaral, Alberto. (2002). Op. cit.
59 Dame, Dirke, et al (2004) Qualité et reconnaissance des diplômes de l’ensegnement supérieur – un défi international. Paris:
OCDE, pp. 90 -91.

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se reforçado essa tendência nos anos 9060. Contudo, a partir dos anos 80, registam-se
movimentos de abertura progressiva da universidade portuguesa ao mundo exterior
permitindo a criação de ligações, que se foram gradualmente intensificando, à socie-
dade em geral e, em particular, ao tecido produtivo61.
A discussão actual em torno da missão da universidade tem assumido um ca-
rácter de procura da utilidade da instituição62, ou seja do seu contributo social e
económico para o desenvolvimento da sociedade, perspectiva considerada irrelevante
por alguns autores que consideram que a universidade não necessita de objectivos
explícitos para justificar as suas actividades63.
Para a OCDE64, a universidade abarca uma pluralidade de funções: assegurar
educação pós-secundária, desenvolvimento de investigação e de novo conhecimen-
to, garantir as qualificações de que a sociedade careça, desenvolver actividades de
formação altamente especializadas, contribuir para a competitividade da economia,
contribuir para a mobilidade social, prestar serviços à comunidade, funcionar como
modelo de políticas de igualdade, preparar os cidadãos para a vida activa e funcionar
como filtro para empregos altamente exigentes.
Um olhar cuidado sobre as funções referidas permitir-nos-á concluir que é clara
a existência de alguma sobreposição entre as funções enunciadas permitindo-nos,
como refere Ruivo65, sintetizá-las da seguinte forma: uma função de ensino, uma
função de investigação e uma função de prestação de serviços à sociedade, correspon-
dendo a primeira à função essencial da universidade enquanto instituição66.
Em Portugal, a Universidade foi definida pelo Conselho de Reitores como “órgão
fundamental da Cultura e da Sociedade, estando-lhe acometida uma tripla missão de:
a) a enriquecer as universidades, por meio da investigação, como mais rigoroso, amplo
e profundo conhecimento científico; b) de formar os seus cidadãos enquanto quadros
altamente qualificados e c) como resultado natural de todo o seu processo vital, propor-
cionar à Sociedade os profissionais de alto nível de que ela necessita, preparados com
radicalidade científica e, por conseguinte, preparados tecnologicamente, e não apenas
técnica e politecnicamente”67.
A missão da Universidade portuguesa nos termos em que é definida pelo CRUP
parece assim assentar apenas nos dois pilares tradicionais, a investigação e o ensino
60 Ralha, A. (1968). As Universidades Portuguesas, em Face dos Diferentes Tipos Institucionais de Universidade. Análise
Social. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 6 (20-21). pp. 99-126.
61 Ruivo, B. (1995). Evolução Institucional e Organizativa do Ensino Superior em Portugal. Em: Gago, J. M. (coord.).
Prospectiva do Ensino Superior em Portugal. Lisboa: Departamento de Programação e Gestão Financeira do Ministério da
Educação.
62 OCDE.(1987). Universities Under Scrutiny. Paris: OCDE. p. 16.
63 Oakeshot, M. (1993) A ideia de Universidade. Colóquio Educação e Sociedade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 3,
pp. 21-34.
64 OCDE (1987): Ibidem, pp. 16-19.
65 Ruivo (1995). Evolução Institucional e Organizativa do Ensino superior em Portugal. Em: Gago, J.M. (coord.) Prospectiva
do Ensino Superior em Portugal. Lisboa: Departamento de Programação e Gestão Financeira do Ministério da Educação., pp.
215-143.
66 Caraça, J. M. G. (1993). Do Saber ao Fazer: Porquê Organizar a Ciência. Lisboa: Edições Gradiva, p. 143.
67 Em: www.crup.pt.

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e na necessidade de afirmar a sua diferenciação em relação ao subsistema politécnico
(preparados tecnologicamente, e não apenas técnica e politecnicamente), esquecendo
que a missão não pode deixar de se articular em torno das três funções que carac-
terizam actualmente o conceito de universidade: Ensino, Investigação e Desenvolvi-
mento e Ligação à Sociedade68, como forma de estimular a criação, disseminação e
aplicação de conhecimento.
No que concerne ao ensino e formação as instituições de ensino superior não po-
dem esquecer a sua missão no domínio da formação de adultos, o que significa aceitar
um conceito distinto de universidade assente no pressuposto de que se pode apren-
der em qualquer altura, que a universidade também deve procurar tornar a sociedade
mais culta e que a educação é um processo que dura toda a vida69.
As instituições de ensino superior portuguesas, universidades e politécnicos70,
têm-se mostrado incapazes de ultrapassar a discussão em torno da diferente missão
das instituições, o que tem constituído entrave, entre outros aspectos, ao estabeleci-
mento de formas de cooperação entre os dois subsistemas e contribuiu para a desca-
racterização de umas e outras. À chamada deriva académica dos institutos politécni-
cos tem correspondido a deriva profissionalizante das universidades71 num exercício
motivado antes de mais pela necessidade de umas e outras crescerem em número de
alunos, num tempo em que o número de candidatos ao ensino superior diminuiu.
Bolonha surge, aqui, como um desafio e como uma oportunidade72. Essa opor-
tunidade assentará numa plataforma criativa e inovadora que se deverá traduzir por
uma estratégia global para a educação e formação e que em Portugal passará necessa-
riamente pelo aprofundamento da reforma do ensino superior.
Esse aprofundamento não pode deixar de produzir uma verdadeira clarificação do
conceito de instituição de ensino superior, baseado na sua missão, definida de acordo
com as reais necessidades do País e as efectivas competências científicas e pedagógi-
cas de cada instituição, assente num sistema binário de competências que substitua o
sistema binário de designações.
Para que melhor se entenda o que digo, permitam-me uma referência ao apareci-
mento e evolução do sistema binário em Portugal.
Em 15 de Janeiro de 1970, Veiga Simão, no seu discurso de tomada de posse como
Ministro da Educação, apontou como tarefa principal do seu ministério a reforma do
sistema educativo enumerando, entre outras, um conjunto de ideias inovadoras, que
não é demais recordar: institucionalização da educação pré-escolar, extensão da esco-
laridade obrigatória de 6 para 8 anos, polivalência do ensino secundário e acréscimo
68 Dominguez Rodriguez, Emília. (1998). Impacto de la UEX sobre la Comunidad Autónoma de Extremadura (1973 –1994).
Cáceres: Universidad de Extremadura, pp. 26-32.
69 Blázquez Entonado, Florentino. (2002). Los mayores, nuevos alumnos de la universidad. En: Revista Interuniversitaria de
Formación del Profesorado, 95, pp. 89-105.
70 Veja-se a este propósito o documento Parecer do CCISP Sobre as alterações a introduzir na legislação do ensino superior
(Tomando por base o documento do CIPES), em www.ccisp.pt.
71 Simão, José Veiga, Santos, Sérgio Machado dos, Costa, António de Almeida. (2005). Op. cit., pp. 33-36.
72 Ibidem, p. 20.

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de um ano na sua duração, expansão e diversificação do ensino superior, criação de
cursos de pós-graduação.
No quadro que então traçou, o Ministro da Educação, afirmou que o nível de
ensino mais carecido de reforma era o universitário porque “o sistema vigente atin-
giu o ponto de ruptura, e não queremos assistir, como principal responsável, à sua
total desagregação”. Como refere Rómulo de Carvalho73 “considerava o ministro
que a Universidade Portuguesa estava reduzida a desempenhar o papel de uma esco-
la cuja missão era, quase exclusivamente, a de preparar, e mal, professores do ensino
secundário. A sua existência, tal como se apresentava, afigurava-se-lhe inútil, pois
para o ministro, a missão da Universidade é a formação de cientistas e de técnicos”.
Foi a convicção de que as Universidades seriam incapazes de dar resposta às ne-
cessidades do país que criou as condições para o aparecimento do Ensino Superior
Politécnico. Com efeito, foi neste quadro que um ano mais tarde, em 16 de Janeiro
de 1971, Veiga Simão apresentou ao país dois projectos de reforma: o Projecto do
Sistema Escolar e Linhas Gerais da Reforma do Ensino Superior e que em 1973,
com a Lei n.º 5/73, de 25 de Julho, foram aprovadas as bases do sistema educativo
português. Na BASE.XIII.3 determina-se que “o ensino superior é assegurado por
Universidades, Institutos Politécnicos, Escolas Normais Superiores e outros estabe-
lecimentos equiparados.”
Não procurou o legislador distinguir de forma explícita os quatro diferentes
tipos de instituições. Em qualquer caso, como refere Arroteia74, será possível assen-
tar a distinção entre universidades e institutos politécnicos e demais instituições
através da diferente competência para conferir os graus académicos e da diferente
natureza das formações. Os pilares fundamentais de tal distinção, seriam pois: a
duração de 3 anos do ciclo de estudos e o grau que o mesmo conferia: bacharel
nos Institutos Politécnicos, Escolas Normais Superiores e outros estabelecimentos
equiparados, versus a reserva reconhecida às universidades para conferir o grau de
licenciado e de doutor; a natureza da formação que no caso dos bacharelatos devia
proporcionar as “condições necessárias para o exercício de determinadas actividades
profissionais” (Base XVI, n.º 1), tal não podendo deixar de significar que os cur-
sos de bacharelato, nos institutos politécnicos – a eles se refere apenas o n.º 1 da
Base XVI – deviam necessariamente conferir os conhecimentos e as competências
necessárias para o exercício de determinadas actividades profissionais, o que não
poderá deixar de conduzir à conclusão de que aos institutos politécnicos estaria
vedada a organização de ciclos de estudos que não habilitassem para o exercício de
actividades profissionais.
Aliás, a norma que regulava a concessão do grau de bacharel pelas universidades
que era substancialmente diversa (n.º 2, da Base XVI) determinava que nos estabele-
73 Carvalho, Rómulo de (2001). História do Ensino em Portugal desde a Fundação da Nacionalidade até ao fim do Regime de
Salazar. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 808.
74 Arroteia, Jorge (1996). O ensino Superior em Portugal, Aveiro: Universidade Aveiro, p. 21-22.

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cimentos universitários o grau de bacharel corresponderia a um período normal de
3 anos dos cursos de licenciatura e seria “atribuído quando os conhecimentos assim
obtidos possam habilitar para o exercício de actividades profissionais”. Fora de tais
casos a universidade poderia conferir o grau de bacharel quando razões especiais o
aconselhassem e desde que a organização e o plano de estudos não afectassem o curso
de licenciatura o qual deveria “proporcionar o aprofundamento das matérias, de modo
a assegurarem uma sólida preparação científica e cultural, a par de uma formação
técnica e profissional mais completa” (n.º 3, da Base XVI).
Era por isso, clara a intenção do legislador de fazer assentar a reforma do ensi-
no superior através da criação de um novo subsistema de ensino capaz de, através
de formações de 3 anos, qualificar os recursos humanos de que o tecido social e
económico carecia para se desenvolver75. Subsistema que não seria estanque76 por-
quanto nos termos do n.º 1, da Base XVII a Lei determinava que seriam concedidas
as devidas equiparações aos alunos que pretendessem a transferência dos estabe-
lecimentos universitários para outros cursos superiores e, o n.º 2 da mesma Base,
determinava que o grau de bacharel obtido nos institutos politécnicos permitia a
continuação de estudos em cursos professados nas universidades para a obtenção
do grau de licenciado.
O Decreto-Lei n.º 427-B/77, de 14 de Outubro, que instituiu o ensino de curta
duração, foi ratificado pela Assembleia da República, através da Lei n.º 61/78, de
28 de Julho, a qual lhe introduziu importantes alterações. Desde logo foi alterada
a redacção do artigo 1º que passou a ser a seguinte: “é instituído o ensino superior
de curta duração tendente à formação de técnicos e de profissionais de educação su-
perior”. Esta não é uma questão de semântica, é uma alteração de fundo: o ensino
superior de curta duração, através das Escolas Superiores Técnicas, deixa de formar
técnicos especialistas, para passar a formar técnicos superiores e o diploma que lhes
é conferido deixa de ser o diploma de técnico especialista para ser o diploma de
técnico superior, cujo valor para efeitos de função pública não pode ser inferior ao
de bacharelato (artigo 6º).
Por outro lado, com as alterações ao artigo 3º as Escolas Superiores Técnicas pas-
sam a ter por finalidade “formar técnicos qualificados de nível superior” e “desenvol-
ver a investigação científica e tecnológica dentro do seu âmbito”, finalidades que lhe
não eram reconhecidas pelo diploma ratificado, deixando os cursos de ter obrigato-
riamente a tal componente prática ou pedagógica especializada que deveria “permitir
o ingresso imediato dos respectivos diplomados na actividade para que foram forma-
dos, através da eliminação do n.º 2 do artigo 5º do Decreto-Lei.
Dir-se-ia que o legislador Assembleia da República foi bem mais lúcido e corrigiu o
legislador Governo. A Assembleia da República percebeu que as instituições de ensino
75 Cardim, José Eduardo de Vasconcelos Casqueiro. (2005). Do ensino industrial à formação profissional – as políticas públi-
cas de qualificação em Portugal. Lisboa: UTL - ISCSP, p. 733-755.
76 Arroteia, Jorge. (1996). Op. cit., p.21.

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superior, logo também o ensino superior politécnico, devem formar para a empregabi-
lidade o que não significa exactamente o mesmo que formar para o emprego77.
Um ano mais tarde, em 1979, através do Decreto-Lei n.º 513-T/79, de 26 de De-
zembro, o governo vem definir a rede de ensino superior politécnico e seu calendário
de instalação, em substituição do ensino superior de curta duração. Com efeito, nos
termos do disposto no seu artigo 1º “o ensino superior politécnico – designação que
doravante passa a ser a do ensino superior de curta duração instituído pelo Decreto-Lei
n.º 427-B/77, de 14 de Outubro, com as alterações decorrentes da Lei n.º 61/78, de 28
de Julho – é assegurado por escolas superiores, de educação e técnicas, agrupadas ou
não em Institutos Politécnicos”, competindo-lhe, entre outras, prosseguir as seguintes
finalidades: fazer formação de nível superior, promover a investigação e o desenvolvi-
mento experimental, colaborar no desenvolvimento cultural das regiões em que estão
inseridos e prestar serviços à comunidade (artigo 2º).
Vale a pena referir aqui, em jeito de nota de rodapé, que desde a sua con-
cepção aos nossos dias, mesmo quando foi suspensa a instalação dos Institutos
Politécnicos criados em 1973 e instituído o ensino superior de curta duração, as
condições de acesso aos cursos do ensino superior politécnicos foram iguais às
do ensino universitário.
Poderíamos dizer que naquele momento (em Dezembro de 1979) o ensino
superior politécnico recuperou, de algum modo e de novo, a filosofia com que
fora concebido e criado por Veiga Simão e a distinção entre o ensino superior uni-
versitário e o ensino superior politécnico assentaria, então, de essencialmente em
dois pilares fundamentais78: na diferente competência legal para conferir os graus
académicos – as universidades podem conferir o grau de bacharel, licenciado,
mestre e doutor; os institutos só podem conferir o grau de bacharel; na diferente
natureza legal da investigação – fundamental nas universidades, aplicada nos
institutos politécnicos.
Um terceiro pilar se poderá acrescentar-lhe resultante, não tanto do regime legal,
e muito mais da génese do próprio processo de criação e implementação do ensino
politécnico em Portugal79: a diferente natureza da formação – de natureza mais con-
ceptual nas universidades (acento tónico no saber), mais teórico-prática nos institu-
tos politécnicos (no saber e no saber fazer)80.
Nestes três pilares assenta, ainda hoje, a distinção legal entre o ensino univer-
sitário e o ensino politécnico, assim estabelecida com a aprovação em 1986 da Lei
de Bases do Sistema Educativo (n.os3 e 4 do artigo 11º), com as alterações que lhe

77 Carneiro, Roberto. (2003). Aprender e trabalhar no século XXI. Em: Fundamentos da Educação e da Aprendizagem, 21
ensaios para o século 21. Vila Nova de Gaia: Edição Fundação Manuel Leão, pp 329 a 344.
78 Simão, José Veiga. Costa, António de Almeida. (2000). O Ensino Politécnico em Portugal. Braga: Conselho Coordenador
dos Institutos Superiores Politécnicos, p.33-41.
79 Ibidem, p. 33-41.
80 Pedrosa, Júlio e Queiró, João Filipe. (2005). Governar a Universidade Portuguesa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pp.
46-53.

52 ›
foram introduzidas em 1997 (Lei n.º 115/97, de 19 de Setembro), e em 2005 (Lei n.º
49/2005, de 30 de Agosto) e que estenderam ao ensino superior politécnico a com-
petência para conferir o grau de licenciado (1997) e de mestre (2005)81.
Dissemos distinção legal, porque a distinção de facto (a real, a resultante da evo-
lução dos dois subsistemas) não corresponde à distinção legal mercê de um processo
gradual de aproximação entre os subsistemas.
Na verdade, se reflectirmos um pouco sobre os pilares de distinção que atrás refe-
rimos podemos constatar: que tem havido uma gradual aproximação nos graus que
cada subsistema pode conferir (o ensino superior politécnico, também, ganhou com-
petência para conferir os graus de licenciado e mestre – competência legal – sendo o
doutoramento o único grau que lhe está vedado); que as universidades e os institutos
hoje fazem, de igual modo, investigação fundamental e aplicada (a diferença quali-
tativa e quantitativa existente – que não se ignora, nem se nega - é, essencialmente,
consequência da diferente disponibilização de recursos humanos e financeiros que
os sucessivos governos têm colocado à disposição dos dois subsistemas, da descri-
minação negativa dos Institutos Politécnicos para a qualificação do corpo docente e
da ausência de financiamento da investigação nos Institutos); que também no que se
refere à natureza das formações a aproximação é evidente, na medida em que hoje as
universidades nas suas formações não podem deixar de ter em conta a empregabilida-
de dos seus diplomados82. Aliás, convém recordar, porque frequentemente esquecida,
de acordo com os princípios da Declaração de Bolonha o 1º ciclo, no Espaço Europeu
de Ensino Superior deve ser relevante para o mercado de trabalho, seja ministrado
numa universidade ou num politécnico.
Esta aproximação resultou em boa parte da dinâmica do próprio processo e da
necessidade de dar resposta aos atrasos de décadas na qualificação dos portugueses83.
Com efeito, se tivermos em conta que, de acordo com o Censo 2001 (Instituto Na-
cional de Estatística [INE], 2002), em 1981, apenas 2,6 % da população portuguesa
tinha formação de nível superior, valor que subiu para 4,9 %, em 1991 e 10,6 %,
em 2001, é fácil entendermos que havia um forte espaço para crescimento no ensino
superior, espaço de crescimento que em boa verdade se perceberá que continua a
existir, se tivermos em conta a distância que nos separa da média dos 25 países da
União Europeia (24,3% na EU 25, 12,9% em Portugal, dados de 2005) e que se torna
ainda bem mais preocupante se analisarmos os dados relativos aos níveis de ensino
que antecedem o ensino superior.
Em Maio de 2005 o XVII Governo constitucional apresenta na Assembleia da
República uma proposta de alteração à Lei de Bases do Sistema Educativo. Com ela o
Governo pretendia proceder às alterações necessárias à implementação do Processo
de Bolonha, nomeadamente através da definição dos ciclos e da sua duração, quer
81 Simão, José Veiga, Costa, António de Almeida. (2000). Op. cit., p.33-41.
82 Malcata, F. X. (2001). A universidade e a Empresa. Cascais: Principia, pp. 44-66.
83 Arroteia, Jorge. (1996). Ibidem.,pp. 43-61.

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dar início a um processo de “clarificação” dos campos de actuação do subsistema
universitário e do subsistema politécnico.
Nessa oportunidade, também o Bloco de Esquerda (BE), o Centro Democrático
Social/Partido Popular (CDS/PP) e o Partido Comunista Português (PCP) e o Partido
Social Democrata (PSD) apresentaram Projectos de Lei ao Parlamento. Ao mesmo
tempo que a Proposta de Lei do Governo foram discutidos na Assembleia da Repú-
blica os Projectos de Lei n.º 52/X, do BE, 54/X, do CDS/PP, 55/X e 59/X, do PCP, que
no essencial, reflectiam as posições defendidas pelos Partidos proponentes na fase
de discussão da então Proposta de Lei de Bases da Educação, na anterior legislatura,
nomeadamente no concerne ao afastamento da lei das limitações administrativas à
concessão do grau de doutor pelos Institutos Politécnicos.
Por sua vez, o Projecto de Lei n.º 55/X, do PSD mantinha a reserva da concessão
do grau de doutor às universidades em coerência com a Proposta de Lei de Bases da
Educação apresentada pelo então Governo PSD/CDS/PP na anterior legislatura. A
surpresa, confessa-se, veio do lado da Proposta de Lei n.º 7/X, apresentada pelo Go-
verno à Assembleia da República, que não só contradiz em aspectos essenciais (vide,
a questão da competência para conferir o grau de doutor) o Projecto de Lei então
apresentado pelo Partido Socialista na anterior legislatura, como contradiz o próprio
Programa do Governo.
Com efeito, na Proposta de Lei n.º 7/X, “ Segunda alteração da lei n.º 46/86, de 14
de Outubro, que estabelece a Lei de Bases do Sistema Educativo, regulando a organização
de Graus e Diplomas do Ensino Superior, na sequência do processo Europeu de Bolonha”,
entrada na Assembleia da República a 3 do corrente mês de Maio de 2005, o Governo
mantinha exclusivamente reservada às universidades a concessão do grau de doutor.
Face à redacção proposta para o ponto 9 do artigo 13º- A, propõe-se expressamente:
“o grau de doutor é conferido no ensino universitário”, excluindo-se o ensino politécnico.
Ora, na anterior legislatura e apenas alguns meses antes, o Partido Socialista, en-
tão na oposição, fazia depender a competência para conferir o grau de doutor da
verificação prévia de requisitos de natureza científica e pedagógica, comuns a todas as
instituições, reconhecendo àquelas que os reunissem a possibilidade de o conferir e
negando-o às instituições que deixassem de os reunir os reunir – independentemente
da designação universidades ou politécnicos.
Este fora o compromisso assumido inequivocamente no Programa Eleitoral84
apresentado aos portugueses nas eleições de 20 de Fevereiro último. Este era o com-
promisso assumido pelo Governo no Programa85 que apresentou à Assembleia da
República. Nele se escreve “Em particular, a possibilidade de concessão de graus aca-
démicos deixará de estar fixada por critérios unicamente administrativos, para passar
a depender da satisfação de requisitos exigentes e comuns, de qualidade”.
84 Partido Socialista, Programa Eleitoral, em http://www.ps.pt.
85 Governo, Programa de Governo, em http://www.portugal.gov.pt/Portal/PT.

54 ›
Procurou o Conselho de Ministros quando anunciou as matérias inovadoras da Pro-
posta de Lei suavizar a violação do Programa salientando que a Lei vira consagrar “a
adopção do modelo de três ciclos de estudos conducentes aos graus de licenciado, mestre
e doutor, alargando ao ensino politécnico a possibilidade de conferir o grau de Mestre,
sem prejuízo de, na regulamentação do sistema de graus, se vir a prever a cooperação
entre universidades e politécnicos no ciclo de estudos conducente ao grau de Doutor.”86.
As propostas do Governo foram aprovadas na Assembleia da República e tornadas
força de lei com a publicação da Lei n.º 49/2005, de 30 de Agosto. O Governo com o seu
primeiro diploma para o ensino superior deixou claro que, não obstante o seu Programa
de Governo, iria desenvolver uma política de aprofundamento da diferenciação dos dois
subsistemas de ensino.
Posteriormente, com a publicação do Decreto-Lei n.º 74/2006, de 24 de Março, a
política de diferenciação dos dois subsistemas de ensino superior que a revisão da Lei
de Bases do Sistema Educativo já revelara acentuou-se. Com efeito, o Decreto-Lei n.º
74/2006, de 24 de Março que aprova o regime dos graus académicos e diplomas do
ensino superior, acentua em relação à Lei n.º 49/2005, de 30 de Agosto, a diferenciação
entre ambos os subsistemas (estendendo-a aos graus em que a própria Lei de Bases o
não fazia) não só ao introduzir a distinção entre mestrados académicos e profissionais
restringindo a estes a competência dos Institutos Politécnicos, como quando a alarga
à própria duração do 1º ciclo (licenciatura) que fixa como regra em 180 créditos (seis
semestres) para o ensino politécnico e entre 180 a 240 créditos (seis a oito semestres)
no ensino universitário.
A principal inovação, porém, no sentido da diferenciação da natureza das formações
universitárias e politécnicas resulta do artigo 7º, no que concerne ao grau de licenciado
e dos n.ºs 3 e 4 do artigo 18º no que concerne ao grau de mestre. Em relação ao grau de
licenciado determina o n.º 3 do artigo 7º que “no ensino politécnico, o ciclo de estudos con-
ducente ao grau de licenciado deve valorizar especialmente a formação que visa o exercício
de uma actividade de carácter profissional, assegurando aos estudantes uma componente
de aplicação dos conhecimentos e saberes adquiridos às actividades concretas do respectivo
perfil profissional”. E quanto ao grau de mestre, estabelece o n.º 3 do artigo 18º, que “no
ensino universitário, o ciclo de estudos conducente ao grau de mestre deve assegurar que o
estudante adquira uma especialização de natureza académica com recurso à actividade de
investigação, inovação ou de aprofundamento de competências profissionais”, enquanto,
em relação ao ensino politécnico, dispõe o n.º 4 do mesmo artigo “no ensino politécnico,
o ciclo de estudos conducente ao grau de mestre deve assegurar, predominantemente a aqui-
sição pelo estudante de uma especialização de natureza profissional”.
Por outro lado, são estabelecidos critérios comuns de exigência de qualificação do
corpo docente para que uma instituição de ensino superior, independentemente da
natureza da sua formação, possa conferir um determinado grau académico.
86 Comunicado do Conselho de Ministros de 28 de Abril de 2005. Em http://www.portugal.gov.pt/Portal/PT.

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A diferente missão das instituições universitárias e politécnicas irá, ainda, ser
aprofundada na lei, com a publicação do novo Regime Jurídico das Instituições de
Ensino Superior (RJIES), aprovado pela Lei nº 67/2007, de 10 de Agosto, que procura
criar as condições legais objetivas para impor o sistema binário, nomeadamente ao
acentuar a caracterização do corpo docente universitário do corpo docente politécni-
co, em razão da designação das instituições e não da natureza das formações.
Para os Institutos Politécnicos o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Supe-
rior constitui, porém, e apesar disso, um marco importante do seu desenvolvimento.
Os Institutos Politécnicos, ao aceitarem contribuir crítica e construtivamente para a
revisão das Leis de Autonomia das Universidades e dos Institutos Politécnicos, que de
há muito se impunha, e ao empenhar-se na sua aprovação viram consagrado na Lei
um Regime de Autonomia que no essencial é comum a ambos os subsistemas e que
constituiu um ponto de viragem do seu estatuto perante o poder político.
O poder político passou a reconhecer ao ensino superior politécnico, por inteiro
mérito dos Institutos, o estatuto de parceiro de pleno de direito na definição das po-
líticas para o ensino superior, estatuto que até então apenas reconhecia às universida-
des Dir-se-ia que os Institutos impuseram ao poder político o pleno reconhecimento
da sua maioridade. Mas deve recordar-se que, tal como a liberdade para os cidadãos
se constrói e consolida todos os dias, também o estatuto de parceiro de pleno direito
dos Institutos não é um dado adquirido, ele constrói-se e consolida-se em cada dia.
O principal reflexo desse reconhecimento estará, sem dúvida, na ampla revisão
do Estatuto da Carreira do Pessoal Docente do Ensino Superior Politécnico, aprova-
da pelo DL 207/2009, de 31 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei nº
7/2010, de 13 de Maio. Com a aprovação da revisão do Estatuto da Carreira Docente
deu-se um passo de gigante para a qualificação das instituições de ensino superior,
universidades e politécnicos, públicos e privados, através da qualificação do seu cor-
po docente, tornada agora num objectivo comum de curto prazo para as instituições
e os seus docentes.
A qualificação das instituições num horizonte temporal de cinco ou seis anos
colocará de novo na ordem do dia a discussão em torno da missão das instituições
de ensino superior, universitárias e politécnicas, das suas competências e dos seus
objectivos e creio, tornará cada vez mais difícil tentar persistir em diferenciações que
são puramente artificiais.
Com isto desejamos retomar a reflexão em torno da missão das instituições de
ensino superior, universidades e institutos politécnicos. Aceita-se, consensualmente,
como missão das universidades e dos institutos politécnicos: o ensino/aprendizagem,
a investigação e as actividades de extensão, entendendo-se estas como actividades
de inovação, transferência e valorização e económica do conhecimento. O que dis-
tinguirá as instituições quanto à missão será o grau e a natureza de cada uma destas
dimensões da missão, sustentado, de algum modo, de um discurso de nova tonali-
56 ›
dade segundo o qual a distinção dos subsistemas não assenta na qualidade mas na
diferente missão das instituições e na natureza da formação. E assim, a missão ensi-
no/aprendizagem terá no ensino politécnico uma matriz mais profissionalizante por
contraposição a uma matriz mais conceptual do ensino universitário, a investigação
será no ensino politécnico uma investigação mais aplicada por contraposição a uma
investigação mais fundamental no ensino universitário e as actividades de extensão
será no ensino politécnico uma actividade mais centrada nas regiões por contraposi-
ção a uma actividade visando o todo nacional das universidades.
Esta construção é a artificial e é feita com base numa limitação legal da actividade
das instituições e não numa limitação real de competências científicas e pedagógicas.
É artificial no quadro do EEES a distinção do ensino/aprendizagem pela natureza da
formação, pelo menos no quadro do Processo de Bolonha. O 1º ciclo (licenciatura)
nas universidades ou nos institutos politécnicos tem que ser relevante para o mer-
cado de trabalho, o que significa que não poderão deixar ambos de qualificar para a
entrada na vida activa. A distinção nos segundos ciclos não resulta de uma limitação
baseada em critérios de natureza científica ou pedagógica mas apenas de disposições
limitativas legais, o mesmo sucedendo quanto ao 3º ciclo.
Também no que concerne à investigação a distinção é artificial e não tem qual-
quer correspondência com a realidade. Indistintamente em universidades e institutos
faz-se investigação fundamental e aplicada e as diferenças quantitativas e qualitativas
resultam essencialmente dos diferentes níveis de qualificação e financiamento das
instituições e não de quaisquer outras razões ou factores.
Por último, no que concerne à contribuição para o desenvolvimento das regiões
e do País, todas as instituições de ensino superior contribuem, desde a sua criação
para o desenvolvimento económico e social de um local, uma região e um país.
Todas as instituições de ensino superior geraram desde sempre benefícios econó-
micos para as comunidades em que se inserem, quer através das despesas directas
com a aquisição dos bens e serviços necessários ao seu funcionamento, quer das
despesas efectuadas pelos seus alunos, professores e demais funcionários e dos seus
efeitos multiplicadores sobre o emprego e o rendimento, embora este seja, talvez,
o aspecto menos importante do impacto do ensino superior no desenvolvimento
local, das regiões e do país.
O impacto maior será o efeito multiplicador que exercem sobre a economia e a
sociedade em resultado da criação, transmissão e fixação do conhecimento, da trans-
ferência e valorização económica, cultural e social do conhecimento, que constitui
o núcleo central da missão das instituições de ensino superior. E este é tanto maior
quanto mais qualificadas forem as instituições.
A missão das instituições de ensino superior é hoje, como referimos, muito clara:
ensino e formação, investigação, transferência e valorização económica do conhe-
cimento., competindo às instituições aceitar o desafio enorme que os objectivos da
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Estratégia de Lisboa, o quadro comparado entre Portugal e os países que integram a
União Europeia e os demais mercados com os quais competimos nos colocam.
É público que se tem vindo a proceder, desde 2005, a uma ampla reforma da
legislação que regulava o sistema de ensino superior Foi publicada legislação que
abriu o ensino superior a novos públicos através de vias alternativas de acesso,
como o M-23, os Cursos de Especialização Tecnológica e que permitiu recuperar
para o ensino superior públicos que o sistema já havia perdido ou a que dificultava
a mobilidade, como os regimes de reingresso, transferência e mudança de curso.
Foi publicado o novo regime de avaliação, o novo regime de graus e diplomas,
o RJIES, as alterações ao ECPDESP, em boa verdade mexeu-se em todo o edifí-
cio legislativo que regula o ensino superior, com excepção em parte do regime de
financiamento (quanto a este algumas alterações avulsas em diplomas dispersos
longe de contribuírem para a estabilidade do sistema agravaram a debilidade do
financiamento das instituições).
É neste quadro que o País e as instituições são confrontados com um conjunto
de desafios que o País terá de vencer: o primeiro é o da “resistência à mudança” que
tem caracterizado o ensino superior em Portugal; o segundo é a adopção de um sis-
tema de ensino superior de competências em vez do sistema binário de instituições
assente nas designações; o terceiro é o reforço do sistema binário de formações dentro
de um sistema unitário assente nas competências; o quarto é a definição de toda a
educação pós-secundária como formação superior; o quinto é a alteração do modelo
de financiamento, substituindo o actual modelo por um modelo de financiamento
por objectivos; o sexto é o risco de se ceder à tentação de fazer crescer o número de
diplomados administrativamente; o sétimo é a reforma da rede de estabelecimentos
de ensino superior, para que partindo de uma rede frágil, se possa construir uma rede
forte, com recursos financeiros adequados ao desempenho da missão das instituições,
com massa crítica de professores e alunos.
Algumas notas, apenas, sobre cada uma delas: em relação ao primeiro, a adopção
de um sistema de ensino superior de competências em vez do sistema binário de ins-
tituições assente nas designações. O sistema binário de instituições (universidades e
politécnicos) surgiu em Portugal nas condições que anteriormente referimos e, como
todos sabemos, inspirado no modelo criado no Reino Unido em 1968 e que o Reino
Unido abandonou em 1993, depois de fortemente questionado desde, pelo menos,
1988. Alguma doutrina nacional tem justificado a manutenção do sistema binário
português com o argumento de que o exemplo inglês deu maus resultados, o que,
pensamos, só alguma desatenção continua a permitir. Na verdade, se é possível en-
contrar alguns autores vindos das universidades tradicionais que inicialmente mani-
festaram reservas ao regresso do Reino Unido a um sistema unitário, essas referências
foram desaparecendo à medida que alguns dos anteriores institutos politécnicos se
transformaram em algumas das mais prestigiadas universidades inglesas de hoje.
58 ›
Referimos que é necessário o reforço do sistema binário de formações dentro de um
sistema unitário assente nas competências. As instituições devem poder ministrar as
formações necessárias ao desenvolvimento das regiões e do País, desde que possuam as
competências científicas e pedagógicas exigíveis para o efeito, sem limitações de natu-
reza administrativa e ou legal, que mais não são de que um exemplo acabado da cultura
do desperdício de recursos que tem caracterizado o País nas últimas décadas e que nos
conduziu à situação económica e social difícil em que hoje nos encontramos.
Referimos, também, que é indispensável definir toda a educação pós secundária
como educação superior, reequacionando o sistema de formação e o sistema de graus
académicos. Assinalamos como fortemente positivos os Cursos de Especialização Tec-
nológica. O Curso de Especialização Tecnológica (CET) é legalmente definido como
uma formação pós-secundária não superior que visa conferir qualificação profissional
do nível 4. Esta definição pela negativa, situando-o algures num limbo entre o ensino
secundário e o ensino superior deve ser claramente repensada. Pensamos que a dura-
ção mais adequada da formação, segundo a avaliação que fazemos, seria de dois anos,
dos quais, seis meses deveriam decorrer em ambiente de trabalho e que esta formação
devia ser considerada, sem equívocos, formação superior de curta duração.
Quanto ao modelo de financiamento do ensino superior. O actual modelo, assente
essencialmente em valores quantitativos (número de alunos, número de professores,
remunerações efectivas) é, na nossa opinião, um dos responsáveis pelas dificuldades
do desempenho do sistema de ensino superior. As instituições, para assegurarem o
seu financiamento seguiram uma política de crescimento de cursos e de alunos inde-
pendentemente de disporem ou não dos recursos humanos e materiais adequados.
Adoptaram-se as designações mais apelativas independentemente de se mostrarem
as mais adequadas face ao núcleo central de formação. Criaram-se cursos só porque
noutras instituições revelavam capacidade para atrair alunos. Entendemos que o ac-
tual modelo deve ser substituído por um modelo de financiamento por objectivos,
plurianual e contratualizado, adequado aos objectivos fixados por cada e para cada
instituição e aos recursos adequados para os concretizar.
Referimos, ainda, a necessidade de prevenir o risco de se ceder à tentação de fazer
crescer o número de diplomados administrativamente. O processo de ensino/apren-
dizagem, de acordo com o paradigma de Bolonha é um processo de co-produção em
que o actor principal é o aluno (um processo cooperativo entre o aluno, o docente e a
instituição enquanto organização). As instituições não podem deixar de ser responsa-
bilizadas pelos resultados, mas as instituições não podem assumir compromissos de
resultados quantitativos independentemente dos meios e recursos que sejam postos
à sua disposição. Por outro lado, é fundamental que o ensino a distância seja im-
plementado de acordo com os conhecimentos e as metodologias que as instituições
internacionais mais bem-sucedidas já comprovaram, sabendo resistir á cultura de
improvisação que em matéria de ensino não dá reconhecidamente bons resultados.
‹ 59
Também no alargamento do ensino pós-laboral não poderá deixar de ser tido em
conta os públicos a que se destina, adequando os métodos pedagógicos.
Por último, uma breve reflexão sobre a reforma da rede de ensino superior. A
expansão da rede de estabelecimentos de ensino superior, como todos sabemos, não
obedeceu a critérios de adequabilidade e de necessidade do sistema de ensino supe-
rior, mas essencialmente a critérios de oportunidade eleitoral, como facilmente se
percebe pelos momentos em que as últimas fases de expansão ocorreram. O resultado
foi a criação de uma rede dispersa, frágil e sem massa crítica. A reforma da rede de
estabelecimentos de ensino superior é essencial se não se quiser pôr em causa todo o
sistema de ensino superior. Não só por razões de recursos financeiros, que o Estado
poderia suprir se dispusesse de meios para o efeito, mas essencialmente por razões de
qualidade. Um excelente contributo para a reforma da rede de estabelecimentos será
permitir que as instituições livremente se articulem entre si, eliminando as barreiras
administrativas a quaisquer formas voluntárias de associação, seja no domínio da
oferta formativa, seja no domínio dos modelos institucionais.

Luciano Rodrigues de Almeida


Professor do Ensino Superior Politécnico
(Ex-Presidente do Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos
e do Instituto Politécnico de Leiria)

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Eduardo Marçal Grilo 87

Liderar, é conduzir um projecto

Chegou à Avenida 5 de Outubro por acaso. É assim que Eduardo Marçal Grilo,
explica a sua viagem desde a Avenida Nuno Álvares, em Castelo Branco, até ao Mi-
nistério da Educação. “Nunca tive ambições profissionais em chegar a ministro”, diz.
Aos 56 anos, aquele albicastrense que por aqui viveu a sua juventude, acrescenta que
está ligado aos problemas educativos desde 1976. “Nessa altura fui Director Geral do
Ensino Superior. A partir dessa data realizei trabalhos na área da educação, quer em
Portugal, quer no estrangeiro. Tive também alguma intervenção como cidadão. Gosto
de fazer coisas que beneficiem as pessoas e a educação enquadra-se nesse contexto.
Talvez tenham sido esses alguns dos factores de ter sido o escolhido pelo Eng. Antó-
nio Guterres”.
Admirador de Mário Soares e António Guterres, Marçal Grilo acabou por sair do
Partido Socialista em 1981, numa altura em que havia uma grande luta política entre
o antigo Presidente da República e o Grupo do Secretariado, que integrava o actual
Primeiro-ministro. “Senti que tinha que fazer uma escolha que não queria fazer. Tinha
e tenho uma grande admiração pelo Dr. Mário Soares, pelo Eng. António Guterres e
por outras pessoas que pertenciam ao Grupo do Secretariado. Optei por aquela posi-
87 Ministro da Educação do XIII Governo Constitucional (1995-1999). Governo do PS, de maioria relativa, liderado por
António Guterres, após 10 anos de Governos do PSD, liderados por Cavaco Silva. Cumpriu o objectivo inédito de se manter
à frente do Ministério da Educação durante toda uma legislatura. Reconhecido internacionalmente como um dos maiores
peritos em políticas educativas é, actualmente, administrador da Fundação Calouste Gulbenkian, lugar que ocupa desde
Outubro de 2000.
Entrevista realizada por João Ruivo, João Carrega e Vítor Tomé, em Outubro de1998.

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ção e o tempo deu-me razão. O Dr. Mário Soares, depois disso, foi Primeiro-ministro
e Presidente da República. Um presidente inesquecível e uma pessoa inesquecível da
vida política portuguesa e incontornável no século XX. O Eng. António Guterres, do
meu ponto de vista, para lá caminha”.
Sportinguista assumido, Eduardo Marçal Grilo considera-se uma pessoa bem-dis-
posta. Com dois filhos, garante que enquanto Ministro nunca fez nenhuma noitada
com estudantes, numa discoteca. “Raramente faço noitadas. Tenho uma vida muito
regrada. Mas tinha muito gosto em fazer uma noitada com eles. Era capaz de o fazer,
até porque sou mais divertido do que as pessoas pensam. Há muita gente que tem
uma imagem de mim como pessoa muito séria, mas eu gosto muito de me divertir.
Sou uma pessoa que cultivo o humor e que gosto imenso de me divertir e de criar
situações para que isso aconteça”, explica. Para o Ministro da Educação “a vida não
se resume só à sua parte séria. Há uma parte que está relacionada com as emoções, o
divertimento, sentimentos e encanto”.
Embora não tenha uma cultura musical de base, o que o entristece de certa forma,
Eduardo Marçal Grilo é um apaixonado pela música clássica. Entre Miles Davis e
Chopin, não hesitou em optar pelo compositor de música clássica. Embora realce que
também gosta muito de ouvir Miles Davis. “Sou um grande apreciador de música. O
meu pai era um grande admirador de ópera e operetas. Esse gosto cresceu também
comigo. Hoje, sempre que posso, assisto a óperas e gosto muito dos grandes compo-
sitores, como Mozart, Bethoveen, Sibelius ou Mahler”. Na literatura, prefere José Sa-
ramago. “Soube que tinha ganho o Prémio Nobel, quando eu estava em Moçambique,
com o Primeiro-ministro. Fiquei bastante satisfeito e durante a homenagem que lhe
foi feita, no Centro Cultural de Belém, disse-lhe quanto aprecio a sua obra”.
Da cidade que o viu nascer recorda os anos 50, em que Castelo Branco era um
centro urbano amável, com características rurais. “Tinha os mercados às segundas-
feiras, onde iam muitas pessoas das aldeias em volta. O tráfego era nulo. Nós co-
nhecíamos todos os carros da cidade. Estavam sempre parados no mesmo sítio”,
lembra. Para Marçal Grilo, hoje Castelo Branco é muito turbulenta, “com muitos
dos inconvenientes da vida moderna, e sem muitas das vantagens que daí poderiam
resultar. No entanto, continua a ser uma cidade com uma componente educativa
muito forte”.
Há 30 anos, Eduardo Marçal Grilo conhecia a cidade como os dedos das suas
mãos. “Agora há uma parte que me é familiar e outra em que me sinto estranho”.
E acrescenta: “Castelo Branco é uma cidade com futuro que se desordenou, numa
determinada altura, penso que de forma involuntária. Cresceu muito, tornou-se um
bocadinho anárquica, mas continua a ter zonas muito acolhedoras e simpáticas”.
As férias, essas, não as passa em Castelo Branco. “Faço três semanas de férias por ano.
Numa delas aproveito para passear em Portugal, ou no estrangeiro. Este ano fui à Escócia.
As outras duas passo-as numa casa que possuo, junto à Praia das Maçãs”, conclui.
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Pré-Escolar
Um desafio ganho
Para o ministro Marçal Grilo, o pré-escolar, a sua grande aposta, está ganha. O nú-
mero de alunos aumentou e situa-se hoje nos 70 mil. Mas o ministro ressalta também
o papel fundamental das instituições particulares de solidariedade social que, segun-
do diz, deixaram de ser instituições de guarda de crianças para se transformarem em
instituições educativas.

É um regionalista convicto?
Eu não sou um regionalista no sentido da regionalização política. Diria mesmo
que sou frontalmente contra a regionalização política. Mas sou um regionalista no
que se refere à regionalização administrativa. O País não foi capaz de resolver nunca,
o problema da inexistência de uma entidade intermédia entre os municípios e o Go-
verno. Essa entidade deve ter três funções essenciais, a coordenação, o ordenamento
e a planificação. No Ministério da Educação sentimos isso. Quando vamos transferir
para os municípios as funções ao nível do investimento em edifícios escolares da es-
colaridade obrigatória, perguntamo-nos que tipo de distribuição se faz quando temos
306 municípios. Dispomos por exemplo de 40 milhões de contos. Dividimos 40
milhões por 306 e cada município recebe uma migalha, ou fazemos uma distribuição
estratégica por cinco, seis, sete ou oito regiões e cada região decide depois onde é
que aplica esse dinheiro. É fazer uma escola no Concelho de Belmonte ou fazer uma
escola no Concelho de Castelo Branco ou no Concelho da Sertã? Esta é uma decisão
que deve ser tomada ao nível regional.

Aponta as direcções regionais de educação ou os centros de área educativa


como bons exemplos de descentralização?
As direcções regionais são órgãos da administração central, apesar de colocadas
regionalmente. Não há ali nenhum contributo da parte da região mas elas são formas
de tomar as decisões mais próximas dos interesses das populações.

Não pensa que poderá haver alguma colisão entre a presumível autonomia
das escolas e a intervenção dessas estruturas?
Não. São linhas que vão em paralelo. Não há nenhuma incompatibilidade entre o
que é um processo que valoriza o papel do município e o papel da região, se houver
regiões, bem como o papel da escola e da sua autonomia.

Se umas escolas já têm autonomia e outras não, não haverá aí um efeito jacu-
zzi em relação às outras que não estão nessa situação?
Neste momento, 85 por cento das escolas estão a caminhar para a autonomia. As
outras, se não estão, é devido a problemas meramente conjunturais.
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A ligação directa da escola com outras instituições como câmaras e Governo
não poderá gerar entropias no processo?
A gestão está directamente relacionada com os agrupamentos criados em Maio
passado. Há uma perfeita compatibilidade entre projecto de escola ou de agrupa-
mentos de escolas e autonomia de escola ou de agrupamentos de escolas e a admi-
nistração onde estão, autarquias, regiões, ou Governo central. Esta compatibilidade
faz-se através de uma contratualização que o próprio diploma prevê. A escola, ou
o agrupamento de escolas, pode fazer um acordo e um contrato de autonomia em
que entra, por um lado, a autarquia e, por outro, o Governo Central. Um contrato
a três em que não há nenhuma sobreposição de funções. Quem conduz o projecto
é a escola, com os seus órgãos próprios, como o conselho directivo, a assembleia
da escola, o conselho pedagógico, que se organizaram e definiram um projecto. A
autarquia e o Governo central são as outras partes do contrato no sentido de assu-
mirem determinados compromissos que viabilizam o projecto que a escola tem e
quer executar.

O pré-escolar, que é outra das suas grandes prioridades: Tem crescido? Há


mais crianças inscritas?
Nos três primeiros anos desta legislatura criámos o quadro jurídico, que pas-
sou pelo Parlamento e fez actuar um conjunto de mecanismos que levam tempo.
Depois houve um período intenso de negociação com os vários parceiros, nome-
adamente as instituições particulares de solidariedade social, com a Associação
Nacional de Municípios, e entre o Ministério da Educação e o Ministério da Segu-
rança Social e da Solidariedade.

Da parte das famílias, houve uma mudança de cultura que propicie o enten-
dimento do Jardim de Infância como uma necessidade para o filho?
A mentalidade não se altera por decreto. O que temos feito, e penso que já conse-
guimos, foi transformar o pré-escolar numa necessidade sentida da sociedade. Penso
que o êxito é absoluto. Fizemos algumas campanhas no sentido de sensibilizar as
famílias para a importância do pré-escolar. Mas, sobretudo, criámos as condições
para que as instituições que tinham como objectivo o apoio social às famílias se trans-
formassem. Eram vistas como locais de guarda dos filhos enquanto os pais trabalha-
vam, e agora são instituições educativas. Porque passámos a suportar integralmente
a componente educativa nessas instituições. Hoje, estas instituições têm cerca de 70
mil crianças, o que é um universo razoável, mas o gradualismo da solução implica
que só consigamos atingir o patamar que pretendíamos, sobretudo para o estatuto
dos educadores, no ano 2000 a 2001. A discrepância entre os educadores que esta-
vam no sistema privado e no sistema público era tal , que tivemos que encontrar um
mecanismo de nivelamento através de uma escala que em três anos faz a actualização.
64 ›
Ensino Superior
UBI e IPCB sabem o que querem
O ministro da Educação, Eduardo Marçal Grilo, considera que a Universidade
da Beira Interior e o Politécnico de Castelo Branco estão na trajectória certa, sabem
o que querem e têm uma boa liderança. Ainda assim, o curso de medicina e a escola
superior de artes são questões que continuam a ser analisadas, esperando-se, para
breve, uma decisão final.
A integração das escolas de enfermagem em instituições do ensino superior está a
ser analisada neste momento e Marçal Grilo não exclui a integração dessas escolas nos
politécnicos. Tem é a certeza que não pode ser tomada uma decisão igual para todas
as escolas. Quer ver a integração analisada caso a caso.
Caso é também o afastamento dos jovens dos cursos das áreas das tecnologias,
quando as tecnologias são cada vez mais importantes e necessárias à vida do cidadão
comum. O afastamento é um facto atribuído às dificuldades na matemática, que se-
gundo afirma o ministro, deve ter um papel central na formação dos jovens. Ainda
mais numa altura em que a formação ao longo da vida assume uma importância cres-
cente, porque acabou o tempo em que a vida se dividia nas três fases, a de estudar, a
de trabalhar e a da reforma.

O ensino politécnico já atingiu uma dimensão adequada ou continua a ser


uma prioridade?
O ensino politécnico continua a ser uma aposta importante e uma área que, do
meu ponto de vista e do ponto de vista do Governo, é um sector que tem de continu-
ar a crescer. Este ano tem já um crescimento significativo, quer em termos de número
de alunos quer em termos orçamentais.

Ainda assim, o Governo está a investir mais em infra-estruturas destinadas


ao ensino superior universitário...
O ensino politécnico faz parte do ensino superior, tal como o ensino universitário.
Não há nenhuma destrinça entre um e outro. A única diferença é na sua estrutura or-
gânica, que é mais flexível, mais ágil. Mas a grande diferença está na índole. O ensino
politécnico é mais virado para a empregabilidade, mais próximo das profissões e da
carreira profissional.

Se tivesse um filho que quisesse frequentar um curso, aconselhava-o a fre-


quentar a UBI ou o Politécnico de Castelo Branco?
Tenho dois filhos. Um fez um curso universitário e outro começou por fazer um
curso no ensino politécnico. Penso que ambos se realizam, ambos têm uma formação
de base que lhes permite atingir os objectivos que pretendiam. É preciso dizer, no
entanto, que hoje o curso de base não marca definitivamente o profissional. O curso
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universitário ou politécnico é apenas o primeiro passo para que a pessoa possa apren-
der a aprender.

Isso significa que dá muita importância ao relatório Delors?


Ao relatório Delors e àquilo que tem sido escrito nos últimos dez anos. Não há nenhu-
ma dúvida que a educação ao longo da vida é o que vai caracterizar o próximo século.

Portanto desvaloriza mais a formação inicial para valorizar a formação ao longo


da vida?
Não diria desvalorizar, porque a formação inicial é muito importante, sobretudo se for
uma formação de base sólida e alargada. Mas não é, por si só, condicionadora da carreira
do profissional, do cidadão ou do diplomado.

Concretamente em relação às instituições do ensino superior do Distrito de Cas-


telo Branco, pensa que a UBI e o IPCB estão no caminho certo?
Penso que sim. São duas instituições muito jovens. A UBI nasceu nos anos 70 e o
Politécnico de Castelo Branco no início dos anos 80. São instituições que estão longe de
estar consolidadas, mas a trajectória que têm, e mais que isso, a capacidade que hoje lhes
vejo, para poderem corrigir essa trajectória, é a certa.

Quer dizer que a sua juventude lhes dá mais plasticidade?


Dá mais plasticidade e depois têm uma liderança que é adequada. Sabem o que
estão a fazer.

Para ajudar a consolidar, já se poderá dizer que a UBI terá o curso de medicina e
o Politécnico terá a escola superior de artes?
A consolidação de uma instituição pode não passar pelo seu alargamento. É per-
feitamente possível que estas instituições se consolidem sem serem alargadas, sem
serem expandidas, sem terem mais escolas ou mais cursos.

Mas mantém na sua secretária a hipótese de estudo da abertura da escola


superior de artes e do curso de medicina?
Os cursos de medicina têm uma lógica própria que foi criada pelo Conselho de
Ministros através de uma resolução e portanto aí não vou fazer nenhuma declaração.
Porque é uma questão relacionada com um trabalho que está por apresentar por parte
de um grupo que foi nomeado a partir dessa mesma resolução. E só não está pronto
porque um dos elementos do grupo teve um problema do foro pessoal. Relativamente
ao crescimento do Politécnico de Castelo Branco, penso que o próprio Politécnico
definiu uma determinada linha de crescimento que me parece ser defensável e que
deve ser apoiada.
66 ›
Os autarcas do Fundão e da Sertã têm insistido junto do Politécnico, no
sentido de conseguirem pelo menos um pólo daquela instituição nos seus
concelhos. Pensa que isso será possível?
Nós não fazemos pólos. Fazemos escolas. E o Politécnico pode-se expandir.
Sou favorável, repito, à criação de uma escola no domínio das artes. A de saúde
não pode ser vista independentemente do resto do País e da lógica das escolas de
enfermagem no sentido genérico. A criação de outras escolas depende do plano
de desenvolvimento do Politécnico. Não cabe ao Ministério dizer se deve ou não
haver escolas. Até Janeiro ou Fevereiro todos os politécnicos e universidades te-
rão de ter concluído o seu plano de desenvolvimento. Depois estudaremos esses
planos e elaboraremos o plano de desenvolvimento do Governo, que não poderá
ser o somatório dos planos de todos os politécnicos e universidades. Os recur-
sos são limitados, mas gostaríamos que, na lógica do 3º Quadro Comunitário de
Apoio, a partir do ano 2000, fosse possível satisfazer e dar corpo aquilo que os
politécnicos e universidades pretendem fazer nos próximos quatro a seis anos.
Por isso vamos estabelecer, com cada um deles, a lista de prioridades e daremos
o apoio respectivo.

Que opinião tem acerca do trabalho dos institutos superiores privados


do Distrito?
As instituições privadas têm o reconhecimento da parte do Estado e não sou
eu que emito uma opinião sobre a qualidade das instituições. As instituições são
sujeitas a um processo de avaliação, a um sistema de controlo que temos aqui a
funcionar. O que os estudantes frequentam, são cursos que têm o reconhecimen-
to oficial. Em relação à criação de licenciaturas temos sido cuidadosos no alarga-
mento do núcleo de cursos. Tem havido pelo País um indiscriminado crescimento
dos cursos que são oferecidos aos estudantes e temos que ser cuidadosos.

Quer dizer que há cursos a mais no ensino superior?


Não diria que há demasiados cursos, mas sim que há demasiadas especiali-
zações, cursos de banda estreita que foram criados nos últimos 15 anos, sem ter
em conta os conceitos mais actuais de empregabilidade. Antes os cursos eram
muito virados para uma profissão. Pensou-se que isso era possível. Hoje são de-
finitivamente para bandas largas, de forma a aumentarem a empregabilidade. Um
diplomado deve ter um leque de escolhas, embora continuem a existir cursos
que, pela sua índole, são direccionados para uma determinada profissão. Um cur-
so de medicina forma médicos e um médico tem um determinado perfil à saída,
mas hoje diversifica enormemente a sua actividade, o que pressupõe uma grande
formação de base. Até porque a actividade da medicina hoje é uma imensidão de
sub-actividades.
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É da opinião que as escolas superiores de enfermagem devam ser integradas
nos institutos superiores politécnicos?
Estamos neste momento a fazer um estudo sobre isso. Há no país cerca de 25
escolas de enfermagem e mais algumas escolas técnicas de saúde. Todas têm dupla
tutela e não estão integradas nos politécnicos, embora façam cursos de nível poli-
técnico. Têm que ser tomadas algumas medidas. Não excluo que haja uma articu-
lação das escolas de enfermagem com os politécnicos. Não excluo que possam ser
integradas, que algumas escolas possam ter outro tipo de enquadramento. Penso
que devemos ter uma grande flexibilidade, porque seria um grande erro a definição
de uma uniformidade na solução a tomar. A solução deve ser diversificada para co-
brirmos aquilo que são as necessidades das escolas e as possibilidades dessa mesma
solução a partir de instituições existentes.

Pelas colocações deste ano no ensino superior, verifica-se que cursos das
áreas de saúde, ensino e artísticos têm mais procura relativa do que os de
engenharia e tecnologia. Porque continua o Ministério a insistir no alarga-
mento dos números clausus destes últimos em detrimento dos primeiros?
Essa é uma questão que me preocupa muito. Em Portugal, tal como em grande
parte dos países europeus, está a haver um efeito de certo modo paradoxal. As pes-
soas estão cientes da importância das tecnologias, da criação de necessidades à volta
das tecnologias, de técnicos que dominem as tecnologias, mas isso não se repercute
na capacidade de atracção das áreas de formação por parte dos estudantes. Este
facto poderá estar relacionado com alguma dificuldade na área das matemáticas.

Continua a insistir nesse aspecto?


Insisto. Tem que se fazer um grande esforço porque está a haver um afastamento
dos jovens em relação à matemática, o que é muito perigoso e nefasto. Precisamos
que a matemática seja uma área central na formação dos jovens e que não seja um
obstáculo que os jovens tentam ultrapassar de qualquer forma, chegando a uma
fase da sua vida académica e que dizem «Matemática nunca mais». Temos que
combater isto fortemente.

O efeito é que só será visível dentro de alguns anos...


Tudo em educação é assim. Ninguém toma medidas hoje para ter resultados
amanhã. Os resultados do trabalho que está agora a ser feito só serão visíveis dentro
de 10 ou 12 anos. Quando se aposta no pré-escolar ou nos novos sistemas de gestão
e autonomia das escolas não se têm resultados no dia a seguir.

Pensa que é por isso que alguns governos não apostam muito, em termos
orçamentais na educação, porque acreditam que as medidas só têm efeitos a
68 ›
longo prazo e não tiram dividendos em termos eleitorais?
Nunca estive em nenhum governo em que essa fosse a filosofia.

Mas sente que isso é uma constante no seio da classe política?


Em política é muito difícil assumir a prioridade da educação como a prioridade.
É possível mobilizar recursos, mas não apresentar resultados imediatos. Tem de se
ter uma grande coragem, e penso que o Primeiro-Ministro a tem, para dizer que a
educação é a aposta e que é preciso caminhar nessa direcção.

Dos resultados que já lhe chegaram da avaliação e auto-avaliação das es-


colas, que balanço é que faz? É positivo?
Não se trata de ser positivo ou negativo. Temos um sistema de ensino superior
que tem instituições, cursos, departamentos, faculdades de enorme qualidade.
Algumas delas não ficam a dever nada às melhores instituições da União Europeia
ou mesmo dos Estados Unidos. Não devemos ter nenhum complexo em relação
a este assunto. Mas temos depois outras instituições, outros cursos e outros de-
partamentos em que as condições não são exactamente as mesmas e em que há
um grande esforço a fazer. Porque o grande problema do País não está nas con-
dições materiais, mas na existência de recursos humanos qualificados. E onde há
recursos humanos qualificados, as escolas não devem nada a ninguém. Quando
saí do Técnico, em 1966, a escola tinha 22 ou 23 professores que tinham douto-
ramento, ou que eram professores por concurso. O Técnico hoje deve ter cerca
de 590 doutorados.

Mas ainda continua a ser mais fácil fazer o doutoramento no estrangeiro


do que em Portugal...
O problema não está em ser mais fácil ou ser mais difícil. O bolseiro que es-
tuda no estrangeiro para obter um doutoramento tem apenas aquela actividade.
É um profissional do estudo para obter o seu doutoramento. Em Portugal está-se
ligado a uma instituição de ensino superior, como foi o meu caso, que fiz uma
parte em Inglaterra e uma parte cá. Na parte que fiz cá, acumulei o doutoramento
com o assegurar o funcionamento das cadeiras. Está-se assim sujeito a uma dis-
persão que muitas vezes atrasa a obtenção o doutoramento. Mas não é uma má
solução porque o doutoramento é apenas um grau académico que pode ser obtido
na altura que se entender.
Quanto mais cedo, melhor. Já lá vai o tempo em que o doutoramento era o
fecho da carreira. Hoje em dia é o começo. O que se tem feito, com o apoio do
Fundo Social Europeu, é canalizar uma parte significativa do investimento para
cursos e bolseiros de mestrado e de doutoramento. E o número de doutorados
tem crescido enormemente nos últimos anos.
‹ 69
Professores a mais no 1º ciclo

Os novos perfis de qualificação de professores propostos pelo grupo de mis-


são por si nomeado vão ou não ser aprovados e quando?
Mais importante que os perfis, o grande salto que se deu foi a criação de uma
estrutura de acreditação, porque se trata de uma inovação e de uma alteração estru-
tural em todo o esquema da formação de professores. Nas outras profissões, como na
medicina, nas engenharias, na arquitectura ou na economia há organizações da socie-
dade civil, que são as ordens, a quem o Estado outorgou a capacidade para acreditar
os seus profissionais.
Na educação não existia uma entidade que o fizesse como entidade autónoma,
isenta e credível. O que se criou foi uma estrutura que à frente uma pessoa de enor-
me qualidade, o professor Paiva Campos, que assegurará a acreditação dos cursos da
formação inicial.

No próximo ano será previsível que algumas das ESES já possam formar
professores para o 3º Ciclo?
Compete às escolas superiores de educação apetrecharem-se para tal, fazerem
propostas credíveis e serem acreditadas pelo órgão de acreditação. Penso que as es-
colas superiores de educação têm um papel enorme a desempenhar no País. Não é o
formarem os professores para o 3º Ciclo que é a chave do problema.

Mas para algumas ESES pode ser uma questão fundamental em termos de
gestão de recursos humanos e materiais...
Se o for, cada escola terá o seu problema e os seus objectivos, porque as escolas
não têm que ser todas iguais. Mas o grande problema do País não está só no 3º Ciclo.
Está também no princípio da escolaridade obrigatória. Há que fazer um enorme es-
forço a nível da preparação do 1º Ciclo, do 2º e do 3º.

Não considera que neste momento existe um abismo muito grande entre os
quadros de docência herdados dos anos 60 e a nova rede escolar do sistema
educativo, com escolas básicas integradas, escolas do 2º e do 3º ciclo?
Fizemos um grande esforço este ano. Criámos 15 mil novas vagas, desde o pré-
escolar até ao final do Secundário, o que permitiu uma grande estabilidade do corpo
docente. Criámos também quadros de zona distrital, o que permite que hoje os pro-
fessores não sejam colocados numa escola mas num conjunto de escolas.
Esta medida dá uma flexibilidade muito grande ao corpo docente. Estamos a ten-
tar criar os meios para estabilizar o corpo docente.
Mas dentro de determinados parâmetros, porque não se pode impedir a mobilida-
de, porque esse é um direito dos professores.
70 ›
Até agora tem sido mais um dever...
Neste momento, estamos a contrariar isso. Se criamos 15 mil novas vagas, o objec-
tivo é que as pessoas estabilizem. A colocação num conjunto de escolas, e não numa
escola, contraria a ideia do professor agarrado a uma escola. O professor tem de estar
consciente de que há uma área de influência, e isto é sobretudo muita verdade no
pré-escolar, no 1º e no 2º Ciclo. Temos privilegiado a estabilidade do corpo docente,
não em função da escola, mas em função de um determinado território. Até porque
há uma questão complexa e que se coloca quando as escolas são muito pequeninas,
têm poucos alunos, e aí a questão não está em fechar pura e simplesmente a escola
quando tem menos de X alunos. Está em fazer agrupamentos de escolas. É no fundo
criar territórios educativos em que se faz a gestão dos professores e dos estudantes,
de forma a optimizar os recursos de que dispomos. É que não há recursos ilimitados.

A experiência que tem do território educativo de Idanha é positiva?


A experiência que temos dos territórios educativos, é altamente positiva. Não quer
dizer que esteja tudo bem, mas é altamente positiva. Temos conseguido fazer um
apoio social que nunca existiu, uma coordenação ao nível do 1º, 2º e 3º ciclo que
nunca existiu, com a criação dos conselhos pedagógicos conjuntos, como já tinham
as escolas básicas integradas. Surge ainda uma grande relação entre o agrupamento,
as crianças e as famílias que estão dentro desse agrupamento, a liderança do processo
e a articulação com a própria autarquia. No caso da Idanha, o que é mais significativo
é que o território educativo coincide com o próprio Concelho, o que dá à autarquia
uma grande importância junto do território e dá ao território uma grande importân-
cia junto da autarquia. E aqui é possível encontrar situações importantes ao nível do
apoio social, pois há uma ligação com as instituições particulares de solidariedade
social, nomeadamente com a Misericórdia.

Quando um professor aposta em formação especializada e a paga do seu pró-


prio bolso, não sentirá alguma frustração por não poder depois exercer as funções
para as quais se especializou? É o caso por exemplo da inspecção, pois, para se
ser inspector não é pré-requisito ter uma pós-graduação em inspecção escolar...
O que tem acontecido nos últimos anos é um grande aumento da oferta de cursos,
por parte das instituições de formação, de cursos em áreas específicas, caso do desen-
volvimento curricular, da gestão escolar, entre outros. Mas não se podem criar essas
funções nas escolas de forma automática.

Mas deve ser uma preocupação...


É uma preocupação e temos procurado caminhar nessa direcção. Por exemplo, o
diploma da autonomia e gestão valoriza a componente da gestão escolar, os cargos
directivos, como é possível valorizar a componente da orientação profissional ou a
‹ 71
componente do desenvolvimento curricular. Mas não é preciso ter o cargo específico
do desenvolvimento curricular ou outros. Temos que perceber que nas escolas por-
tuguesas, no 1º Ciclo, temos um número enorme de professores e não podemos ter
mais professores no sistema. Quando estavam 950 mil alunos no 1º Ciclo, tínhamos
30 mil professores. Hoje temos 450 mil alunos e 40 mil professores. A questão é que
o corpo docente está muito distorcido, porque há sítios onde há alunos e faltam pro-
fessores e há outros em que tem professores mas não tem alunos. Estamos a tentar dar
grandes incentivos à formação acrescida.

E não pode haver desperdício de formação se quatro anos depois é que vai
ser aproveitada?
Desperdício nunca há. Um docente que é professor e faz um curso valoriza-se
sempre. Queremos que essa valorização possa ter maior impacto. Por exemplo, um
professor de Matemática ou um professor de Física podem-se valorizar de muita for-
ma. Podem fazer uma formação acrescida na área científica, mas também o pode fazer
na área pedagógica ou na área da administração escolar. Não se podem é criar auto-
matismos e apenas porque se faz um curso, automaticamente tem-se uma compensa-
ção. É preciso agir com muita cautela, porque não se podem colocar os professores na
corrida às formações apenas para terem um benefício, muitas vezes de ordem salarial.
Isso exige um grande esforço, a fim de criar uma cultura profissional que permita
essa sensibilidade...
E tem-se feito. A regulamentação que se fez da carreira vai nesse sentido.
Porque a formação era vista como uma corrida por causa da progressão...
Por causa dos créditos. Aí houve enormes perversões. Chegou a haver a perversão
da pessoa se inscrever no curso e se não tivesse lugar tinha direito ao crédito.

O que ainda está em vigor...


Mas já é muito pouco aplicada. Hoje é já uma situação praticamente ultrapassada,
até porque os próprios professores perceberam que esta corrida aos créditos não os
credibiliza a eles próprios. Porque, segundo sei, havia professores que esperavam pe-
los últimos dias, quando as inscrições já estavam cheias para se inscreverem, obtendo
assim o crédito.

Como define qualidade de educação?


A qualidade duma instituição mede-se hoje pela capacidade que ela tem para fazer
uma mais-valia entre o estudante que entra e o estudante que sai. Não é indiferente o
nível que o estudante tem à entrada, porque pode ter uma escola que faz um trabalho
de grande qualidade apesar de funcionar em condições muito difíceis, recebendo
estudantes com muitas dificuldades. Em termos mais mediáticos, penso que a quali-
dade se mede sobretudo, no caso do ensino superior, pela capacidade que os diplo-
72 ›
mados têm para serem profissionais de corpo inteiro. Este é seguramente o melhor
indicador de qualidade. Mas há outros, como os trabalhos publicados, as participa-
ções internacionais que uma instituição tem, esta já em termos mais de elite, ou seja,
aquela que possa fazer avançar a ciência. Mas há também aquelas instituições que são
capazes de dar um grande contributo para o desenvolvimento. Uma instituição de en-
sino superior que tenha qualidade é capaz de produzir serviços de grande relevância
para a comunidade em que está inserida. É importante perceber que a escola deve ter
um projecto que esteja bem enquadrado na comunidade em que se encontra, ter um
corpo docente estável e uma liderança forte. É absolutamente necessário haver uma
liderança forte. Antigamente dizia-se «é preciso haver quem mande». Agora é preciso
que o mandar seja encarado como a condução de um projecto.

‹ 73
Marcelo Rebelo de Sousa 88

Novos rumos para o ensino superior

O ensino politécnico e o universitário são ambos necessários e têm objectivos di-


ferentes. A opinião é de Marcelo Rebelo de Sousa, em entrevista ao Ensino Magazine
realizada em São Vicente, a primeira cidade a ser criada no Brasil. A entrevista foi re-
alizada durante o decurso do Congresso Nacional de Imprensa Regional, organizado
pela Associação Portuguesa de Imprensa Regional.
De palavra fácil, Marcelo Rebelo de Sousa antevê o início de uma boa relação entre
os politécnicos e as universidades do País, o que deve começar pela melhor relação entre
os professores e uma maior participação desses professores nas diferentes instituições.
“O politécnico nasceu com uma maior relação à realidade local. Por isso, muitos
dos cursos estão relacionados com a situação económica e social das áreas onde ficava
implantado. Por outro lado, tem uma formação profissionalizante muito importante
que faltava à universidade e ao nosso sistema de ensino em geral, depois de, demago-
gicamente, se querer transformar tudo em curso livresco”.
A investigação também está em alta e a aproximação ao que se faz nas universi-
dades tem sido uma realidade. “No politécnico há muitos exemplos de qualidade e
até de qualidade excepcional. Nos últimos anos, houve também uma convergência
88 No ano de realização desta entrevista (2000), Marcelo Rebelo de Sousa saíra há pouco de presidente do PSD, cargo que
ocupou entre 1996 e 1999, acompanhando o mandato do XIII Governo Constitucional, liderado por António Guterres. Foi
substituído então na liderança do PSD por Durão Barroso. Em 2000 inaugurou o seu posto de comentador dominical na TVI,
mais precisamente a 14 de Maio de 2000. Durante aquele período foi ainda deputado ao Parlamento Europeu e vice-presiden-
te do PPE (1997/1999).
Entrevista realizada por Vítor Tomé, em Maio de 2000.

‹ 75
na preparação de docentes e no tipo de estudo e investigação que se faz em muitos
politécnicos relativamente ao que se passa nas universidades”.
Nesse sentido, Marcelo Rebelo de Sousa afirma hoje que “a Lei de Bases do En-
sino Superior deveria tratar globalmente quer o ensino universitário, quer o ensino
politécnico. Porque há exemplos de menor e de maior qualidade em ambos eles. Não
se pode dizer que o ensino universitário seja o ensino de primeira e o politécnico de
segunda. Isso não corresponde à realidade”.
É por essa razão que aquele professor universitário pensa que nos últimos anos
aconteceu uma convergência natural em ambos os sistemas de ensino superior. Uma
convergência que considera irreversível. Por isso, considera que o superior deverá
passar a ser visto de uma forma diferente, separado em ensino superior curto e ensino
superior longo à semelhança de outros países.
“O ensino politécnico, para todos os efeitos, tem valências universitárias. As univer-
sidades, para muitos efeitos, acabam por não ter a qualidade de sectores significativos do
ensino politécnico. O que se passou em Portugal pertence ao passado. Hoje deu-se uma
convergência que não pode ser negada nem ignorada. Tem é que se tirar proveito dela”.
Exige-se então que se altere o estatuto de cada um dos sistemas de ensino. “É
preciso dar um estatuto ao politécnico que reconheça a possibilidade de ter ensino
superior de primeira e não um ensino superior tolerado, marginalizado, secundari-
zado. Também os professores universitários, meus colegas, que muitas vezes têm um
complexo de superioridade que não tem razão de ser, assumam com humildade a
ideia de haver uma grande circulação entre politécnico e universidades”.
Marcelo Rebelo de Sousa entende que os professores universitários devem ter um
papel importante na vida dos politécnicos e que os professores que se formaram nos
politécnicos têm um papel importante a desempenhar na universidade. “Numa pala-
vra: que não seja o nome, o rótulo, a definir a qualidade, mas que seja a qualidade a
definir o estatuto do ensino superior em Portugal”.
Para que esta meta seja uma realidade, aquele professor afirma que é preciso ter
uma visão global do ensino superior. “É preciso tratar com igualdade aquilo que, por
razões históricas, foi tratado de modo diferenciado, quer em termos financeiros, quer
em termos do próprio estatuto de funcionamento. E se for possível aos politécnicos
evitarem alguns erros que as universidades clássicas, e algumas mais recentes, come-
teram, melhor será”.
Um dos aspectos a corrigir, diz, será a grande rigidez das universidades clás-
sicas na forma de organização interna, de estruturamento. A solução é optar por
uma flexibilidade sem nunca perder o que chama de objectivo primeiro da qua-
lidade. “Esse é um desafio fundamental para o nosso sistema educativo. Precisa-
mos de ter essa flexibilidade. Não só na mudança de cursos e na possibilidade de
reorientação pedagógica, mas nas relações curriculares entre os vários ramos do
ensino superior”.
76 ›
É que, afirma, não faz sentido haver disciplinas de Direito em cursos dos politéc-
nicos que estejam divorciadas do ensino do Direito nas universidades. “Há uma circu-
lação de ideias e de pessoas que tem de se implementar. E sem complexos. Ainda há
pouco tempo proferi a oração de sapiência na abertura do ano lectivo do Politécnico de
Viseu. Esse foi um pequeno exemplo de como os professores universitários devem estar
associados ao dia a dia da vida dos politécnicos. É bom para uns e bom para outros”.
Já em relação ao ensino superior no Interior e no Litoral do País, Marcelo Rebelo
de Sousa não tem dúvidas que não se pode fazer uma clivagem geográfica analisando a
qualidade. “Temos exemplos, em todo o País, de excepcional qualidade, de muita qua-
lidade e de menor qualidade. Isso acontece também nas ilhas. Não se pode dizer que a
excelência se concentrou numa só área”.
A qualidade, assevera, depende do trabalho desenvolvido pelas pessoas nas insti-
tuições onde se encontram. “Todas as instituições, e as de ensino não são excepção,
têm um traço humano. Há pessoas que estudam, que emprestam qualidade e outras
que facilitam, que preferem alguma permissividade, que preferem o imediato ao longo
prazo e a quantidade à qualidade”.
Atendendo assim a que a realidade é complexa, Marcelo Rebelo de Sousa diz que
não quer entrar em análises simplistas. Um modo que utiliza também quando analisa a
questão da empregabilidade após a conclusão dos cursos superiores.
“Com os politécnicos sucede o mesmo que acontece nas universidades. O mundo
do trabalho, muda. Não é uma realidade estática. Por isso, os cursos também têm que
mudar. A ideia que os cursos se criam porque há especialistas que se formaram numa
certa matéria (e que entendem ter direito a uma disciplina ou a uma especialização ou
até um determinado plano curricular), é uma ideia errada”.
A escola não se poderá alhear da sociedade, mas deve manter, com essa mesma so-
ciedade, uma relação estreita em todo o momento. E isso consegue-se com a existência
de verdadeiros conselhos gerais que liguem a gestão da escola às forças vivas da socie-
dade. Embora fale assim, deixa no entanto alguns avisos.
“A escola não pode ficar apenas subjugada a uma lógica economicista do emprego.
Há muita coisa que pode ser prospectiva e a escola poderá, pelos seus meios, deter-
minar a mudança na sociedade. Tem é de haver um mínimo de ajustamento, o qual
contra-indica muitas vezes a criação de disciplinas, de especializações ou de cursos
que não têm que ver com a realidade social portuguesa, seja com a actual, seja com a
futuramente desejável”.
Além disso, e numa outra vertente, o ajustamento reclamado por Marcelo Rebelo de
Sousa impõe “um permanente repensar daquilo que é ensinado na universidade e no
politécnico. Porque aquilo que pode ser importante numa década já não é necessaria-
mente importante na década seguinte, ou daí a 20 anos”.
Marcelo Rebelo de Sousa não tem dúvidas que o percurso não será fácil, pois,
“as pessoas, devido ao fenómeno da inércia, habituam-se a uma realidade e gostam
‹ 77
de viver com ela. Mas o desafio deste novo século é o desafio da mudança. O que a
escola tem de dar são quadros mentais e a possibilidade da formação de princípios
livremente assumidos por cada qual”.
Resta então saber o que tem de mudar na escola. “Não tem que dar uma mesma
formação para um mesmo tipo de emprego, que entretanto mudou. Precisa por isso
da humildade e da capacidade de adaptação para encarar a realidade e se ajustar
a ela. O emprego mudou. Há novos desafios de emprego, novas tecnologias que
impõem novas saídas profissionais. Há a própria mudança social que impõe essas
novas saídas profissionais”.
A lógica terá de ser a de um desenvolvimento da escola que acompanhe o desen-
volvimento social, o que se pode fazer ao nível do ensino superior. “Sendo um ensino
mais leve e recente, o politécnico deve fazer aquilo que um ensino mais antigo e mais
pesado não pode fazer com tanta facilidade: adapte-se e ajuste-se. Porque esta é, em
princípio, uma vantagem comparativa que tem, ou seja, a sua flexibilidade”.

78 ›
Odete Santos 89

O País não está a formar para o futuro.

Odete Santos é deputada pelo Partido Comunista Português na Assembleia da


República. Advogada, aos 54 anos é uma das mulheres mais conhecidas da vida po-
lítica portuguesa. Defensora dos direitos humanos e da igualdade de oportunidades,
apaixonada pela cultura e, sobretudo, pela poesia, Odete Santos é uma mulher com
convicções fortes.
Amável, respondeu ao desafio do Ensino Magazine para connosco conversar sobre
educação. Combinámos às 16 horas de um dia de Setembro, na Assembleia da Repú-
blica. E a pontualidade comunista cumpriu-se. Eram 16h05 quando começámos a en-
trevista. Conversámos durante uma hora, e o ensino em Portugal foi apenas um ponto
de partida para uma viagem que terminou, apenas porque tínhamos que apanhar o
expresso que nos trouxe de volta à redacção do Ensino Magazine, em Castelo Branco.
Um dia escreveu que um estado de Direito Democrático tem de garantir um Ensi-
no Superior Público forte, de qualidade, pilar do progresso no País. Foi desse ensino
que falámos com alguém que, filha de professores do ensino primário, acabou por
entrar no curso de direito, “numa época em que a Faculdade sonegava saberes, talvez
devido ao fascismo”.
89 Deputada durante 27 anos na II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX e X legislaturas pelo Partido Comunista Português, pelo qual
também foi eleita Presidente da Assembleia Municipal de Setúbal, em 2001, e em 2005. Fez a sua última intervenção no Parla-
mento no dia 13 de Abril de 2007. Foi agraciada pelo Presidente da República com a Medalha de Grande Oficial da Ordem
do Infante D. Henrique. A par da vida política, já trabalhou no teatro, tendo representado variados autores como Gil Vicente,
Edward Albee ou Moliére.
Entrevista realizada por João Carrega em Setembro de 2000.

‹ 79
Hoje, o ensino superior continua a marcar o progresso do País. Os subsistemas do
universitário e do politécnico tentam afirmar-se pela diferença. A saúde tenta formar mais
médicos e enfermeiros. O País continua a importá-los de Espanha. Pior que isso, deixa ir
jovens candidatos ao curso de medicina estudar para o País vizinho. Até porque, como
lembra Odete Santos, algumas universidades espanholas vêm a Portugal fazer os testes de
admissão. Depois há toda uma alteração de valores, e o aparecimento de novas gerações,
a que Odete Santos não chama de rasca, mas considera que estão à rasca.

No ensino superior há muita oferta de cursos, mas nem sempre eles correspon-
dem às expectativas de quem os frequenta...
Há uma proliferação muito grande de estabelecimentos do ensino privado, muitas
vezes com um sistema que eu já senti na pele, que é uma espécie de caça ao dinheiro,
pois as notas para o ensino oficial saíam depois das matrículas para o ensino privado.
Ora isto fez com que muita gente se matriculasse no privado, por não saber a nota que
iria obter. Depois tinham acesso ao oficial e perdiam o dinheiro pago na inscrição nas
instituições privadas.

Mas e em relação aos cursos?


Aquilo que se verifica é que há uma proliferação muito grande de estabelecimentos de
ensino superior privado. Há Escolas que, por vezes, abrem cursos que não se sabe muito
bem para que é que servem. E essa proliferação, pese embora muitas delas terem como
docentes professores do ensino público, faz com que haja deficiências de formação.

E o País está a formar os quadros que necessita para o futuro?


Penso que não. Não tem sido feita uma planificação de fundo. Não se sabe em que
direcção as várias regiões do País vão ser desenvolvidas, pelo que não se sabem quais as
áreas mais deficitárias. Neste momento verifica-se que há excesso de licenciados nalgu-
mas áreas, como no Direito. Isto porque se trata de uma licenciatura fácil de colocar a
funcionar. Ou seja, não precisa de laboratórios, bastam umas mesas e umas cadeiras e
os professores. O Direito tem constituído uma saída para muitos jovens, só que, actual-
mente, há excesso de licenciados nessa área. Depois, vêm os problemas de empregabili-
dade. Este é apenas um exemplo, entre muitos, pois em meu entender não tem existido
uma planificação de fundo para o desenvolvimento do sector educativo no País.

Então a falta de planificação é o factor responsável pelo excesso de formados em


determinadas áreas?
Sim. Os distritos de Castelo Branco, Guarda, Viseu e Portalegre votaram massivamen-
te contra a Regionalização, que poderia solucionar parte desses problemas. Mas não é ne-
cessário haver Regionalização para que essa planificação seja feita. Basta que cada Distrito
saiba quais as suas necessidades e que procure formar gente para essas áreas. Isso, além
80 ›
de promover o desenvolvimento, iria fixar as pessoas. O Distrito da Guarda, que é o meu
distrito eleitoral, é um Distrito desertificado porque não conhece desenvolvimento signi-
ficativo, o que leva as pessoas a fugirem para outros locais, como aconteceu com os meus
pais. O que sucede, neste momento, é que também há uma grande dependência do nosso
País em relação às políticas determinadas pela União Europeia. Há coisas que nos são
cerceadas, como está a acontecer na agricultura. Isto é, poderia haver grandes perspectivas
para a área da agronomia se houvesse um futuro risonho nesse sector, o que não acontece.

Uma das áreas mais deficitárias em Portugal é a Saúde...


Sem dúvida. E até é um escândalo o que se está a verificar com os jovens portugueses
a irem estudar para Espanha. De Lisboa vão muitos para Badajoz, até porque agora são
as universidades espanholas que vêm a Portugal fazer os exames de admissão. Eles já
nem precisam de se deslocar. Depois, verifica-se que há falta de médicos e a maioria dos
que exercem estão instalados no Litoral. Isto porque é o Litoral que capta o grosso do
investimento, apresentando hospitais mais evoluídos, o que permite aos médicos estarem
sempre a aprender, o que não sucede no Interior. Daí que também se compreenda, entre
aspas, essa fuga dos médicos para o Litoral.

E o qual é a solução para evitar isso?


Tem que haver uma formação em maior número de médicos e enfermeiros. Porque
com aquelas notas astronómicas que ainda são exigidas, tudo fica mais complicado. Por-
que nem sempre um excelente estudante dá um bom médico. Nesse capítulo, o ensino
está desfasado da realidade, pois não forma de acordo com o País real que temos. No caso
específico da medicina, as notas exigidas são incompreensíveis. Há, no entanto, outro fac-
tor importante e que condiciona tudo o resto, que é a política de contenção das despesas,
imposta pela União Europeia. O que faz com que os países contenham os investimentos
nas diversas áreas. Ora, a saúde tem que ter investimento e não se pode estar a ver o que
se gasta. São precisos mais médicos e mais enfermeiros, como são necessários incentivos
para os profissionais da saúde que vão para as periferias e para o Interior do País.

Com estes problemas todos, importam-se médicos do país vizinho...


Pois é, vê-se isso na televisão e é um escândalo. É que no Litoral também não há mé-
dicos suficientes, pois também vive mais gente nessa Região do País.

O atraso da integração das escolas superiores de enfermagem nos Institutos Po-


litécnicos está a protelar a formação de mais técnicos de saúde?
É evidente que está. E eu até digo mais, fala-se sempre na contenção das despesas
mas, por exemplo, no caso dos enfermeiros, como são poucos, têm que trabalhar
muitas horas por dia, que terão que ser pagas extraordinariamente. Por isso, não se
percebe porque é que não se formam mais enfermeiros.
‹ 81
De que forma é que as instituições de ensino superior podem contribuir para o
desenvolvimento das Regiões em que estão inseridas?
Voltemos ao assunto de que falávamos há pouco. Elas podem contribuir para o
desenvolvimento das suas regiões desde que haja planos estabelecidos sobre o cresci-
mento económico e o desenvolvimento dessas regiões. Ou seja, tem que existir uma
excelente planificação e um estudo sobre as necessidades de cada local. Por outro
lado, tem que haver uma racionalização dos recursos entre as diversas instituições de
ensino superior. O País é pequeno e em área vizinhas não se deveriam repetir cursos
e recursos, mas sim complementarem-se.

As instituições de ensino superior não estão satisfeitas com o sistema de finan-


ciamento, até porque houve cortes orçamentais. Qual era a solução para resolver
este eterno problema?
Está a colocar-me uma questão muito específica... Mas vejamos, todo este pro-
blema tem que ser visto na globalidade. Se formos ao sector da saúde, não devem
existir cortes. Se olharmos para a educação, estes também não devem existir. Se
nos reportarmos à Justiça, acontece igual situação, pois a morosidade dos pro-
cessos exige investimentos. No meu entender não devem existir cortes na área da
educação, pois estamos a formar jovens para o futuro. Aquilo que tem que ser fei-
to é uma melhor administração das verbas. Isso obriga a uma política económica
de fundo diferente da existente. Por trás da míngua de verbas está uma questão
fundamental: a privatização de sectores importantes na economia portuguesa, o
que retirou ao Estado o produto de muitas riquezas que poderia investir na satis-
fação de direitos sociais. Ficar sem a banca e sem os seguros implicou um corte
de receitas para o orçamento de Estado. Se juntarmos a isso benefícios fiscais que
se dão a empresas, verifica-se que a míngua do orçamento de Estado se faz à custa
do enriquecimento de alguns.

Com essa míngua a que se refere, teme que o sistema de Segurança Social entre
em derrapagem?
Creio que a situação não é tão alarmante como se dizia. Na base do alarme que se fez
em volta da Segurança Social estava um objectivo, que era a privatização da parte mais
rentável desse sistema e deixar o regime existente, com pouco dinheiro, para os pobrezi-
nhos. É muito demagógico dizer que há pessoas que recebem pensões elevadas, mas não
se diz que essas pessoas descontaram do seu vencimento, que era alto, e esse dinheiro ser-
viu para pagar subsídios de doença, etc. Tirando da Segurança Social pública pessoas com
ordenados elevados, deixariam de entrar na Segurança Social importantes contribuições
para manter outros que ganham menos e que também vão recorrer ao sistema. O sistema
da Segurança Social rege-se pelo princípio da solidariedade. Os que ganham mais des-
contam em proporção ao seu vencimento e esse desconto vai servir para os outros que ga-
82 ›
nham menos. É certo que o sistema atravessou alguns problemas, mas porque não entrou,
durante muitos anos, do Orçamento de Estado, qualquer verba para a Segurança Social.

Voltando ao ensino, há concorrência desleal entre o público e o privado?


O sistema que defendo e que esteve na constituição, era que o ensino privado fosse
supletivo do ensino público. Isto é, primeiro bastava o ensino público e só depois para
satisfazer áreas que o público não conseguisse dar resposta é que existiria o ensino pri-
vado. Mas não é isso que se verifica, pois por várias maneiras é o público que está a ser
vítima de concorrência desleal. Nomeadamente, quando uma escola de ensino privado dá
altas classificações aos alunos, pois eles quase que o exigem, estão a pagar para isso. No
público, ao não haver essas notas mais elevadas, os alunos que terminam os seus cursos
estão atrás dos jovens formados nos privados com notas mais altas, no que respeita às
preferências pelos seus serviços.

Os Politécnicos reclamam também a atribuição de mestrados e doutoramentos.


Concorda com essa reivindicação?
Eu penso que têm que existir regras muito bem definidas nessa matéria. Antigamen-
te, para se tirar um mestrado, por exemplo, era necessário ter notas elevadas. Hoje nem
sempre sucede isso. Os critérios de atribuição dessas pós-graduações têm que ser claros.

Hoje em dia exige-se um pouco mais aos professores. O aluno está mais entregue
à escola...
Antigamente os professores eram mais pais do que agora. Quando eu andava na escola
primária, os professores eram dedicados, até mesmo no que respeitava à alimentação e ao
material escolar. Os meus pais eram professores e levavam, muitas vezes, alunos a almoçar
lá a casa. Agora, a ideia que eu tenho é que o professor está mais desligado e começam a
formular-se exigências à família que ela não consegue responder. Assiste-se, muitas vezes,
a um passar “de bola” da escola para a família e da família para a escola. A escola diz: os
pais têm que acompanhar mais os filhos. E os pais dantes acompanhavam-nos mais. E
os pais dizem o contrário. Daí que atirem para cima dos professores alguns problemas, a
que estes não podem responder como se lhes exige. Assim, a escola e a família entram em
conflito. Seria bom que conseguissem, em conjunto, fazer um trabalho que permitisse ao
aluno ter melhores condições.

Perspectiva-se que o número de alunos diminua bastante nos próximos 10 anos,


é de opinião que o investimento na formação ao longo da vida será uma solução
para as instituições de ensino superior?
A formação ao longo da vida é fundamental. Já que as coisas nem sempre foram pla-
nificadas, tendo em atenção a evolução da população, a aposta em cursos desse género é
uma aposta importante para essas instituições.
‹ 83
Tradicionalmente, a juventude é muito crítica do sistema. Nos tempos que
correm, parece-lhe que temos uma juventude menos crítica?
A juventude por norma é crítica e aquilo que se verificou nos últimos anos é que
os jovens estão mais activos e não têm medo de defender os seus interesses. Nun-
ca me lembro de ver uma manifestação de estudantes do ensino secundário como
aconteceu recentemente. Há algum tempo chamaram esta geração de geração rasca.
Eu não diria isso, diria que é uma geração à rasca. Uma geração que foi iludida por
sinais exteriores de riqueza. Ideologicamente eu não digo que a juventude conhece
a ideologia do PCP. É que Marx foi riscado do ensino da filosofia. Se perguntar aos
jovens o que está na base do comunismo, muitos saberão, mas muitos não saberão.
Mas em termos de objectivos na educação, aí não tenho dúvidas que eles sabem o
que nós defendemos. O mesmo acontece com os trabalhadores, mesmo aqueles que
votam PS ou PSD, muitas vezes estão de acordo connosco naquilo que defendemos
para a sua classe.

84 ›
Augusto Santos Silva 90

A ciência faz-se em todo o mundo

“Ser Ministro da Educação é um cargo honroso e difícil, como todos os cargos


políticos o são. Mas nós somos uma boa equipa e trabalhamos como tal, o que
é uma vantagem indiscutível”. Foi assim que Augusto Santos Silva, ministro da
Educação, iniciou a sua entrevista com o Ensino Magazine. Uma conversa que se
concretizou no 13º andar do número 107 da Avenida 5 de Outubro, numa manhã
de chuva, onde os problemas e as virtudes do ensino superior português foram ana-
lisados sem tabus, nem preconceitos. Com respostas claras e objectivas, à imagem
que pretende transmitir Augusto Santos Silva.
Docente da Faculdade de Economia do Porto, desde 1981, Augusto Santos Silva
é, desde o último ano, Ministro de uma das pastas mais desgastantes do Governo.
Confrontado com o facto de ser professor e de esse dado ter alguma influência nas
suas decisões enquanto ministro, é claro na resposta. E lembra que a sua “obrigação
no momento é defender o interesse público, na medida em que esse interesse públi-
co é interpretado, quer pelo programa do Governo a que pertenço, quer pelo diálo-
go e cooperação que o Ministério tem para com os parceiros que fazem a educação,
como os professores, estudantes, as escolas, organizações sindicais e associativas,
90 Ministro da Educação entre 2000 e 2001, no XIV Governo Constitucional, de maioria relativa do PS, liderado António
Guterres. Nesta legislatura sucede no cargo a Guilherme de Oliveira Martins. Foi ainda Secretário de Estado da Administra-
ção Educativa (1999-2000) e Ministro da Cultura (2001-2002). Exerceu funções como membro do Conselho Nacional de
Educação (1996-1999), como vogal da Comissão do Livro Branco da Segurança Social (1996-1998), e como representante de
Portugal no Projecto de Educação para a Cidadania Democrática do Conselho da Europa (1997-1999).
Entrevista realizada por João Carrega e Vítor Tomé, em Fevereiro de 2001.

‹ 85
as autarquias, entre outros. Ou seja, temos sempre que combinar os objectivos que
queremos atingir e que estão inscritos no Programa do Governo, com as condições
e as propostas dos vários parceiros com quem trabalhamos”.
Doutorado em Sociologia, na especialidade de Sociologia da Cultura e da Co-
municação, pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Augusto
Santos Silva exerceu ainda o cargo de Secretário de Estado da Administração Edu-
cativa em 1999 e 2000. Foi também pró-reitor da Universidade do Porto, entre
1998-1999, e pertenceu ao Conselho Nacional de Educação até ter entrado para o
Governo. Entre 1998 e 1999 coordenou o grupo de contacto entre os Ministérios
da Educação e o ensino artístico, e foi o representante de Portugal no Projecto de
Educação para a cidadania democrática, no Conselho da Europa.
Cargos que lhe permitiram obter conclusões precisas acerca da educação no
nosso País. Sobre os sistemas de ensino superior, Santos Silva sublinha que “a me-
lhor contribuição que o ensino superior pode dar à economia e à sociedade e,
em particular, à competitividade, para os próximos anos, é garantir uma formação
inicial geral e sólida. Quanto mais sólida e geral for a formação no ensino superior,
mais bem apetrechados ficam os diplomados para a multiplicidade de profissões e
para o dinamismo das carreiras profissionais, que vão ser as suas, e que serão exi-
gidas pela sociedade e economia do conhecimento”.
É dentro daquela perspectiva que o ministro da Educação considera que há
necessidade de se “fazerem duas prevenções. A primeira, passa por, em sede
de pós graduação, o ensino superior oferecer formações mais especializadas. A
segunda passa por ter em linha de conta que o ensino superior politécnico se
distingue do ensino universitário. Isto porque está mais próximo do mundo do
trabalho e das profissões, por um lado e, por outro, porque se aproxima mais
das necessidades e das oportunidades de desenvolvimento regional. O que sig-
nifica que a ligação entre o ensino superior e o tecido regional é mais evidente
no ensino politécnico. Daí que a malha do ensino superior politécnico seja mais
distendida do que a do universitário”.
INVESTIGAÇÃO. Casado, pai de três filhos, adepto do Salgueiros, Augusto
Santos Silva esteve também ligado à comunicação social. Foi colunista do jornal
«Público», entre 1992 e 1999, e cronista da TSF-Rádio Jornal, de 1997 a 1999.
Ainda na Imprensa colaborou com o Jornal de Notícias, de 1978 a 1986. Recente-
mente, foi membro do Conselho de Administração da Sociedade Porto 2001.
Santos Silva dedicou parte da sua vida académica à investigação, tendo publi-
cado já mais de 12 obras. Daí que a investigação e o facto dos melhores investiga-
dores portugueses residirem e trabalharem no estrangeiro fosse analisada na longa
conversa que travámos com o Ministro da Educação.
“Como português sinto muito orgulho por uma parte considerável dos inves-
tigadores portugueses estarem a trabalhar no estrangeiro, porque a ciência faz-se
86 ›
em todo o mundo”, começa por explicar Santos Silva. Mas o mais importante,
para aquele responsável, é que “há muitos investigadores portugueses que fazem
percursos em zig-zag. Por exemplo, o professor Lobo Antunes, um dos nossos
melhores neurocirurgiões, fez uma brilhante carreira nos Estados Unidos e re-
gressou. O professor Alexandre Quintanilha, director do Instituto de Biologia Ce-
lular, veio da Universidade de Standford para a Universidade do Porto, o mesmo
sucedeu com o professor António Coutinho, que veio do Laboratório Pasteur, em
Paris, para a Gulbenkian”.
São aquelas carreiras em zig-zag que Augusto Santos Silva classifica como im-
portantes para a ciência. “A ciência não tem adjectivo nacional. Não há uma mate-
mática portuguesa, uma física portuguesa, nem uma sociologia portuguesa, embora
exista uma sociologia sobre Portugal”.

ENSINO SUPERIOR
Pedagogia é necessária

A formação pedagógica dos professores de ensino superior, a mobilidade dos


docentes universitários e a sua progressão na carreira foram outros dos temas ana-
lisados pelo Ministro da Educação. Santos Silva é claro quanto à necessidade de
formar pedagogicamente os docentes e explicou o que tem sido feito em termos de
mobilidade de docentes e alunos em Portugal. Explicativo e directo, o ministro da
Educação recordou também as razões que levaram à criação do Instituto Universi-
tário de Viseu.

Admite a necessidade de se proceder à urgente formação pedagógica dos


docentes de ensino superior?
Sem dúvida. Esse é um eixo central do desenvolvimento do nosso ensino su-
perior. Há uma tradição académica, particularmente nas universidades - e que eu
conheço bem, pois sou professor universitário de profissão – que tende a desvalo-
rizar a componente pedagógica do nosso trabalho e sobrevalorizar a componente
científica. E dentro da componente pedagógica verifica-se a tentação de se usarem
métodos de ensino tradicionais, como aulas magistrais, muitas vezes organizadas
segundo o velho «cânon» da sebenta.

E como é que esse processo pode ser alterado?


Nós temos, em colaboração com as Universidades e os Politécnicos, procura-
do insistir na necessidade de revalorizar a dimensão pedagógica do trabalho dos
docentes, seja em sede da sua progressão da carreira, seja em sede da avaliação do
seu desempenho. E essa avaliação deve, no nosso ponto de vista, incluir, como um
dos elementos de avaliação, o próprio juízo que os estudantes fazem sobre a qua-
‹ 87
lificação pedagógica dos seus docentes. É hoje vulgaríssimo que, no final de uma
disciplina, os docentes sejam avaliados por inquérito pedagógico efectuado aos
seus alunos. É evidente que esse não será o único critério de avaliação, deve ape-
nas ser um elemento que contribua para essa avaliação. Até porque depois existe o
professor responsável pela disciplina, que também deve ter um juízo sobre a qua-
lidade do desempenho pedagógico dos seus colegas de equipa, e há um conjunto
de materiais pedagógicos que os professores têm que preparar. Por outro lado, nas
provas e concursos que vamos fazendo ao longo da carreira, há momentos em que
os programas e materiais das disciplinas são debatidos.

Mas, em Portugal, as taxas de formação de diplomados continuam muito baixas...


Esse é um problema que terá que ser resolvido. De facto o desempenho do nosso
ensino superior, se for medido em número de diplomados por ano, relativamente
ao número de matriculados, temos que concluir que é baixo. Precisamos de aumen-
tar essas taxas.

E a que é que se deve esse insucesso?


Penso que se conjugam três factores para que essas taxas sejam baixas. O pri-
meiro, é de natureza vocacional. Julgo que nós não estamos tão bem, quanto po-
deríamos, do ponto de vista da escolha de cursos, por parte dos estudantes. Não é
raro que um professor do ensino politécnico ou universitário verifique que alunos
dos seus 2º ou 3º anos de licenciatura ainda não tenham definido que é o curso
que frequentam aquele que querem concluir. O segundo, diz respeito à qualidade
de ensino. Qualidade de ensino no sentido técnico do termo. O que se traduz, por
exemplo, em professores que invistam no ensino, acompanhando os seus estudan-
tes, atendendo-os e resolvendo os problemas dos seus alunos, dispondo de condi-
ções materiais suficientes.

O terceiro factor será a desresponsabilização dos alunos?


Classifico-o como um pequeno grau de desresponsabilização. Hoje, em muitas
escolas superiores, quem não investe não é penalizado por isso. Há escolas que já
têm relativa tranquilidade e introduziram regimes de prescrições, outras introduzi-
ram outros mecanismos de incentivo de mérito. Mas penso que há ainda muito a fa-
zer para responsabilizar os estudantes pelo trabalho que desempenham nas escolas.

Ao nível do ensino superior, os docentes defendem uma maior mobilidade


dos professores entre as instituições. Criticam mesmo facto de, em muitos
casos, fazerem toda a sua carreira na mesma instituição de ensino...
Essa mobilidade não pode ser compulsiva. Mas considero que devem au-
mentar as oportunidades de mobilidade inter-institucional ao dispor dos do-
88 ›
centes. Isso passa por oportunidades de carreiras em zig-zag, mesmo alternan-
do o ensino politécnico com o universitário. Passa também por impedir que os
júris de concursos ou provas sejam exclusivamente internos às instituições que
promovem esses concursos e provas. Na revisão do estatuto da carreira docente
universitária estamos a ponderar que a maioria dos elementos desses júris seja
exterior à instituição.

E essa mobilidade por ser estendida também aos alunos?


Os estudantes têm programas de mobilidade de diferente ordem, como os de
mobilidade internacional, por exemplo. Eu costumo dizer que o Programa Erasmus
foi um dos vectores principais da construção europeia. Aquelas centenas de milha-
res de estudantes de toda a Europa, que frequentaram um ou dois semestres do seu
curso noutras instituições de ensino da Europa, contribuíram mais para a identi-
dade europeia do que um terço das directivas publicadas pela Comissão Europeia,
com todo o respeito pelas directivas e pela Comissão. No que respeita à mobilidade
interna, a Lei de Organização e Ordenamento refere que o ensino superior é apenas
um, que deve funcionar em rede. Ou seja, há formas de cooperação entre as dife-
rentes instituições que podem permitir essa mobilidade. Mas naqueles cursos com
numerus clausus bastante baixo, tem que haver um certo cuidado.

Ainda no que respeita ao Ensino Superior, alguns docentes referem que


a progressão da carreira deveria ter em conta mais o mérito do que as vagas
existentes nos quadros. Concorda com esse ponto de vista?
Julgo que alargar o número de lugares de quadro é um objectivo que deve ser
perseguido. Não sou adepto de quadros sem restrições. E é muito difícil dizer e ex-
plicar a um professor, por exemplo, da faculdade de economia – como sou eu - que
haver 10 bons candidatos para cinco lugares disponíveis não aumenta a qualidade
do concurso e nem a vantagem que a instituição retira.
Da mesma forma, se existirem três bons candidatos para um lugar de ponta de
lança, numa equipa de futebol, parece-me ser um factor que não prejudica o clube.
Nós não devemos ter quadros cuja dimensão seja obsoleta face ao número de alu-
nos e aos planos de estudos que a faculdade tem.

Recentemente foi criado o Instituto Universitário de Viseu. A que é que se


deve essa aposta do Ministério?
Foi um compromisso assumido pelo XIII Governo, que o XIV agora honra, e
que não é mais do que o cumprimento da Lei. Aquilo que a Lei me determina é que
verifique, a cada momento se existem necessidades de ensino universitário e se elas
estão por resolver. Se assim acontecer, eu tenho obrigação, à luz da constituição, de
responder com uma oferta pública. E essa oferta pública visa apenas complementar
‹ 89
as ofertas existentes. Portanto, a unidade universitária não terá cursos politécnicos.
Primeiro porque não pode, segundo porque a oferta politécnica está a ser cumprida.

MESTRADOS E DOUTORAMENTOS
Critérios de Ministro

A Lei de Bases do Sistema Educativo aponta para que a formação dos pro-
fessores do 3º ciclo possa ser feita nas Escolas Superiores de Educação. Três
anos depois da sua publicação, essa formação ainda não está regulamentada...
Esse avanço, que foi conseguido na revisão da Lei de Bases, está dependente
apenas de uma decisão fundamental sobre os grupos de docência no ensino. Hoje,
há diversos factores no ensino não superior, que ainda estão calibrados pela lógica
anterior à Lei de Bases de 1986. O sistema de colocação de professores é uma delas,
pois distingue ainda professores de 2º ciclo, de 3º ciclo e secundário. Por isso, não
faz nenhum sentido que nós avancemos em formações para o 2º e 3º ciclos, sem
antes resolvermos esses problemas.

E quando é que esses problemas poderão estar resolvidos?


Ao longo deste ano civil.

O Ensino Superior Politécnico pretende desenvolver cursos de mestrado


e doutoramento. Pela via administrativa essa meta ainda não é possível, pois
só as universidades o podem fazer. Para quando os cursos de pós-graduação
atribuídos pelos Institutos Politécnicos?
Aquilo que mais me preocupa é garantir a formação avançada de docentes do
ensino politécnico. E essa formação tem sido garantida através de programas co-
muns, de formação pós-graduada, entre universidades e politécnicos. Programas,
nos quais muitos dos professores são docentes no ensino politécnico, que resultam
em cursos aferidos pelas universidades, mas que são feitos de modo articulado en-
tre universidades e politécnicos.

Mas existe uma certa clivagem entre as universidades portuguesas e os


institutos politécnicos...
O que eu acho é que o Politécnico deve desenvolver-se por si e não deve con-
siderar como único paradigma, o paradigma universitário para se desenvolver.
Não é o facto de conferir o doutoramento que dá uma espécie de «pedigree» às
universidades, que os politécnicos nunca alcançariam a não ser no dia em que
tivessem a capacidade de fazerem o doutoramento. A consolidação do ensino
superior politécnico está ainda por concluir, concluamos essa consolidação com
o mandato que ele tem.
90 ›
Mas aquilo que se verifica é que as instituições de ensino superior politéc-
nico têm recorrido às universidades estrangeiras e não às portuguesas para
elaborarem cursos de pós-graduação...
O mundo do ensino e da ciência é internacional. Agora apreciaria que se alar-
gassem os projectos comuns entre politécnicos e universidades no que respeita à
pós-graduação. E a informação que tenho é que esses projectos estão a alargar-se.

Quando o ensino Politécnico estiver afirmado, e tendo em conta que o


ensino superior é todo um, Portugal não pode tender para aquilo que existe
noutros países onde apenas há universidades?
As leis são feitas em circunstâncias. Na nossa circunstância nós considerámos
ser muito importante acentuar a natureza binária do nosso sistema de ensino su-
perior. Ou seja, só é possível consolidar o ensino superior politécnico se o consoli-
darmos como ensino superior politécnico e não como uma espécie de universidade
de 2ª linha. A lei e a prática abrem-nos para este caminho que considero essencial:
há dois subsistemas e eles devem articular-se entre si, a partir daí vamos ver o seu
desenvolvimento. E a melhor maneira de conseguir essa articulação é não os con-
fundir. Por sermos diferentes uns dos outros é que nos podemos relacionar uns
com os outros.

Mas a opinião pública ainda vê as universidades como instituições superiores...


Reparem uma coisa, houve um tempo em que no primeiro patamar existia a
Universidade de Coimbra. Só depois apareciam as universidades do Porto e Nova
de Lisboa. Num outro patamar vinham, então, as mais recentes, como a de Aveiro,
Évora, Açores, Beira Interior. E hoje a hierarquia já não se faz assim. Tudo tem um
caminho, e nós avaliamos isto pela escolha dos cursos efectuada pelos estudantes.
O ensino superior não funciona por mercado, mas tem elementos de mercado. E
um desses elementos é que não se pode obrigar um estudante a ir para uma área
que não quer ir. E nós, em 2000/2001 verificámos que há áreas inteiras de cursos
onde os numerus clausus desapareceram na prática – nas engenharias e tecno-
logias, economias e gestão – e que há muitas primeiras escolhas para cursos dos
politécnicos.

Como é que classifica o ensino privado em Portugal?


O ensino superior privado em Portugal contribuiu para o salto na frequência do
ensino superior que o País conheceu nos anos 80 e 90. Mas teve a desvantagem de,
muitas vezes, ter sacrificado a qualidade à quantidade. Hoje estamos no ciclo, que
não é o da quantidade, mas sim o da qualidade. E essa é uma questão que se coloca
a todas as instituições, quer públicas, quer privadas. Nós não estamos na época de
fazer proliferar novos cursos sem critérios.
‹ 91
E tem chegado ao Ministério propostas para novos cursos e escolas?
Sim. E não o consigo perceber, pois entram no Ministério dezenas e dezenas
de pedidos de novos cursos e de novos estabelecimentos. Nós temos, hoje, uma
malha muito fina de estabelecimentos de ensino superior. O rácio universidades/
politécnicos por habitante colocam-nos na vanguarda da Europa. E é um facto que
não divulgamos pois não nos devemos orgulhar muito. Vale mais ter poucas, mas
boas instituições consolidadas do que 60 por consolidar.

Se lhe chegasse a proposta de abrir novos cursos de direito?


Essa é uma questão complexa. Por natureza são as Associações e as Ordens, que
nos chamam a atenção para as dificuldades da empregabilidade. Esse é um lado da
questão. Mas há o outro. Nós temos mais de 100 mil jovens no 12º ano.
Que direito temos nós de dizer a cada um deles que a geração anterior à sua
aboletou-se com o que havia disponível de empregos, e não os deixar seguir aquilo
que eles pretendem?!

CONVERGÊNCIA EUROPEIA
A caminho da Europa

A Declaração de Bolonha fixou três etapas de ensino superior. Em Portugal


existem quatro. Como é que se vai articular a tendência europeia com a situ-
ação portuguesa?
A história do processo de Bolonha é muito interessante. Houve, numa primeira
fase, quatro ministros de quatro grandes países europeus, que fizeram a chama-
da declaração de Sorbonne. Depois esse processo generalizou-se, no interior e no
exterior da Comunidade, e mais de 20 países assinaram a chamada Declaração de
Bolonha. E a Declaração de Bolonha tem dois elementos fundamentais. Elementos
que implicam a convergência dos sistemas de ensino superior na Europa, o que
não significa que haja uniformização, nem harmonização. Isto porque os Europeus
pensam que há um Mundo animado por três grandes Regiões, a Região Asiática,
dominada pelo Japão, a região Norte Americana, liderada pelos Estados Unidos, e
a Região Europeia. Logo, a competitividade da Europa face às outras duas regiões
é uma questão decisiva do futuro Europeu, designadamente do futuro do modelo
social europeu, que é característico da postura de competitividade da Europa, onde
se pensa que o desenvolvimento se faz com a coesão social.

Daí o aparecimento dessa convergência?


Nós, na Europa, pensamos que o Ensino Superior é um factor importante para
fomentar essa competitividade. Houve vários países que tentaram estabelecer um
caminho para uma convergência maior, através de dois caminhos. O primeiro diz
92 ›
que o ensino superior se faz em dois ciclos, o de graduação e o de pós graduação. O
que permite para alguns países encurtar o primeiro ciclo de formação. Mas isso não
é obrigatório. O segundo caminho passa por formatar os cursos superiores, através
de um mecanismo que permita transferências rápidas entre os diferentes cursos. O
que não é mais que uma Concepção dos Planos de Estudo através de unidades de
crédito que podem ser transferidas.

Mas a Declaração de Bolonha avançou com aquelas três etapas de formação...


Nos documentos preparatórios de Bolonha apareceu essa referência da estrutura
ideal de três anos para o primeiro diploma, dois para o mestrado e três para o dou-
toramento. Mas essa não é uma imposição da Declaração de Bolonha.

Então qual vai ser a posição de Portugal na próxima conferência em Praga?


Em Praga vamos fazer a avaliação do caminho do ensino superior. Aliás, estamos
muito à vontade já que o relator é um português – o professor Pedro Lourtie. Na
nossa perspectiva, o nosso primeiro ciclo de formação de licenciatura, seja ela de
raiz ou bi-etápica, está hoje estabilizada entre os quatro e os seis anos. E aquelas
que são de seis anos estão confinadas a duas áreas restritas, a das ciências médicas e
a da arquitectura. Ainda na formação inicial temos também o bacharelato. Mas é no
ciclo de pós graduação que é necessário compactar mais os cursos. Em certas áreas
ainda temos a velha tradição do Doutoramento de Estado à Francesa. Ou seja, um
doutoramento que se consegue fazer aos 50 anos, como o cume da carreira, quando
o doutoramento deve ser o início da carreira universitária. Ao fazer o doutoramento
o candidato fá-lo para demonstrar que é capaz de investigar por si próprio, logo
podem dar-lhe a carta de alforria para trabalhar.

Mudando de assunto. O Ministério tem pressionado as instituições para


imporem uma nota mínima de acesso. Que efeitos é que se pretendem alcançar
com esse factor? E como é que se medirá a qualidade dos alunos?
Neste momento o ingresso ao ensino superior, excepção feita às áreas em que
há pré-requisitos, é feito por provas realizadas no ensino secundário. Mas não é
forçoso que assim seja. Aquilo que as instituições fazem é que as provas de exame
de algumas disciplinas sirvam também de provas de ingresso. Eu até compreendo
isso, pois dessa decisão recorre que os estudantes de 18 ou 19 anos, do 12º ano,
não estejam ainda mais sobrecarregados.

E o sistema actual é o mais correcto?


O sistema actual tem duas grandes virtudes: é totalmente transparente e com-
bina diferentes ponderações. Ou seja há uma ponderação para as notas obtidas ao
longo do ensino secundário, outra para as notas dos exames. Os exames valem de
‹ 93
uma maneira para a classificação do ensino secundário e valem de outra para a
classificação do ingresso. Logo isso define critérios «standard» de qualidade. Não
definem critérios de vocação e esse é um problema que pode ser complexo sobre-
tudo em áreas como a medicina, onde não há garantias que um génio seja melhor
médico do que um tipo razoável que goste de tratar pessoas.

E como é que se pode determinar a vocação dos alunos?


É um problema difícil. Pode ser através de entrevista, mas e como é que garanti-
mos a objectividade dessas entrevistas? Através de provas? e como é que serão essas
provas? É de facto um problema difícil de resolver.

Voltando à nota mínima, concorda com ela?


Sou um adepto fervoroso da nota mínima, pois é um elemento de qualificação
do ingresso ao ensino superior. Tenho notado, com muito agrado, que as institui-
ções têm implementado esse factor. Eu bem sei que não entra no ensino superior
ninguém que não tenha o ensino secundário terminado. Portanto entrar com nota 7
no exame final de matemática, não quer dizer entrar com menos de 10 do ponto de
vista da classificação do ensino secundário. Mas também acho muito difícil aceitar
que cursos de professores de educação básica possam dar garantias de qualificação
dos futuros profissionais, quando aceitam candidatos quando a nota do exame de
português foi de 5 valores. Ou seja, é suposto que eu defenda o interesse público,
e não tenho nenhum argumento para explicar às famílias que há instituições que
estão a aceitar como seus estudantes, alguém que teve notas miseráveis em portu-
guês ou em matemática.

Os estudantes têm agendada uma manifestação para Março. Consideram que


muitas vezes o dinheiro das propinas é utilizado para pagamento de salários...
As propinas não são contabilizadas para pagamentos de salários. Nós afirmamos
isso à escala que o podemos afirmar. E essa escala diz respeito à relação entre o
Ministério da Educação e as universidades e os institutos politécnicos. Questões
pontuais nesta ou naquela faculdade ou escola, ultrapassam-me, pois a relação de
financiamento faz-se entre o Ministério de Educação e os Politécnicos e Universi-
dades. As propinas são contabilizadas por nós como recursos públicos, das institui-
ções, que devem ser canalizados para promover a qualidade do ensino.
E do nosso ponto de vista a qualidade não são só as questões materiais, pois
quando se compram revistas para uma biblioteca está a investir-se na qualidade,
quando há um aumento do parque informático e aumenta a conta da electricidade,
essa despesa é qualidade.
Quanto às movimentações, considero que as democracias só existem se houver
liberdade de opinião, de manifestação e de reivindicação. De maneira que até me
94 ›
parece simpático da parte dos estudantes avisarem-nos que preparam uma mani-
festação para Março. Não faltarão motivos para essa manifestação, mas a minha
esperança é que possa haver motivos de júbilo.

‹ 95
Júlio Pedrosa 91

Avaliação e planeamento estratégico do sistema

Os politécnicos são instituições diferentes das universidades, mas nunca inferiores.


Falta é “clarificar” as especificidades dos dois subsistemas, sobretudo para quem os
confunde. É o que defende o Ministro da Educação em entrevista ao Ensino Magazine.
Júlio Pedrosa quer que as escolas do ensino superior definam os seus projectos
próprios, contribuindo assim para o desenvolvimento regional.
Defende, por outro lado, que podem desempenhar um papel importante na qua-
lificação da população activa portuguesa, 70 por cento da qual tem menos do 9º ano
de escolaridade. As formas de o fazer estão em aberto, observou o governante, que
apontou como dois pilares da sua actuação a reforma curricular no secundário e as
mudanças no básico. Modificações que, no primeiro caso, levarão a que cheguem
melhores alunos ao superior.
Ao Ensino Magazine, o ministro revelou que quer avançar para a chamada
“avaliação institucional” para que se conheçam as formas de gestão das escolas e
se todas elas possuem as condições adequadas para manterem em funcionamento
os seus cursos.

91 Ocupou o cargo de Ministro da Educação no XIV Governo Constitucional, de 3 de Julho de 2001 a 5 de Abril de 2002, de
maioria relativa do PS, liderado António Guterres. Nesta legislatura sucede no cargo a Augusto Santos Silva e precede David
Justino, ministro da educação do futuro governo do PSD, liderado por Durão Barroso. Foi Reitor da Universidade de Aveiro,
Presidente do Conselho Nacional de Educação e membro da equipa de avaliadores da EUA - Associação de Universidades
Europeias.
Entrevista realizada por Jorge Azevedo, em Fevereiro de 2002.

‹ 97
Que balanço faz do exercício das suas funções enquanto Ministro da Educação?
Ainda é um pouco cedo para fazer um balanço. Continuamos a trabalhar com
intensidade. Em relação a muitos aspectos da nossa agenda de trabalhos, que têm
tido continuidade, consideramos que há uma evolução favorável. Temos prestado
uma atenção muito grande a duas áreas de intervenção: a modificação curricular do
Ensino Básico e a mudança curricular do Secundário. Trata-se de iniciativas cujos re-
sultados ainda não são visíveis, no curto prazo, mas é indispensável que sejam efectu-
adas com grande prudência e um acompanhamento próximo, para que os resultados
possam ser aqueles para os quais as reformas estão pensadas.
No caso da mudança no Ensino Secundário, estamos a criar todas as condições
para que possa arrancar em Outubro próximo. Isso vai ter, certamente, impacto tam-
bém no Superior. Estamos a realizar todos os esforços no sentido de que as modifi-
cações no Secundário potenciem a qualidade, para além de se criarem condições de
efectiva afirmação dos ramos tecnológico e artístico e sejam objecto de um reconhe-
cimento social.
Neste momento, decorre um trabalho bastante importante de preparação da rede
de escolas do Ensino Secundário e de oferta de cursos que irão funcionar no próxi-
mo ano lectivo. É um esforço que não se vê, mas que envolveu os departamentos do
Ministério da Educação que têm responsabilidade nessa área. É uma acção de planea-
mento de grande alcance e preparada de uma forma que não é habitual em Portugal.
Trata-se de uma operação de enorme impacto que será visível quando se lançar o
novo Ensino Secundário.
Também na Educação Básica e tal como estava planeado, o Governo está a realizar
um esforço significativo de modo que a atenção ao 1º Ciclo seja efectiva. Gostaria de
referir, a propósito, que decorreram em Trás-os-Montes e Alto Douro, uma região
com as dificuldades conhecidas, reuniões entre o secretário de Estado da Adminis-
tração Educativa, os autarcas, responsáveis das escolas e professores para analisar
esta questão. É um trabalho que tem de ser realizado em parceria com os actores
no terreno para se saber quais as formas mais adequadas para termos naquela zona,
como noutras, estabelecimentos do 1º Ciclo de elevada qualidade; com grupos de
alunos que possam trabalhar o novo currículo em boas condições e uma oferta de
professores adequada que permita que as áreas disciplinares mais conhecidas, mas
também a Educação Física e a Artística sejam leccionadas em boas condições. Que-
remos também que os estudantes mantenham uma relação com as comunidades em
que se inserem, com vista a que as respectivas escolas do 1º Ciclo sejam elementos
importantes de animação cultural, nomeadamente em zonas rurais onde é relevante
que tal suceda.
A equipa governativa com responsabilidades no Ensino Básico e Secundário está
a manter as reuniões que referi praticamente todas as semanas. Estamos a trabalhar
com as escolas e as autarquias, para que a mudança do Secundário se concretize com
98 ›
o arranque no ano lectivo de 2002/2003 e no Básico consigamos assegurar que os
grandes objectivos traçados sejam concretizados no terreno.

Como encara a contradição entre a maior oferta do Ensino Superior e o apa-


recimento de alguma falta de qualidade? Como se resolve este binómio?
Resolve-se com um sistema de avaliação rigoroso, antes de mais dos cursos, que,
aliás, está a decorrer e neste segundo ciclo avaliativo envolvendo todos os subsiste-
mas. Disporemos, assim, de informação de todos os cursos de todos os subsistemas.
Haverá uma componente de auto-avaliação, responsabilizando-se as instituições pe-
rante elas próprias num exercício de observação interna do que estão a fazer.
No confronto dos seus objectivos com os resultados que alcançarem devem tomar
as decisões que entenderem para melhorarem a qualidade. Esta acção é acompanhada
por uma avaliação externa, realizada por equipas de técnicos de reconhecida qualida-
de e com responsabilidade.
Neste segundo ciclo de avaliação, são elaborados relatórios públicos que demons-
tram que se está a obter já um nível de exigência significativa, de transparência, rigor
e objectividade. É que os relatórios apontam aos diferentes parceiros, das instituições
aos conselhos de Reitores e dos Politécnicos e à Associação Portuguesa de Ensino
Superior Particular e Cooperativo (APESP) caminhos sobre o que cada um deve im-
plementar, em termos de promoção da qualidade.
Defendo que se avance para a avaliação institucional, para podermos ter a possibi-
lidade de dispor de instrumentos que nos revelem como as instituições se encontram
organizadas, a forma como estão a ser geridas e quais as condições que possuem para
oferecer aquilo que anunciam.

Estamos, então, numa fase de “diagnóstico” da situação?


Exacto. Gostaria de salientar, por outro lado, que há ainda a componente de ava-
liação da investigação, a qual é efectuada através do Ministério da Ciência e Tecno-
logia. Se há estruturas que hoje estão sujeitas a uma avaliação, elas são claramente as
instituições de Ensino Superior. O que está a ser realizado não é suficiente, nunca é
quando somos ambiciosos e pretendemos mais exigência e mais rigor. Teremos que
intervir nas condições de acesso, assim como nos factores importantes para haver um
ensino superior de qualidade. A mudança no Secundário enquadra-se nesta pers-
pectiva. Pretendemos uma modificação para que exista mais exigência e qualidade
e melhores condições para aprendizagem nesse nível educativo, com alteração dos
programas, obrigatoriedade do ensino experimental, com as escolas a cumprirem um
programa completo, passando a dispor de laboratórios, computadores e outro mate-
rial de trabalho. Se a isto acrescentarmos o trabalho realizado ao longo dos últimos
anos, de qualificação do corpo docente, então teremos com certeza melhores alunos
a chegarem ao Superior.
‹ 99
De que forma se poderão consolidar os subsistemas dos ensinos Politécnico
e Universitário sem choques, atropelos, ou conflitos entre eles, numa perspecti-
va desejável de colaboração mútua?
Desde logo, tem de haver uma clareza de projectos. Temos de continuar a traba-
lhar para que todos compreendam qual é a especificidade de cada um dos subsiste-
mas. Tudo o que ajudar a que esta compreensão seja evidente, contribuirá a que cada
um dos subsistemas seja mais respeitado, nas suas valências específicas.

Entende, então, que há, ainda, uma falta de clarificação do papel de cada um?
Para muitos actores educativos, não está adquirida essa clarificação. Há, portan-
to, aí trabalho a realizar...Um segundo elemento que auxiliará a que se disponha de
um quadro mais claro é o dos resultados obtidos por cada instituição. Na medida
em que se forem avaliando as diferenças entre os licenciados formados por um e
outro subsistema e se reconheçam o valor das respectivas formações, então será
mais fácil proceder às distinções. Outro factor marcante é a forma como os estabele-
cimentos se relacionam com as regiões em que estão inseridos, assumindo-se como
actores do desenvolvimento.

O facto de os politécnicos não estarem autorizados a formarem docentes


para o 3º Ciclo nem a concederem os graus de Mestre ou de Doutor, não pode
ser encarado como uma discriminação colocada face às universidades?
Não é por haver instituições diferentes que elas são menores. É bom que existam
diferenças. É preciso saber quais são e assumi-las. A missão dos estabelecimentos está
consagrada na Lei. É necessário dar-lhe expressão. O que, realmente, é relevante é sa-
bermos se temos escolas de qualidade para a missão específica que cada uma cumpre,
porque vamos atravessar um período em que será ainda mais indispensável conhecer
com um rigor acrescido qual a meta concreta de cada estabelecimento. Em relação,
por exemplo, à formação de professores, vai ser necessário aprofundar a questão de
se saber quem tem a missão de formar quem.

No domínio da formação de professores, não considera ser urgente to-


mar medidas?
Repare que estamos a formar já mais professores do que o sistema actualmente pre-
cisa. É uma perspectiva de futuro, mas também das necessidades actuais. Foi efectuado
um investimento na contratação de docentes qualificados, enquanto se verificou um
decréscimo do número de alunos nas escolas nos vários subsistemas. Coloca-se o pro-
blema de regularmos, de forma mais evidente, a formação inicial de professores, mas
há, igualmente, uma necessidade de formação contínua dos docentes.
Antevejo que o trabalho que se está já a efectuar no domínio da formação inicial dos
professores precisará de envolver mais instituições do Ensino Superior, nomeadamente
100 ›
quando se planeiam as duas mudanças curriculares que referi, as quais são extrema-
mente exigentes e que necessitam de novas competências da parte dos docentes.
Neste quadro, iniciámos algum trabalho preparatório com as instituições acerca
do modo de serem mais amplamente envolvidas não apenas na área da formação
contínua para as áreas mais fundamentais da reforma (que são a aposta no ensino da
língua materna, da Matemática, das Ciências, do ensino experimental e das tecnolo-
gias de informação), mas também para as novas áreas curriculares de base, como o
Estudo Acompanhado e a Área do Projecto.
Importa saber como vamos combater a iliteracia que existe ainda. As instituições
do Superior têm uma enorme responsabilidade em procurar responder a estes deside-
ratos. Não faz sentido pensarmos em dar “saltos” para outros tipos de competências,
quando há um conjunto que as instituições já possuem e são indispensáveis para
fazer mudanças no país. O debate actual analisa perante os problemas que Portugal
tem quem faz o quê bem, respondendo aos problemas que existem. Há uma questão
de escolha por cada estabelecimento de qual é o seu projecto, em que domínios quer
concentrar as suas capacidades e competências para ser uma excelente instituição.
Sabemos o que o sistema, como um todo, deve realizar, mas o que cada instituição
deve escolher dessas responsabilidades gerais é uma análise que tem de ser efectuada
e, agora, ainda com mais rigor.

O Governo concede, portanto, essa liberdade às escolas?


Sim. Está, neste momento, em cima da mesa uma proposta de plano de desenvol-
vimento das instituições. Importará que tais planos, que os próprios estabelecimentos
elaboraram, sejam confrontados com as necessidades reais do país e dos vários facto-
res. Falámos da formação de professores, mas há também o problema da qualificação
da população activa.

Qual o papel das instituições de Ensino Superior perante essa população, em


que cerca de 70 por cento tem menos do 9º ano de escolaridade?
É um dos problemas estruturais do país...

Exactamente. Cerca de 50 por cento da população activa possui menos do 6º


ano de escolaridade. As instituições do Superior podem desempenhar um papel
no processo de qualificação desta população adulta?
Penso que podem, seja directamente, seja na formação de formadores, ou na cria-
ção de dinâmicas locais e regionais, em cooperação com os ministérios do Trabalho e
Solidariedade e da Economia.
Podem, igualmente, participar em estratégias de desenvolvimento regional em
que surja a prioridade de qualificação da população activa. Note-se, por outro lado,
que as realidades são diferentes. Ou seja, este problema não é o mesmo na região de
‹ 101
Lisboa ou em Castelo Branco, por exemplo, e aí não será o mesmo que em Faro ou
nos Açores. Em todas essas regiões há instituições de Ensino Superior. É importante
que cada uma escolha, em função do seu projecto, do ambiente que lhe está próximo
e da sua missão nacional, o que pretende realizar nos próximos anos. Tenho vindo
a insistir na necessidade das escolas do Superior terem sedes de Planeamento e Ges-
tão Estratégicos e centros de responsabilidade por tal planeamento. As mudanças
que estão a ser preparadas no Ministério da Educação, em termos da legislação que
enquadra o Ensino Superior no que respeita à sua gestão, apontam para a resposta a
este grande objectivo.

102 ›
Pedro Lynce 92

O apertar do cinto é para todos…

As instituições de Ensino Superior vão ter de encontrar novas formas de financia-


mento. O alerta é dado pelo ministro do sector, Pedro Lynce que, em entrevista Ensi-
no Magazine, reconhece que a Lei está desactualizada, dadas as previsões de redução
do número de alunos nas universidades e politécnicos.
Em tempos de dificuldades económicas e financeiras, o governante afirma não
acreditar que as escolas do Superior queiram uma situação de excepção que, de resto,
diz, não seria compreendida pela população.

Os anunciados “cortes” no Ensino Superior vão abranger a Acção Social Escolar?


Não é verdade que haja redução de verbas para o sector. De facto, o Ministério
da Ciência e do Ensino Superior registou uma quebra de cerca de 3,3 por cento no
seu financiamento. O Ministério são as instituições do Ensino Superior e a Ciência e
Tecnologia. As primeiras tiveram um aumento médio de 2,7 por cento, em relação ao
orçamento inicial do ano passado. Ora, se compararmos o orçamento inicial de 2002
para o Ensino Superior com o de 2003, verifica-se um aumento de 2,7 por cento. Se
a comparação se referir à Ciência e Tecnologia, a instituição principal é a Fundação da

92 Ministro da Ciência e Ensino Superior no XV Governo Constitucional, de maioria do PSD, liderado por Durão Barroso, na
base de um acordo de incidência parlamentar com o CDS/PP. Repartiu a governação da educação com David Justino, devido à
separação, em dois, do antigo Ministério da Educação. Já desempenhara as funções de Secretário de Estado do Ensino Supe-
rior, entre 1991 e 1995, num governo de Cavaco Silva. Após quase ano e meio, a 3 de Outubro de 2003, Pedro Lynce pediria
a demissão do cargo, tendo sido substituído por Maria da Graça Carvalho.
Entrevista realizada por Jorge Azevedo, em Janeiro de 2003.

‹ 103
Ciência e Tecnologia, o aumento cifra-se em 0,7 por cento. Poderá perguntar-se: como
foi possível este milagre? É que todas as outras instituições, nomeadamente os serviços
de apoio, registaram uma quebra. Vou-lhe dar um exemplo apenas: no meu gabinete
verificou-se uma redução entre 20 e 25 por cento. Se alguma crítica há a formular é
que as instituições de Ensino Superior e a Ciência foram beneficiadas neste orçamento.

Na sua perspectiva, os professores, Reitores e Presidentes compreenderam


essa situação?
É perfeitamente natural que queiram mais, eu compreendo isso. Mas, não nos
podemos esquecer – e essa é a grande dificuldade que senti até agora – que estamos
inseridos num todo. Será que os cidadãos percebem que têm de “apertar o cinto” e o
Ensino Superior não? Não vale a pena estarmos a iludir ninguém: os sacrifícios que
têm sido pedidos ao Ensino Superior são os mesmos que, neste momento, estão a ser
requeridos aos outros sectores do país. Não quero crer que o Ensino Superior preten-
da uma situação de excepção.
Todos nós, como cidadãos, provavelmente já adiámos ou deixámos de realizar
algo que queríamos devido à situação económica de Portugal. Repare que, nos últi-
mos dez anos, foram canalizados para investimentos cerca de 250 milhões de contos.
Destes, aproximadamente 75 por cento foram verbas comunitárias. A medalha tem
duas faces: uns dirão que, no fundo, a situação actual é devida ao défice. É verdade:
o Governo considerou prioritário cumpri-lo e tal permitirá que continuemos a be-
neficiar dos referidos apoios. Outros dirão, pelo contrário, que estamos a ser muito
rígidos em relação ao défice, mas, então, abdicamos do resto do investimento? Há que
definir claramente qual a opção a tomar. Acredito que ainda não tenha conseguido
passar esta mensagem.

Foi divulgada uma notícia, segundo a qual, e para que o Governo pudesse
baixar o défice, entre as diversas medidas previstas, se contaria com o aumento
das propinas. Confirma a medida?
Não. No Programa de Estabilidade e Crescimento não consta tal medida. O que
está definido é a necessidade aumentar as receitas próprias. Vamos colocar à discus-
são correcções de algumas leis em vigor, nomeadamente a de financiamento. Para
manter ou melhorar a qualidade, é preciso aumentar as receitas próprias.

Sabendo que o critério essencial do financiamento actual é o número de es-


tudantes de cada instituição e, tendo em conta que se prevê uma diminuição do
número de alunos até 2012, tal implicará, fatalmente, uma redução das verbas
atribuídas ao Ensino Superior…
A Lei em vigor está desactualizada. O critério já não pode ser o número de alunos,
sem dúvida. De qualquer das formas, uma instituição que tenha mais alunos do que
104 ›
outra, terá mais verbas. O problema é que o critério actual é praticamente apenas o do
número de estudantes. A partir do momento em que este começa a descer, forçosa-
mente tem de se proceder a um ajustamento. Lamento que nada se tenha feito antes,
porque não foi hoje que se soube desta situação e não se efectuaram as mudanças
indispensáveis no momento certo.

O momento actual é o ideal para mudar profundamente o Ensino Superior


em Portugal?
Ou procedemos agora às correcções necessárias ou posso garantir que, dentro de
3 a 5 anos, há uma série de instituições, sobretudo no interior do país que fecharão.
O Governo não o aceita. Este é o nosso grande desafio, neste momento. Suponha
que nada se fazia: as referidas escolas iriam mesmo encerrar. Bastava acabar com o
“numerus clausus”…

Considerando o que acaba de afirmar, qual a importância que atribui às ins-


tituições de Ensino Superior no Interior?
São decisivas para o desenvolvimento das respectivas regiões. Mas, têm de ser
repensadas; não podem prosseguir como estão. Dou-lhe um exemplo: não podemos
continuar a repetir cursos na Guarda, na Covilhã e em Castelo Branco.

E qual é a fórmula alternativa? … As instituições estão dispostas a prescindir


dos seus cursos?
Ou aceitamos “acertar” os cursos, sentando à mesa os responsáveis pelas insti-
tuições ou, dentro de 3 a 5 anos, duas dessas instituições desaparecerão, só uma
persistirá. Será isso, razoável? Não é. Significaria prejuízos graves para a região. Para
o Governo, é perfeitamente inaceitável.

Como avalia a contradição entre a “quantidade de oferta” das instituições de


Ensino Superior e a “qualidade de saída” dos diplomados?
A única entidade que me pode dar dados concretos sobre a qualidade é a Co-
missão Nacional de Avaliação do Ensino Superior. Enquanto não possuir o relatório
deste organismo, terei dificuldade em realizar análises da questão. A qualidade é algo
muito subjectivo. É preciso um avaliador independente. Se for à abertura dos anos
nas instituições, todos os presidentes das escolas dizem que estas têm uma elevada
qualidade, não ouvi nenhum afirmar o contrário.
Quando se trata de lidar com questões de verbas, evoca-se sempre a qualidade.
Há uma entidade autónoma a trabalhar na avaliação desta matéria e aguardo, neste
momento, o respectivo relatório a partir do qual tirarei as devidas conclusões. O
ministro não pode dizer que uma determinada instituição tem qualidade e outra não
sem ter elementos objectivos em seu poder. Os próprios responsáveis das escolas não
‹ 105
o podem afirmar. É certo que hoje é um pouco mais fácil proceder a uma avaliação,
porque estão disponíveis indicadores internacionais. Há uma série de índices que nos
revelam a qualidade de um curso. Mas, não quero ir por aí, nesta altura.
O problema da qualidade preocupa-me, porque repare: há alguns anos fez-se uma
avaliação do nosso ensino e chegou-se à conclusão que Portugal estava nos últimos
lugares na numeracia e na iliteracia, no quadro da União Europeia. Este é o meu re-
ceio. Atenção: temos instituições e cursos excelentes, mas temos outros menos bons.
Convém que tenhamos a consciência da situação.
Estou convencido que a avaliação internacional está à porta. Em todas as reuniões de
Conselho de Ministros da União Europeia em que participo é um aspecto que é sempre
abordado. A avaliação internacional vai-nos visitar num período relativamente curto.

Como é possível conciliar a identidade própria de cada um dos sub-sistemas


do Ensino Universitário e do Politécnico? De que modo se podem consolidar
sem “atropelamentos” e “rupturas”? Coloca a hipótese de integrar o Ensino
Politécnico no Universitário?
Nessa matéria, deixo tudo em aberto. Podemos continuar a utilizar o critério
que tem sido adoptado em Portugal de estabelecer uma dicotomia de universidades
de um lado e politécnicos do outro. Uma dicotomia que já foi ultrapassada porque
temos duas universidades a ministrar Ensino Politécnico: a de Aveiro e a do Algar-
ve. Admito que possa ser adoptado o modelo que existe, actualmente, em Espa-
nha. Consiste em sob o “guarda-chuva” da universidade estarem a funcionar cursos
universitários e outros politécnicos. No entanto, também admito que o Politécnico
fique separado do Ensino Universitário. Não creio que seja nesta matéria que resi-
dem os problemas principais do sistema. A questão coloca-se, essencialmente, em
termos de racionalização da rede e de complementaridade de cursos. Isto é mais
importante, nesta altura, do que estar a discutir o que é universitário ou politécni-
co. A própria alteração da Lei de Bases efectuada em 1998 não serviu muito para
clarificar a situação, na minha perspectiva.

Permanece, então, alguma indefinição…?


O erro principal cometido entre os dois tipos de ensino residiu no facto dos pre-
sidentes escolhidos inicialmente nos politécnicos serem professores universitários. Se
há hoje instituições que se encontram claramente diferenciadas, existem outras em
que temos dificuldade em perceber qual o tipo de ensino de facto ministrado.

Há medidas previstas em relação à possibilidade dos politécnicos formarem


docentes para o 3º ciclo e de poderem conceder os graus de Mestre e de Doutor?
Há duas respostas possíveis. Em primeiro lugar, não me parece que a eventual
atribuição, pelo menos do grau de Mestre, seja exclusiva da Universidade. Os graus
106 ›
devem poder ser atribuídos em função da qualidade do corpo docente. Numa pri-
meira análise, parece-me que será a situação mais justa. Não é por uma escola ser
Universidade ou Politécnico que deverá poder conceder um ou outro grau, mas
sim porque possui um corpo docente de qualidade que o permita. Este é, na minha
óptica, o princípio mais correcto. Numa altura em que estamos a repensar o Ensi-
no Superior e em que o número de candidatos a ingressar no sistema irá registar
uma redução de 10 por cento, não é prioritário estarmos a considerar essa situação
dos graus que podem ou não ser ministrados pelas escolas. De qualquer maneira,
espero propor a alteração da Lei de Bases e nessa altura a questão será, muito pro-
vavelmente, equacionada.

Em relação à racionalização da rede a que já se referiu, tem defendido a jun-


ção de cursos e de escolas. Tal posição não foi muito bem recebida em diversas
instituições e docentes. Insiste em mantê-la?
Só vejo duas alternativas. Ou seguimos na via que defendo ou, então, haverá cur-
sos a fechar, dentro de 3 ou 5 anos, porque não há alunos!
Suponha que na mesma região existem duas instituições a ministrar os mesmos
dois cursos, cada um com pouquíssimos alunos. Se uma não ficar com apenas um
dos cursos e a outra com o outro, a tendência será o encerramento por falta de es-
tudantes. Se me apresentarem uma alternativa adequada, óptimo! É o que se passa,
igualmente, com a formação de professores. Também aqui é preciso procurar uma
alternativa à situação vigente. Saem todos os anos cerca de 10 mil docentes formados,
boa parte dos quais se encontram desempregados. É necessário repensar o que fazer
face a esta situação.

Mas, temos uma percentagem de diplomados inferior à média comunitária…


No grupo etário dos 18 aos 24 anos, verifica-se que a percentagem de diplomados
é mais pequena, embora Portugal esteja muito próximo da média da União Europeia.
Penso até que, neste momento, estaremos já à frente da Inglaterra. A questão central
é que temos de garantir, em primeiro lugar, qualidade nos cursos e, depois, expecta-
tivas para os jovens.
Os dados que apontam para uma percentagem de diplomados em Portugal infe-
rior à média comunitária referem-se ao sector Terciário, ou seja, de modo geral, tudo
aquilo que é pós-secundário. No mercado de trabalho, sucede que não há quadros
intermédios. Porque é que não podemos trabalhar para colmatar este problema? A
razão reside no facto de, do ponto de vista social e político, termos assassinado tal
vertente. Social e culturalmente, a ideia do Doutor e do Engenheiro ainda tem muito
“peso”. Ao nível político, infelizmente, verificou-se um afastamento da consideração
do problema e a consequência de tudo isto foi terem acabado os quadros intermédios.
É preciso repensar e, provavelmente, voltar à situação primitiva, nesta área.
‹ 107
Estatuto da Carreira Docente
Professores têm de dar provas

O Estatuto da Carreira docente vai ser objecto de alterações. A garantia é dada


pelo ministro, que quer combater uma «falha tremenda» do sistema e pretende
para Portugal uma rede de ensino superior de excelência, essencial ao futuro do
país, sublinha.
Às instituições, sobretudo do Interior, deixa um recado: prestem atenção aos
novos públicos e apostem na requalificação e reciclagem dos recursos humanos
locais, aqueles que não saem das respectivas regiões, ao contrário dos estudantes
das licenciaturas que, muitas vezes, regressam ao litoral de onde são originários.

Em relação à formação pedagógica dos docentes do Ensino Superior, há me-


didas pensadas?
Penso que é uma questão muito importante. Actualmente, a primeira prova peda-
gógica pública que se faz é para obter o título de agregado. Trata-se de pessoas que
já estão na carreira e que praticamente não foram sujeitos a nenhuma prova pública,
porque quando entram para a carreira de associado têm de se submeter a uma prova
pedagógica, mas que é documental. É uma falha tremenda. Como sabe, o insucesso
escolar tem várias razões na sua origem, desde causas endógenas a exógenas. Admito
que uma das endógenas seja a falta de preparação pedagógica dos professores do En-
sino Superior. Há medidas pensadas, em termos de se proceder à revisão do Estatuto
da Carreira Docente. Pretendo colocar em “pé de igualdade” as publicações pedagó-
gicas e as científicas, porque considero isso importante.

Tem preconizado a criação em Portugal de uma rede de Ensino Superior “de


excelência”. Pode concretizar o que entende por uma rede deste tipo?
Tivemos oportunidade de a constituir e por falta de uma orientação, o que dispo-
mos é de uma rede de Ensino Secundário melhorada.
Uma rede de Ensino Superior de excelência teria exigido um planeamento que não
existiu, registando-se um crescimento anárquico do sistema, que permite que Portugal
possua dois níveis de ensino diferenciados. É uma situação que me preocupa fortemente.

A inexistência continuada da rede de excelência a que se refere, comprome-


teria o futuro do país?
Não tenho dúvidas nenhumas. Mais grave ainda: amanhã, teríamos avaliadores
que reconheceriam uns diplomas e outros não.
Aliás, vivemos, actualmente, uma situação que tem passado despercebida e que me
preocupa. Existem cerca de 300 cursos de Engenharia em Portugal, mas só 88 estão
acreditados pela respectiva Ordem profissional. Isto significa que mais de 200 cursos já
108 ›
licenciaram fornadas de jovens que não têm carteira profissional. As instituições terão,
pelo menos, de requalificá-los para que os seus diplomas sejam reconhecidos.

A manter-se o sistema de Ensino Superior como está, corremos o risco de estar


a formar gerações de frustrados, tendo em conta nomeadamente as discrepâncias
entre o número de licenciados e as necessidades do mercado de trabalho?
Não creio. Se, por hipótese, eu acabasse com o “numerus clausus”, as instituições
do Interior do país ficavam desertas. O litoral é que “batia palmas”, agravando-se,
assim, os desequilíbrios de Portugal! A minha preocupação, neste momento, é ver se,
num esforço supremo, conseguimos evitar isso, tanto mais que o número de alunos
vai diminuir. Temos a obrigação de introduzir claramente melhorias, ao nível da qua-
lidade, esta é que é a realidade.
As instituições de ensino superior, até agora, têm-se limitado a cursos graduados
(licenciaturas) e pós-graduados (mestrados e doutoramentos). Mas, há outras franjas
muito importantes a considerar. Hoje, fala-se da aprendizagem ao longo da vida.

Os “novos públicos” do Superior para os quais se tem chamado a atenção?


Exactamente. Cursos pós-secundários, tecnológicos, de requalificação e de reci-
clagem profissional: o leque possível é vasto. Mas, em todos trata-se de valorizar os
recursos humanos locais. Suponha o que se passa numa cidade do Interior: o nú-
mero de habitantes não é suficiente para alimentar o ensino Superior graduado ou
pós-graduado. Por isso, tem de haver uma importação de jovens de outras regiões.
Sucede que assim como foram para lá estudar, também se vêm embora. Porque é que
as instituições das zonas não começam a olhar para a valorização dos recursos locais,
já que estes não saem de lá? As universidades e os politécnicos podem estabelecer
protocolos e realizar cursos de reciclagem que até, muitas vezes, teriam lugar à noite
ou ao fim-de-semana.

Assim se consegue novas actividades para o Ensino Superior e uma valoriza-


ção dos recursos humanos do país?
Claro. Repare quantos jovens vão estudar para a universidade ou o politécnico
por falta de alternativas. Se quiser um bom electricista ou electromecânico, onde o
vai buscar? Na área da agricultura, por exemplo, quer um operador de máquinas ou
um tractorista competente, o problema é o mesmo. Há jovens que estão dispostos a
frequentar um curso de formação profissional relativamente curto mas não licencia-
turas, mais longas.

Na base do problema não está um problema cultural do culto do “doutor”?


É, de facto, um problema cultural e social gravíssimo. Acabou-se com um grau
intermédio que existia e há muitos jovens que afirmam não estar interessados em es-
‹ 109
tudar 5 anos, mas querem frequentar um curso mais reduzido. Daí que nas universi-
dades e politécnicos o insucesso escolar seja superior a 50 por cento. Provavelmente,
há muitos alunos que nem queriam lá estar. O problema é que não lhes foi dada outra
alternativa. As próprias instituições também têm vivido uma situação um pouco per-
niciosa, uma vez que não se adaptaram a estas novas questões. E não nos esqueçamos
daquele pecado original que já lhe referi: o da maioria dos presidentes iniciais dos
politécnicos terem sido professores nas universidades.

Há docentes universitários a defender uma maior mobilidade entre institui-


ções e alguns criticam inclusivamente que tenham de fazer toda a sua carreira
na mesma escola. Como tenciona tratar este problema?
Penso que há uma endogamia excessiva. Existem lugares que se abrem apenas
quando existem docentes preparados nas respectivas instituições para concorrerem
e há professores que nunca saíram da sua própria escola. É uma situação claramente
prejudicial, porque faz com que as instituições ainda se fechem mais. Há escolas que
se implementaram muito bem e estão articuladas com a sociedade envolvente e o
meio empresarial das respectivas regiões. Mas, são casos ainda excepcionais.

De que forma encara a expansão ocorrida no Ensino Superior em Portugal,


nos últimos anos?
Verificou-se um crescimento e não um desenvolvimento do sistema de Ensino
Superior em Portugal. Para que este tivesse ocorrido, deveriam actuar três actores: o
Poder Central, o presidente do politécnico ou o reitor da universidade e o autarca.
Aconteceu que o Poder Central “limpou as mãos como Pilatos”. Daí chegámos à situ-
ação actual. Repare que, neste momento, encontram-se distribuídos por todo o país
uma série de pólos onde dificilmente se conseguirá introduzir ganhos de qualidade
e o primeiro responsável por isso é o Poder Central, não tenho dúvidas nenhumas
disso. O último responsável é o autarca.

110 ›
Vítor Melícias 93

Vivemos uma época anti-portuguesa

Os órgãos de soberania portugueses devem apoiar-se mutuamente, sabendo


que o primus inter pares é o Presidente da República e não a magistratura. Ao
mesmo tempo, os políticos devem servir melhor a comunidade do que os seus
partidos ou os objectivos políticos, enquanto a população portuguesa deve mu-
dar a forma de encarar o futebol, onde se está a gerar uma cultura que vai contra
a própria cultura portuguesa.
As convicções do Padre Vítor Melícias que, numa entrevista concedida ao
Ensino Magazine, espera que o Euro seja uma festa à semelhança da Expo 98,
pelo que “cada português deve saber ganhar, saber perder ou às vezes até saber
empatar, coisa que alguns não sabem. Nem sequer empatar!”.
De caminho, considera que a Igreja desempenhou um papel fundamental na for-
mação de quadros em Portugal ao longo do século XX, o que continua a fazer agora
com instituições de excelência, como a Universidade Católica, muito embora a oferta
seja maior e existam boas instituições de Ensino Superior no Interior do País.
E se o ensino hoje é mais laicizante, Vítor Melícias aceita o facto, adiantando
que o Estado também deve ser laico para permitir a liberdade religiosa. Porém,
93 Presidente das Misericórdias portuguesas, à data da entrevista. Padre franciscano, nasceu em1938, em Ramalhal, Torres
Vedras. Licenciou-se em Direito Canónico, em Roma, como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, e em Direito pela
Universidade Clássica de Lisboa. Acumulou dezenas de cargos ao longo da sua vida, sempre na área da solidariedade social.
Paralelamente a estas actividades e ao sacerdócio, procurou estar sempre ligado à educação e à docência, nomeadamente no
Instituto Superior de Teologia de Évora e na Universidade Católica.
Entrevista realizada por Vítor Tomé, em Fevereiro de 2004.

‹ 111
diz que a sociedade não é neutra. Razão que o leva a avisar contra os efeitos
do neo-liberalismo, e a a defender a globalização, mas numa lógica humana e
solidária, à semelhança do que acontece com as relações entre Portugal e Timor,
o novo país onde também existem misericórdias, as quais, “são das instituições
que, vindo do passado, têm mais características de modernidade”

A educação em Portugal, sobretudo ao nível do Ensino Superior, vai ao


encontro dos ideais cristãos ou será mais laicizante?
O ensino em Portugal teve uma tradição ligada à vida religiosa da sociedade
civil, sobretudo até ao tempo do Marquês de Pombal, pois a educação acontecia
sobretudo nos conventos, catedrais e só depois com as primeiras universidades
e o ensino dos jesuítas. Com o Marquês de Pombal houve como que uma estati-
zação do ensino, o que não significou a sua secularização. No século XX é que,
independentemente do ensino religioso ou do particular com alguma influência
religiosa, aconteceu uma laicização do ensino público. Aconteceu também uma
redução ou eliminação total do apoio do Estado ao ensino promovido pelas
igrejas nos seminários ou pelas famílias, sob orientação de instituições religio-
sas, o chamado ensino particular. Hoje temos um ensino plural, mas o Ensino
Público ainda é muito marcado por uma tradição de forte laicismo.

De que modo é que isso se reflecte na sociedade: há muitas pessoas que


se afastam da religião ou, no fundo, há uma parte dessa sociedade que se
liga cada vez mais à religião?
O Estado é necessariamente laico. E é bom que o seja, no sentido de se
separar das instituições, das confissões religiosas das diversas igrejas. Mas a
sociedade não é neutra, não é laica. Existem diversas sensibilidades de práticas
e opções religiosas. Nesse sentido, o Estado deve criar um espaço de enquadra-
mento que permita a liberdade religiosa e a liberdade de ensino religioso ou não
religioso. Se não proporcionar esse tipo de espaço livre e pluralista, haverá uma
tendência para que o próprio ensino seja, pelo menos, a-religioso. Em Portugal,
hoje, a matéria ainda não assume a gravidade que atinge noutros países, mas é
sempre um risco para o qual devemos estar atentos, a começar pelas famílias. É
importante que as famílias cristãs, muçulmanas, agnósticas ou até ateias possam
desenvolver as suas obrigações em matéria de liberdade religiosa.

Em Portugal temos a Universidade Católica, considerada de excelência,


pelo menos olhando ao desempenho social relevante dos seus formados.
Como explica esse caso de sucesso?
Desde que não sejam negados os meios legítimos, é mais fácil atingir a ex-
celência no sector social ou no sector privado do que no público, sobretudo se
112 ›
ele estiver burocratizado e desresponsabilizado. É isso que se vê na indústria,
no comércio social, banca social e noutras áreas. A Universidade Católica, que
surgiu como iniciativa do sector social, numa altura em que a resposta do Esta-
do era, pelo menos, insuficiente. Foi-se afirmando pela possibilidade de opção,
pela escolha de professores e alunos, transformando-se numa instituição com
alguma excelência, distinguindo-se em relação a outras. Tal não significa dizer
que no sector público e privado não existem bons estabelecimentos de ensino.
A própria avaliação do Ensino Superior (e eu integro a comissão relativa à ava-
liação do privado) demonstra que em todos os sectores existem boas iniciativas.

A Universidade Católica investiu também no Interior, onde o Superior


se desenvolveu muito nos últimos anos. Como encara o contributo do En-
sino Superior para o desenvolvimento da faixa interior do País?
A existência de entidades vocacionadas para a formação de pessoas é sempre
um factor, pelo menos potencial, de desenvolvimento. Se esse desenvolvimen-
to for sustentável, a presença de iniciativas do Superior, técnico, humanístico
ou outro, é uma forma de valorização das zonas menos centrais. Isto, a menos
que não se desse o apoio e o estímulo suficiente a instituições de Ensino Supe-
rior, por estarem exactamente no Interior, degradando-os ou desvalorizando-
os. Julgo que não é o caso e temos na Beira Interior, Trás-os-Montes e outros,
várias instituições que mantêm um grandíssimo nível. Por exemplo, ao nível da
avaliação, a Universidade de Aveiro tem primado em relação às universidades
públicas centralizadas em Lisboa.

A Igreja Católica esteve sempre ligada ao Ensino e nunca se debateu


com o problema de vocações, o que acontece agora. Pensa que tal se pode
dever também à grande oferta formativa existente em todo o País?
Muita da formação do povo português foi feita através dos seminários, so-
bretudo quando não havia resposta suficiente por parte do estado e da socieda-
de civil. A Igreja pode orgulhar-se de ter prestado um enorme serviço a Portu-
gal, o de ter formado uma boa parte dos quadros, sobretudo ao longo do século
XX. Hoje, a chamada crise de vocações tem mais a ver com o estatuto e com a
identidade do ministério sacerdotal e das condições em que se exerce. Não é um
fenómeno exclusivamente português, mas também não encontra a sua justifica-
ção na melhor ou menor qualidade da formação ministrada.

Essa crise de vocações poderá ser ultrapassada?


O fenómeno será ultrapassado, e tem-no vindo a ser aos poucos com a alte-
ração do estatuto de quem exerce o sacerdócio. Quer sejam homens, quer um
dia possam ser mulheres, seja com o estatuto de celibato, ou não, é o estatuto
‹ 113
do ministro sagrado que vai definir a maior ou menor participação na direc-
ção religiosa cultural ou sacramental das várias comunidades. Provavelmente,
e como está previsto, os leigos terão oportunidade de assumir um maior papel,
desenvolvendo um dinamismo diferente do que existe hoje. Existem soluções
intercalares, como os chamados diáconos permanentes, a atribuição de deter-
minadas funções a leigos, as quais antes eram exclusivas de clérigos. O mundo
vive uma grande evolução que também se revelam nesta matéria.

Mas a evolução do mundo não assenta muito numa cultura imposta pe-
los países mais desenvolvidos aos menos desenvolvidos, gerando uma cul-
tura global que levará à perda da história, de valores próprios de cada país?
A globalização ou mundialização é um fenómeno positivo, embora seja negativa a
forma como se está a processar, ou seja, motivada por interesses. É uma globalização
económica, financeira, comercial ou até cultural, mas não uma globalização do homem
enquanto ser universal, enquanto cidadão com direitos e deveres iguais, independente-
mente das circunstâncias em que se encontra no mundo. A verdade é que, se proclama-
mos direitos humanos universais, não praticamos direitos humanos universais.

Há forma de ultrapassar essa sonegação de direitos humanos universais


a muitos cidadãos do mundo?
Já existem movimentos, como o Fórum Social Mundial, que têm apelado a
uma alter-globalização. A designação é correcta, pois importa que a globaliza-
ção seja da humanidade enquanto família global de todos os seres humanos,
com dignidade, direitos e deveres iguais. Mas a criação de condições de igual-
dade não significam a eliminação da diferença. A igualdade constrói-se em cima
da diferença, num mundo em que todos são iguais exactamente porque todos
são diferentes. Só se trata de forma igual, pessoas diferentes, desde que sejam
reconhecidas as diferenças. Tal poderá ser feito se os povos forem tratados na
sua diferença segundo o princípio da solidariedade, ou seja, em que o todo se
responsabiliza pelo bem de todos. A cultura universal, mas não necessariamen-
te uniforme, é possível e necessária. Só haverá cultura humana globalizada se
ela for uma cultura de culturas.

As misericórdias desempenham um papel importante nessa área, ou a


alteração que pressupõe terá de acontecer a um nível muito superior?
As misericórdias são emanações directas das populações. Surgiram e devem continuar
a surgir e a actuar como formas de organização das comunidades locais, para que, com os
recursos locais, respondam às solicitações da comunidade. Assim, os modelos universais,
como os de compromisso ou comportamento, são comuns, mas a realidade de cada uma
é diferente. Da própria cultura essencial das misericórdias faz parte a diferença.
114 ›
Como analisa o papel desempenhado pelas misericórdias em Portugal,
sobretudo ao nível do Interior, regiões, no mínimo, tidas como mais pobres?
Houve períodos da história em que o papel das misericórdias foi mais re-
levante ou visível do que noutros. Hoje, neste processo de globalização e de
esforço pelo acesso de todos aos bens que de todos são, as misericórdias têm
características e condições que são quase modelares para uma boa resposta aos
problemas sociais. São das instituições que, vindo do passado, têm mais carac-
terísticas de modernidade.

O papel das misericórdias não choca com uma sociedade altamente


competitiva, baseada nos valores económicos onde acontecem fenómenos,
como a falência das famílias devido ao excessivo endividamento? E não
terá a banca um certa culpa nesse transtorno social?
Tenho uma ligação à banca, mas sempre à banca social, exactamente motiva-
do pelo ideal de uma economia social e de solidariedade. Defendo a existência
de um mundo plural, em que convergem os esforços do sector público, do
sector social e do privado, cada um com a sua filosofia. É evidente que hoje
domina o neo-liberalismo de motivação capitalista que de protecção às forças
do trabalho, ao indivíduo e à pessoa humana. Não há perdão das dívidas aos
países pobres, não se encontram soluções que prevejam cláusulas sociais e a en-
treajuda entre os povos, nem se definem normas de evitar que grandes empresas
condicionem, por exemplo, a distribuição de medicamentos ou alimentos a
toda a humanidade. Isso é preocupante, à semelhança da falta de protecção ao
ambiente. Tudo isto é preocupante. Mas também me preocupa que a economia
possa ser um instrumento que os detentores do capital usem para dominar o
resto da humanidade.

Como é que se pode agir para evitar que a lógica neo-liberal se afirme
por essa lógica de dominadores e dominados?
É necessário encontrar aquilo que o Papa João Paulo II diz e muito bem, ou
seja, uma nova forma de civilização, uma civilização de amor, não conduzida
por interesses, mas por afectos, pelo respeito por todos os cidadãos, indepen-
dentemente da sua cultura ou país. Todo o ser humano deve ter condições de
se realizar na liberdade, na igualdade e na fraternidade, que não é apenas um
desejo, mas também um direito.

Estando ligado ao nascimento de um pequeno País como Timor, pensa


que será possível gerar uma sociedade com esses valores, e qual será aí o
papel de Portugal?
Já não estou ligado a Timor em sentido administrativo e jurídico, mas em
‹ 115
sentido afectivo. Verifiquei com grande júbilo que os portugueses souberam
relacionar-se com os timorenses, não por motivos de interesses ou jurídico-
políticos, mas por motivos de afecto. É exactamente este tipo de relacionamento
que preconizo e aplaudo para o mundo. É preciso que os países mais desen-
volvidos saibam reagir desse modo em relação a povos que estão em risco de
guerra, de pobreza... O relacionamento entre Portugal e Timor, sobretudo até à
independência, foi um relacionamento exemplar, que não deve decrescer. Ainda
há dias Mota Amaral, em visita a Timor, dizia que é preciso que este apoio não
diminua de maneira nenhuma.

Relativamente a Portugal, propriamente dito, estando ligado ao futebol


(é membro do Conselho Leonino), como encara as guerras entre clubes, ao
mais alto nível, sobretudo quando vamos receber o Euro 2004?
Tudo isso deve ser reduzido à sua própria dimensão e escala. O povo por-
tuguês soube conviver com diversas religiões, povos e práticas, sabe que o fe-
nómeno desportivo deve traduzir a convivência harmoniosa e pacífica, em que
os adversários não são inimigos. Infelizmente, o futebol atingiu um auge de
linguagem, luta de interesses e conflitos entre pessoas que é altamente contrá-
rio à cultura tradicional dos portugueses. Os portugueses são gente de bem,
que convivem uns com os outros e não fazem da bola armas de arremesso para
se agredirem mutuamente. O clima que está a atingir nesta área é um clima
anti-português, altamente indesejável. o Euro 2004 deve ser um momento de
partilha e dignidade como foi a Expo 98. Cada português deve saber ganhar,
saber perder ou às vezes até saber empatar, coisa que alguns não sabem. Nem
sequer empatar!

Os portugueses revelam uma enorme desconfiança em relação aos polí-


ticos. Dado que tem convivido com muitos políticos que desempenharam
ou desempenham funções ao mais alto nível, pensa que há razões para
existir essa desconfiança?
Em todo o mundo há um grande fosso entre a política e a vida dos cidadãos,
o que é eventualmente agravado pela não compreensão dos papéis diferentes
do Estado e da sociedade civil. São duas realidades diferentes, que se devem
inter-relacionar em cooperação. Como alguns políticos servem o Estado esque-
cendo a autonomia, especificidade e vocação da sociedade civil, a população
desconfia e tem motivos para não confiar nos políticos. Esta é uma das crises
do tempo presente, mas não a única, que tem de ser ultrapassada. Os cidadãos
que, enquanto políticos, servem a comunidade, devem saber fazê-lo e não ser-
virem apenas aos seus partidos ou aos seus próprios objectivos políticos, pois
os objectivos não são um fim, mas um meio.
116 ›
A desconfiança dos portugueses alarga-se também à justiça e sobretudo
devido aos processos mais mediáticos. A justiça será julgada pelos cida-
dãos apenas devido a um processo?
Isso não é possível. Portugal está a precisar de uma lição, que passa por en-
tender a separação dos poderes, que vem desde Montesquieu. Não há quatro so-
beranias. Há apenas uma, que é a do povo português. Agora, ela é exercida por
um conjunto de quatro órgãos distintos, autónomos, separados. Quando algum
deles está em crise ou em posição de excessivo protagonismo, deve encontrar
apoio nos outros órgãos de soberania, para que tudo se encontre equilibrado e
harmónico. E se alguém é primus inter pares entre os órgãos de soberania, não
é de certeza a magistratura. É o Presidente da República.

‹ 117
Guilherme de Oliveira Martins 94

Ensino Politécnico tem sido desvalorizado

O ensino politécnico não tem recebido a valorização que deveria. Foi o que de-
fendeu Guilherme de Oliveira Martins, ex-ministro da Educação e das Finanças de
António Guterres, numa entrevista ao Ensino Magazine. O agora deputado socialista
quer maior investimento no sector educativo e manifesta-se contrário a alterações na
Lei de Bases de cada vez que muda o Governo. Sobre o processo de Bolonha, não tem
dúvidas de que não significa harmonização. Há que respeitar especificidades, afirma,
apontando como exemplos disso o que se passa na Medicina e no Direito.

Como avalia o panorama actual da Educação em Portugal?


O sector é uma prioridade para um país como Portugal e vejo com alguma pre-
ocupação que não exista da parte do Governo uma definição suficientemente clara
desta prioridade, por um lado, em termos de investimento e, por outro, ao nível de
um novo paradigma de educação ao longo da vida.
Há questões pendentes que exigem uma reflexão muito séria. Encaro com preo-
cupação o surgimento de uma nova Lei de Bases do Sistema Educativo e novos di-
plomas fundamentais para o Ensino Superior. A Educação é a área por excelência em
94 Com António Guterres ocupou, no XIV Governo Constitucional, os cargos de Secretário de Estado da Administração
Educativa, entre 1995 e 1999, Ministro da Educação, até 2000, das Finanças, entre 2001 e 2002 e da Presidência, de 2000 a
2002. Como Ministro da Educação sucede a Eduardo Marçal Grilo e antecede Augusto Santos Silva. É professor catedrático
convidado da Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa e do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas
da Universidade Técnica de Lisboa. Actualmente preside ao Tribunal de Contas.
Entrevista realizada por Jorge Azevedo em Março de 2004.

‹ 119
que devemos obter um grande acordo político envolvendo os diferentes partidos com
assento parlamentar e os principais parceiros sociais. Não faz sentido legislar nesta
área sem um amplo consenso.

Um consenso que parece estar longe de ser encontrado?


Daí a minha preocupação. É impensável que, em relação à Lei de Bases do Sistema
Educativo, se altere o quadro jurídico que foi aprovado por unanimidade no Parla-
mento, sem que esta se mantenha.
A legislação foi aprovada em 1986 e mantém-se em vigor desde há 18 anos graças
a tal consenso. Não podemos correr o risco de a estar a alterar em cada legislatura.
Considero ser essencial um esforço de todos no sentido da definição do quadro ju-
rídico que tem de ter um conjunto de pontos fundamentais. Um deles respeita à va-
lorização clara e inequívoca da educação de infância com a prioridade, devidamente
assumida, em relação ao pré-escolar. Deve também ser dada uma nova atenção ao
ensino básico do 1º ciclo, centrada em particular nos anos iniciais da formação, e ao
secundário, que é o cerne do sistema educativo.

Na sua perspectiva, é aí que se colocam os principais problemas do sistema?


Exactamente. No Centro Nacional de Cultura, estou a animar um grupo de
reflexão amplo com especialistas de diversas áreas para reflectirmos sobre o ensino
secundário. Este nível é fundamental porque é o horizonte para o básico, definindo
os objectivos que se visam atingir e, simultaneamente, é de onde parte o Superior
e a formação ao longo da vida. No ensino secundário, não podemos cometer o erro
de estender, de forma automática, a escolaridade para 12 anos, o que seria grave
e teria consequências a prazo que não podemos deixar de ter em conta. Devemos,
antes, optar por aquilo que já hoje consta dos acordos estabelecidos com os parcei-
ros sociais, ou seja, a necessidade de todos os jovens com 18 anos estarem em pro-
cesso de educação ou de formação. Num momento em que ainda não é cumprida
a escolarização completa nos 9 anos, é uma fuga para diante estar a anunciar sem
mais nada os 12.

É esse o grande problema do país?


Sem dúvida. Há um triângulo prioritário entre educação, formação e emprego,
domínios que se encontram todos ligados. Quando se refere a prioridade ao empre-
go, não pode ser encarada de forma separada do paradigma da educação e formação
ao longo da vida. Hoje, a educação é permanente. Quem termina uma determinada
formação tem apenas condições para aprender mais e melhor. A sociedade de in-
formação é isto mesmo. No que se refere ao ensino superior, temos de nos pautar
por critérios de qualidade e responder aos novos públicos, considerando que se
verifica uma evolução demográfica negativa que se repercute também neste nível
120 ›
do sistema. É indispensável compreendermos que as fronteiras se abriram e que
há cada vez mais uma circulação dos estudantes do ensino superior por toda a
Europa e pelo mundo. É essencial que percebamos que o ensino superior tem de
ser analisado numa perspectiva de mundialização. É neste contexto que se deve
analisar o processo de Bolonha, que não é de harmonização ou uniformização de
graus académicos.

Mas, foi a concepção que foi transmitida para a opinião pública?


Erradamente. Nesta matéria, estou à vontade porque fui o ministro que imediata-
mente após a adopção do documento de Bolonha, primeiramente colocou em prática
o processo que está a decorrer. Tive sempre a preocupação de chamar a atenção de
que não há harmonização dos sistemas educativos, que são, por definição, nacionais.
O processo de Bolonha corresponde ao que designamos como uma lei ligeira, com-
pondo um quadro que todos os países poderão adoptar ou não. Tenderão a fazê-lo e,
nesse sentido, terão de se adaptar para garantir a mobilidade. Se um dado Estado não
adoptar tal processo, tanto pior para ele e os seus jovens sentirão problemas.

Bolonha garante, então, as particularidades de cada sistema nacional?


Sim. Dou-lhe o exemplo da Medicina que continua a ter particularidades de for-
mação. Seria impensável estar a pautar o futuro destes cursos com aquilo que vai
acontecer noutras formações que tenderão a ser mais curtas. Na própria área do Di-
reito, importa reconhecer que existem diversas profissões jurídicas. Não podemos
esquecer, por exemplo, que há diferentes países da União Europeia onde a plenitude
do exercício de funções jurídicas junto dos tribunais superiores só é efectuada por
quem tenha graus académicos também elevados.
Há um outro aspecto no ensino superior que me preocupa particularmente. De-
fendo o sistema binário – universidade e politécnico, sendo que este deve ser muito
valorizado. Possui características próprias, assumindo-se como fundamental para o
desenvolvimento do país.

Considera que tem sido desvalorizado?


Infelizmente, sim.

Não há nisso também uma questão cultural de fundo favorecedora do ensino


universitário em detrimento do politécnico?
Tal é um erro, se não percebermos que a universidade e o politécnico possuem
funções diferentes, embora complementares, e que não podem ser confundidas. A
Inglaterra cometeu um erro dramático nos anos 80 que hoje está a ser claramente
reconhecido: o de uniformizar e transformar os politécnicos em universidades. Foi
fatal porque os primeiros tornaram-se universidades de segunda.
‹ 121
Suponho que em Portugal não se corra o risco de chegar a esta situação e que
não se adopte o referido modelo. Mas, cheguei a ouvir, no início do mandato da
actual maioria, nos seus partidos, esse tipo de discurso, colocando em causa o sis-
tema binário e das vocações próprias da universidade e do politécnico. Seria um
erro gravíssimo. Na sociedade actual, onde a informação é fundamental, perdermos a
componente tecnológica do ensino seria dramático. Julgo que não irá acontecer, mas,
se desvalorizarmos o politécnico, iremos para aí. Outra consequência será a perda de
competitividade. Voltamos, neste ponto, ao triângulo educação, formação e emprego
em que estes elementos têm de estar inter-ligados.

De que forma encara a possibilidade de encerramento de cursos que se ve-


nham a considerar excedentários no superior?
É uma questão inevitável, uma vez que Portugal possui formações que são, nas
suas designações, excedentárias. Neste quadro, é indispensável que o sistema de
avaliação do ensino superior funcione. Se tal suceder, podemos, de forma gradual,
resolver o problema, na medida em que se determinarão as formações que não são
relevantes. Entre o nosso país e a Holanda, a relação de diversidade de formações é
de 1 para 10, ou seja, uma dezena de vezes maior. O trabalho do Conselho Nacional
de Avaliação do Ensino Superior é, a este nível, fundamental, garantindo uma maior
transparência e clareza nas denominações dos cursos. Isso assegurará, aliás, a própria
mobilidade dos estudantes, quer a nível nacional, quer internacional.

Qual o modelo mais adequado de financiamento do ensino superior, consi-


derando a sua experiência governativa nas áreas da Educação e das Finanças?
O problema fundamental é do financiamento da educação no seu todo, de modo
a permitir a formação dos jovens e a competitividade. Não há modelos perfeitos.
Entendo, porém, que é preciso apostar num maior investimento na qualidade das
infra-estruturas, designadamente no âmbito das novas tecnologias de informação e
comunicação. É, igualmente, indispensável apostar na formação de professores. Mas,
tudo isso é caro. Não se deve confundir despesa corrente em educação, por exemplo,
em tal formação de docentes, afirmando que pode ser cortada de forma cega. Não
pode nem deve, porque a despesa neste sector possui uma natureza reprodutiva! Se
compararmos a exigência de recursos financeiros para a educação de um país desen-
volvido para um outro, de desenvolvimento médio, como Portugal, verificamos que
a percentagem do Produto Interno Bruto aplicada entre nós tem de ser mais elevada.
Os investimentos necessários em Portugal são, assim, os mesmos de um país
mais rico, porque as tecnologias e a rede são as mesmas, o que obriga a um esfor-
ço de investimento.
Por outro lado, e no âmbito da União Europeia, é necessário reforçar as verbas
para a formação e investigação científica, no fundo, a estratégia de Lisboa adop-
122 ›
tada pelo anterior Governo socialista, em Março de 2000. É fundamental compa-
tibilizar a concorrência, a competitividade, a inovação e a coesão.
Em Portugal neste momento, concentraria mais recursos educativos no nível
do Secundário, valorizando a componente tecnológica. Precisamos de relevância
em formação.
É, igualmente, necessário que não se privilegie a bandeira vazia da escola-
ridade obrigatória de 12 anos. Se o fizermos, sem considerar outros aspectos,
só criamos problemas, com mais jovens na formação indiferenciada e encargos
acrescidos para as famílias dos estudantes. Não está a haver um compromisso real
e sério de ir ao encontro das necessidades dos nossos alunos. Uma atenção parti-
cular ao secundário vai valorizar quer o básico, quer o superior.
Só com uma jogada forte na área da educação deixaremos de ser periféricos.
Hoje, a sociedade da informação e das novas tecnologias não condena um país
como Portugal à periferia.

‹ 123
Sérgio Godinho 95

Mais escolas e menos quartéis

É terça-feira. Não na Feira da Ladra, mas nas instalações da Praça das Flores, a
empresa que produz os espectáculos de Sérgio Godinho. O cantor recebe o Ensi-
no Magazine com o habitual «Brilhozinho nos olhos» para uma entrevista em que
fala de tudo: das suas músicas, do Estado da Nação, da Educação, da juventude,
e dos falhanços dos sucessivos governos na definição de prioridades e na gestão
dos recursos.

Com mais de três dezenas de anos de carreira e mais de duas dezenas de dis-
cos gravados, continua a ser uma referência musical para todos os níveis etários.
Qual é o segredo para este sucesso e também para a longevidade?
Não há segredo nenhum procurado, nem truques na manga. Há, por um lado,
a vontade de criar e de transmitir o produto final aos destinatários. Depois de criar,
gravam-se os discos e, só depois, mostram-se as canções, transformando-as ou revita-
lizando-as em palco. Tenho tido a preocupação de recuperar de forma activa e natural
certas canções, nomeadamente através de «trocas» com músicos. Claro que nada dis-
to seria possível sem a consonância feliz de as pessoas se referenciarem não só quanto
ao conteúdo, mas à forma das minhas canções. A forma é que faz o conteúdo: falar
95 Fazedor de músicas e opiniões, Sérgio Godinho (Porto, 1945) é um poeta, compositor e intérprete. Multifacetado,
representou já em filmes, séries televisivas e peças teatrais. A dramaturgia surge com a assinatura de algumas peças de teatro,
assumindo-se também como realizador. É considerado como um dos representantes mais populares da cultura democrática
após o 25 de Abril de 1974.
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva, em Maio de 2004.

‹ 125
de amor, de injustiça ou de guerra numa canção pode ser perfeitamente banal se um
artista não apresentar bem o seu caso a quem o vai ouvir.

«Um contador de histórias da música portuguesa» foi como o Jornal de Le-


tras caracterizou o Sérgio Godinho há uns anos atrás. Como é que se define?
Afirmo-me como um criador que usa várias disciplinas para dar vida às minhas
músicas. Sou um escritor de canções que abarca quatro vertentes distintas: a letra, a
música, a maneira como ambas interagem dinamicamente e a forma como a canção é
transportada para os palcos. De alguma maneira sou um «performer».

A faceta de intervenção social está muito marcada nas suas composições. As


mensagens que tenta veicular, dirigem-se a alguém em particular?
Eu olho para a sociedade e reflicto sobre ela e sobre vários aspectos: alguns mais
do quotidiano, outros mais de teor relacionado com a justiça ou a falta dela. Admito
que são temáticas com ressonância social, mas o meu universo é composto por todas
as canções. Se formos a pensar no «Brilhozinho nos olhos» ou o «Primeiro Dia» são
composições mais vivenciais e lúdicas, que nada têm que ver com a observação para
o social no seu aspecto político.

A música é o espelho da sociedade e do artista que a canta. De que forma é


que as suas músicas evoluíram em função das mutações sociais? Conseguiria
definir etapas cronológicas?
Não há etapas de uma maneira tão estanque, mas é evidente que o 25 de Abril
foi e é uma data charneira na História de Portugal e também na minha vida pessoal.
Comecei a compor e a gravar antes da revolução. Dois dos meus discos foram feitos
quando não podia sequer vir a Portugal (estive nove anos a viver no estrangeiro) e não
podia cantar e testar essas canções ao vivo — o que era muito estranho, porque eu era
conhecido mas nunca tinha cantado no meu País. As minhas canções pautam-se por
constantes e variantes, até mesmo de linguagem. «À Queima-roupa» e «De Peque-
nino Se Torce o Destino», que saíram a seguir ao 25 de Abril, reflectem muito a lin-
guagem política do próprio quotidiano da altura, com o recurso a uma verbalização
fortemente política patente nas canções. O «À Queima-roupa», que integra a música
«Etelvina», é um retrato social com um personagem marcado que existe em muitos
álbuns meus já editados e que marcará presença nos próximos. Nas minhas canções
coexistem na mesma criação, as pessoas, as frases que o povo diz, as personagens, os
esboços, as narrativas, etc.

O período após o 25 de Abril foi fundamental na sua carreira?


Cresci criativamente numa altura em que nem sequer podia vir a Portugal e em
que existia um regime fascista, que entrou numa guerra colonial que sugou toda a
126 ›
energia e o orçamento deste país, e que fez com que muitos jovens que para lá foram
não voltassem, ou os que o fizeram viessem estropiados. São situações que moldam e
que me deram convicções que, considero até hoje, serem de esquerda.

Cumpriram-se 30 anos do 25 Abril, com algumas vozes a apontarem que o


espírito da revolução dos cravos tem vindo a adulterar-se. Qual é a sua opinião?
Tal qual como existiu, já não existe. O espírito de Abril foi um momento de pureza,
de grande ingenuidade (ainda bem que a houve), que permitiu uma grande mobiliza-
ção das pessoas à volta de assuntos concretos. Foi um despertar para uma nova realida-
de. Com os anos verificou-se uma normalização, que por um lado representa uma soli-
dificação das estruturas democráticas, e por outro manteve-se uma democracia formal
mas que muitas vezes não tem uma correspondente participação activa dos eleitores.

De uma forma global pode dizer-se que valeu a pena ter feito a revolução?
Claro. Longe das paixões políticas não é difícil concluir que foi um momento da His-
tória que mudou Portugal. O que os sucessivos governos vão fazendo já é outra questão...

Que principais pecados aponta aos governos da era democrática em matéria


de execução política?
Têm falhado, em pontos-chave como na Educação, que continua extremamente
insuficiente, não só a nível das condições de trabalho, mas mesmo em termos da mo-
tivação para o estudo, de um modo geral. Temos dos piores aproveitamentos da U.E.
e, simultaneamente, somos dos que mais investem no sector.

Num País que precisa há décadas de um melhor sistema educativo e de saúde


como de pão para a boca, pensa que a «Expo 98», o «Porto - Capital da Cultura»
e o «Euro 2004» foram realizações prioritárias?
Uma coisa não exclui a outra. O problema é a gestão de recursos. O «Porto - Capi-
tal de Cultura» (de que eu, aliás, fiz parte do conselho consultivo) com todas as suas
insuficiências e a falta de dinâmica de continuidade, foi uma iniciativa mobilizadora
e que mexeu com muita gente, à semelhança da «Expo 98». O «Porto - Capital da
Cultura», creio que foi uma iniciativa que também sofreu negativamente com a mu-
dança do poder autárquico. Esta gestão camarária portuense investe muito menos na
Cultura do que a anterior.
Quanto ao «Euro 2004», não estarei tão de acordo, e tenho um sentimento muito
ambivalente em relação ao número de estádios construídos.

A moral da história é que o Estado é um mau gestor?


Não têm sido estabelecidas as prioridades da melhor forma. Ainda no outro dia
o Ministro David Justino dizia que não falta dinheiro para a Educação — o que é
‹ 127
ao mesmo tempo uma afirmação sincera mas de reconhecimento do fracasso. Falta,
acima de tudo, uma melhor gestão dos recursos. É preciso dinheiro, claro, mas acima
de tudo um abanão.
Na altura da «Expo», quando algumas pessoas se insurgiam contra o dinheiro
gasto no evento e alegavam que esses fundos podiam ser canalizados para escolas ou
para hospitais, eu sempre disse que se acabasse com a tropa e os gastos monumentais
que sempre existiram nas forças armadas e noutros sectores. Retire-se dinheiro aos
quartéis e invistam em escolas e hospitais.

Diz-se que a política e os políticos são entidades com um acentuado défice de


credibilidade. A que se deve esse descrédito?
A imagem que a classe política transmite é muito perniciosa para si e também
para o povo português. Tal, deve-se, em grande medida, ao facilitismo com que
muitos encaram a sua passagem por essa actividade pública. Instituiu-se uma cul-
tura de corrupção numa certa classe política, de promiscuidade com sectores da so-
ciedade civil. Mas também nunca embarquei naquela lógica que o cidadão se deve
sentir um santo e um guardião dos valores e que os políticos são todos corruptos.
Não é possível generalizar.

A abstenção é a única forma de penalização ao alcance dos cidadãos?


Não é a única. Cresci numa família que era contra o regime salazarista e
sabendo-se que, ou não se podia votar, ou se se podia, as eleições eram fraudu-
lentas, interiorizei que ninguém se deve abster de exercer o seu direito cívico.
Nunca votei em branco. Votei sempre em alguém, fosse ele o meu candidato ou
um mal menor.

Discorda então da tomada de posição de José Saramago no seu livro, Ensaio


sobre a Lucidez?
Votar em branco é a mesma coisa que dizer que são todos iguais. Mesmo como
voto de protesto para mim não chega. Quanto às declarações de Saramago creio que
elas têm um grau de provocação deliberada muito grande e que não correspondem
ao habitual pessimismo profundo que o caracteriza.

Que radiografia é que o artista Sérgio Godinho, que cria muitas das suas
composições com base na reflexão sobre Portugal, faz do estado da nação?
O que é terrível é que se comece a interiorizar a crise. Somos um País que
alterna ciclos de euforia e depressão rapidamente - temos tendência para ser ci-
clotímidos. Em todas as gerações há coisas boas e más. Se olhar para a juventude
de hoje em dia em alguns sectores das artes, vai reparar que se fazem coisas inte-
ressantes e descomplexadas.
128 ›
A geração rasca, uma designação da autoria de Vicente Jorge Silva no Públi-
co, tem alguma razão de ser?
Acho que sempre houve muita rasquice e boçalidade, mas também creio que foi
uma declaração igualmente sobrevalorizada.

Como é que os comportamentos da geração actual e da sua geração se expli-


cam à luz do contexto social e político em que estão inseridas?
O País mudou muito depressa. Houve uma «política de terra queimada» nos va-
lores, sobretudo nos anos 80. Hoje em dia a juventude procura mais compreender as
suas raízes, o que também se nota no âmbito musical. Mas a juventude não é homo-
génea. Tenho uma canção que se chama «Maçã Com Bicho» que aborda as praxes,
na sua componente mais humilhante. Não se trata de uma posição contra todo e
qualquer ritual académico, mas sou da opinião que a parte mais visível são rituais de
humilhação. Nessa canção digo que «não é rastejando que se ascende aos tectos» e
que isso é «prender o humor na gaiola do riso». Digo isto com total à vontade porque
continuo a participar em festas universitárias.

‹ 129
Vasco Graça Moura 96

As crises de valores não se combatem na bruxa

Vasco Graça Moura não tem dúvidas quando afirma que «a crise muito gran-
de» que atravessamos reside na escola e na formação. O poeta, romancista e
eurodeputado, acrescenta que as lacunas na educação e na cultura contribuem
para um «défice democrático» na sociedade portuguesa e critica as televisões
por serem «agentes de imbecilização colectiva» Graça Moura traça um quadro
negro do estado da nação, salientando que os portugueses pouco ou nada sabem
da sua História, da Língua e do património cultural.

Poeta, cronista, romancista, tradutor, político e advogado. Com qual


destas facetas melhor se identifica?
Fundamentalmente sou um escritor. Isso não me impede uma intervenção cívica que
se exprime também na participação política. E deixei de advogar há perto de 20 anos.

Disse recentemente, aquando da aprovação do seu relatório sobre o pa-


pel da aprendizagem escolar no acesso do maior número de cidadãos à cul-
tura, que «educação e cultura são essenciais à democracia». Porquê?
96 Escritor, poeta e tradutor. Militante do PSD, exerceu várias funções políticas. Foi Secretário de Estado da Segurança Social
do IV Governo Provisório e Secretário de Estado dos Retornados do VI Governo Provisório. Director de programas da RTP, em
1978, nesse ano passou à Imprensa Nacional - Casa da Moeda, cuja área editorial administrou até 1988. Entre 1988 e 1995
preside à Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Entre 1999 e 2009,foi deputado ao
Parlamento Europeu. Paralelamente, tem sido comentador e analista político.
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva, em Setembro de 2004.

‹ 131
Entendo que a cultura é uma dimensão essencial, quer para o pleno e harmonioso
desenvolvimento da pessoa humana, quer para a vida dos homens em sociedade. É a
cultura que permite conhecer o mundo e encontrar soluções para os problemas que ele
coloca sucessivamente à existência dos seres humanos. Por isso a cultura é uma dimensão
essencial da democracia e todos devemos ter condições de igualdade de acesso a ela. Já
a Igreja dizia que «nem só de pão vive o homem». A educação é uma via para a cultura.

Olhando para a realidade portuguesa são evidentes as lacunas culturais e edu-


cativas. Pensa que de alguma forma há um défice democrático devido a essas debi-
lidades estruturantes?
É evidente que sim. O défice que fala gera graves desigualdades e permite a acumula-
ção de privilégios para alguns em desfavorecimento de muitos outros.

Como avalia a política cultural e educativa seguida pelos sucessivos governos


nas últimas décadas?
As políticas culturais dos governos do PSD têm sido realistas, atacando os problemas
concretos e procurando dar-lhes solução. As dos governos PS caracterizaram-se pela me-
galomania, pelo divórcio em relação à realidade, pela demagogia e pela falta de meios
ou pela gestão desastrosa deles. Da gestão socialista não ficou praticamente nada, a não
ser chavões. E até o Plano Operacional da Cultura, que o Governo PS teve o mérito de
negociar em Bruxelas, estava com uma taxa de execução de cerca de 11 por cento, em
Março de 2002.
Foi a coligação que fez essa taxa ultrapassar a barreira dos 40 por cento. Em qualquer
dos dois casos, no entanto, é evidente que teria sido preferível que os orçamentos para a
cultura fossem mais bem dotados...

Está a iniciar-se mais um ano lectivo e os crónicos problemas do sistema de


ensino emergem. Há alguma receita mágica para que a educação em Portugal entre,
definitivamente, nos carris?
Não há receitas mágicas para nada. Há necessidade de bom senso, de programas mi-
nimamente satisfatórios, de empenhamento sério de professores e alunos, de disciplina e
de um grande esforço da parte de todos.

Em que níveis de ensino crê que se localizam as maiores deficiências do sistema?


Não sou especialista dessas matérias mas, a avaliar pelo que se passa com o ensino
da Língua Portuguesa, que é um escândalo gritante, as deficiências localizam-se em
todos os níveis.

Pelo que tenho lido dos seus artigos no DN, sei que é um crítico da «fu-
tebolização» da política e de uma certa cultura nacional. Em que medida
132 ›
é que esse crescente recurso às metáforas do futebol tem contribuído para
desvirtuar a política, a cultura e outras vertentes da sociedade?
O recurso às metáforas do futebol tem dois aspectos: o crítico e o «adesivo».
Tornou-se um código facilmente utilizável pelos que discordam do que se passa
e pelos que se sentem muito satisfeitos com essa concentração dos espíritos e
das energias naquilo a que chamam o «desporto-rei».

Foi Comissário-Geral das comemorações dos «Descobrimentos». Acha


que os portugueses conhecem e valorizam suficientemente o seu passado
histórico?
Infelizmente, não. Os portugueses estão cada vez mais esquecidos da sua
História, da sua Língua e do seu património cultural.

Alguns intelectuais proeminentes têm afirmado que o País vive uma das
suas maiores crises de sempre. Pergunto-lhe se está de acordo e, já agora,
que me diga em que pontos-chave se centra a depressão colectiva que, di-
zem, Portugal atravessa?
Não sei se a crise é uma das maiores de sempre. Mas sem dúvida é muito
grande. E tudo vai dar à escola e à formação. As crises de valores não se com-
batem indo à bruxa. A depressão tem causas várias, umas ligadas a questões de
bem-estar e qualidade de vida e que dão pelos nomes de défice, desemprego,
quebra de produtividade, baixa competitividade, etc. Outras que decorrem da
educação, a nível familiar e escolar, e vão do culto dos valores cívicos à impor-
tância da aquisição de conhecimentos num mundo em que cada um necessita
cada vez mais de qualificações.

Escreve assiduamente nos jornais e ocupou um cargo de direcção da


RTP durante algum tempo. Os órgãos de comunicação social, nomeadamen-
te a TV, cumprem devidamente o papel formador da opinião pública que
lhes compete?
Só fui director da RTP durante oito meses e já lá vai muito tempo. De um modo
geral, as televisões são agentes de imbecilização colectiva em vez de serem instru-
mentos úteis de formação, o que seria possível mesmo na função de entretenimento.

Como eurodeputado e profundo conhecedor da realidade do «velho con-


tinente», como é que prevê a evolução do projecto europeu?
Só se poderá prever a evolução do projecto europeu depois de se ver o que
é que acontece em matéria de referendos nacionais quanto à nova Constituição
Europeia. Mas o ideal é que a Europa continue a ser construída por pequenos
passos, tanto quanto possível da base para o topo.
‹ 133
As últimas eleições para o Parlamento Europeu demonstraram à socie-
dade o desinteresse dos cidadãos pelas questões europeias. Que motivos
encontra para este comportamento?
O cidadão comum europeu ainda não desenvolveu uma consciência de per-
tença à Europa como dimensão fundamental do seu estatuto próprio. E em
muitos países há também crises de vária ordem, embora menos graves do que
a nossa, e que contribuem para o alheamento dos cidadãos em relação a uma
problemática que é, a todos os títulos, fundamental.

Os Estados Unidos da Europa poderão vir a ser uma realidade?


Não sou futurólogo. O sistema actual tem traços federalistas e traços pró-
prios da união de Estados. Mas, em minha opinião, uma estrutura semelhante à
dos Estados Unidos da América tardará muito a verificar-se.

134 ›
António Mega Ferreira 97

Há muita experimentação na educação

Conjuntamente com Vasco Graça Moura idealizou a «Expo 98». Diz que o sistema
educativo tem estado sujeito a demasiada «experimentação pedagógica» e que devia
ser urgentemente «simplificado». António Mega Ferreira, afirma ainda que Portugal
«é mais um país de festivais do que de obras duradouras», que «falta visão estratégica
nacional desde o século XVI» e que os portugueses têm a tendência para a «auto-
flagelação».

Como reage quando lhe chamam o «pai» da «Expo 98»?


Nego completamente a paternidade e, quando muito, sou um dos tios da «Expo
98» que foi um evento imaginado, também por mim, mas em grande parte, por ar-
quitectos, intelectuais, etc. Mas se me chamam «pai» é porque a exposição deixou
boas recordações.

Pelo menos reconhece que foi o ideólogo do evento?


A «Expo» não tinha, em sentido rigoroso, uma ideologia subjacente ou se a tinha
visava a consagração e a celebração do regime democrático, que permitiu a Portugal
97 Jornalista e escritor português. Estudou Comunicação Social e licenciou-se em Direito. Iniciou a sua carreira jornalística
em 1968, no Comércio do Funchal, e tem colaborado em vários jornais, como por exemplo o Público e o Expresso. Fundou
as revistas Ler (de que foi director editorial) e Oceanos, da Comissão das Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,
organismo de que veio a fazer parte em 1988. Na vida pública, destacou-se ainda na presidência da comissão da candidatura
de Lisboa à realização da Expo’ 98 e, posteriormente, a na Comissão Executiva do Comissariado da Expo’ 98.
Entrevista de Nuno Dias da Silva, realizada em Novembro de 2005.

‹ 135
reencontrar o seu lugar no mundo no concerto das nações. Um evento com 150 paí-
ses presentes, teria sido impossível sem a democracia.

Foi um sonho tornado realidade?


Quando nos envolvemos em projectos não temos propriamente essas categorias
muito arrumadas na cabeça. Eu diria antes que foi uma oportunidade bem aprovei-
tada por Portugal.

É verdade que a génese da candidatura portuguesa da «Expo 98» aconteceu


num almoço que teve com Vasco Graça Moura, em Lisboa?
Somos amigos há 30 anos, mas como trabalhávamos juntos na Comissão dos
Descobrimentos fomos um dia, no verão de 1989, almoçar ao «Martinho da Ar-
cada» e a ideia emergiu. Inicialmente lembramo-nos de algo que designámos por
«mercado do oriente», que seria uma reunião em Lisboa de tecnologias orientais
com o «know how» ocidental. Posteriormente, assim que começámos a estudar o
regulamento das exposições universais, muito rapidamente se avançou com o tema
do mar e dos oceanos.

O mote da «Expo 98» foi os oceanos. Pensa que os portugueses ficaram mais
despertos para essa temática?
Na altura sim — existiu uma sensibilização pública que teve uma boa recepti-
vidade. Agora, não tenho a certeza. Penso que não houve uma refocagem do país
relativamente à temática dos oceanos. Portugal e os portugueses têm um problema
de falta de continuidade no esforço. Embora tenhamos medalhas na prova mais dura
dos Jogos Olímpicos, somos maus corredores da maratona.

O que é que falta para sermos mais consistentes?


Temos uma grande capacidade de realização no momento, mas falhamos no res-
tante. Portugal é mais um país de festivais do que de obras duradouras.

Está a dizer que somos bons em projectos de curto prazo?


Portugal vibra intensamente, faz as coisas muito bem - até melhor do que os outros - mas
falha no essencial. Falta visão estratégica no nosso país, pelo menos desde o século XVI.

O país carece de estratégia, desígnios ou líderes capazes?


Os líderes são importantes e, a certa altura, até são decisivos, mas não são condi-
ção suficiente. O que falta fundamentalmente é a capacidade de definição de objec-
tivos estratégicos e a mobilização das pessoas para eles. Se olharmos neste momento
para Portugal constatamos que não existe um objectivo estratégico, o que é algo
empobrecedor da actividade colectiva.
136 ›
É corrente ouvir dizer que não há um projecto nacional. É verdade?
Isso não existe. Dizer que os países têm um projecto, é retórica política, vaga-
mente messiânica, e um bocado demiúrgica. O que as nações têm ou devem ter são
orientações estratégicas, onde há pontos de partida e de chegada.

Esta espécie de estagnação em que estamos a cair reside da nossa forma de


ser e da idiossincrasia nacional?
Quer um exemplo muito prosaico? Repare a quantidade de coisas novas e óptimas
que aparecem em Portugal e ao fim de uns meses estão completamente avacalhadas.
Logo, nós somos bons para construir e somos maus para manter. Não temos o senti-
do da manutenção das coisas. Nesse sentido somos um bocadinho africanos. E essa
dificuldade de manter é basicamente um defeito de cultura política nacional.

Quer dar um exemplo concreto?


Uma vez um autarca do Interior do País disse-me que queria um parque urbano
com 70 hectares e eu disse-lhe: «o presidente já fez as contas aos custos anuais?». Fiz
rapidamente os cálculos num papel e disse-lhe que custava 350 mil contos por ano
a manter, o que desmobilizou logo o político da ideia. Em Portugal, quando há di-
nheiro para construir, constrói-se, mas nunca ninguém pensa como é que se mantém,
como se vai programar, como é que se vai atrair público, etc.

É a lógica do desenrascanço, uma imagem tipicamente nacional...


Os centros culturais estão a nascer pelo país como cogumelos, a maior parte deles
estão às moscas, são sobredimensionados em relação à localidade onde se inserem e
muitos não têm qualquer tipo de actividade cultural.

O sociólogo António Barreto disse numa entrevista que «Portugal corre o


risco de desaparecer». Subscreve esta visão pessimista?
Isso é um disparate. Um País que dura há oito séculos não vai desaparecer apenas
por sofrer uma crise financeira e orçamental.

Rejeita então que haja uma crise de identidade?


Qual crise de identidade? Os nossos factores identitários são tão fortes e tão dura-
douros no tempo que não sentimos sequer a necessidade de estar a discuti-los. Nós
sofremos é de hiper-identidade.
Portugal é o país da Europa que tem as fronteiras mais estáveis há sete séculos, te-
mos uma só língua dentro do território nacional, temos uma religião dominante que
é um factor aglutinador, temos continuidade territorial - com excepção das regiões
autónomas, etc. Por amor de Deus, nós temos é dificuldade em perceber a Europa.
Não consigo entender um país como a Bélgica onde se falam duas línguas diferentes
‹ 137
e gostava que me explicassem como foi possível que a Jugoslávia se fracturasse em
pedaços, com línguas, religiões e etnias distintas.

Está a dar-se demasiada importância à questão do défice?


A crise financeira e orçamental está a ser hiperbolizada. Como somos mais atlan-
tistas do que mediterrânicos, deixámos que essa pressão atingisse umas dimensões
completamente absurdas.
Já ouvi pessoas dizerem que Portugal está ao nível do Senegal. Eu conheço esse país
africano e ofereço-me para pagar uma visita ao Senegal aos autores desses co-
mentários. Há quem não tenha a noção do que está a dizer. Somos dos 30 países
mais desenvolvidos do mundo. Os portugueses têm uma tendência para a auto-
flagelação e para a auto-diminuição. Andamos sempre à procura da imprecisão e
do que não está bem.

Essa tendência para a auto-flagelação deriva do fatalismo nacional?


A auto-flagelação, para além da perversão que encerra, é também uma forma de
nos comprazermos e de nos estimularmos a nós próprios. É um pouco o poema do
Fernando Pessoa, «coitado do Álvaro de Campos que tem tanta pena de si próprio».
Ficamos aconchegados na nossa certeza que não prestamos para nada, mas isenta-nos
de ter a responsabilidade de fazer de maneira diferente. No fundo, é uma maneira de
nos confortar na persistência do erro: «é o fatalismo, somos assim. A gente bem tenta,
mas não dá mais que isso. Então não vale a pena»...

Já ouvimos dizer que a educação é o grande fracasso do regime democrá-


tico. O que é que falta para que colhamos frutos do dinheiro que investimos
no sector?
É preciso mudar da óptica dos professores para a óptica dos alunos. Nos últimos
tempos tivemos poucas greves e manifestações de alunos e muitas greves de profes-
sores. O foco do sistema educativo deslocou-se ao nível da opinião pública para os
professores. É uma inversão completa.

Que outros pecados aponta ao sistema educativo?


Desenvolveu-se em Portugal nos últimos 20 anos um certo tipo de pedagogismo
que é inconveniente para o funcionamento global do sistema.

Quer esclarecer o que é que quer dizer com pedagogismo?


O culto da inovação e da experimentação pedagógica e da introdução de novi-
dades, levou a uma desagregação do sistema de ensino. Uma das características que
marca os sistemas de ensino nos países mais desenvolvidos neste campo é a continui-
dade. Os programas não mudam todos os anos.
138 ›
Está a criticar a alteração sucessiva dos programas?
O que é que se ministra nas escolas? Uma espécie de mediana do conhecimento que
existe disponível. A mediana não se altera em cinco ou dez anos de prática. É incompreen-
sível alterar os programas de História. A nossa visão da História não se altera numa década.
Assistimos nas últimas duas décadas a uma espécie de hegemonia do técnico e da trans-
formação o que criou rupturas sucessivas no nosso sistema educativo. Tem existido dema-
siada experimentação pedagógica.

De que modo é que o sistema de ensino sai beliscado com essa experimentação?
Tanta experimentação, tanta inovação, tanta alteração dos curricula, de sistemas, de ho-
rários e de colocação de professores, necessariamente criou um ensino marcado pela des-
continuidade. É impensável para mim que um aluno ou uma pessoa aprenda uma língua
durante cinco anos, com cinco professores diferentes. O sistema educativo em Portugal é
extremamente confuso. Uma tarefa importante seria nomear uma comissão que se encarre-
gasse de simplificar o sistema.

Que simplificações prioritárias defende?


É urgente reduzir nomes, variantes, alíneas, subalíneas, categorias, designações etc. O
sistema educativo tem que funcionar com um corpo de regras relativamente estável e bene-
ficiaria muito se fosse drasticamente simplificado. Devia seguir aquela fórmula que se utiliza
nas empresas norte-americanas: «keep it simple, stupid». O número de vezes em que se
alteraram as terminologias ou as designações dos estabelecimentos de ensino, é inacreditá-
vel. Alguém sabe o que quer dizer Escola Secundária C+S 123? É um factor de complicação
dispensável para os cerca de 70 por cento dos portugueses que não estão familiarizados com
o sistema.

Está de acordo com os que dizem que se formam pessoas para o desemprego?
Em parte, isso é verdade. Estamos a formar licenciados gerando um certo desemprego.
Portugal ainda vive de uma concepção relativamente arcaica que é a cultura do «canudo».
Aqui, ainda se acha, e até em meios urbanos isso acontece, que ter um «canudo» devia dar
acesso a um estatuto de privilégio social.

Mas o fenómeno dos licenciados sem perspectivas de emprego já acontece há mui-


to tempo noutros países mais desenvolvidos...
Isso acontece há décadas em Inglaterra e na Alemanha. Nestes países há muitos licen-
ciados a exercerem funções, nomeadamente em repartições, que não estariam destinadas a
uma pessoa formada universitariamente.

Os portugueses terão de se conformar com essa realidade?


Nós haveremos de tender para uma situação, que seria a ideal, que todas as pesso-
‹ 139
as devem ser obrigadas a ter uma licenciatura. A educação básica em Portugal devia
ser a licenciatura, mas enquanto isso, todas as funções sociais terão de continuar a ser
cumpridas. A educação em Portugal democratizou-se extraordinariamente o que ge-
rou alguma desadequação: haver licenciados em excesso não é negativo, preocupante
é que haja um excesso de licenciados em certos ramos de estudo e um défice noutros.

A literatura portuguesa está imune à depressão nacional?


Temos bons escritores. A literatura portuguesa está de boa saúde. Mas não nos
podemos esquecer que somos um país de 10 milhões de habitantes e, como tal, não
podemos ter a veleidade de querer produzir génios da literatura ao ritmo a que a Rús-
sia o fez. O sucesso ou insucesso de um país não se mede pelos prémios Nobel. Por
exemplo, a literatura cubana, possuidora de uma plêiade extraordinária de escritores,
não teve qualquer distinção a esse nível na área da literatura.

140 ›
Francisco José Viegas 98

Os clássicos da literatura devem voltar à escola

Viajante, gastrónomo, blogger, Francisco José Viegas é, antes de mais, um cidadão


do mundo que desfruta ao máximo do «lado prazenteiro» da vida. Para o director da
Casa Fernando Pessoa, é a literatura que «forma gente culta» e esta pode também ser um
importante veículo para afastar a «mania facilitadora» que se apoderou do ensino nacio-
nal. Sobre os portugueses, o autor de «Longe de Manaus» considera-nos «mesquinhos
e invejosos», que desprezamos o património linguístico e que no «jornalismo existem
demasiados ignorantes».

Pelas entrevistas que tem concedido, emerge que a escrita, as viagens e a gas-
tronomia, compõem o triângulo de prazeres da sua vida. Como os definiria, isola-
damente, utilizando uma escala própria de satisfação pessoal e explicando como
estas actividades se podem fundir? Sente-se um privilegiado por ter prazer mesmo
quando está a trabalhar?
Sinto-me um privilegiado por poder trabalhar. Essa é a primeira condição. Depois, por
poder trabalhar em áreas que aprecio, que mobilizam mais energias pessoais, que me dão
prazer. Não nego que houve, ao longo de vinte anos, uma certa insistência, uma teimosia
– nem sempre foi fácil conseguir escrever sobre coisas que me dessem assim tanto prazer.
98 Escritor e jornalista. Formou-se em Letras na Universidade Nova de Lisboa, tendo exercido funções de docência na Univer-
sidade de Évora (1983-1987). Foi director, durante mais de uma década, da revista Ler do Círculo de Leitores e director da
revista Grande Reportagem. Participou nalgumas séries televisivas sobre literatura e sobre viagens. É autor de romance, conto,
teatro, poesia e texto de viagem. É comentador da vida social e cultural portuguesa.
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva, em Setembro de 2006.

‹ 141
Mas é preciso ser teimoso e insistente, foi uma das coisas que aprendi. De alguma
maneira, o romance, ou seja, o tipo de ficção que escrevo, permite-me juntar algumas
dessas áreas, como a viagem, alguma gastronomia – e um olhar mais prazenteiro
sobre a vida. Geralmente, tenho receio de que as pessoas confundam aquilo que eu
chamo «o lado prazenteiro» com uma busca do prazer a todo o custo, porque não é
nada disso que se trata.
O prazer de viver, o prazer em si, retira-se de coisas que não são excepcionais
nem mobilizam grandes meios ou artifícios: uma pequena viagem, uma tarde, um
livro, uma bebida, um fragmento da nossa vida. Nesse sentido não me considerarei
nunca, por exemplo no campo da gastronomia, um gourmet. Um gourmet necessita
de tempo, de dinheiro e de muitos conhecimentos – e de alguma abnegação. Eu gosto
de ser uma pessoa assim, como sou, normal. Retirando prazer do que a vida me dá.

Define-se como «um viajante» e escreve mensalmente na revista «Volta ao


Mundo». Qual o local do Globo que mais o marcou? E a viagem com que sempre
sonhou mas nunca ousou fazer?
Acho que há dois lugares especiais na minha vida de viajante: toda a América
Latina, do México ao Chile, passando pelo Brasil; e partes de África. O Brasil é, pro-
vavelmente, um dos lugares que mais me marcou, sobretudo pela sua diversidade.
Acho que ninguém pode dizer «este é o verdadeiro Brasil», porque, justamente, não
há verdadeiro Brasil. Apesar de ser um país que me desilude frequentemente, com
uma classe política indigente e pobre de espírito, com desigualdades sociais gritantes,
o Brasil é um país cativante e belíssimo. Depois, África. Mas África tem a ver com as
minhas experiências pessoais e com a memória portuguesa de África. Há quem se
sinta ligado a ela, e quem a recuse. Eu encontrei histórias fascinantes em África, são
elas que me prendem a Moçambique, por exemplo.

Assume ter uma «relação conflituosa» com Portugal, mas regressa sempre à
pátria natal. Ouvimos falar em défice económico e de alma e o futebol é o único
paliativo para a depressão. Acha que a identidade nacional tem sido beliscada
pela conjuntura negativa? Resta-nos algo para além do futebol? Quando é que
acha que a «poeira», uma das suas palavras favoritas, vai assentar?
Eu acho que os portugueses têm uma relação difícil com a pátria, em tempos nor-
mais, quer dizer, em tempo de existência vulgar. A verdade é que ainda não perdemos
várias ideias de grandeza e de excepcionalidade. Sentimo-nos bem em festa, durante
as euforias do futebol, das exposições universais, por exemplo – mas achamos que o
resto, o que vem a seguir, é triste e humilhante. Não devia ser assim. Devíamos, pro-
vavelmente, reconhecer que há uma certa grandeza na «aurea mediocritas», na vida
de todos os dias – isso significa respeitar a vida quotidiana, enchê-la de referências
de qualidade: bons transportes públicos (a questão dos transportes, da mobilidade,
142 ›
é essencial nas grandes cidades), honestidade na administração pública, critérios de
exigência e de qualidade em tudo o que é serviço público, exemplos de poupança
e de economia real na vida pública, prémios para a invenção e para a criatividade,
severidade e muita disciplina em tudo o que é exemplo público.
As pessoas gostavam de viver “como na Europa do Norte”, mas ignoram a outra
face da moeda, ou seja, o que custa ser cidadão na Europa do Norte. Lá, e eu conheço
relativamente esse mundo, as pessoas não vão jantar fora tão frequentemente como
em Portugal, não faltam ao trabalho, não se queixam dos impostos, trabalham muito,
os estudantes não têm a vida facilitada como aqui, há demasiada exigência. Ganham
mais do que aqui. Mas não sei se as pessoas estão dispostas a pagar esse preço.
Na nossa Europa do sul há uma maior informalidade, que não existe no norte da
Europa; há mais liberdade e menos politicamente correcto. As pessoas têm de optar.
Não podem querer o modelo de vida do sul e a remuneração do norte. São estilos de
vida diferentes. São modelos económicos diferentes. E depois, deixe-me dizer isto,
acho que a questão da auto-estima é falsa. Nós precisamos de esquecer essa coisa
ridícula. E precisamos de deixar de nos mortificar, de obedecer ao temperamento
oficial… Devemos viver a nossa vida como ela é. Enquanto não dermos a volta a isso,
não teremos respeito pela nossa alegria. Nenhuma engenharia financeira nos ajudará
a sermos mais felizes. E precisamos de deixar de ser tão mesquinhos uns com os ou-
tros, tão invejosos. Precisamos de ser mais livres, mais soltos.

É acima de tudo um homem de comunicação. Também é jornalista, foi direc-


tor da Grande Reportagem e escreve uma crónica semanal no Jornal de Notícias.
É mais um dos que se junta ao coro de desencantados pelo panorama actual do
jornalismo nacional?
Não estou desencantado. Acho que há demasiados ignorantes no jornalismo, de-
masiada gente a escrever mal, muito lugares-comuns, muita gente sem conhecimen-
tos de história, de civilidade, de ortografia.

Pensa que a concentração dos títulos em grandes grupos económicos desvir-


tuou a forma de fazer jornalismo?
Os grandes grupos económicos cumprem o seu papel, tentando ganhar dinheiro
fazendo jornais, mas precisam de compreender (e aos poucos compreendem-no) que
não se podem perder critérios de qualidade.

Ser blogger, é outra das suas facetas. Que virtudes e perigos encontra na
blogosfera?
As mesmas da vida em geral. A blogosfera mudou a nossa forma de comunicar, de
nos informarmos e de participarmos na discussão sobre a vida, a política e a cultura.
Acho estranho que haja ainda receios da blogosfera, porque os blogues são funda-
‹ 143
mentais, hoje em dia, para perceber como pensam os portugueses que pensam. Além
do mais, os fazedores de opinião dos jornais e das revistas são quase todos herdeiros
do actual regime – a blogosfera revelou gente que pensava de outra maneira, que
escrevia melhor, que pensava melhor. E mostrou que o reino da opinião nos jornais,
estava muito pobre.

Foi professor de estudos portugueses na Universidade Nova e desempenhou


o cargo de director da revista Ler. Acha que os portugueses estão sensíveis e des-
pertos para as virtualidades da Língua, um dos maiores patrimónios nacionais?
Não. Não estão sensíveis e desrespeitam muito esse património. O português,
aliás, já não nos pertence – já não somos os “donos da língua”. Os brasileiros são 180
milhões a falar a nossa língua. Juntemos os africanos. Temos um património linguís-
tico e literário riquíssimo que andamos a desprezar. Enojam-me os erros ortográficos
nas legendas e rodapés televisivos. A linguagem dos políticos, que é pobre e cheia de
erros. Faz-me muita impressão a superficialidade com que tratamos a nossa língua.

Alertou para a importância de se ensinar mais literatura nas escolas. Pensa


que a Língua de Camões e os autores lusos têm sido desprezados em favor de
programas e soluções educativas mais facilitadoras?
Penso exactamente isso e penso que a culpa não é dos professores, que se esforçam
muitas vezes por corrigir aspectos degradantes dos programas de ensino do português.
Muitos professores de português são autênticos heróis, quando põem as crianças e os
adolescentes a ler. Mas o tom, os objectivos e os tiques ideológicos dos programas de
Português ou de História, que é um resultado dos anos setenta, tem dificultado muito
a vida dos melhores professores, tentando fazer deles personagens medíocres. Sempre
separei as duas realidades: o Ministério da Educação e os professores. E acho que a
literatura tem de voltar em força às escolas; não a literatura de hoje, apenas. Mas os
clássicos. Os clássicos lidos com alegria e criatividade. Cesário, o barroco, Gil Vicente,
Camilo, Camões. Tudo isso. Lidos, sem cartilha ideológica e sem preconceitos. Lidos
por prazer. É assim que se forma gente culta, colocando-a em contacto com a cultura.
Essa mania facilitadora tem vindo a transformar o ensino numa coisa classista e boa
para as elites – que têm acesso aos autores e à cultura fora da escola.

A polémica em torno dos exames voltou a semear a discórdia na educação. Os


resultados foram desastrosos. Os maus alunos de hoje serão os políticos e os gesto-
res do amanhã. Teme que esta geração mantenha os tiques de «irresponsabilidade»,
como diz, que os sucessivos governantes têm patenteado nas últimas décadas?
Na verdade, temo um pouco. Basta comparar com os resultados do resto da Euro-
pa. As pessoas dizem-me que não interessam apenas os resultados – concordo, mas
o que é que temos no final senão resultados? Acho que teremos de ser mais exigen-
144 ›
tes, mais responsáveis. Sou pela responsabilização dos professores e pela avaliação
permanente e rigorosa dos técnicos ministeriais que transformaram os programas e
métodos de ensino numa balbúrdia. Toda a gente culpa os professores, mas poucos
apontam o dedo à ilustre geração de técnicos ministeriais que agiram em roda livre,
espalhando mediocridade, irresponsabilidade e maus resultados por anos e anos de
impunidade. Quem avalia essa gente? Quem os responsabiliza?

A Ministra da Educação tem sido atacada por todos os lados. Concorda que
quando alguém é impiedosamente criticado por tudo e por todos, é porque está
a reformar conceitos e mentalidades e a mexer com os interesses instalados?
Acho que o princípio pode ser válido neste caso e acho que a ministra tem conse-
guido mexer com o que chama «interesses instalados». Falta agora melhorar a qua-
lidade do ensino e a qualidade de vida dos professores, dignificar a profissão, incen-
tivar a formação profissional, deixar de tratar os professores como profissionais de
uma profissão qualquer. Mas é preciso que eles se comportem como tal. E não, não
concordo em absoluto com a interferência dos pais no sistema de ensino e na avalia-
ção dos professores. A escola pública deve ser, para os alunos, também um espaço de
liberdade em relação à família e à sua intimidação. Na escola devem ser avaliados se-
gundo os critérios da escola. Misturar escola e família deu sempre resultados pobres e
acabou com a independência de critérios da escola e dos professores. Uma balbúrdia.
Aliás, os pais nem sequer devem partilhar o mesmo espaço dos alunos na escola. É
bom para os alunos e bom para os pais. Mas os critérios terão de ser mais exigentes.

‹ 145
Bagão Félix 99

O ensino superior tem de ser gerido por quem sabe

Bagão Félix critica a política educativa da Ministra da Educação Maria de Lurdes


Rodrigues por retirar aos professores a pouca autoridade que ainda têm. Em entrevista
ao Ensino Magazine, o ex-ministro defende uma gestão profissionalizada para os esta-
belecimentos de ensino e entende que Bolonha faz o «downgrading» das licenciaturas
e incentiva uma formação «à la minute».
Hoje, de regresso à docência após anos de afastamento por afazeres políticos, Bagão
Félix diz ainda que as reformas da geração que tem agora 20 anos estão seriamente
ameaçadas e rejeita que o referendo ao aborto seja o problema mais importante do país.

É, pública e notória, a defesa que tem feito dos valores cristãos. Pensa que a
voragem consumista, que tem o seu expoente máximo no Natal, acaba por en-
fraquecer o alcance da mensagem subjacente a esta quadra?
Vivemos num mundo muito utilitarista e orientado para o consumo. Isso faz com
que o que é fundamental passe para um plano secundário, pelo menos para aqueles
que acreditam (os cristãos), no Natal, como data do nascimento de Jesus Cristo. Não
sou daqueles que nega a importância dos presentes, sempre e quando, estes sejam
99 Economista e comentador político-económico. Ocupou os cargos de secretário de Estado da Segurança Social dos VI, VII
e VIII Governos Constitucionais (Sá Carneiro e Pinto Balsemão); de secretário de Estado do Emprego e Formação Profissional
do XI Governo (Cavaco Silva); ministro da Segurança Social e do Trabalho no XV Governo (Durão Barroso); ministro das
Finanças e da Administração Pública no XVI Governo (Santana Lopes). Foi também deputado à Assembleia da República
(eleito pelo CDS/PP), membro da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa e da sua Comissão de Assuntos Sociais e
Saúde, de 1983 a 1985.
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva, em Dezembro de 2006.
‹ 147
uma forma de saber dar e receber e que se tenha em mente a ideia da família, dos
amigos e das pessoas mais próximas e queridas.

Mas nem sempre é assim...


O problema é que a questão das prendas transformou-se num negócio e numa
contabilidade, um deve e haver, onde contam mais os cargos do que os seres huma-
nos, onde contam mais as mordomias do que as intenções e onde, verdadeiramente,
as pessoas consomem e se consomem. As listas de prendas são por vezes de tal modo
sobrecarregadas que, o que devia ser uma festa e um prazer, acaba por se tornar uma
grande maçada. Isto não é Natal, é o anti-Natal. O Natal significa, numa perspectiva
cristã e civilista, a ideia da proximidade, afecto e da esperança. No fundo, é a cele-
bração da vida e não propriamente o tempo para encontrar problemas e tormentos
perfeitamente dispensáveis.

A família e a Igreja são duas instituições associadas ao Natal. Partilha da


opinião generalizada que estão ambas em crise?
Um factor comum às sociedades ocidentais assenta na perda de referências esta-
bilizadoras, seja a família, a escola, a Igreja, as instituições militares, etc. Eu defendo
que nenhuma sociedade pode construir o seu futuro renunciando a valores superiores.
Nesses valores superiores, incluem-se, obviamente, os valores da vida e da família.

Os agregados familiares estão também eles a adaptar-se aos tempos moder-


nos e a tornarem-se menos perenes?
Eu não acho que a família esteja em crise, o que há é famílias em crise, mas isso
sempre houve ao longo da História. A família é a única instituição natural, ou seja,
não foi criada pelo Direito positivo. Existe pelas pessoas e para as pessoas. Não há
família de esquerda ou direita, laica ou confessional, tradicional e não tradicional.

É um dos rostos que tem lutado contra o processo do aborto. O Presidente da


República marcou o referendo para o próximo dia 11 de Fevereiro. Como reage?
O aborto não é, certamente, o problema mais importante que o país tem para
resolver. Toda a gente sabe que transformar o problema na solução, ou seja a li-
beralização do aborto, também não resolve o problema dos abortos clandestinos.
A clandestinidade do aborto não é tanto uma questão legal, mas sim moral, social
e comportamental.

Como defensor das posições anti-aborto pensa que esta consulta popular não
vai resolver um problema que se arrasta há décadas?
Para começar, este referendo encerra um aspecto bastante criticável: a pergunta não
tem a ver com o que está em causa, porque fala em despenalização, mas do que estamos
148 ›
a tratar, efectivamente, é de uma liberalização. Quando se diz que o aborto pode ser
feito por opção da mulher com a condição de ser realizado num estabelecimento de
saúde devidamente autorizado, não se está a despenalizar, está a dizer-se que é comple-
tamente livre até às dez semanas. É um autêntico referendo do dia seguinte.

Porquê?
Imagine o cenário se o «sim» tivesse ganho em 1998, certamente tinham aca-
bado os referendos sobre a questão do aborto. O objectivo é fazer referendos até
que o «sim» ganhe. Se não ganhar desta vez, tentar-se-á uma terceira ou quarta vez.

Se o referendo não for, uma vez mais, vinculativo, será a sentença de mor-
te dos referendos em Portugal?
A Assembleia da República é politicamente soberana para, bem ou mal, legis-
lar sobre esta matéria. Ou seja, o referendo não é uma obrigação para alterar a
legislação sobre o aborto. Sou da opinião que a elevada dose de abstenção regista-
da em 1998, e que agora se poderá repetir, é uma abstenção activa, passe o para-
doxo. Há quem se abstenha porque, pura e simplesmente, tem dúvidas sobre um
problema tão melindroso e complexo para as pessoas simples deste nosso país.

Partilha da opinião da direita que esta insistência em referendar o aborto


é uma forma do Governo socialista contentar a esquerda mais radical do
espectro político?
O referendo sobre o aborto é uma obsessão de toda a esquerda. Funciona
como uma bandeira da esquerda mais radical e também de alguns sectores do
Partido Socialista. Todos eles transformaram esta questão num assunto essencial
do ponto de vista político-partidário e até parece que é o problema mais grave
que se depara a Portugal na actualidade. Na minha opinião, quem deveria estar a
ser referendado e escrutinado era o Estado, por não ter posto em prática nas úl-
timas décadas políticas verdadeiras de apoio e promoção à natalidade, assistindo
as pessoas em condições socioeconómicas mais vulneráveis.

No início da década de 80 foi secretário de Estado da Segurança Social de


Sá Carneiro e mais recentemente ministro da Segurança Social, no Governo
de Durão Barroso. Como profundo conhecedor desta pasta, pensa que a situ-
ação de pré-colapso é tão grave como os piores diagnósticos apontam?
A Segurança Social passa pelas dificuldades que conhecemos por razões de
natureza demográfica - por terem diminuído os nascimentos - e económica, na
medida em que o produto interno tem crescido muito menos. Penso que têm
sido tomadas algumas medidas políticas para minorar o problema, mas creio que
deveria ter-se insistido na questão de ter um sistema complementar que permita
‹ 149
às pessoas partilhar o risco futuro das suas vidas. Ou seja, acautelar a «não pôr os
ovos no mesmo cesto». Nesse sentido, penso que as medidas tomadas pelo actual
executivo pecam por defeito, já que se limitam apenas a adiar o problema e não
a resolvê-lo.

As reformas da actual geração dos 20 e dos 30 anos encontram-se seria-


mente ameaçadas?
Estão em risco, seguramente. É preciso dizer a verdade. O próprio Governo
estima que em 2036 haverá ruptura no sistema de Segurança Social. Eu sou mais
pessimista e creio que será antes dessa data. Senão veja: o problema demográfico
vai agravar-se mais do que é expectável.

Este devia ser um desígnio nacional prioritário?


Voltando a trazer à colação a questão do aborto, e considerando a tendência
demográfica das nossas sociedades, é quase criminoso projectá-la como a grande
prioridade nacional, quando o que necessitamos mesmo é de mais nascimentos,
justamente para equilibrar os sistemas sociais.

A contestação ao Governo tem subido de tom, mas o Primeiro-Ministro


continua a afirmar que «o país não pode ser governado por quem grita na
rua». Este é um executivo insensível ao que diz o povo?
Os governos devem ponderar a insatisfação e o protesto legítimo das pessoas,
mas não se devem deixar abater por essa contestação. O que eu acho é que o
Governo adoptou uma frente de ataque chamando «privilegiados» a um conjunto
de pessoas que na sociedade portuguesa não o são.

Está a referir-se a que sectores?


Os reformados, os professores são assalariados e a maioria dos funcionários
públicos, são tudo, menos privilegiados.

Sócrates está tirar aos pobres para dar aos ricos?


Não diria tanto. O que acontece é que o Governo está a concentrar os seus
esforços de consolidação das finanças públicas em grupos mais vulneráveis da
sociedade portuguesa. O caso dos reformados e dos deficientes é paradigmáti-
co. Especialmente os primeiros, que viram o IRS e a tributação fiscal dos PPR’s
agravada,à saída, retiraram-lhes a comparticipação em medicamentos, a fórmu-
la de cálculo das pensões vai sofrer alterações, o que significará a redução das
mesmas. Não se percebe, quando ao mesmo tempo há dinheiro para a Ota, que
não pára de derrapar, e para o TGV, já para não falar em outros investimentos
faraónicos.
150 ›
Este é um Governo socialista, mas pouco?
É difícil hoje em dia definir o que é socialista. Actualmente, existem políticas de
três naturezas: as que não mandamos nada (monetária, cambial e parcialmente a
política orçamental), as que ainda mandamos alguma coisa, mas que os caminhos
alternativos escasseiam e, finalmente, existem políticas dos valores (aborto, droga,
igualdade de género, casamento de homossexuais, etc.) onde se consegue distinguir a
esquerda da direita. Com isto pretendo dizer que a divisão ideológica passa particu-
larmente pela questão dos valores e dos comportamentos.

Lidou de perto com o problema do défice quando foi ministro das Finanças.
Como se controla o «monstro» da despesa pública?
É muito difícil enunciar panaceias para o actual estado de coisas. Repare que cerca
de 95 por cento dos impostos vão para salários, pensões e juros – ou seja, uma parte
da despesa, por ser tão rígida, é muito difícil de mudar no curto prazo. É um autênti-
co rolo compressor. Por isso é que os governos, especialmente este, quando pretende
reduzir as despesas, socorre-se das despesas não rígidas, as de investimento. O que,
a meu ver, é um erro. A despesa tem de ser reduzida em termos reais, mas é preciso
perceber que isso não se pode fazer de um dia para o outro.
Este Governo entrou em funções com muita arrogância e uma perspectiva exces-
sivamente voluntarista, avançado com soluções sem resultados a curto prazo. O PRA-
CE para reformar a administração pública e outros programas semelhantes, tardam
em implantar-se ou estão ainda longe de gerarem frutos.

Reduzir uma parte substancial dos 700 mil funcionários públicos seria uma
solução acertada?
O Governo nunca disse que ia tomar essa medida. O que anunciou, e mal, foi uma
fórmula falaciosa que se traduz em que cada dois funcionários que saem, entra um,
mas esqueceu-se que os dois que se retiram vão directamente para a aposentação e
como tal continuam a absorver prestações sociais do Estado. Fazendo as contas, o Es-
tado, em vez de aliviar o peso de funcionários, acaba por ficar com três a seu encargo.

É preciso emagrecer e dotar a função pública de maior flexibilidade?


Considero que é necessário diminuir, rejuvenescer e melhorar a qualidade dos
serviços prestados pelo funcionalismo público nacional. Neste campo, o Governo
tem procurado desenvolver algum esforço, mas é preciso associar os programas
estratégicos com uma perspectiva contratual de longo prazo e isso não tem sido
feito. O Governo tem menosprezado os principais agentes da reforma. Não se
pode fazer uma reforma da Educação contra os professores, nem uma reforma da
administração pública contra os funcionários. Tem que haver o mínimo de coope-
ração e colaboração, sob pena de as mudanças não darem resultados.
‹ 151
A primeira medida do Governo foi aumentar os impostos. A carga fiscal que
os portugueses suportam é demasiado elevada para as contrapartidas do Estado?
Tendo em conta o nosso nível de desenvolvimento socioeconómico, a pressão
fiscal é muito elevada. E é preciso ter cuidado para não aumentar ainda mais os
impostos, sob pena de uma economia aberta como a nossa, perder ainda mais com-
petitividade. Não precisamos de mais impostos para financiar mais despesas, o que
precisamos é de menos despesas para ter necessidade de menos impostos. Em suma,
consolidar do lado da despesa para com isso termos margem para reduzir impostos.
E este Governo está a socorrer-se das receitas fiscais para tapar o défice, o que a meu
ver é um caminho a evitar. Os socialistas criticaram muito o recurso às receitas extra-
ordinárias quando a direita esteve no poder, mas o aumento do IVA de 19 para 21 por
cento é uma autêntica receita extraordinária, e pior, de forma continuada.

O que é que falha para sermos comparativamente com os nossos parceiros


da União Europeia os que piores resultados práticos apresentamos no sistema
de ensino?
Isso explica-se por um conjunto vasto de circunstâncias. Tenho um grande cep-
ticismo em relação ao actual sistema educativo porque este não gera responsabili-
zação, nem responsabilidade, por parte de alunos, docentes e famílias. É tudo ao
molho e fé em Deus. Não há sistema de ensino que consiga ser sustentado se não
for baseado numa avaliação adequada dos alunos. E pior é que estes não são avalia-
dos de forma adequada e assistimos a situações extraordinárias de haver alunos que
entram para um curso com notas negativas em determinadas cadeiras nucleares. A
política de manuais também me parece equivocada, não existindo uma lógica de
estabilização. O conteúdo de alguns manuais assemelha-se a compêndios esotéricos
em que ninguém sabe o que é que está a aprender ou a ensinar. Finalmente, creio
que as escolas de uma forma geral, incluindo as próprias universidades, carecem de
uma gestão profissionalizada.

Os gestores profissionais devem ser colocados à frente das instituições de ensino?


Acho estranhíssimo que em Portugal se entregue, na maior parte dos sectores, a
gestão aos profissionais do sector, em detrimento dos gestores profissionais. É errado
hospitais geridos por médicos, da mesma forma que não faz sentido escolas geridas
por professores, universidades geridas por reitores ou administrações judiciais geri-
das por juízes. Em nome da eficácia, creio que seria tempo de chamar os gestores para
supervisionar os estabelecimentos de ensino ou grupos de escolas.

Defende o afastamento dos professores da gestão das escolas?


Sim, até porque muitos docentes não têm vocação para gerir escolas e outros não
têm tempo.
152 ›
Esse é o problema de fundo na Educação?
É um de entre vários e muito complexos. Outro obstáculo de monta, prende-se
com o facto de muitos docentes, sobretudo no ensino secundário, o serem porque
ainda não tiveram oportunidade de ser outra coisa, ou seja, estão lá como último
recurso de emprego. São os chamados professores acidentais. Lamentavelmente, o
sistema não distingue os professores que o são por vocação e missão, daqueles que
simplesmente por lá passam. Perante este cenário, os alunos é que saem prejudica-
dos. Não têm referências, porque todos os anos vêem caras novas à sua frente a mi-
nistrarem aulas. Os próprios encarregados de Educação estão desligados do dia a dia
escolar dos seus filhos. A soberania da Educação reside na família, que, por seu turno,
deve delegar parte na Escola, ou seja no Estado, mas o que é certo é que delegou tudo.
A ideia de Educação foi usurpada pelas escolas.

Que balanço faz deste ano e meio de Maria de Lurdes Rodrigues como mi-
nistra da Educação?
Penso que comete um erro fatal quando vê o problema da Educação apenas do
lado dos professores, ao mesmo tempo que procura incutir na opinião pública a ideia
que os professores são todos maus profissionais, quando, como em todas as profis-
sões, há bons e menos bons. Com as medidas que tem adoptado, a ministra retirou
aos professores a já pouca autoridade que lhes restava nas escolas. Os professores não
são respeitados, quer pelos alunos, quer pelos encarregados de Educação, muito por
culpa da política educativa em curso. Uma escola sem autoridade e sem professores
que se dêem ao respeito, não tem futuro.

A violência nas escolas tem sido um tema na ordem do dia. Como se recupera
a autoridade nas salas de aula?
Em primeiro lugar, com equipas de gestão. Depois, é preciso voltar a prestigiar
os professores que têm de deixar de ser rotulados com a etiqueta de «maus profis-
sionais». Por outro lado, é necessário estabilizar os quadros de professores nas aulas,
com o reforço dos vínculos plurianuais.

Segundo estudos recentes, Portugal tem um milhar de cursos de licenciatura


e mais de 14 mil diplomados desempregados. Estes dados estatísticos demons-
tram o desfasamento entre a vida real e académica?
É o corolário de um conjunto acumulado de erros ao longo das décadas. Existe
uma proliferação excessiva de cursos por parte da oferta, uma autêntica macedó-
nia, sem sentido e eficiência. E há outro aspecto: o estudante é universitário por-
que está no ensino superior, mas a maior parte denota carências gritantes na área
da formação básica. Sem risco de exagerar, posso garantir que muitos dos actuais
estudantes universitários estão ao mesmo nível que eu estava no meu 5.º ano de
‹ 153
liceu, em termos de vocabulário, capacidade de redigir e pensar aritmeticamente.
Logo, o mercado de emprego reflecte a tremenda impreparação técnica e cultural
dos recém-licenciados.

Marçal Grilo disse num seminário que procurou fazer pactos de regime
quando foi ministro da Educação, mas que não o deixaram, argumentando que
os interesses partidários se sobrepõem, quase sempre, aos interesses nacionais.
Faria sentido um consenso alargado para o sector?
O consenso quando é total e generalizado peca por ineficaz. Geralmente, todos
estão de acordo sobre nada. O que eu defendo é que as reformas levadas a cabo sejam
inteligentes no sentido de agregar o mais possível as vontades comuns dos vários
agentes em jogo e essa é uma questão cívica, geracional e civilizacional, que trans-
cende os interesses partidários. Infelizmente, vezes de mais, os interesses partidários
inquinam as soluções, porque estão orientados para uma lógica de poder, sublinhe-
se, perfeitamente normal em democracia.

Pelo que diz, depreendo que é céptico em relação à boa vontade dos maiores
partidos políticos?
As reformas na Educação, Segurança Social e Saúde, são de âmbito geracional:
como têm custos imediatos e proveitos a longo prazo não são benquistas pelos par-
tidos, porque contribuem para estes perderem parte da «clientela» eleitoral. Nessa
perspectiva, alguns consensos que possam ser idealizados pelas grandes forças e ins-
tâncias, parecem condenados ao insucesso.

Como se resolvem os problemas financeiros das universidades públicas?


As universidades têm que encontrar mais receitas próprias.

Está então de acordo com o ministro Mariano Gago...


Com certeza. É preciso angariar novas receitas, de forma imaginativa, não só ape-
nas através do aumento das propinas, mas diversificando a oferta de cursos, mestra-
dos, seminários, organizações, eventos, produção científica/literária, etc..

Quanto ao já chamado «euro do ensino», o processo de Bolonha, pensa tra-


tar-se de uma oportunidade ou julga que vai expor ainda mais as nossas debili-
dades estruturais?
Tenho algumas dúvidas sobre o processo. Em nome do uniformismo europeu, Bo-
lonha acaba por fazer um «downgrading» das licenciaturas. Na prática, o mercado vai
passar a aceitar licenciados e a admitir um número crescente de mestres. Creio que
as escolas de pós-graduação são as que serão as grandes beneficiadas com Bolonha,
permitindo-lhes angariar alunos que depois se vão distinguir no mercado.
154 ›
Pensa que Bolonha levanta mais receios do que certezas?
Bolonha tem virtualidades, nomeadamente ao colocar a centralidade no aluno
e não no professor, preparando-o melhor para a realidade com que vai viver, mas é
demasiado redutor e simplificado e tem o que eu chamaria uma formação liofilizada,
à pressa, ou «à la minute», como se dizia no meu tempo. E há coisas que exigem o
seu tempo: de curso, de estudo e de maturidade. E ainda há mais: temo que a mo-
bilidade, característica principal deste processo, tenha como consequência para nós,
portugueses, que os bons cérebros nacionais saiam e que aqui fiquem os piores. O
chamado «ímen» funciona nos sítios mais poderosos, no centro da Europa, e preju-
dica os países mais periféricos.

‹ 155
Maria de Lurdes Rodrigues 100

As escolas vão mudar

O novo Estatuto da Carreira Docente traz mais justiça para a carreira dos profes-
sores, promovendo os melhores e permitindo excluir do sistema os que não revelam
competência. A regulamentação vai agora ser iniciada, mas já é certo que só alguns
professores podem assumir a gestão das escolas. Certo também é que o novo regime
de habilitação para a docência está aprovado e dá tempo a universidades e politécnicos
para adaptarem os seus cursos ao regime e a Bolonha.
Estas afirmações são da responsabilidade da Ministra da Educação, Maria de Lurdes
Rodrigues, em entrevista ao Ensino Magazine. Neste encontro, a ministra explica as al-
terações que quer introduzir no sistema, nos dois anos que lhe faltam de mandato, no-
meadamente ao nível da gestão e da modernização das escolas. Diz que os professores
exercem a sua função com competência, apesar da contestação, e justifica o incremento
dado ao crescimento dos cursos de matriz profissional, ao nível do Secundário.
Maria de Lurdes Rodrigues garante que, dentro de dois anos, a cultura do furo ou
do feriado desaparecerá, e ninguém vai contestar as aulas de substituição. Explica por
que razão Portugal é pioneiro ao nível da certificação de competências até ao 12º Ano e
afirma preferir a política de inclusão à da segregação dos alunos com necessidades edu-
100 Professora Associada do ISCTE-IUL, onde lecciona desde 1986. Entre 2005 e 2009, foi Ministra da Educação do XVII
Governo Constitucional, liderado por José Sócrates, tendo lançado e realizado diversas reformas. Particularmente controversas
foram as da carreira docente e da avaliação de desempenho dos docentes, as quais foram alvo de contestação interna por pro-
fessores e sindicatos, pelos partidos da oposição e por alguns sectores do Partido Socialista. Actualmente preside à Fundação
Luso-Americana para o Desenvolvimento, por nomeação do primeiro-ministro.
Entrevista realizada por João Carrega e Vítor Tomé, em Fevereiro de 2007.

‹ 157
cativas especiais. Mostra-se ainda muito satisfeita pelo facto do Ministério ter instituído
o prémio de professor do ano.

Depois deste conjunto de medidas já tomadas, pode adiantar-nos que outras


está a preparar?
Vai ser necessário rever a formação contínua de professores, bem como o estatuto
de gestão e autonomia das escolas, nomeadamente no que isso implica ao nível das
relações das escolas com as autarquias e com os pais. Vamos regulamentar legislação
como a da avaliação dos professores, das escolas e dos manuais escolares. O processo
de avaliação de manuais está em curso. Muito em breve será aprovado o instrumen-
to relativo ao primeiro concurso para professores titulares. Ao nível do Secundário,
vamos continuar a diversificação das ofertas formativas, pois precisamos de ter os
jovens nas escolas até ao momento em que possam prosseguir estudos, ou que con-
cluam com êxito a sua qualificação.

Qual é o modelo que defende em termos de gestão das escolas?


Estamos ainda a trabalhar na proposta. Temos que trabalhar com os conselhos
executivos e com a Associação Nacional de Municípios. Mas aquilo que me parece
crítico no actual modelo de gestão é a abertura da escola ao exterior. A gestão quoti-
diana da escola tem dois eixos críticos. Em primeiro lugar, a escola deve permitir uma
efectiva participação das comunidades educativas locais, ou seja, de associações de
pais, de instituições de proximidade, das autarquias. O segundo eixo é o funciona-
mento dos órgãos intermédios de gestão. O estatuto vem ajudar a tornar mais efectivo
o trabalho desses órgãos. Mas esse facto deve ter consequências no diploma de gestão
e autonomia, com uma responsabilização diferente destes órgãos e com a designação
dos seus responsáveis de modo diferente.

De que forma é que o papel dessa comunidade pode ser mais activo nas
escolas?
Isso pode passar por alterações ao nível das assembleias de representantes, no
sentido de que a participação seja efectiva e consequente. Vamos levar a escola a
abrir à comunidade, para não ficar exclusivamente entregue ao grupo de professo-
res que estão lá.

Ao nível do Secundário, em que sentido é que o Ministério continuará a im-


pulsionar a diversificação das ofertas formativas?
O alargamento das ofertas formativas de carácter vocacional ou profissional é algo
que tem de continuar e de se consolidar. Por isso vamos dar melhores condições às
escolas, para que possam fazer esse trabalho. Vamos também ajustar a reforma do
Secundário, melhorando planos e currículos.
158 ›
As empresas e outras entidades da comunidade educativa participam nos
cursos de cariz profissional que o Ensino Secundário oferece?
Estas formações exigem esse envolvimento. São necessários estágios. É preciso
envolver peritos com competências que, muitas vezes, não existem nas escolas.
Num curso de electricidade são necessários electricistas. Num curso de cabeleireiro
são necessárias esteticistas e cabeleireiros. São áreas profissionais que não existem
nas escolas e têm de as ir procurar. Mas o que se passa no terreno é muito curioso.
Há escolas que estabeleceram parcerias com instituições de proximidade. Há esco-
las secundárias que assinaram protocolos com escolas profissionais, que já têm o
know how e a rede de relações. Há autarquias muito motivadas em ajudar as escolas
e servem de pivô nas relações com entidades privadas, no sentido dos alunos po-
derem realizar estágios.

Será possível, até ao final da legislatura, ter metade dos alunos do Secun-
dário em cursos de cariz profissional?
Este ano abriram 500 novos cursos. Mas é o ano da entrada. Temos de esperar
pelo próximo ano e ver qual é a adesão dos alunos aos primeiros anos destes cursos.
Mas se tudo correr como até aqui, poderemos dizer que, dentro de quatro
anos, estaremos muito perto de ter metade dos alunos do Secundário em cursos
de cariz profissional.

Ao nível do ensino básico, que alterações estão previstas?


Vamos continuar a consolidar o trabalho que está a ser feito ao nível da melhoria
das condições de ensino e de aprendizagem. Temos, por exemplo, o Plano Nacional
e Leitura e o Plano de Acção para a Matemática. São planos a três ou quatro anos,
pelo que é necessário ter persistência e paciência para continuar a estimular as esco-
las no sentido de adoptarem boas práticas neste domínio. Depois, o 1º Ciclo neces-
sita de muita atenção do Ministério, mas também de autarquias e pais. Precisamos
garantir que o enriquecimento curricular, a escola a tempo inteiro, a melhoria das
práticas lectivas para a aquisição das competências básicas, são programas ganhos.

E quanto aos espaços físicos das escolas: há medidas previstas?


Vamos avançar com um programa novo que visa a preparação das escolas para
o futuro. Para isso contamos com as verbas do Quadro de Referência Estratégi-
co Nacional (QREN). Os planos operacionais regionais têm um plano específico
para que as autarquias possam promover a modernização das escolas de 1º Ciclo.
Haverá também um programa de modernização que será concretizado, em prin-
cípio pelo Ministério da Educação, em parceria com as autarquias, e que visa a
modernização de todas as outras escolas. Digamos que este ano é o ano da mo-
dernização e da avaliação.
‹ 159
Uma das grandes metas do Ministério era a aprovação do Estatuto da Carrei-
ra Docente. Depois de cumprida a meta, que balanço faz do processo?
Faço um balanço bastante positivo, pois o Estatuto que foi aprovado é muito equi-
librado. Procura introduzir alterações profundas, mas respeita ao mesmo tempo as
expectativas dos professores, sobretudo dos que têm uma carreira mais longa. A revi-
são não partiu de um vazio, mas do Estatuto que já existia e a dificuldade de introdu-
zir as mudanças era de evitar um desequilíbrio e insegurança nas pessoas abrangidas.

Como é que revisão do Estatuto, manteve o equilíbrio entre as alterações


introduzidas e as expectativas dos professores?
Conseguimos um sistema de avaliação, rigoroso, exigente, que valorize sobretudo
os professores que estão nas escolas e dão aulas. O essencial da avaliação incide sobre
o acto de leccionar, através de mecanismos de supervisão, de acompanhamento, de
verificação da qualidade das aulas ministradas. Associámos depois a progressão na
carreira a esta avaliação, premiando os melhores professores, com a possibilidade de
terem uma progressão mais rápida e prémios remuneratórios. Ao mesmo tempo, po-
dem ser penalizados ou mesmo excluídos da carreira os professores que revelem não
reunirem as condições. Também foram alteradas as condições de recrutamento e de
selecção, com a introdução de um exame para entrada na carreira e do ano probató-
rio, os quais ajudarão a ter uma carreira docente mais exigente. Finalmente, uma das
alterações mais importantes foi a estruturação da carreira em duas categorias, com
a atribuição de maior responsabilidade aos professores que têm mais competências,
que são mais velhos.

A estruturação da carreira docente em duas categorias não pode desmotivar


os que não estão no topo?
Não. Todas as carreiras profissionais são estruturadas. O jovem médico, quando
inicia a sua profissão sabe que existem níveis de exigência que vai ter de ultrapassar.
O mesmo se passa com os enfermeiros, com os militares, com os jornalistas. Todos sa-
bem que, quando são jovens, têm um caminho a percorrer, o qual é progressivamente
mais exigente. Portanto, além de não desmotivar os professores, esta estruturação
permite organizar o trabalho das escolas de uma outra forma. Foi muito importante
o facto de se ter vedado a possibilidade de um lugar de responsabilidade poder ser
atribuído a um jovem professor, acabado de entrar no sistema.

O novo regime da habilitação para a docência só agora foi aprovado. Con-


sidera que esse regime peca por ter surgido tardiamente, ou esta seria a altura
certa, tendo em conta as alterações decorrentes de Bolonha?
Esta foi a altura certa. Podíamos tê-lo antecipado dois ou três meses, mas este
era o momento. Este regime beneficia do facto das instituições de Ensino Superior
160 ›
estarem a adaptar-se ao processo de Bolonha. A reforma feita para adaptar os cursos a
Bolonha tinha sido iniciada no ano anterior, pelo que as universidades e politécnicos
aguardavam este diploma para adaptarem os seus cursos. É por isso a altura certa,
pois há tempo e condições para que as instituições que formam professores apresen-
tem agora os seus novos cursos e planos, para os terem em pleno funcionamento no
próximo ano.

Os novos professores formados vão encontrar um sistema educativo onde


as aulas de substituição estão implementadas e generalizadas. Mas as aulas de
substituição não foram, nem são ainda aceites pacificamente. Como avalia o
processo neste momento?
As aulas de substituição são o motivo em torno do qual se organizou a contes-
tação. Mas elas não são o problema. O problema estava nos chamados furos, que
tinham uma dimensão absolutamente inaceitável. Os alunos não trabalhavam nesse
período, os programas não eram cumpridos e as famílias sentiam-se inseguras em
relação ao que se passava na escola com os seus filhos. Ora, estes furos não existem
nas escolas de referência, nem nas escolas privadas. A ausência do professor não pode
significar ausência de actividade pedagógica. Os alunos têm de trabalhar e de estudar
nos tempos em que é suposto fazê-lo.

O que é que o Ministério propôs para superar essa problema?


O Ministério propôs às escolas que organizassem actividades com significado pe-
dagógico, para os alunos, nos tempos lectivos que não ocorressem por ausência do
professor. Para isso foram dados os instrumentos às escolas, sobretudo o da gestão da
componente não lectiva do horário do professor. Estas horas nunca tinham sido regu-
lamentadas nem sequer exigidas aos professores, pelo que, na maior parte dos casos,
limitavam-se a estar na escola no período de tempo em que iam dar aulas. É certo que
bastantes professores tinham e têm bastantes horas de trabalho dadas à escola, mas
essas horas não eram igualmente distribuídas, nem abrangiam todos os professores.
Ou seja, a escola estava dependente da boa vontade dos professores. O que se fez foi
dar às escolas a possibilidade de marcarem essas horas no horário dos professores.

Com as aulas de substituição, o Ministério da Educação conseguiu superar a


ausência de actividade pedagógica quando o docente da disciplina falta?
As escolas organizaram-se de formas muito diferentes. Algumas fizeram-no de for-
ma muito eficiente, ocupando os alunos com as mais diversas actividades, que não
apenas aulas de substituição. As aulas de substituição são apenas uma actividade, entre
seis ou sete previstas. Muitas outras escolas tiveram dificuldade em saber como gerir
esse tempo. Muitos professores reagiram negativamente, o que não ajudou os conse-
lhos executivos e as escolas a resolverem esse problema. Houve uma convergência de
‹ 161
desinteresse. Mas, gradualmente, as escolas perceberam que esta era uma medida muito
importante para combater o insucesso escolar. Os professores também. Este ano houve
mais contestação porque a medida alargou ao Secundário, o que foi importante para as
escolas secundárias que têm 3º Ciclo, pois era complicado organizar actividades num
ciclo e noutro não. Muitas escolas e pais pediram essa medida, pois os níveis de ausên-
cia dos professores no Secundário não são inferiores aos do Básico.

Considera que a contestação às aulas de substituição vai continuar?


Com o alargamento ao Secundário, como os alunos são mais velhos e têm mais
capacidade de autonomia para se exprimirem, este ano houve contestação. Porém,
no próximo ano, as aulas de substituição não serão notícia. E daqui por dois anos
ninguém falará nisso, pois as aulas de substituição serão uma prática natural, inte-
riorizada nas escolas. Uns farão pior e outros melhor mas, gradualmente, as aulas de
substituição serão algo naturais, da mesma forma que o era o furo. Os alunos dizem
que a ministra tirou o direito ao furo. Eu respondo que eles têm direito às aulas, não
ao furo. O que é normal é ter uma aula quando é suposto ter uma aula. E para os pro-
fessores, as aulas de substituição não terão a expressão que tiveram no primeiro ano,
pois o absentismo também baixou muito. E nas escolas vive-se hoje um clima tran-
quilo, com os alunos dentro das salas de aulas, na Biblioteca ou noutras actividades.

Considera que houve muito ruído na transmissão, aos professores, das medi-
das tomadas pelo Ministério da Educação?
Talvez. Houve sobretudo muita contestação. Normalmente, a contestação surge
associada à distorção, ao exagero, à caricatura. E isso é que faz o ruído.

Este ano o Ministério autorizou 52 centros de Reconhecimento, Validação


e Certificação de Competências a certificarem até ao nível Secundário. De que
forma é que vai evoluir este processo? Os outros centros também vão poder
fazer essa certificação?
Todos os centros vão poder fazer a certificação dos dois níveis. Esse é objecti-
vo. Mas começámos com um número reduzido, porque é necessário testar todas as
metodologias com muita segurança. Não queremos que este seja um mecanismo de
atribuição de diplomas facilitista, ou pouco exigente. Não é esse o objectivo. Importa
dizer que não há testes europeus para RVCC no nível Secundário, pelo que Portugal
está a fazer um trabalho pioneiro. O caminho tem de ser percorrido com muita segu-
rança, pelo que escolhemos os centros que nos davam todas as garantias. Passada esta
fase de teste, estaremos em condições de generalizar. Mas teremos em consideração
as pessoas que os centros servem. Uns servem populações que necessitam certificação
ao nível do Básico e outros servem populações que necessitam uma certificação ao
nível do Secundário. Portanto, pode haver lugar a uma certa especialização.
162 ›
O que espera com esta medida?
Espero que estes centros sejam portas de entrada para a formação e qualificação
dos portugueses. Os jovens que passaram pela escola nos últimos anos e saíram sem
concluírem o ciclo de estudos com êxito, devem ver nestes centros uma porta de
entrada para retomarem o seu processo de qualificação e formação, seja ele mais ou
menos longo, seja ele em áreas vocacionais, profissionais ou complementares. Temos
milhares de jovens nesta situação, pelo que espero que os centros se organizem para
lhes darem resposta. É importante que os jovens se reconciliem com os processos
de formação e percebam que não há alternativas no seu futuro que não passem pela
escola e pela qualificação. Depois temos o desafio de qualificar outras pessoas que
não tiveram oportunidade de terminarem o seu ciclo de estudos. A ideia é que toda a
formação que façam seja também certificada em termos escolares.

Portugal está na linha da frente, pelo menos em termos de legislação, no que


diz respeito à escola para todos, à escola inclusiva. Mas há muitos pontos de
vista diferentes em relação a esta matéria. Qual é o seu ponto de vista sobre esta
problemática? A inclusão é uma batalha que está a ser ganha?
Tal como em todos os processos, vai-se conseguindo. É preciso não desistir. A
paciência e a persistência são muito importantes em educação. Não podemos esperar
resultados para amanhã, pois, em educação, os caminhos vão-se fazendo. Em termos
gerais, há o conceito de uma educação para todos e eu penso que ela é possível. Os
países mais desenvolvidos têm muitos exemplos disso e essa deve ser a inspiração
para Portugal. Já na discussão acerca de se os modelos devem ser mais inclusivos ou
mais segregados ou segmentados, defendo os modelos inclusivos. Os ganhos que se
conseguem com a diversidade são muito superiores aos prejuízos. Uma turma muito
heterogénea coloca mais dificuldades a um professor do que uma turma homogénea.
E os professores podem não se sentir à vontade com a gestão dessa diversidade. Por
vezes há problemas com as crianças a integrar nestas turmas. Todavia, os riscos asso-
ciados à gestão são sempre menores do que os benefícios que as crianças diferentes
retiram. Além disso, penso que há um benefício para todas as crianças.

‹ 163
Sobrinho Simões 101

Escolas: ensinar a pensar através da experimentação

É português e um dos maiores especialistas em cancro e, em entrevista ao Ensino


Magazine, diz que 50 por cento dos cancros não causam morte e lamenta que se in-
vista mais no tratamento das doenças oncológicas do que na sua prevenção. O inves-
tigador confia na qualidade dos nossos cientistas, mas refere que falta aos diferentes
sistemas do país, entre eles o da Educação, «organização» e «capacidade para avaliar
e reconhecer o mérito».

O Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto


que dirige, desde 1989, é um oásis no «deserto» da ciência em Portugal?
Não estou de acordo com essa afirmação. O ano que terminou foi bom para o
IPATIMUP e para outros institutos, bem como para a ciência em geral, no que diz
respeito à produção científica. Portugal, de há uns tempos a esta parte, tem boas
instituições que se dedicam às ciências da saúde: o IPATIMUP, o Instituto de Biolo-
gia Molecular e Celular (IBMC) e o Instituto de Engenharia Biomédica (INEB), no
Porto; O Centro de Neurociências, em Coimbra; o Instituto de Medicina Molecular
(IMM) e o Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), em Lisboa, são, entre alguns ou-
tros, centros de investigação de nível internacional em ciências da saúde.
101 Prémio Pessoa em 2002. É dos cientistas portugueses mais conhecidos fora da comunidade científica nacional. Director
do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto, é um dos maiores especialistas mundiais em
cancro da tiróide. Doutorou-se em Patologia na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, em 1979. Fez o pós-
doutoramento, em 1980, no Instituto de Cancro da Noruega.
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva, em Março de 2007.

‹ 165
Que motivos invoca para dizer que 2006 foi positivo para a ciência nacional?
O ano de 2006 trouxe frutos palpáveis do investimento feito em ciência em Portu-
gal ao demonstrar a enorme importância dos Laboratórios Associados e dos Centros
de Investigação na produção científica. O problema é que estas instituições ainda não
influenciaram suficientemente a universidade. É esta a limitação.

Por culpa de quem?


As responsabilidades devem ser repartidas por todos: instituições de investigação,
as próprias universidades e a sociedade civil, que não valorizam a investigação cientí-
fica como elemento de promoção da qualidade da educação e da formação.

O que lhe deu mais prazer em termos de investigação científica?


Pessoalmente, foi demonstrar que nos cancros da tiróide o problema não está no
facto de as células proliferarem muito, mas sim no facto de as células neoplásicas
serem (quase) imortais. Tratou-se de uma autêntica mudança de paradigma, isto na
viragem de 1979 para 1980. Dizia-se que o cancro era uma doença da proliferação
das células, mas o que encontrámos foi uma doença da sua sobrevivência. As células
malignas não são muitas vezes mais proliferativas do que as células normais, o que
acontece é que sobrevivem a praticamente todas as situações adversas.

Em termos sociais e pessoais que trabalho o recompensou mais?


Sem dúvida que nesse domínio o meu maior orgulho reside em ter ajudado a criar
o IPATIMUP e a fazer uma geração de cientistas de muito bom nível. É esta realização
colectiva que permite mudar o futuro. O futuro não vai mudar simplesmente porque
eu fiz ou deixei de fazer uma descoberta.

Tem alguma concretização ou sonho que ambicione, para si ou para o país?


Acho que a grande revolução em Portugal vai acontecer quando conseguirmos
que as actividades lectivas nas escolas, nos liceus e nas universidades tenham
uma forte componente científica. É preciso que os miúdos sejam treinados a
pensar através da observação e da experimentação. A ciência é indispensável à
sociedade e à cultura do século XXI. Em Portugal, falta cientificidade em todos os
domínios da vida humana.

Há senso comum em excesso e um défice científico?


O senso comum inteligente é, muitas vezes, prova de alguma aproximação cien-
tífica aos problemas. O que existe em Portugal é um excesso de opiniões, atitudes,
comportamentos e decisões, que não se baseiam em evidências. Isto é verdade na
Política, na Economia, na Medicina, etc. Em Portugal, vivemos muito da retórica e
daquilo que achamos que é bem. Não estou a dizer que somos um povo maligno,
166 ›
mas infelizmente não estamos habituados a perguntar nem utilizamos nos nossos
raciocínios uma atitude científica.

Diariamente somos confrontados com novas notícias sobre esperanças de


cura para o cancro. Para quando podemos vir a ter mais certezas?
Ninguém sabe. O «truque» para obter uma resposta a essa pergunta é não
falar do «cancro», mas dos «cancros». Hoje, sabemos que os cancros dos órgãos
x, y e z, são diferentes dos cancros dos órgãos a, b e c. Os cancros das crianças
distinguem-se dos cancros das pessoas de idade. A nossa impressão é que, para
alguns cancros, como já acontece com as leucemias e os cancros da tiróide e do
testículo, a cura, ou se quiser o controlo da doença, já atinge os 95 por cento.
Infelizmente, há outros cancros onde não se avançou muito em termos de cura.
De qualquer maneira, é errado, hoje em dia, associar-se a palavra cancro à ideia
de morte.

Pensa que a população está mal informada sobre este flagelo?


Penso que sim. Mais de 50 por cento dos cancros não causam a morte dos
doentes, isto é, já controlamos mais de metade dos casos. O que acontece é que
as pessoas ligam aos processos cancerosos uma elevadíssima mortalidade e isso
é falso. A maioria dos portugueses não morre de cancro mas sim fruto da sua
hipertensão, obesidade, doença vascular-cerebral, etc.

Mas não pensa que subsiste um défice nos cuidados de saúde ministrados
aos utentes?
Existe. Mas o défice nos cuidados de Saúde é muito menor do que o défice
nos Transportes. A TAP e os comboios, são muito piores que o Serviço Nacional
de Saúde (SNS). E, então a Justiça é horrorosamente pior que o SNS. Se anali-
sarmos os vários sistemas portugueses, provavelmente chegaremos à conclusão
que o menos mau é o da Saúde. E se não conseguimos resolver os problemas nos
Transportes, como é que julgam que vamos resolver os que existem na Saúde?

A Saúde, os Transportes e a Justiça são o espelho do país?


Um pouco, e já agora acrescente a Educação. Falta-nos organização, não re-
compensamos o mérito e não avaliamos. Os sistemas em Portugal que exibem
estas características negativas – e são, infelizmente, quase todos – são manifesta-
mente os piores. No caso da saúde, as queixas são mais elevadas na medida em
que se eu tiver um familiar próximo doente estarei mais disposto a elevar a minha
voz e a reclamar perante o que está mal. Já quando o comboio se atrasa misera-
velmente ou a Justiça protela o julgamento de um processo, a tendência é para
uma reacção mais tolerante.
‹ 167
Dizem alguns, que o sistema de ensino é um dos maiores fracassos das três
décadas de democracia. Concorda?
Em absoluto. O outro enorme fracasso é, como dizia atrás, a Justiça. Não con-
seguimos criar condições objectivas para educar, a sério, os portugueses. A culpa é,
como sempre nestas coisas, repartida: a sociedade em geral e os pais em particular,
os professores e o Poder. Demos cabo da autoridade dos professores e não a substi-
tuímos por nenhuma forma eficiente de governação. Recusamos sistematicamente a
avaliação e a discriminação positiva dos melhores, sejam alunos ou professores. Não
temos conseguido, nós, médicos, professores, políticos, empresários, ser exemplares
e sem muitos e bons exemplos não há sistema de ensino que aguente.

O Processo de Bolonha é o chamado «euro do ensino». Crê que vai ser uma
«prova de fogo» à capacidade competitiva das universidades, professores e alu-
nos portugueses?
Gostava que fosse, mas não tenho a certeza disso. Receio que tenhamos uma
resposta burocrática semelhante à que tivemos há alguns anos quando começámos
a fazer cursos superiores de papel e lápis por tudo quanto era sítio e quando, de-
pois, inventámos dezenas e dezenas de mestrados, na sua maioria sem qualidade.
O Processo de Bolonha só valerá a pena se contribuir para aumentar a qualidade do
processo educativo a todos os níveis, com ênfase, no que diz respeito à Universidade,
no 3.º ciclo, isto é, nos Programas Doutorais. Tal, subentende uma aposta consistente
em avaliação externa independente que obrigue a recompensar o mérito, “force” a
entrada massiva da investigação científica no Ensino Superior e estimule a interna-
cionalização.

Nos últimos anos houve projectos que mobilizaram milhões de euros dos
cofres do Estado. Ao esquecer, por exemplo, a criação de laboratórios, acha
que os políticos têm errado na definição das prioridades nacionais devido a
uma visão de curto prazo? Considera que existe uma política de ciência em
Portugal?
As prioridades têm variado um pouco ao longo dos últimos anos embora a aposta
no betão se tenha mantido sempre dominante. Para sermos justos é preciso reco-
nhecer que alguns governos têm dado uns bons empurrões à ciência sem terem, no
entanto, conseguido modificar substancialmente o ensino experimental nas escolas,
nem a atitude da grande maioria das instituições de Ensino Superior face à investi-
gação científica e à inovação. Para complicar as coisas os tais empurrões têm sido,
como o próprio nome indica, descontínuos. E sem uma política sustentada de longo
prazo – que não se compadece com os curtíssimos ciclos eleitorais – não vamos lá…
A polémica sobre as faculdades de Medicina e o número de admissões é um tema
recorrente. O número de diplomados aptos que saem das universidades chega para as
168 ›
necessidades? Como vê o fenómeno da integração dos médicos estrangeiros, nomea-
damente espanhóis e de Leste, nos estabelecimentos hospitalares nacionais?
Temos, nesta altura, médicos suficientes para as necessidades do País desde que a
sua distribuição e a sua integração institucional sejam adequadas. Temos também um
número suficiente de estudantes de Medicina para assegurar o futuro, isto é, não pre-
cisamos de mais Faculdades de Medicina. Precisamos sim de melhorar a qualidade
do ensino médico, tanto pré como pós-graduado, e de assegurar a formação contínua
dos médicos de todas as idades. Precisamos também de começar a pagar decente-
mente aos médicos que trabalham seriamente nos hospitais públicos e nos centros
de saúde. Dito isto, vejo com simpatia o recrutamento de médicos competentes de
outros países em condições idênticas às que devemos exigir aos médicos nacionais.

‹ 169
José Barata Moura 102

Querem apagar e reescrever a história

Homem de canções que encantaram gerações e de outras que incendiaram a cha-


ma do período revolucionário, Barata Moura confessa a “dor” de não pegar numa
viola, apesar de “matar” saudades nas brincadeiras caseiras com os quatro netos.
Apreensivo com a “Europa que nos querem impingir” e com as “tentativas de bran-
quear a História de Portugal”, o filósofo afirma que “falta dinheiro” e “projecto” ao
ensino superior e que as universidades não podem ser “linhas de montagem para o
fabrico de licenciados”. Sobre a escola, em sentido lato, diz que está “desorientada”.

Foi Reitor da Universidade de Lisboa durante 8 anos, professor universitá-


rio, filósofo e deputado ao Parlamento Europeu, mas é a sua vertente de cantor
e autor que ainda se mantém na memória de várias gerações que cresceram a
ouvir as suas composições. Como surgiram essas canções?
É preciso recuar até 1966 ou 1967, na altura em que eu namorava a minha mu-
lher, que faz parte de uma família numerosa, e havia o problema de como ocupar 30
crianças entre o regresso da praia, tomar banho e jantar. De forma improvisada, co-
mecei a construir umas histórias e nasceram as primeiras canções que seriam depois
compiladas no álbum “Olha a Bola Manel”.
102 Professor Catedrático de Filosofia, foi Reitor da Universidade de Lisboa, entre 1998 e 2006. Deputado ao Parlamento
Europeu (1993-1994), eleito pelo PCP. Autor de vasta obra na área da Filosofia e tradutor para português de obras de Hegel,
Marx e Engels. É também responsável de uma intensa actividade cultural e política como autor e intérprete de canções de
intervenção e também no domínio da canção infantil.
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva, em Maio de 2007.
‹ 171
“Joana come a papa”, foi uma das músicas de maior sucesso, e é uma expres-
são que, ainda hoje, se ouve amiúde, 40 anos depois. Essa Joana existe mesmo
ou é ficção?
A Joana existe mesmo. Na altura, ela era a mais nova do grupo. Eu e a minha
mulher ficávamos com vários miúdos da família em casa durante o fim-de-semana
e sinceramente não era tarefa fácil fazer com que a Joana comesse a papa. Esse foi o
mote para a canção.

O célebre aforismo “a canção é uma arma”, ainda se mantém actual?


O espaço da canção política de intervenção permanece intacto e é fundamental
preservar, já que através do canto de intervenção podemos contribuir para a desco-
berta do mundo, trilhando itinerários conjuntos de transformação da realidade. Uma
vez que a História continua, o olhar crítico sobre ela deve prosseguir. Logo, as formas
estéticas (podem ser musicais ou poéticas) conservam a sua validade.

Como filósofo, como homem de reflexão, de que modo observa o Portugal de


hoje à luz da dimensão dos valores?
Portugal é e será sempre aquilo que os portugueses, nas condições determinadas
do próprio processo histórico, forem capazes de realizar. A construção de um projecto
colectivo de sociedade faz-se através do esforço e do trabalho. Vivemos num mundo
contemporâneo em que as apreensões se avolumam. Paradoxalmente dispomos de uma
panóplia de instrumentos que nos permite tornar a Humanidade mais enriquecida, mas
o que acontece é que somos quotidianamente confrontados com misérias, injustiças e
assimetrias. Portugal não é diferente da realidade que se vive à escala mundial.

Temos um projecto colectivo?


Quando uma comunidade empenha as suas forças na realização de um projecto
colectivo é essa atitude que faz a afirmação de um povo. A questão da soberania, por
exemplo, não deve ser vista como a contemplação do umbigo, mas como uma parti-
cipação activa na criação de grandes espaços. É preciso haver uma participação activa
num diálogo de soberanias, designadamente no quadro da União Europeia. Nesse
contexto, Portugal não pode abdicar da sua afirmação e identidade como povo, da
história e da cultura.

O projecto europeu, rumo a um modelo federalista, pode perigar a soberana


política portuguesa?
O mundo, tal como o temos neste momento, carece do diálogo dos povos, das cultu-
ras e das soberanias. Deve prevalecer a perspectiva de cooperação e construção conjunta e
não de dissolução e submissão aos modelos hegemónicos dominantes. É nessa perspecti-
va que se joga a força, a qualidade e a capacidade estratégica das colectividades.
172 ›
A ratificação de um Tratado Constitucional seria um passo em frente para a
Europa?
Seria um erro estratégico. A força da Europa, desde há muitos séculos, sempre ad-
veio da capacidade de promover, em termos culturais, sociais e políticos, o diálogo das
multiplicidades. Uma solução de tipo estadual/federalista vai seguramente, no imediato
e a prazo, criar obstáculos à promoção de uma Comunidade Europeia dos Povos.

É um “eurocéptico”?
Não. Recuso a dicotomia entre os parolos do deslumbramento e os “eurocépticos”.
O problema, neste momento, está em saber qual é a Europa que nos querem impingir...

Esteve como eurodeputado durante dois anos, no início da década 90. Como
classifica essa experiência?
Foi bastante enriquecedora e permitiu-me somar um conjunto de experiências re-
lacionadas com instituições, pessoas e problemas, que eu considero tiveram um papel
decisivo, inclusive na minha própria formação.

Passaram 33 anos sobre a revolução de Abril e há poucas semanas voltou a


questionar-se a vitalidade das comemorações de datas históricas e de simbolismo
nacional. É da opinião que o espírito da revolução murchou?
Um processo revolucionário não acontece num só dia ou num determinado mo-
mento. É uma alavanca de uma determinada etapa histórica na vida das sociedades.
É inegável que o 25 de Abril não resolveu nem apagou parte das contradições que
cruzavam a sociedade portuguesa, mas também é verdade que posicionou a sociedade
portuguesa num campo de desenvolvimento completamente diferente. É com alguma
tristeza que vejo que querem apagar e reescrever completamente a História. Até parece
que entre o tempo de Salazar e o tempo actual não subsistem diferenças, até de natureza
estrutural. Não podemos escamotear que muitos problemas persistem e outros, entre-
tanto, emergiram, o que nos deve levar a fazer um uso esclarecido e firme da liberdade
que, felizmente, desfrutamos.

Pensa que há tentativas para reescrever a História?


Completamente. Não se trata de um fenómeno exclusivamente português. Este pro-
cesso tem origem no final da II Guerra Mundial, através de tentativas mais ou menos
assistidas de promover branqueamentos do fascismo.

A polémica em torno do concurso “Os Grandes Portugueses”, que concluiu


com a vitória de Salazar, é um exemplo do que está a denunciar?
Para começar, foi um macaqueamento de um formato que nem sequer foi inven-
tado em Portugal. No que diz respeito à vitalidade criativa de um canal de televisão
‹ 173
público, esta importação do tipo “chave na mão”, é algo bastante confrangedor. Para
além disso, nem a História é feita de uma sucessão de grandes homens, nem este con-
ceito tem uma extensão tão universal como aquela, que de forma ligeira e precipitada,
se quis passar ao grande público. A concepção que sustenta e lança este concurso é
bem mais grave do que o seu resultado final.

Pensa que os média podem ser “domesticados” pelo poder político?


Independentemente de saber se determinado artigo foi encomendado por A ou B, im-
porta realçar que os média fazem parte de um dispositivo de aparelhos ideológicos e, nesse
sentido, a gestão da difusão de opiniões e perspectivas é uma matéria central na luta ideoló-
gica. Atente no seguinte: hoje procura passar-se a mensagem do esbatimento das ideologias,
por esta ser uma das componentes de uma determinada maneira de travar a batalha ideoló-
gica, desvalorizando e apagando coisas tão fundamentais como as ideias, os pensamentos e
os projectos de transformação, etc.

Um dos temas recorrentes é a qualidade dos políticos que nos governam. Concor-
da que a lógica dos aparelhos partidários evita que os melhores cheguem e se mante-
nham na política?
Não considero justas certas observações ao desempenho dos partidos. Há críticas que
visam atirar pela borda fora a possibilidade de os cidadãos livremente se organizarem e ac-
tuarem no quadro de um associativismo em que possam integrar os partidos. Dispenso-me
de comentar os “fait-divers” e se fulano é competente ou aldrabão, mas considero que numa
democracia madura, informada e participada é extremamente importante uma actividade
política com profissionalidade, mas que seja também assumida, por pessoas que tenham
experiência, enraizamento e compromisso com os diversos sectores da vida social.

Defende então os profissionais da política?


Acho que a política não deve ser exercida com amadorismo, mas haverá mais con-
sistência se a função da tarefa política for sendo desenvolvida e protagonizada pelos que
integram a própria colectividade. A política é demasiado séria para ser deixada nas mãos
de políticos cujo horizonte de vida não transcende o exercício dessas funções. De uma
vez por todas, a democracia deve ser vivida, praticada e conduzida por cidadãos e não por
“soi-disant” especialistas.

Numa das raras entrevistas que deu ao “Expresso”, em 2005, afirmou, en-
quanto Reitor da UL, que «temos dinheiro a menos há anos». Havendo dinheiro
para tantos projectos nacionais, sejam eles de âmbito desportivo, aeroportuário
ou turístico, entende que o poder político secundariza o ensino superior?
É preciso perspectivar o debate a partir deste princípio basilar: compreender o
ensino superior público e contribuir para promover uma formação qualificada dos
174 ›
membros que integram a colectividade politicamente organizada, é uma responsabi-
lidade do Estado.

Mas é sabido que “não se fazem omeletas sem ovos”...


Efectivamente os problemas do ensino superior não se resumem à falta de di-
nheiro, mas radicam igualmente na qualidade e no rumo do projecto delineado.
As instituições são demasiado grandes e têm responsabilidades tais no domínio do
ensino, investigação e irradiação cultural. Como tal, é preciso criar orçamentos de
base plurianuais, em função das prioridades do Governo em funções. Estamos a
assistir a uma debilitação da base material, e por arrastamento dos recursos huma-
nos, em termos do funcionamento de instituições com uma insubstituível missão e
responsabilidade social.

As universidades privadas foram sacudidas recentemente pelo escândalo da


Independente. O caso em concreto revela que o Estado não tem zelado com o
rigor exigível para o sector não público?
O sector privado tem que se reger por elevados padrões de exigência e qualidade
e o Estado tem que ser capaz de intervir no sentido de assegurar que esses níveis são
respeitados. Situações desagradáveis e lamentáveis como esta deviam servir para re-
pensar de modo muito sério como é possível promover a qualidade.

Chamar às universidades de um modo geral “fábrica de canudos” significa


que o papel das instituições está desvirtuado?
Uma universidade não é uma fábrica de “encher chouriços”, o mesmo é dizer uma
linha de montagem para o fabrico de licenciados. A parte do ensino é importante,
mas é preciso realçar que não há universidades sem investigação e irradiação cultural.

Em termos de investigação e desenvolvimento continuamos longe dos nos-


sos parceiros europeus?
Há um caminho a percorrer. É um sector chave, já que obriga a fazer dialogar,
cooperar e trabalhar em conjunto, de forma estratégica e prospectiva, não apenas
as universidades, mas também o conjunto da sociedade, o sector produtivo e a
economia, incluídas.

As universidades continuam de “costas viradas” para o mercado de trabalho?


Isso não é objectivamente verdade, mas reconheço que há muito para fazer nessa
área. É preciso ultrapassar o registo da proclamação das boas intenções e procurar as
formas adequadas de operacionalizar e, sobretudo, realizar. O segredo da cooperação
entre universidades e a comunidade reside na capacidade que houver para realizar e
arquitectar de forma projectada e estratégica os objectivos gizados.
‹ 175
Segundo um estudo recente, os portugueses com o 12.º ano ou qualificações
superiores não chegam a milhão e meio. Continuamos a ser um país desigual e
com um défice crónico de qualificados?
Uma das consequências do Liberalismo grassante que nos últimos 30 anos se tem
abatido sobre o nosso mundo e da própria Globalização, é o aumento das assimetrias,
não só entre Estados, mas, sobretudo, no interior dos próprios Estados. É algo que
devia fazer pensar as pessoas com o intuito de atalhar caminhos e procurar respostas.

Encerramento de escolas, violência, abandono escolar e manifestações de


professores, são sintomas do sistema educativo. Concorda que o conceito tradi-
cional de escola está em crise?
A escola está em crise, mas não devemos colocar a questão de forma a alarmar e
paralisar a opinião pública, convencendo-a de que é impossível discernir caminhos
no meio da “selva”.
Mas há que reconhecer que o problema da crise é complicado quando se vive
durante bastante tempo um clima geral de desorientação. Para as instituições a crise
não é má que ocorra, até porque associada a esta está a categoria da crítica, por vezes,
fundamental para dar resposta a contingências difíceis.
Tenho a esperança que as coisas se resolvam, mas este valor (da esperança tra-
balhada), não tem a ver com espera ou resignação, valores que alguns parecem ter
interesse que perdurem. A paciência de nos entregarmos ao combate e integrarmos
um processo de transformação da realidade é o caminho a seguir.

176 ›
Eduardo Lourenço 103

Reduzidos ao capital da memória

O autor do “Labirinto da Saudade” defende que o Estado deve incentivar e privilegiar


os candidatos aos cursos de ciências “exactas”, como forma de criar elites em domínios
onde existem lacunas. Eduardo Lourenço critica o sentimento de “espera” latente nos
portugueses e afirma que falta um projecto colectivo mobilizador ao país. O ensaísta culpa
a Europa pela actual dimensão do imperialismo americano e acusa o presidente Bush de
“construir” o 11-S “ao melhor estilo do cinema de Hollywood”. Sobre a revolução digital,
diz que inaugurou “outro” mundo e dividiu o universo em “informados e info-excluídos”.

O professor vive em França, mas vem com muita regularidade a Portugal.


Como é que observa o país, actualmente, à luz da integração europeia?
Portugal e os portugueses vivem num esquema europeu e o próprio “Velho Con-
tinente” está envolvido num ciclo mais vasto, que é global. As distâncias inter-euro-
peias são menores, tanto fisicamente como simbolicamente. Logo, é através da pers-
pectiva europeia que os portugueses vão resolvendo os seus problemas. E é preciso
não esquecer que os efeitos dessa nova proximidade são enormes.
103 Professor, filósofo, analista político e social, crítico e ensaísta literário. Foi Leitor de Cultura Portuguesa, entre 1953 e
1955, na Alemanha (Hamburgo e Heidelberg), exercendo a mesma actividade na Universidade de Montpellier (1956-1958).
Após um ano passado na Universidade Federal da Bahia, como Professor Convidado de Filosofia, passou a viver em França
a partir de 1960, fixando residência em Vence, em 1965. Foi Leitor na Universidade de Grenoble (1960-1965) e Maître
Assistant na Universidade de Nice (1965-1987), onde passou a Maître de Conferences (1986-1988) e a Professor Jubilado
(1988). Recebeu por essa altura, o Prémio Europeu de Ensaio Charles Veillon (1988), pelo conjunto da sua obra. Membro
(não executivo) do Conselho de Administração da Fundação Calouste Gulbenkian.
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva, em Julho de 2007.

‹ 177
Esta integração europeia consegue atenuar o sentimento de crise latente?
Portugal é um dos espaços públicos menos problemáticos na cena europeia,
mas está acometido por uma sensação de espera directamente decorrente do im-
passe em que se encontra o projecto europeu. A Europa está politicamente sus-
pensa e seria desejável que retomasse rapidamente a sua marcha. Espero fran-
camente que os 6 meses da presidência portuguesa da União Europeia sejam
profícuos, para evitar este estado de imobilismo do processo europeu, orientado
o rumo no sentido da construção.

A nível interno, não acha que o sentimento de messianismo nunca nos


abandonou desde a batalha de Alcácer-Quibir?
Sim, esse sentimento está muito presente. A vida política tem as suas normas
próprias. Aqui em Lisboa estamos na véspera de eleições e não se nota um interesse
especial por este acto eleitoral fundamental. Era bom que os cidadãos da capital
do país se mobilizassem para escolher os que vão liderar os destinos desta cidade.

O poder político tem feito tudo o que está ao seu alcance para inverter a
tendência de crise?
O programa deste governo foi alicerçado na preocupação de Portugal não se
atrasar relativamente aos parceiros europeus. O problema do défice é um tremendo
“handicap” que não é de agora, é de sempre.

O défice é a raiz de todo o mal?


O problema é mais fundo. Portugal não tem neste momento um projecto co-
lectivo mobilizador. Não quer dizer que ele não exista, na teoria, mas, pelo menos,
não está em marcha. E o governo pode ter pecado por não ter explicitado de forma
visível esse projecto. Por isso, a opinião pública aguarda e espera por um aconteci-
mento que a mobilize. Enquanto isso, permanece na expectativa.

É essa passividade que nos vai matando aos poucos?


Há alturas em que os países parece que estão parados e, de um momento para
o outro, tudo se altera. Veja o que aconteceu nas presidenciais francesas quando,
do dia para a noite, se alterou a ideia, que a Europa em geral tinha, que a socieda-
de gaulesa estava em declínio e de costas voltadas para os problemas do seu país.
Mais de três quartos da população foi a votos. Isso mobilizou toda uma nação
e a França emerge, de novo, plenamente consciente das suas responsabilidades
enquanto nação europeia. É evidente que Portugal não tem a força e o ânimo que
a França demonstrou, mas tem a sua palavra a dizer em matéria de construção
europeia. Os próximos 6 meses poderão ser decisivos para o projecto e também
para a nossa imagem.
178 ›
No seu livro “O Labirinto da Saudade”, diz que não se aproveitou o fim do im-
pério colonial para repensar Portugal. Está por realizar esse exercício de reflexão?
Muitas vezes pensamos que as grandes questões que nos atormentam se resolvem
por si mesmas. Muitos esquecem, que de um dia para o outro perdemos um império
com 500 anos de existência e foi durante esse período que se desenhou o horizonte
normal da inscrição do nosso povo no mundo. Quando o império se esfumou, ficámos
reduzidos à nossa porção europeia e ao capital de memória como país colonialista.

Quer dizer que o fim do império não foi psicologicamente ultrapassado pelo
colectivo?
O fim do império significou um traumatismo natural. Fizemos luto, embora silen-
cioso, durante a própria guerra colonial, que foi, em si mesma, um absurdo. Ficar livre
desse pesadelo histórico, que foi a guerra, não deixou ninguém indiferente. Quando
os colonizados tomaram consciência da sua situação e reivindicaram a sua autonomia,
Portugal entrou em contradição profunda consigo próprio. Mas é bom notar que não
fomos o único país da Europa que não resolveu positivamente o seu trauma colonial.
Estamos a pagar as contas normais de todas as colonizações que, ao contrário do que se
possa pensar, não são eternas. O caso da França relativamente à Argélia, por exemplo,
e comparativamente com Portugal, foi extremamente traumático, pois os gauleses sem-
pre pensaram que esta colónia lhes iria pertencer para sempre.

O 25 de Abril correspondeu a um marco de viragem e de esperança. Três dé-


cadas depois somos um dos países que mais desigualdades apresenta. Não acha
isto incongruente face aos objectivos fundadores da revolução de 1974?
Essa leitura é parcialmente verdadeira. A perspectiva revolucionária significou uma vi-
ragem que durou 1 ano, não mais. O que se passou foi o seguinte: Portugal viveu a aurora
revolucionária em 1974 num momento que coincidiu com a crise de um longo ciclo revo-
lucionário moderno que tinha sido inaugurado pelo movimento bolchevique em 1917 e
que teria o seu epílogo com a implosão do império soviético e a queda do Muro de Berlim.
Seria desejável que o ideário que acabou por triunfar, tivesse deixado traços e
exigências mais fortes no que diz respeito às conquistas e garantias no âmbito das
igualdades sociais.

Foi a conjuntura internacional a impedi-lo?


Uma nação tão pequena como a nossa, não podia escapar à onda vertiginosa de
neo-liberalismo à qual, aliás, nenhum país consegue escapar. As perspectivas utópi-
cas revolucionárias de hoje em dia só podem ser cultivadas por países que ainda não
atingiram níveis democráticos mínimos.
Nestes 30 anos, Portugal reajustou-se a si mesmo, depois do interregno de um
longo regime não democrático de quatro décadas.
‹ 179
A maioria dos cidadãos elegeu Salazar como o maior português. Tratou-se de
um concurso irrelevante ou assistimos a uma manifestação de saudosismo de
(alguns) portugueses?
As pessoas não atribuíram a esse concurso o interesse político devido e reduziram o
episódio a uma espécie de jogo. Creio que estamos perante um fenómeno mais importante
do que muitos julgam. E pela negativa.

Atribui estes resultados a uma mobilização espontânea ou concertada?


Houve uma mobilização de pessoas, planeada ou não, que entenderam que Salazar foi
a figura mais importante de sempre. É verdade que já antes se tinha dito que o antigo Pre-
sidente do Conselho tinha sido o português do século XX, o que me parece incontestável,
mas neste caso estávamos perante a análise de toda a História de Portugal.

Encontra explicação para o facto de o seu amigo Mário Soares não figurar nos 10
primeiros lugares?
Os portugueses não têm perspectiva histórica temporal vivida para estar a julgar perso-
nagens de época distintas e recuadas no tempo e mesmo outras que lhes são mais familiares,
por estarem mais próximas cronologicamente. A Cultura, a Literatura e o Ensino português,
não dão uma atenção tão forte às personalidades mais antigas da nossa História.
Salazar, quer se simpatize com ele ou o odeie, é uma personalidade conhecida, mas
beneficiou de estar próximo da memória dos portugueses. Os que votaram em Salazar con-
sideram um acto de justiça para o esquecimento a que votaram o ditador. Por seu turno,
os adversários do Estado Novo — não se deram por vencidos e desvalorizaram uma vitória
póstuma do salazarismo. Nesta perspectiva, o país dividiu-se.

Regressando à actualidade, como interpreta que as figuras simbólicas do Portugal


moderno estejam ligadas ao futebol, casos de Cristiano Ronaldo e José Mourinho?
Vivemos na sociedade do espectáculo e da publicidade em que vender imagens é a preo-
cupação quotidiana. O grau de celebridade dos nossos treinadores e jogadores é doméstico,
europeu e mundial. Mas acho que esta projecção representa uma mais-valia para nós. O
Brasil tem os seus jogadores espalhados por todo o mundo, que são estrelas de primeira
grandeza neste domínio. Mas, como país de uma dimensão e riqueza inigualável, nem pre-
cisa de publicidade. Nós, pelo contrário, estamos bem carenciados de alguma promoção...

Acredita, como o escritor francês Vítor Hugo pressagiou, que teremos algum
dia «os Estados Unidos da Europa que coroarão o Velho Mundo da mesma for-
ma que os EUA coroam o mundo novo»?
Possível é, mas só ao fim de muitos anos. Nem daqui a 100 anos teremos uma
Europa federal, os tais Estados Unidos da Europa. A menos que estale um grande
conflito no “Velho Continente”. A Europa inventou um conceito muito particular
180 ›
de nação e essa dimensão que fala é um cenário limite, já que não há, até ver, outra
expressão política tão auto-reguladora e tão eficaz. Como a Europa é um conjunto de
nações, não sente qualquer necessidade de ultrapassar a dimensão que tem, ou seja
ser uma super-nação.

A Europa tem condições para ser uma super-nação?


Uma super-nação pressupõe uma nação que federa as outras e a história europeia
é feita de milhares de anos e feita também de inúmeros exemplos que contradizem
esse conceito. Cada uma das grandes nações europeias, a Espanha, a França, a Alema-
nha, a Rússia, tentou ser Europa e nenhuma conseguiu. Isto é um sonho do Império
Romano e que não cobria propriamente todo o espaço europeu. O paradigma de uma
Europa federal do ponto de vista militar, financeiro e político, parece-me inviável.

As resistências dos países escandinavos, a recusa da Inglaterra em aderir


ao euro e do «não» em França e Holanda ao Tratado, são sinais de uma Europa
dividida?
Evidentemente. Por exemplo, a Inglaterra nunca se reviu em qualquer outra coisa
que a subordinasse. Ela foi o primeiro império moderno de âmbito universal durante
quase 150 anos.

Como será o futuro da Europa, partindo do princípio que não haverá ne-
nhum conflito fracturante?
Um processo longo e uma coexistência de nações, salvaguardando as identida-
des culturais.

Não é propriamente um adepto da administração republicana. Que legado


deixa Bush quando abandonar a Casa Branca, no final de 2008?
Este não foi um mandato tradicional. O 11 de Setembro transformou toda a visão
e a prática da política americana. George W. Bush entendeu que o ataque às “Torres
Gémeas” seria uma oportunidade única de os americanos expandirem, a níveis nunca
vistos, o seu imperialismo. Os europeus contribuíram, ouso dizer que foram os gran-
des culpados, para os americanos terem vestido esse manto imperialista.

O facto de os americanos serem considerados os “polícias do mundo” é res-


ponsabilidade da Europa?
A culpa do imperialismo americano é de toda a Europa. Fomos nós que chamá-
mos os americanos para que nos defendessem na I Guerra Mundial e, na II Guerra,
nem se fala.
Estão a celebrar-se os 60 anos do Plano Marshall, período em que a Europa atra-
vessou um estado de impotência política, económica, financeira e organizacional e
‹ 181
essa ajuda foi uma espécie de auxílio de um pai que quando vai arrumar a casa do
filho, acaba por lá ficar.

Não está a revelar algum anti-americanismo?


Estou bem longe de ser um anti-americano, sou é bastante crítico do comporta-
mento da Europa durante praticamente todo o século XX: a Europa revelou uma pos-
tura suicidária durante as sucessivas lutas intestinas que atravessou. Esteve à beira da
auto-destruição nos dois conflitos mundiais e, passado esse momento apocalíptico,
recuperou, fruto do Plano Marshal, reorganizou-se face à ameaça soviética, por um
lado, e , por outro, encetou o processo de construção europeia. Por isso, se a Europa
e os europeus têm de se queixar de alguém, é deles próprios.

Uma vitória do partido democrata nas presidenciais de 2008 nos EUA pode
significar um novo relacionamento entre Washington e a Europa?
Cada vez que a presidência da Casa Branca muda, a relação com o “Velho Conti-
nente” também se altera, ganhe o partido republicano ou democrata.

A dinastia Bush na presidência americana pode ter sequência?


O caso Bush está encerrado. Não haverá um Bush III. A actual administração já
suavizou o seu comportamento. Uma coisa é certa: já não é possível continuar na
lógica do 11 de Setembro. Está esgotada. O atentado não foi inventado, mas a sua
leitura foi adulterada e a chantagem feita ao resto do mundo, como que se pairasse
uma ameaça apocalíptica sobre o EUA, foi inadmissível. O 11-S foi construído vo-
luntariamente pela administração Bush ao melhor estilo do cinema de Hollywood.

O ensino é sempre um sector com muita turbulência. Os investimentos não


geram os resultados práticos consequentes. Encontra motivos?
Será verdade? Tenho as minhas dúvidas. Mas a verdade é que Portugal sem-
pre teve um grande handicap em termos educacionais e andámos permanen-
temente a reboque dos diversos progressos que se faziam nos outros países
europeus, que nós tomámos por modelo. Mas lentamente, fomos acompanhan-
do, o que se fazia. Mas, é um facto, mantemo-nos distanciados dos países mais
dinâmicos nesse domínio.

Teríamos a ganhar se perfilhássemos o «modelo irlandês»?


Para começar, acho que é prioritário obter resultados no domínio das ciências
exactas em detrimento do saber cultural puro e humanístico. De pouco vale ter mui-
tos milhares de formados em História. Se investíssemos em cursos e nas disciplinas
relacionadas com as ciências exactas, menos procuradas pelos estudantes, provavel-
mente os resultados globais do ensino seriam melhores.
182 ›
Defende algum tipo de incentivos aos que sigam essas áreas?
Penso que devem ser concedidos privilégios e incentivos aos que optem por en-
veredar pelos caminhos mais difíceis e menos procurados. Saber mais literatura ou
poesia, em suma matérias sobre humanismo e cultura, é saudável para o aperfeiço-
amento pessoal, mas pouco aporta para as necessidades reais e quotidianas de um
país. Faço um apelo para que se promovam cursos de ciências exactas, onde temos
imensas carências, em detrimento do cursos de “caneta e papel”, actualmente em
maioria. Para ter elites nesses domínios é preciso fazer algo e o papel cabe ao Estado
e aos estabelecimentos de ensino.

A Internet e a Web 2.0 são realidades indiscutíveis que roubam, todos os


dias, terreno aos jornais, à rádio e, também, à televisão. Como caracteriza esta
vertiginosa era dos blogues, do You Tube, do Hi5 e do Second Life?
Estamos perante meios de informação, no sentido lato do termo, completamente
novos. É uma revolução que já começou e com consequências incalculáveis. Mudá-
mos de paradigma e eu diria mesmo que já estamos “noutro mundo”. Eu, por ser
de outra geração, estou fora desse “mundo”. Preocupa-me o excesso de informação
disponível e, de futuro, o segredo residirá na capacidade de gerir esta funcionalidade
e evitar os perigos e malefícios que ela encerra, como a pedofilia, etc. Estou em crer
que o controlo será decisivo.

Como é que a actual geração deve lidar com estes meios?


A utilização destes meios vai colocar problemas específicos. A utilização é, para já,
passiva. Mas o salto será dado na quantidade de informação difundida. Os períodos
actuais que vivemos só são comparáveis, observando outras rupturas do passado,
com a invenção da imprensa por Gutenberg, que dividiu a Humanidade em duas: os
que lêem e os que não sabem ler. Agora, o combate é travado entre os informados e
os info-excluídos.

‹ 183
Nuno Crato 104

Difícil é educá-los

É uma espécie de iconoclasta das teses oficiais veiculadas pelos teóricos do sistema
educativo. Nuno Crato defende um investimento mais eficiente no sector, a redução do
peso do Ministério da Educação e o reforço da avaliação de professores e alunos. O presi-
dente da Sociedade Portuguesa de Matemática é da opinião que a calamidade a que che-
gou o ensino no nosso País radica nas “falhas” que ocorrem desde o início da escolaridade.

Quais os erros mais graves que foram cometidos no ensino nos últimos 30 anos?
Há várias décadas que se cometem erros, mas creio que os mais graves ocorre-
ram na década de 80. A formação de professores não foi suficientemente cuidada,
desleixou-se a qualidade dos manuais, os programas começaram a ser facilitados, as
orientações pedagógicas não foram as adequadas. Creio que os aspectos de orientação
pedagógica são dos mais importantes no ensino, mas há outros assuntos como a or-
ganização, horários, promoção de professores, etc., em que se falhou redondamente.

Como explica o fenómeno da indisciplina dentro e fora das salas de aula?


Há problemas sociais de fundo. Mas a escola não fez tudo o que poderia ter feito.
As orientações do Ministério chegaram a dificultar a acção disciplinadora dos professores.
104 Professor Universitário e Presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática, é um matemático e estatístico português que
tem tido uma extensa actividade de divulgação científica. É membro de painéis de discussão na televisão e na rádio, intervin-
do regularmente no debate sobre o ensino. Em 2008 foi agraciado pelo Presidente da República com o grau de Comendador
da Ordem do Infante D. Henrique. Em Junho de 2010 foi nomeado presidente executivo do Taguspark
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva, em Outubro de 2007.

‹ 185
É claro que disciplinar uma turma não é condição suficiente para que os estudan-
tes aprendam, mas é, certamente, uma condição necessária. Se a turma tiver discipli-
na e houver respeito pelo professor é possível trabalhar e aprender. Caso contrário,
tudo isto deixa de ser exequível.

O estado do sector é, na sua opinião, “calamitoso”. Que responsabilidades


devem ser atribuídas aos políticos?
O estado a que chegámos na educação é um problema político, há responsabilida-
des políticas de todos os sectores e é necessário fazer correcções na política educativa.

Costuma dizer que a concentração e o esforço são pouco valorizados, mas


não é o sistema educativo o espelho da sociedade que temos?
Sem dúvida, mas quase tudo é o espelho da sociedade. Creio contudo que essa imagem
reflectida pode ser mudada, aumentando o respeito que a sociedade deve ter pelo saber.

Insurge-se contra a cultura do facilitismo instalada. Como alterar essa lógica


e a quem atribui as maiores culpas?
Mais uma vez não posso deixar de apontar o dedo aos políticos. Durante bastante
tempo transmitiu-se a ideia que a escola tinha de ser, sobretudo, um local lúdico. E
omitiu-se a ideia que a escola é um local de trabalho e de esforço. Nem tudo é brin-
cadeira na vida e quanto mais cedo os jovens perceberem isso, melhor.

Introduzir o “Big Brother” em programas curriculares é uma forma de tornar


o ensino um espectáculo?
É um dos exemplos extremos. Os programas não devem ser facilitados, simplifi-
cados e descaracterizados. Praticamente em todos os níveis de escolaridade encontra-
mos programas que são uma pálida imagem do que eram há 20 ou 30 anos e do que
deveriam ser hoje. Mesmo nas universidades, aquilo que se aprende nos primeiros
anos de curso nem por sombras se compara com o que se leccionava num passado
não muito distante. A ideia de que a simplificação dos programas se iria traduzir
numa melhor compreensão, não resultou.

O défice educacional tem reflexos na produtividade e potencia o atraso económi-


co, nomeadamente em comparação com os nossos congéneres europeus. Como é que
se resgata Portugal da cauda dos rankings de várias organizações internacionais?
A educação está confrontada com um mundo de problemas. Mas penso que há
alguns que são a chave do estado a que chegámos: a abolição dos cursos técnicos e
comerciais foi um grande erro. Repare-se no próprio abandono escolar, que em parte
cresceu devido ao facto de alguns jovens não encontrarem na escola o caminho para
a profissão que ambicionavam ter...
186 ›
Estamos perante uma falta de vocação dos alunos para certos cursos?
Há muitos jovens que gostariam de ter profissões não intelectuais e prefeririam
ser, por exemplo, carpinteiros, mesmo que a sociedade desvalorize (e não deveria
desvalorizar) essas profissões. Timidamente as escolas vão dando resposta aos an-
seios de jovens que preferem vidas mais técnico-profissionais. Mas isso não pode
querer dizer, mais uma vez, facilitar os estudos ao ponto de nada se estudar, mas
sim, torná-los mais estimulantes, rigorosos e ambiciosos. É falsa a ideia de que os
jovens aderem a fórmulas simplistas na aprendizagem. Os jovens respondem, sim,
quando vêem que estão a ser exigentes com eles e conseguem evoluir.

O processo de Bolonha tem merecido críticas e apreensões. Pensa que é


mais um contributo para facilitar a progressão dos alunos, não exigindo a
qualidade suficiente?
Bolonha é como o euro, uma inevitabilidade. Ao lado das vantagens de incen-
tivo à internacionalização, acarreta alguns problemas. A maneira como está a ser
aplicado nalgumas escolas não é a melhor. Está a desvalorizar-se o primeiro ciclo
e o que eu receio é que daqui a alguns anos, esse ciclo, que é o equivalente ao ba-
charelato ou à licenciatura, se transforme em algo parecido com o que era o liceu
há uns tempos atrás. Bolonha não devia ser encarado como uma simplificação do
ensino ou uma redução da sua exigência. Veremos o que vai ser feito.

No seu livro mais famoso, «Eduquês», ao que parece um vocábulo da autoria


do professor Marçal Grilo, nascido no decurso de uma conversa com teóricos
da pedagogia, denuncia um certo lirismo e laxismo que derrota o rigor e o
esforço. Quer dizer que o ensino em Portugal vive numa realidade utópica?
O subtítulo do livro era “uma critica da pedagogia romântica e construtivis-
ta”. E porquê? Julgo que por detrás do palavreado confuso de muitos teóricos
e ditos especialistas da educação, existem ideias que são perniciosas. São ideias
românticas e utópicas que acreditam exclusivamente na motivação, na expe-
riência directa e no valor puro da vontade, sem perceber que a escola tem de
dirigir e orientar os jovens.

“A imaginação dos técnicos do Ministério e de alguns ideólogos podem


transformar uma boa ideia numa coisa inútil”, foi uma frase que disse numa
entrevista passada. Quer explicitar melhor?
Desde o ministro David Justino, e agora com Maria de Lurdes Rodrigues, notou-
se uma tentativa de contrariar, pelo menos na aparência, o discurso habitual dos
teóricos da educação ou do “eduquês”. Foram tomadas medidas, mas nem sempre
como deveria ser. Muitos dos partidários das tais ideias românticas, acabaram por
desvirtuar as ideias originais e transformar medidas boas em medidas más.
‹ 187
A “dança das cadeiras” dos ministros pelo Ministério da Educação é estonte-
ante. Uns deixaram história, outros nem uma nota de rodapé merecem. Radica
também no Ministério a raiz do mal da educação?
A instabilidade ministerial, as reformas sucessivas e as constantes reorientações no
Ministério são problemas graves. Mas há um ponto que quero ressalvar: existe uma
casta ou uma nomenclatura, um grupo de pessoas que fazem a simbiose entre alguns
departamentos de educação de universidades e escolas superiores de educação e alguns
técnicos superiores do Ministério. Basicamente, essas pessoas estão agarradas ao poder
no Ministério, independentemente dos ministros ou dos governos que estejam no edi-
fício da 5 de Outubro. Muitos ministros têm deixado que as coisas ocorram nas suas
costas, ao sabor destes ideólogos do sistema que controlam como querem o Ministério.

A Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM) queixa-se de ser deixada à


margem dos trabalhos da Comissão de Acompanhamento do Plano de Acção
da Matemática por, alegadamente, ter feito críticas à ministra. É verdade?
Não, isso não é verdade. Mas a SPM não tem sido convidada para várias coisas
decisivas, por exemplo o plano de formação de professores, por exemplo, o Plano
de Acção da Matemática, por exemplo, a reformulação dos programas do Básico. E
é triste que os críticos do estado actual do ensino não sejam convidados para tentar
recuperar o sector.
De há alguns anos a esta parte que se assiste uma divisão clara de opiniões
na educação: uns são críticos e outros favoráveis às orientações que têm vingado
de há 20 anos a esta parte. Os que são favoráveis calaram-se, mas continuam no
poder. Os críticos não se calaram, nem se calam e, talvez por isso, continuam
sem ser tidos nem achados para muitas coisas. O que os partidários do “eduquês”
já não conseguem defender publicamente, porque já caiu em descrédito, conse-
guem depois impor nos corredores dos ministérios, das secretarias e de departa-
mentos de educação.

O descalabro prossegue na performance nos exames de Matemática e Por-


tuguês. Na Matemática, praticamente três quartos chumbaram no 9.º ano e a
Português as negativas duplicaram. Se a motivação não chega, o que fazer para
os alunos assimilarem as matérias?
É urgente traçar, ano a ano, objectivos concretos, relativamente exigentes, mas
ao mesmo tempo, simples. Definir metas por cada ano de escolaridade. O impor-
tante é compreender, mas para isso é preciso dominar conhecimentos básicos, o
que se torna difícil visto que muitos não têm essa “bagagem” por não verem conso-
lidados esses conhecimentos no tempo próprio. Há falhas logo no início da escola-
ridade. Para começar, o programa de Matemática que existe para o ensino básico é
mau e a proposta de reformulação desse programa está longe de ser a melhor.
188 ›
Como comenta o conflito entre professores e Ministério da Educação?
Por um lado, acho que o Ministério tomou algumas medidas importantes, e que
alguns sindicatos reagiram de forma despropositada. Contudo, entendo que houve
uma grande inabilidade por parte do Ministério da Educação na apresentação e apli-
cação dessas medidas. Gerou-se a ideia que os culpados pelo estado actual do ensino
eram os professores e que o Ministério estava a ser atacado apenas por pretender me-
tê-los na ordem. Nada de mais errado. Se quisermos falar de culpados pela destruição
do ensino, temos de falar do Ministério da Educação, que desorganizou o ensino com
uma série de directivas desconexas que de há 20 anos para cá tem tomado.

Os docentes estão completamente isentos de responsabilidades?


Os professores são heróis na batalha da educação e têm sido sujeitos a um enxova-
lhamento injusto. Boas iniciativas que partiram deste Ministério, têm sido manchadas
por uma certa arrogância relativamente aos professores. Provavelmente, existe por
parte de alguns o seguinte raciocínio cínico: como há mais pais do que professores,
uma batalha contra professores ganha mais votos do que os que perde.

Já aqui falámos que falta uma cultura de rigor e avaliação permanente. Pensa
que deve ser aplicada a alunos e extensível aos professores?
Faltam mais momentos de verdade para os alunos e professores. Para os alunos,
praticamente não há exames. Ao longo dos 9 anos têm lugar, apenas, dois exames
nacionais, num universo de dezenas de disciplinas. E esses dois exames apenas valem
para a nota final cerca de 30 por cento. Esta é uma das causas do abandono escolar.
Os jovens arrastam-se durante 9 anos pelos bancos da escola, sem nunca enfrentarem
provas de fogo, e quando finalmente aparecem os verdadeiros testes, muitos desistem.

Quantos exames deveriam existir?


Neste momento, pelo menos mais um momento de avaliação, um exame nacional,
ou no 4.º ou no 6.º ano de escolaridade, ou então nos dois.

É partidário de exames de admissão para a profissão de professor. Porquê?


A SPM defende isso há muitos anos. Muito antes de esta equipa ministerial ter
chegado à 5 de Outubro. É muito importante que na profissão entrem os mais bem
preparados. E onde isso se pode medir com objectividade é no conhecimento que o
candidato a professor tem das matérias que se propõe leccionar. Ora num universo
em que se apresentam candidatos vindos de muitas escolas e com formações muito
desiguais não é justo avaliá-los unicamente pela nota final de curso.
A actual ministra decidiu levar para a frente esse exame de entrada na profissão,
mas vamos esperar para ver no que se baseia essa avaliação. Em nosso entender, deve
centrar-se nos conteúdos disciplinares.
‹ 189
Concorda com o actual modelo de gestão vigente nos estabelecimentos de ensino?
É um assunto em que prefiro não me alongar porque não o conheço bem. Mas sei que
há gestores de escolas actuais muito bons e outros que são maus. O presente sistema de
gestão enferma de vários vícios. Um deles é permitir que em certos estabelecimentos sejam
eleitas pelos professores as pessoas que os que os que os elegem sabem, à partida, que me-
nos problemas vão colocar.

O investimento do Estado na Educação é suficiente para dar frutos?


O Estado investe mal na Educação. E o problema não passa por investir mais, mas
melhor, com mais eficiência. A SPM publicou um livro intitulado “Desastre no ensi-
no da Matemática”, em que um estudo feito por dois economistas portugueses que
trabalhavam na OCDE, conclui que o nosso dinheiro que é aplicado no sector está,
sobretudo, mal aproveitado.

A democratização do ensino gerou uma massiva entrada de alunos no ensino


superior e criou um negócio florescente com a multiplicação de cursos. É legí-
timo afirmar que as universidades se transformaram numa linha de montagem
para “fabricar canudos” de forma rápida?
Há universidades que se transformaram numa “fábrica de canudos”, outras não.
Umas funcionam bem, outras não. Por exemplo, a Universidade Técnica, tem muitos
pólos de excelência espalhados por Lisboa.

O muito falado escândalo da Universidade Independente feriu o ensino su-


perior de uma forma geral?
Foi nocivo para a imagem do ensino, mas é corrigindo os erros que se progride.
A longo prazo, a atenção que se dá às universidades e o grau de exigência que delas
se requer será sempre maior. Estou em crer que as universidades privadas têm sido
muito penalizadas com críticas desta natureza, tendo-se passado um bocado a ima-
gem de que são os maus da fita. Quando não é assim. O ensino pode ser bom ou
mau nas públicas, o mesmo acontecendo nas privadas. As privadas têm até, muitas
vezes, demonstrado mais capacidade de iniciativa do que as públicas, que, não
raro, denotam um certo imobilismo. Penso que precisamos de boas universidades
privadas, mais que não seja para fazer concorrência ao sistema público.

Esteve 12 anos nos Estados Unidos, em Delaware e New Jersey, tendo co-
nhecido de perto as universidades norte-americanas. Se pudesse, o que é que
“importava” do sistema americano?
A flexibilidade, a concorrência e a avaliação constante de professores e alunos no
sistema de ensino, por exemplo. O trabalho sério. Também seria bom transportar as
condições das universidades privadas e escolas básicas americanas para o nosso País.
190 ›
Assiste com apreensão à “fuga de cérebros” e investigadores nacionais para
o estrangeiro?
A internacionalização é positiva. A ciência é global. Creio que os jovens portu-
gueses que emigram e se fixam no estrangeiro constituem uma oportunidade para o
País. Mas mais do que estarmos preocupados com a fuga de cérebros, devíamos criar
condições para que os nossos compatriotas e os estrangeiros desenvolvessem ciência
em Portugal.

O Presidente da República trouxe o tema educação para agenda no seu dis-


curso do 5 de Outubro. Um pacto de regime entre os dois partidos pode ser um
caminho a seguir?
Depende da natureza do acordo. Se os dois maiores partidos decidirem conferir
maior estabilidade e avaliação ao sistema e maior atenção aos conteúdos disciplina-
res, então seria um entendimento bem-vindo. Mas os dois maiores partidos têm sido,
também, os que mais erros têm feito na educação.

Se fosse ministro da Educação por um dia qual a primeira medida que tomava?
Abrir as janelas da 5 de Outubro, para entrar ar fresco...

Está a deixar nas entrelinhas que é preciso uma “limpeza”?


São precisas caras novas no ensino e na orientação do ensino. A todos os níveis.
Vejo com apreensão que não se verifique renovação de professores. É fundamental
que quando o sistema reabra, os professores admitidos sejam os melhores, os mais
aptos e não os que tiveram a nota mais alta no curso. A próxima geração de professo-
res tem de ser organizada em função do seu mérito. Depois, há outro ponto essencial:
é preciso retirar o peso do Ministério da Educação. É preciso menos Ministério, me-
nos legislação, menos controle e mais liberdade para as escolas, mais descentraliza-
ção, mas acompanhada de responsabilidade e concorrência.

‹ 191
Carlos do Carmo 105

Portugal deveria fechar uma semana para balanço

Carlos do Carmo diz que já não tem idade para ser destrutivo, mas recusa
calar-se perante o que os seus olhos vêem. A referência maior do fado português
aponta uma boa quota-parte das falhas do País às elites e aos políticos, afirma que
a concentração de riqueza está a ficar desumana e refere que não há professor que
resista à desagregação da instituição familiar e dos valores que esta transmite. O
fadista, que eternizou «Lisboa Menina e Moça» lamenta ainda que os desígnios da
felicidade moderna sejam canalizados para a compulsão consumista, sublinhando
que existe nesta sociedade «faz de conta» em que vivemos, muita modernice a
disfarçar a crueldade.

Em Portugal a cultura é tratada como um parente pobre?


Já não tenho idade para ser destrutivo. Sei que em Espanha a cultura vai a par
da economia, é uma grande prioridade. Quem sabe se isso não é um dos motivos
para a afirmação espanhola e para a sua grande auto-estima. Em Portugal há coisas
muito boas, mas seria necessário articular vontades.

105 É uma figura incontornável da cultura portuguesa. Comentador, crítico, cantor e intérprete de fado. É cidadão honorário
do Rio de Janeiro, membro de honra do Claustro Ibero-Americano das Artes, e recebeu um diploma do Senado de Rhode
Island (Estados Unidos) pelo seu contributo para a divulgação da música portuguesa. Foi-lhe atribuído o Globo de Ouro de
Mérito e da Excelência, o Prémio Consagração de Carreira, da Sociedade Portuguesa de Autores, a Comenda da Ordem do
Infante D. Henrique e o Prémio Goya, em Espanha.
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva, em Julho de 2008.

‹ 193
Sente que existe qualidade, mas o país está paralisado?
Vou dar-lhe (mais) um exemplo prático. No passado dia 25 de Abril actuei na Guarda,
num teatro de grande qualidade, com uma excelente acústica. Estas coisas estão a acon-
tecer. Mas é preciso programar teatros, fidelizar públicos, a concertação dos agentes do
sector, subordinando a actuação a uma estratégia. A cultura é como o ar que respiramos.

A que motivos de orgulho devemos agarrar-nos?


Somos mais de 10 milhões, dos quais 5 milhões vivem fora do espaço físico portu-
guês, como emigrantes, o que talvez converta Portugal num dos países mais fracturados
da Europa. Chega o verão e há uma festa colectiva neste país quando os emigrantes
retornam e que redonda numa grande tristeza quando acaba o mês de Agosto. Quando
se fala de emigrantes as pessoas olham por cima do ombro quando eles são os grandes
heróis dos nossos dias. Foi comovente ver a lição de amor à pátria que eles deram no
Euro 2008. Devia haver um pouco mais de respeito pelos portugueses que vivem fora
de Portugal. Somos esbanjadores com as riquezas que possuímos. Levei anos da minha
vida a cantar para eles e não os posso esquecer: foram eles que me projectaram para as
grandes salas.

Dados recentes indicam que um quarto dos portugueses é pobre. Como vê o


crescimento galopante das desigualdades?
Há seis meses, na «Grande Entrevista» da Judite de Sousa, na RTP, alertei para isso.
Um artista lida com todo o tipo de pessoas: desde o capitalista que o contrata para um
espectáculo, até à pessoa mais simples que o vai ouvir no sítio mais longínquo. São
essas pessoas que desabafam e essa «sondagem» que tenho feito pelo país real, permite-
me, de algum tempo a esta parte, perceber as dificuldades por que muitos portugueses
passam. Eu não fico indiferente a isto. Lamento profundamente. Apetece-me usar uma
frase, algo drástica, mas cada vez mais verdadeira, do meu amigo José Saramago: «O
homem não tem cura».

Fica revoltado ao assistir ao aumento do fosso entre ricos e pobres?


A concentração de riqueza em Portugal está a ficar desumana. Depois as pes-
soas ficam indiferentes ao sofrimento alheio. E, pior do que isso, ficam respal-
dadas por esta globalização que me faz lembrar uma grande vaga que traz água
salgada muito boa, mas que vem carregada de detritos que vão dar à costa e que
fazem mossa. Tenho esperança que a potência mundial que é os Estados Unidos,
que é por onde passa tudo, a partir de Novembro, com a nova liderança, mude o
rumo do mundo. A degradação financeira, energética e alimentar é muito feia e
resultado, sobretudo, da ganância.
É insuportável saber que cerca de cinco dezenas de famílias são detentoras de
aproximadamente 40 por cento da riqueza mundial. O Homem tem que saber dar a
194 ›
volta à situação. Não é digno falar-se em democracia, enquanto tanta gente morre à
fome. A palavra democracia está maltratada, em todo o mundo.

O exercício da democracia está a atravessar uma crise?


Quando me falam em liberdade eu digo: «Liberdade em quê? Votar?». Sim, mas
não chega. É preciso reforçar o espírito de cidadania, ser mais exigente com as elites,
que falham muito. No fundo falhamos muito, em todos os sectores. Portugal devia
fechar uma semana para balanço. Devíamos fazer alguma introspecção: o que somos
capazes de fazer? O que já fizemos de bom? E depois de reflectir, arregaçar as mangas
e ao trabalho. Nos somos capazes, Santo Deus. Cruzo-me diariamente com gente
muito competente e cruzo-me também com gente muito medíocre, mas o problema
é que são os medíocres que mandam...

Porque é que diz que Portugal é um país que ainda está em amadurecimento
democrático?
Não se esqueça que não há muito tempo Salazar ganhou um concurso televisivo.
Isto só é possível porque a democracia está carente. Há muitos saudosos da fome,
da guerra, da ignorância, da PIDE, da censura e das terras sem luz e água. É uma
minoria, é certo, mas não deixa de ser pouco lúcido. As pessoas esquecem-se que a
democracia dá muito trabalho e responsabiliza. Na ditadura há alguém que pensa por
nós, enquanto na democracia temos de pensar todos e nunca ver como inimigo os
que não pensam como nós. Infelizmente, nalguns casos, na sociedade actual, quem
decide são os «filhotes» do Salazar que ocupam lugares de decisão.

O sistema do Estado Novo não foi completamente expurgado da nossa sociedade?


Não se expurgam 50 anos de ditadura em 33 anos de democracia. São três gera-
ções. As pessoas deviam ser intervenientes civicamente mas instalou-se, de novo, o
medo. Teme-se dar opiniões. Existe o temor de represálias. Devemos todos fazer um
esforço para tentar ser mais livres e evitar transmitir rancores e mágoas aos nossos
filhos. Nós somos capazes. E prova disso é que quando nos metemos a sério em algo
fazemos bem. E insisto: o defeito está nas elites.

Porquê essa sua insistência?


Se o operário português é excepcional dirigido noutros países porque é que ele
não é excepcional em Portugal? O defeito não está no operário.

Que quota-parte de responsabilidades tem a classe política no país adiado


que somos?
Com algumas excepções pontuais, os partidos políticos falam para dentro de si
próprios. Deixaram de comunicar ou comunicam mal com a população. Também
‹ 195
deviam fechar um tempo para reflectir sobre isso. Não é possível fazer democracia
sem partidos políticos capazes.

Faltam líderes políticos com visão estratégica?


Temos gente interessante em Portugal que recusou cargos políticos, uns por-
que optam pelo dinheiro e outros porque não se querem incomodar. Há políticos
que têm o sentido de serviço público, mas o problema é que ficam diluídos. Um
amigo meu alemão que esteve a passar férias em Portugal fez a seguinte análise:
«vocês falam demasiado de vós próprios». Ele fez, em poucas palavras, a descri-
ção exacta.
Os profetas da desgraça que escrevem todos os dias nos jornais não deixam
pedra sobre pedra. Fica tudo no chão. Para eles, nada de bom aqui acontece. O
país está a duas velocidades, mas não estamos no quarto mundo. Os acertos e as
correcções não podem ser feitas lendo um jornal com colunistas pessimistas que
nos fazem encharcar um lenço de lágrimas.

Juntamente com a Justiça, o estado da educação é responsável pelos blo-


queios que o país sofre?
Subscrevo. Sou um homem de esquerda e gostaria que a esquerda reconhe-
cesse que em termos de educação cometeu grandes erros. Precisa emendá-los. Na
Justiça têm de ser feitos acertos. Há um sentimento de um Estado dentro de outro
Estado. Os portugueses sentem-se injustiçados, começam a perder a esperança,
porque se a Justiça não funciona o que é que pode funcionar?

O sistema educativo tem estado sujeito a várias convulsões, desde mani-


festações de professores, violência escolar, etc. Esta instabilidade, aliada à
escassa exigência, permite formar jovens com valores?
Vou contar-lhe uma história com uma lição muito prática, que se passou há
pouco tempo, e que responde ao que me perguntou: fui almoçar com a minha
mulher e uns amigos a Sobral de Monte Agraço. Numa mesa próxima estava um
casal jovem, com muito bom aspecto, e duas crianças. Os pequenos, pré-adoles-
centes, levantaram-se. Ao regressarem ao restaurante quase chocaram com a mi-
nha mulher e uma amiga que tinham ido fumar à rua. Nem uma palavra houve. A
minha mulher deu-lhes uma leve e pedagógica advertência pelo acto. Fiquei aten-
to à reacção dos pais e só ouvi isto da boca deles para os miúdos: «não liguem!».

A família não deu o exemplo...


Não há professor que resista a isto. Toda a vida a educação começa em casa.
Não é a globalização que vai mudar isso. Porque estes mesmos pais são bem ca-
pazes de ir à escola bater num professor.
196 ›
Está apreensivo com a falta de referências dos nossos estudantes?
Só espero que esta civilização não acabe com a função de os pais educarem os
filhos. A escola hoje é o espelho da violência doméstica, que não é só exercida através
do murro e do estalo, mas da coacção psicológica e do modo como se relacionam as
pessoas. Vivemos na era do vazio. A televisão determina os relacionamentos familia-
res. Depois de um dia de escola e de trabalho, o serão está condicionado por um jogo
de futebol, uma novela ou um telejornal. Os desígnios de felicidade foram projecta-
dos para a compulsão do consumo de telemóveis, televisões e automóveis, única e
exclusivamente para impressionar amigos e vizinhos. Vivemos uma situação de «faz
de conta». Isso fará as pessoas felizes? O que ganharão os seus filhos com isso?

Pensa que alguns pais, por falta de apoio que dão aos filhos no dia-a-dia, se
sentem na obrigação de «comprar» os jovens?
Assistimos a isso. Vive-se naquele terror que se não lhes dermos o que eles pedem,
as crianças podem ficar mais debilitadas e expostas face a situações sociais problemá-
ticas. A família dá mostras de uma terrível desagregação, o que me preocupa imenso.
Eu não conseguia viver sem família. Aliás, trocava 5 carreiras pela minha família.

Que impacto tem na educação uma família em processo de desagregação?


Se a família não funciona na educação a escola vai receber esse impacto brutal.
Uma criança cujos pais saem de manhã e chegam à noite a casa, ficando o dia todo no
meio da rua, como é que ela se pode comportar na escola? A sociedade em que vive-
mos é muito cruel e há muita modernice a tapar a crueldade. Veja que foram todos a
correr para o Rock in Rio, mas falou-se pouco de música e mais de negócio. Ninguém
se insurge por ter vindo um brasileiro patrocinar um evento e chamar praticamente
só artistas estrangeiros, relegando os poucos portugueses para horas impróprias. Não
pode ser. Isto revela muito provincianismo. Com a idade que tenho, não posso calar-
me. Não me peçam para não ver. Está diante dos olhos de todos.

‹ 197
Campos e Cunha 106

Regime das universidades perpetua a mediocridade

O ex-ministro das Finanças defende que 20 ou 30 universidades seriam suficien-


tes para um país com a dimensão de Portugal, em vez das mais de duas centenas de
instituições, públicas e privadas, existentes.
Campos e Cunha mostra-se indignado com a possibilidade de as reprovações ter-
minarem, considera as escolas de educação «parte do problema» do sistema educati-
vo e entende que o processo de avaliação dos docentes deve ser faseado. O Professor
Catedrático da Universidade Nova confessa que trocava alguns dos mais avultados
investimentos previstos por uma Justiça eficiente e uma boa universidade. Critica a
classe política por não dar respostas à crise e por ser refúgio para «quem não sabe
fazer mais nada».

A crise que tem sacudido o Mundo, especialmente a partir da crise do subpri-


me, é a mais grave das últimas décadas?
Há uma tendência para considerarmos que a última crise é sempre a mais grave.
A percepção e a intuição dependem, em muito, da proximidade dos acontecimentos.
Quando estamos perto de um prédio ele parece-nos maior do que se for visto a mais
distância. Mas quero recordar que na década de 70 houve uma crise petrolífera e
106 Ministro de Estado e Ministro das Finanças, de 2005-03-12 a 2005-07-21, do XVII Governo Constitucional, de maioria
PS, liderado por José Sócrates. Professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, desde 1985,
foi também docente na Universidade Católica. Foi Director da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa e
Vice-Governador do Banco de Portugal, entre 1996 e 2002.
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva, em Dezembro de 2008.

‹ 199
cambial sem precedentes com o fim de Bretton-Woods. O dia-a-dia das pessoas foi
muito afectado e quem viveu esse período, lembra-se bem.

A lição que se retira da crise, no plano da economia real de famílias e empresas,


é que os portugueses vão descer à terra depois de terem vivido acima das suas pos-
sibilidades?
Os portugueses eram, há 15 ou 20 anos atrás, dos povos da Europa com maior taxa
de aforro. Éramos mesmo considerados os «japoneses» do velho continente. Essa taxa
desceu imenso, sem ser contrabalançada por um aumento da poupança do Estado. Em
suma, a poupança nacional caiu muito, sem que o Estado tenha reduzido as suas neces-
sidades de financiamento.

Vamos finalmente interiorizar que temos de mudar de vida, evitando situações


de sobre endividamento?
De uma coisa tenho a certeza: todos os portugueses, incluindo o próprio Estado, vão
ter de poupar mais. Nesse sentido, terão de ser introduzidas mudanças nalguns hábitos.
Não consigo garantir que exista sobre endividamento. Há um endividamento mais ele-
vado do que havia na década de 80, mas também estamos agora mais ricos do que nessa
altura. Também só se endivida quem é rico. Os bancos não gostam nada de emprestar
dinheiro a quem não pode pagar.

O regresso do Estado interventor à economia é temporário?


Esta crise tem dado azo a muitas interpretações erradas sobre o que é que falhou.
Quase todas apontam a falha do mercado como causa da crise. Eu discordo e penso que a
falha foi do Estado, que descurou a regulação. O Estado devia fazer um acto de contrição
e perceber onde é que falhou. É preciso, contudo, analisar a crise, pois as circunstâncias
são diferentes de país para país. Devo dizer que se os EUA tivessem uma supervisão se-
melhante à que vigora na Europa continental, provavelmente o que se passou lá não teria
acontecido. A Europa está a sofrer, e muito, a crise dos EUA, mas por efeito dominó e não
tanto por deficiente regulação no continente.

A regulação estatal pode significar diminuição do poder dos interesses privados?


Defendo uma regulação com mais abrangência e melhor regulação, o que não significa
necessariamente mais. Gostaria de ver um Estado mais forte e, acima de tudo, indepen-
dente dos interesses privados. Regulando os interesses privados, sem se imiscuir com eles.
Isso não tem acontecido em muitos países e, no caso particular de Portugal, é gritante.

Se Portugal não estivesse integrado na moeda única, podíamos declarar ban-


carrota como a Islândia esteve à beira de fazer?
Provavelmente. No caso português estaríamos a braços com uma crise muito mais
200 ›
profunda do que a que estamos a atravessar. A Islândia tinha bancos muito interna-
cionalizados, o que não é tanto o nosso caso, mas podíamos ter taxas de juro de 20 ou
30 por cento, a desvalorização do escudo teria sido 10 ou 15 por cento, uma inflação
de dois dígitos, etc.

Os partidos não dão resposta e alternativas à crise?


A classe política está cada vez mais isolada do resto do País e tarda em encontrar
respostas para a crise. A crítica que faço é transversal a todos os partidos. Sem re-
novação de pessoas, as instituições democráticas serão incapazes de prevenir crises
sociais de consequências graves. Há uma incapacidade manifesta dos partidos de
canalizarem para dentro do sistema democrático o descontentamento social. Uma
primeira amostra aconteceu com a greve dos camionistas, depois com o protesto
contra o encerramento das ditas urgências e agora com a contestação dos professores.

Pode falar-se em falência partidária por faltarem respostas aos anseios da


população, em geral, e de sectores chave, em particular?
O ponto central é que os partidos e a classe política não se têm renovado. Isso
é verdade em Portugal e em toda a Europa. Todas as democracias estão a atravessar
uma crise profunda e difícil. A liberdade vai ter de ser defendida, parece-me.

No que é que isso se traduz no caso português?


A nível nacional, se olharmos para personalidades como Mário Soares e Sá Car-
neiro, temos dificuldades em pensar que Sócrates e Ferreira Leite têm a dimensão
política dessas figuras. Em termos europeus, Miterrand e Khol não têm paralelo com
Sarkozy ou em Merkel. São políticos de outra estatura. Apesar disso, os recentes
sinais vindos dos Estados Unidos são positivos. Tanto Obama como McCain, eram
líderes e não meros “representatives”. A massiva participação indica isso mesmo. Se
essa nova classe política que emerge nos Estados Unidos se propagar para a Europa
ficaria muito satisfeito. Se, em Portugal, surgisse um Obama ele seria eleito. O pro-
blema é que não se candidata nenhum.

Falta uma cultura de verdade nos partidos e nos políticos?


Falta, antes de mais, atrair os mais capazes das novas gerações para gerir a coisa
pública. Muitas vezes, com poucas excepções, vai para a política quem não sabe fazer
mais nada. Na génese está o descrédito da política que radica em vários factores: o
sistema eleitoral, a remuneração dos políticos, o financiamento dos partidos, a «con-
vivência» do Estado com os interesses privados, etc. É uma teia difícil de destruir e
a própria classe política actual não tem demonstrado vontade de alterar o estado de
coisas. E os partidos só se renovam fruto de pressão externa, a partir da sociedade
civil, porque, por dentro, nada acontece.
‹ 201
A corrupção, a fraude e evasão fiscais são chagas que continuam a fustigar
o equilíbrio social e a equidade tributária. Há quem diga que «quem rouba um
tostão é um ladrão e quem rouba um milhão é um barão». Subscreve a ideia que
passa que o crime compensa?
Admito que sim. Mas o funcionamento da Justiça não é bom em todos os paí-
ses, há a percepção generalizada de que é mais fácil a um sujeito rico fugir às teias
da lei por ter capacidade de arranjar melhores advogados, etc. Os «media» estão
constantemente a «apontar o alvo» sobre pessoas, tecendo acusações e insinuações
sobre a sua integridade ética, colocando os criminosos e os aldrabões no saco dos
honestos e íntegros. Para quem vê de fora parece que são todos desonestos. Não
admira que assistamos, quase a um ritmo diário, a julgamentos na praça pública e a
inqualificáveis assassinatos de carácter, inclusive em jornais de referência.

Os recentes escândalos bancários no BCP e BPN são casos de política e de polí-


cia. São necessárias detenções e condenações para tranquilizar a opinião pública?
Primeiro, é preciso apurar responsabilidades e actuar em conformidade, punindo
eventuais crimes de acordo com a lei. O que não se pode é julgar e apreciar os factos
com base em versões, muitas vezes, romanceadas e distorcidas dos acontecimentos.

A Justiça é benevolente para os crimes de «colarinho branco»?


Creio que existe mais ineficiência do sistema, do que benevolência dos juízes.
As prescrições em tribunal, por exemplo, permitem que pessoas saiam impunes de
crimes que efectivamente cometeram.

Reafirma que trocava o projecto do TGV por uma boa reforma da Justiça?
Trocava todos os TGV previstos por uma Justiça a funcionar, da mesma forma que
trocava as restantes auto-estradas planeadas por uma boa universidade.

Educação e Justiça são os dois principais problemas do País?


Provavelmente, sim. Mas se o sistema político funcionasse melhor penso que es-
ses dois problemas não seriam tão agudos. Nos tempos que correm, podemos somar
também a Saúde ao naipe dos problemas graves que assolam o País. E os mais pobres
são os que mais sofrem com o actual estado de coisas.

É conhecido o seu olhar crítico sobre os grandes investimentos públicos. Escre-


veu num artigo que a Irlanda cresceu sem investimento público, enquanto Portugal,
que investiu demasiado, regrediu. Os políticos insistem nos grandes projectos por
terem retorno eleitoral, independentemente de serem ou não rentáveis?
Existe a ideia de que os grandes projectos, por serem mais visíveis, são armas eleitorais
muito importantes. Só que as pessoas tendem a esquecer o custo e o que vai sair do erário
202 ›
público, e logo dos impostos de todos nós, para custear esses investimentos. O TGV vai
ter que ser altamente subsidiado e seremos todos a pagá-lo, com os nossos impostos e,
naturalmente, outras coisas deixarão de ser feitas, hoje e no futuro. Daqui a uns anos,
quando tivermos de pagar os défices de exploração do comboio de alta velocidade, dei-
xaremos de poder fazer outros projectos que seriam prioritários em termos estruturais.

A contestação à política educativa está na rua. Entende a reacção da


corporação dos professores como natural face a uma reforma profunda ou
vê legitimidade nos protestos?
O que está em causa, neste momento, é a avaliação dos professores. Trata-se,
em si, de um bom objectivo, mas tem sido levado à prática de forma muito pe-
sada, burocrática, desviando os docentes da sua actividade fundamental. O ideal
seria escolher dois ou três indicadores mais simples, fáceis de identificar e medir,
que retiraria muito dos temores que existem sobre este processo. Por exemplo, no
primeiro ano, avaliar apenas as faltas dos professores. Se o docente nunca faltasse
durante um período inteiro, seria premiado. A meu ver seria um modo objectivo
de responsabilizar os professores. Logo, penso que seria aconselhável introduzir
um sistema de avaliação de forma faseada e com escolas piloto.

Pensa que isso iria pacificar o sector?


Repare que hoje a maior parte das universidades já faz essa avaliação. O que
acontece é que a novidade cria sempre alguma incerteza e há sempre alguma re-
acção conservadora. A Faculdade de Economia da Universidade Nova introduziu
nos anos 70 o sistema de avaliação dos professores pelos alunos (bem sei que
isso não pode ser feito no secundário), o que naquela altura foi considerado algo
impensável. Houve protestos noutras faculdades contra uma avaliação desta na-
tureza, tendo sido apelidada, à época, de contra-natura. Hoje é comum.

Referiu em artigos publicados que a educação pré-universitária é a que


revela mais carências. Qual é o motivo?
É mais grave porque é uma área em que existem recursos. Se os resultados não
surgem, é porque o sistema está mal gerido. A avaliação dos professores é uma
peça para a resolução do problema, que é bem mais vasto, a começar pela forma
como é visto o papel da escola na comunidade. Ainda hoje estava a ler uma en-
trevista de um especialista que se dedica ao ensino da matemática no secundário
que diz que esta disciplina não tem que ser divertida, mas sim compreendida. A
matemática aprende-se com papel e lápis e um bom livro escolar ao lado.

O sociólogo António Barreto escreveu sobre os exames de matemática que


«se dantes era necessário estudar as causas dos maus resultados, agora deve
‹ 203
estudar-se as causas do milagre». Concorda?
Os exames não são comparáveis de um ano para o outro por não serem bem-
feitos. Essa é uma das falhas graves e não é preciso inventar a roda: é preciso ter bons
técnicos a apoiar quem elabora as provas de exame para que estas sejam comparáveis.
E isso é possível, é só querer.

Este Governo preocupa-se em demasia com a estatística?


Por exemplo, fico espantado quando o Conselho Nacional de Educação vota por
unanimidade que acabar com as reprovações até ao 9.º ano é um objectivo. Não con-
sigo perceber como é que os pais, representados no Conselho Nacional, aceitam que
os filhos frequentem uma escola onde não se chumba. Confesso que se no meu tempo
não houvesse chumbos, quando eu tinha 14/15 anos, eu não teria estudado o que
estudei. Medidas como esta vão tornar o ensino ainda mais laxista e menos rigoroso.
Com estes sinais, as crianças vão pensar que a vida não é exigente, quando a educação
é precisamente preparar para a vida. Entre momentos de aprendizagem e avaliação
há momentos de trabalho, premiando quem merece e reprovando quem não sabe. As
aulas são espaços de trabalho, não de lazer. Para isso, temos o recreio.

Em 46 anos tivemos 29 ministros da Educação. Apenas Maria de Lurdes Ro-


drigues, Marçal Grilo e Roberto Carneiro ficaram, depois do 25 Abril, mais de
4 anos no Ministério da “5 de Outubro”. A lógica é «cada cabeça sua sentença»?
Não dá estabilidade e demonstra o quão grave é o estado do sistema. O sistema
educativo que está em vigor, há anos demais, é uma visão muito propalada pelas
escolas de educação, que são parte do problema e não da solução. As escolas de edu-
cação têm transmitido ideias erradas: o laxismo, a ideia de que os alunos não podem
reprovar, que a sala de aula é um espaço de lazer, que se aprende brincando... É um
erro crasso. A escola é a imitação da vida e a vida também é trabalho, rigor e esforço.
Há muito tempo que as escolas de educação dominam o Ministério da Educação, os
comentadores dos assuntos de educação e, mais recentemente, estão a tomar conta
dos professores, porque começam a ser maioritários os docentes que acedem ao ensi-
no secundário oriundos das escolas de educação.

Portugal precisa de uma universidade de excelência?


Ao contrário do ensino secundário em que existem recursos, nas universidades eles
não existem. Enquanto no ensino secundário, Portugal gasta mais do que a média da
Europa, no ensino superior acontece o contrário. Numa perspectiva utilitarista, os pa-
íses numa fase inicial de desenvolvimento devem concentrar recursos no ensino pri-
mário e secundário. Numa segunda fase devem passar para a formação profissional, a
universidade e para a investigação. Nós já devíamos estar no segundo passo e ainda não
resolvemos a primeira etapa. É crucial que pudéssemos ter universidades de prestígio
204 ›
europeu. Pelo menos uma ou duas. Torna-se difícil é atingir esse objectivo com mais de
duas centenas de instituições de ensino superior (público e privado) num País com 10
milhões de habitantes. Países da nossa dimensão só têm 20 ou 30 instituições.

É possível sonhar com uma instituição ao nível de Oxford ou Cambridge?


Não há qualquer hipótese de termos uma universidade de excelência com o novo
Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), aprovado há cerca de 1
ano. Estou em crer que o ensino universitário vai ficar igual ou pior do que era no pas-
sado, acentuando alguns aspectos negativos que não compensam os aspectos positivos.
O regime anterior durou 20 anos, logo se este durar o mesmo período, significa que as
universidades que precisamos ficarão adiadas demasiado tempo. Vamos continuar no
mesmo “equilíbrio de pobreza” em que temos vivido. Este regime jurídico não altera-
rá suficientemente a forma de governação e vai levar a perpetuar a mediocridade das
instituições que temos, inferiorizando-nos em comparação com congéneres europeus.

Acentuar-se-á a fuga de «cérebros» para o estrangeiro?


Actualmente para muitos alunos da minha Faculdade o mercado deles é a Europa
e não só Portugal. Não me importo nada com esta perspectiva, penso até interessante
saber que existem portugueses em cargos de chefia fora do Pais. É bom para Portugal.
Fico um pouco preocupado quando os meus alunos já tomam decisões por ante-
cipação, assumindo que a vida deles vai passar necessariamente por emigrar e não
regressar ao seu País. Obviamente, são os melhores que assim pensam e não deixa de
ser grave para o nosso futuro.

Não servirá de consolo, mas temos algumas boas universidades, bem reputa-
das internacionalmente, como é o caso da Católica e desta onde estamos a fazer
a entrevista, a Faculdade de Economia da Universidade Nova...
Esta é a melhor Escola de Economia e Gestão de Portugal, por todas as avaliações
nacionais e internacionais que tem tido, mas continua muito longe do ranking das 20
melhores europeias. Dou-lhe este dado: pese embora sermos a melhor escola neste
segmento, não recebemos um tostão do Estado para investimento nos últimos 10
anos. Não se percebe como é que havendo tanto investimento no ensino superior,
a melhor escola de Economia e Gestão não é contemplada. A culpa é da tutela mas
também das autoridades dentro da universidade...

A autonomia e o financiamento são os dois maiores problemas das universidades?


O sistema de financiamento certamente que está errado. Quanto à autonomia,
temos nalguns aspectos em demasia e, noutros aspectos, temos menos do que devía-
mos ter. Faltam, nomeadamente, instrumentos de gestão para governar as faculdades.
Não me importava que uma instituição com a autonomia de gestão de uma empresa
‹ 205
pública, mantivesse a autonomia científica, que é um aspecto muito específico da
actividade universitária e que, obviamente, tem que estar presente.

Defende a presença de gestores profissionais nas universidades?


Uma universidade é também uma máquina que tem de ser gerida. Vejo com difi-
culdade um professor de Grego ou de Latim a gerir um orçamento de uma instituição
desta natureza. Por isso, acho que os gestores profissionais são importantes até para
que os directores das faculdades se dediquem à gestão das faculdades nos seus domí-
nios estritamente académicos e científicos.

Cerca de 11 por cento do total dos desempregados são licenciados. Significa


isto que os cursos continuam distantes das necessidades das empresas?
Conheço muitas escolas que dão graus académicos de Economia e Gestão e que
têm problemas de emprego. Ao contrário, aqui, na Nova, ao fim de seis meses está
tudo empregado.

É revelador do prestígio da instituição e da preparação ministrada...


Certamente. Há dois aspectos a reter: é impossível prever as necessidades do mer-
cado dentro de uma década e depois não podemos obrigar os estudantes a tirarem
licenciaturas que não desejem. Penso, contudo, que se autorizaram cursos demasiado
específicos, o que levou a que a utilidade desses cursos fosse muito reduzida. Da
mesma forma que nunca se deu aos alunos, no momento da escolha dos cursos, a in-
formação sobre a empregabilidade. Finalmente, as avaliações das faculdades deviam
ser publicitadas e dadas a conhecer para que todos tivessem a plena consciência da
escolha que estão a fazer.

206 ›
Carlos Fiolhais 107

Ninguém manda na escola

O director da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra acredita que a


escola tem sido «maltratada» e que a receita para ultrapassar a crise «profunda e
estrutural» que esta atravessa passa por «menos ideologia e mais pragmatismo».
Carlos Fiolhais considera, ainda, que «o desemprego atinge menos quem tem
mais habilitações», defende que o «impulso externo» para transformar a dinâ-
mica das faculdades deve partir dos governos e, finalmente, afirma que nesta
fase de crise energética o «nuclear não deve ser um tabu».

É o cientista português com o artigo mais citado em todo o mundo – re-


ferenciado mais de 5600 vezes. Como recebeu a notícia, sabendo que vive
num país com pouca tradição científica?
Fiquei admirado mas, claro, contente em saber que um trabalho feito em
colaboração com colegas americanos encontrou tantas aplicações em áreas tão
diferentes como a Física, a Química, a Engenharia de Materiais, a Biologia, etc.
Isso significa que o trabalho é útil a muita gente e que não ficou “sepultado”
nas bibliotecas e arquivos. Quanto à tradição científica do país, de facto não
é grande, mas o aumento de colaborações internacionais como aquela em que
107 Professor universitário e ensaísta, é um dos cientistas, divulgadores de ciência, mais conhecidos em Portugal. Licenciou-
se em Física e doutorou-se em Física Teórica. É Professor Catedrático no Departamento de Física da Universidade de Coimbra.
Foi professor convidado em universidades de Portugal, Brasil e Estados Unidos. Publicou 35 livros. Recebeu o Prémio Inova-
ção e o Prémio Rómulo de Carvalho. Actualmente é director da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra.
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva, em Janeiro de 2009.

‹ 207
participei significa que o nosso atraso nessa área está a ser vencido. O atraso
resultava em boa parte de isolamento. Era um atraso grave, pois, como mostra
este caso de multiplicação de aplicações, a tecnologia que ajuda ao desenvol-
vimento tem hoje uma forte base na ciência fundamental. Devo acrescentar
que outros cientistas portugueses têm produzido artigos com muito impacte e
alguns deles têm, integrando as suas várias publicações, um currículo bem me-
lhor do que o meu. São esses colegas, trabalhando lá fora e aqui, que mais têm
feito para quebrar o nosso atraso e alicerçar uma nova tradição.

É físico nuclear de formação. Numa altura em que o debate sobre as


alternativas energéticas está em cima da mesa, é dos que defende o recurso
ao nuclear?
Sim. Fiz no início dos anos 80 uma tese sobre a física teórica da cisão nu-
clear. Ao contrário de muita gente, não tenho medo da ciência e tecnologia do
nuclear. A indústria nuclear, com toda a atenção de que tem sido alvo, é hoje
uma das mais seguras do mundo. O maior recurso ao nuclear já está em curso
em vários lados do mundo, motivado pelo aumento das necessidades energé-
ticas e pelos bem conhecidos problemas com os combustíveis fósseis (uma das
vantagens do nuclear é a não contribuição para o “efeito estufa” ao não emitir
dióxido de carbono). As energias alternativas são altamente desejáveis, mas
elas, no estado da arte actual, estão longe de resolver as nossas carências ener-
géticas, nomeadamente de indústrias e grandes centros urbanos. Sobre o caso
português, julgo no mínimo que se devia discutir o assunto: a energia nuclear
não devia ser tabu. Não percebo a atitude do governo em adiar esse debate
público. Pode haver razões políticas, económicas, ambientais ou outras, para
além das que são estritamente científico-tecnológicas, para alargar o leque das
opções energéticas, recorrendo ao nuclear, mas elas devem ser discutidas aber-
tamente na sociedade. Os cientistas e engenheiros portugueses estão dispostos
a dar o seu contributo, mas a discussão deve ser de todos.

Continua a desbravar os caminhos da divulgação científica. Considera-


se uma espécie de “último dos moicanos” num país que trata a ciência
como parente pobre?
“Último dos moicanos”? Não, não considero, há gente muito boa, melhor do
que eu, a, como diz, desbravar os caminhos da investigação científica. Estou-me
a lembrar do Nuno Crato, do Jorge Buescu, do Jorge Dias de Deus e de vários ou-
tros amigos (na divulgação científica somos bastante solidários, pois temos bem a
noção que todos não somos demais). E há, felizmente, gente mais jovem, que está
muito activa. O “Ciência Viva” tem feito um óptimo trabalho, com uma rede de
centros espalhados pelo país e numerosas iniciativas. O mesmo acontece com a
208 ›
editora Gradiva, cuja colecção “Ciência Aberta” tem sido um enorme êxito. Com
jornais como o “Público”, cujas notícias de ciência têm ajudado a estimular o in-
teresse dos leitores pela ciência. Claro que ainda há muitos caminhos a percorrer,
mas o facto é que o público se tem vindo a interessar cada vez mais pela ciência,
apercebendo-se que fica mais rico se for parente próximo dela.

Defende que cultura e ciência deviam andar mais próximas. Estamos a


pagar o atraso crónico do insuficiente investimento em áreas centrais de
mudança em qualquer sociedade?
A ciência é uma forma de cultura. A cultura humana, apesar de plural e
diversa, deve progressivamente ganhar uma maior coesão, todos devendo ser
contribuintes líquidos para isso. A ciência pode e deve aproximar-se de outras
formas de cultura, por exemplo pode aproximar-se mais da arte (ciência e poe-
sia podem aparecer mais juntas, e o mesmo com a ciência e a música, a ciência e
o teatro, etc.). E vice-versa, as outras formas de cultura ganharão em aproximar-
se da ciência. A ciência – que não é mais do que a descoberta do mundo em
que vivemos, incluindo-nos a nós próprios nesse mundo – tem aliás mais a ver
com as outras formas de cultura do que normalmente se pensa. Por exemplo, o
cientista pode também ser guiado por critérios estéticos no seu trabalho de des-
coberta. Também na ciência se experimentam emoções que não estarão muito
distantes das emoções artísticas. É curioso que já alguém notou que as épocas
de maior progresso cultural foram também as épocas de maior progresso cien-
tífico, embora isso seja difícil de medir.

A cultura pode então contribuir para transformar a sociedade...


Estou de acordo consigo quando diz que a cultura, e portanto também a ciência,
são alavancas de mudança. E, no nosso país, isso nem sempre tem sido reconhe-
cido na prática, através de um investimento concertado e continuado. Por exem-
plo, apesar de haver alguns recentes sinais positivos de investimento na ciência,
preocupa-me muito que não haja investimento concomitante na cultura, uma vez
que o investimento público nessa área tem vindo claramente a diminuir. Creio que
estamos ainda a pagar o atraso crónico no investimento cultural, mas esse atraso
será mesmo crónico se o desinvestimento cultural continuar. Poder-se-á responder
que os tempos de hoje são de crise. Pois a minha resposta é que é precisamente
nessa altura que se têm de fazer os investimentos que mais rendam no futuro.

Um dos relatórios do Eurostat refere que apenas 24 por cento dos portu-
gueses visitaram um museu ou galeria de arte no último ano. Para além dis-
so, somos dos que menos lêem. Como inculcar hábitos culturais, especial-
mente de leitura, num povo que continua a preferir o consumo televisivo?
‹ 209
As estatísticas europeias informam-nos periodicamente que o nosso lugar
continua a ser na cauda da Europa. A frequência a museus e a leitura são índices
reveladores, embora haja outros. Em contrapartida, como lembra, investimos
demasiado do nosso tempo na televisão, essa grande “ladra” de tempo. Estamos
condenados ao atraso cultural? Não, não estamos. Mas, além do investimento
acrescido na cultura (nomeadamente nas bibliotecas públicas, que são lugares
de civilização, e na protecção do nosso património histórico), julgo que o maior
esforço que tem de ser feito será no domínio da educação. A educação é, tem
sido, o nosso calcanhar de Aquiles. Olhe que eu nem sei se os miúdos agora sa-
bem o que é um calcanhar de Aquiles... Pergunte numa escola ao acaso e talvez
só saibam do calcanhar do C. Ronaldo. Na minha opinião, e não esquecendo o
papel da família, é na escola que a cultura deve começar. Para as crianças mais
pobres, a escola representa a oportunidade de sair da pobreza.

O «nacional-conformismo» e a falta de auto-estima são dois factores


centrais da equação que nos impedem de progredir?
Sim, são, há traços culturais, por vezes bastante profundos, na nossa insufi-
ciência. Muitos estrangeiros que nos visitam têm dito isso. O “deixa andar” de
que fala é uma praga nacional. Também se pode traduzir por “logo se vê”, uma
expressão de difícil tradução noutras línguas. Julgamos que as coisas se podem
resolver por elas próprias, sem a nossa intervenção esclarecida e atempada. O
facto de não nos acharmos capazes, ou de só em certas alturas e para certas coi-
sas nos acharmos capazes (o poeta Carlos Queiroz escreveu: “Só fazemos bem
torres de Belém”), não ajuda nada a enfrentar os desafios na altura certa em que
eles devem ser enfrentados. Vamos adiando. Vamo-nos adiando. Esperamos não
sei o quê, não sei quando. Ora, na actividade científica, não é assim, não se
avança assim. Embora as nossas vidas não se possam reger apenas pela ciência,
a ciência é das “coisas mais preciosas que temos” e só nos faria bem ter uma
atitude mais científica mas nossas vidas. É também por isso que a necessidade
de ciência é particularmente sentida em Portugal.

Rejeita que existam portugueses com habilitações académicas em exces-


so. Os recorrentes estudos dizem que estamos a formar para o desemprego,
nomeadamente nos cursos de lápis e papel. Onde está o erro?
Eu percebo o drama individual de quem termina um curso superior e não
obtém imediatamente emprego. Mas não estamos a formar para o desemprego,
pois uma escola superior não é exactamente uma agência de emprego. A escola
destina-se a preparar melhor para a vida e não há dúvida que as pessoas com
mais habilitações estão mais bem preparadas para a vida. Está provado: O de-
semprego atinge menos quem tem mais habilitações.
210 ›
As universidades são vistas como promotoras de melhor emprego. Deve
passar-se a mensagem, sem constrangimentos, que a licenciatura é apenas
uma licença para aprender, parafraseando Adriano Moreira?
Sim, é uma frase em que me reconheço. Depois da licenciatura, ainda há o
mestrado e o doutoramento, que são tempos por excelência de auto-aprendi-
zagem. E depois a aprendizagem prossegue, porque o mundo não pára. Hoje
fala-se em aprendizagem ao longo da vida e na primeira parte da vida devíamos
aprender o suficiente para aprender mais depois. Quero crer que as universi-
dades portuguesas estão atentas a essas necessidade de aprendizagem contínua
e estão a começar a desenvolver programas, à distância ou mesmo presenciais,
para que possam ajudar mais quem queira aprender mais.

No seu livro de crónicas “O Engenho Luso” afirma que as universidades


dificilmente se auto-reformam. De onde pode vir o impulso externo para
operar a transformação?
A história mostra que as universidades têm, de facto, muitas dificuldades em
mudar por dentro. Isso terá a ver com o facto de serem, além de sítios de trans-
formação (criadores de saber), sítios de conservação (guardiãs do saber). Por
vezes a inércia é muito grande, apesar das grandes transformações que ocorrem
lá fora. Não desprezando as contribuições de forças económicas, profissionais
e sociais, julgo que o impulso externo deve vir dos governos. Numa sociedade
democrática é ao governo que compete intervir na regulação das escolas públi-
cas (e também, embora naturalmente de modo diferente, na regulação das pri-
vadas). O nosso governo mudou há pouco – e julgo que bem – o regime jurídico
das universidades. Mas, ao mesmo tempo que fala em autonomia acrescida das
universidades, diminui a autonomia ao estrangulá-las financeiramente. Algu-
mas universidades mais pequenas estão numa posição insustentável e mesmo as
maiores não estão nada bem.

É possível, algum dia, ter um centro universitário de excelência em Portugal?


A ideia de uma universidade de excelência, pelo menos em certas áreas, à
escala europeia tem vindo a público pela boca de outras pessoas. Eu também
acho que seria excelente procurarmos ter pelo menos uma universidade no topo
europeu. Mas isso exige um elevado investimento em meios humanos, que tal-
vez não seja compatível com o anunciado investimento em betão.

Disse que «a escola é uma das maiores invenções da humanidade». Pelo


menos por cá, a invenção, parece viver em crise. Como chegámos aqui e
como reabilitá-la?
A crise é profunda, estrutural, como explico no capítulo “O atraso portu-
‹ 211
guês” do meu livro “A Coisa Mais Preciosa Que Temos” remonta pelo menos
ao século XIX, quando os outros países se desenvolveram muito mais que nós,
em grande parte graças ao desenvolvimento da escola. Não há dúvidas que,
desde 1974, tem havido em Portugal algum desenvolvimento, mas a escola não
se desenvolveu o suficiente. É uma herança que, pese embora a propaganda
em contrário, está longe de ter sido ultrapassada. Dói-me o estado da escola
portuguesa, que tão maltratada tem sido. Também estou certo que dói a muitos
professores, também eles tão maltratados. Como sair da crise actual? Não há
alternativa à escola. Precisamos, quando não a temos, ainda mais dela. Mas era
preciso uma visão, uma esperança, uma audácia (o Obama que me desculpe
tirar-lhes os slogans!) que infelizmente ainda não há.

O “eduquês”, o discurso educativo oficial, está a minar o sistema?


Sim, o “eduquês” pode não ser a causa dos nossos males escolares, mas não
ajuda nada. E não se trata apenas do discurso oficial, por vezes completamente
vazio, como o Nuno Crato e outros têm chamado a atenção. É também – e isso é
que é pior – a perigosa ideologia que está por trás, a ideologia não directiva, ro-
mântica, que está provado que não funciona. O problema é que se trata de uma
ideologia totalitária, que não admite sequer contestação, e que entre nós está
instalada há muito tempo. Não funciona noutros lados e também não funciona
aqui. Julgo que só nos faria bem ver aprofundar a crítica, que já é muito nítida
lá fora, a uma ideologia que deu os resultados que estão à vista de todos. Aliás,
o nosso ensino ganharia se houvesse menos ideologia e mais pragmatismo.

Fica-se com a ideia que a instituição escolar está “sem rei nem roque”.
Os professores perderam o poder que tinham e distanciaram-se do centro
do sistema. Quem manda na escola?
Boa pergunta, quem manda na escola? Acho que ninguém manda. Os profes-
sores não mandam, o governo não manda, as autarquias e as famílias também
não. Julgo que era tempo de responder à questão. Poder-se-ia pensar – se no
estado actual de confusão se pudesse pensar alguma coisa – que às escolas fosse
dada suficiente autonomia para se organizarem da maneira que os professores
(os professores são centrais na escola!), em colaboração com as autarquias, as
famílias, etc. e que o governo se limitasse, em vez de querer ser o “rei” absoluto,
que tudo estabelece e determina, a definir regras claras, incentivando as escolas
mais bem organizadas e desincentivando as outras.

Este processo pode levar a que os melhores docentes, desencantados,


abandonem o ensino?
O actual processo já está a levar a isso. Os professores estão desanimados
212 ›
com a entropia que vai nas escolas. E os melhores professores estão mais de-
sanimados. Muitos estão a ir embora e só não vão mais porque não podem. A
sociedade, a começar pelo governo, devia valorizar mais os professores, em
particular os melhores professores. A avaliação que tem sido anunciada para
escolher os melhores julgo que não cumpre esse louvável objectivo.

O Governo confundiu os professores com os sindicatos?


Sim, os professores estão mal representados pelos sindicatos, mas o certo
é que governo não os distingue. Ao querer lutar com os sindicatos cometeu o
grande, o enorme erro de lutar contra os professores.
Matemática, Física e Química são «bichos/papões» na mente de muitos
alunos, com resultados paupérrimos. A formação científica dos nossos jo-
vens é cada vez mais incipiente?
Que a formação científica dos nossos jovens não vai bem é revelado por
sucessivas avaliações internacionais, como o programa PISA. Essa avaliação é
externa e independente, pelo que os seus resultados nos deviam preocupar se-
riamente. Outros países preocupam-se e nós não. O paradoxal é que o interesse
dos nossos jovens pela ciência e os progressos das acções de divulgação cientí-
fica não encontra eco nesses resultados internacionais. O que só mostra que a
escola está mal e tem de ser mudada...

Os resultados a Matemática melhoraram substancialmente. Admite a


facilitação das provas em prol da estatística?
Não, não melhoraram. As avaliações externas mostram a constância dos
maus resultados e, oxalá me engane, as próximas vão continuar a mostrar o
mesmo, porque as mudanças na educação são lentas. Quanto aos exames na-
cionais, da responsabilidade do Ministério da Educação, eles não têm tido fia-
bilidade para termos suficiente confiança nos seus resultados. Veja o que diz a
Sociedade Portuguesa de Matemática.

Com os progressos das tecnologias da informação, as bibliotecas muda-


ram muito nos últimos tempos. Algumas tornaram-se virtuais. Que futuro
augura às bibliotecas tradicionais do mundo quando todos temos à dispo-
sição informação planetária à distância de um clique através de enciclopé-
dias online e de motores de pesquisa como o Google?
As bibliotecas tradicionais, cheias de livros e documentos, não perderam
nem o seu valor nem o seu lugar. Elas organizaram-se, ao disponibilizar os
seus conteúdos (por agora só parte) para serem também bibliotecas virtuais. As
bibliotecas modernas são um híbrido, por um lado ricos repositórios materiais
onde apetece ir e ficar e, por outro lado, “antenas” que emitem informação e
‹ 213
conhecimento para todo o mundo. A Biblioteca Geral da Universidade de Coim-
bra, que tenho a honra de dirigir, está a ir por esse caminho.

Confidenciou que o seu sonho era digitalizar o conteúdo integral da


Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra, que dirige, colocando esse
acervo ao alcance de todos, nas nossas próprias casas. Pensa que o seu so-
nho pode, um dia, tornar-se realidade?
Sim, tecnicamente é já hoje possível. É uma questão de prioridade e de in-
vestimento nessa área. Poderá demorar, mas um dia será realidade. Já há uma
pequena amostra que é o DVD-ROM “Biblioteca Joanina Virtual”, que contém
cerca de duas dúzias de obras antigas totalmente digitalizadas. Agora só falta
fazer o mesmo, mas numa escala maior.

214 ›
Mariano Gago 108

É urgente reorganizar a rede de ensino superior

O Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior defende a reorganização da


rede de ensino superior em Portugal e quer, que até 2020, mais de 40 por cento dos
indivíduos, com idades entre 30 e 34 anos, tenham um diploma de ensino superior.
Uma meta ambiciosa, mas não impossível. No imediato, Mariano Gago lembra que
as instituições devem entender-se entre si, de forma a constituírem consórcios. De ca-
minho refere os novos estatutos da carreira docente do ensino superior e das metas
que Portugal deve atingir em matéria de novos diplomados. Em resposta às questões
colocadas pelo Ensino Magazine, o Ministro considera que o número de alunos nos
politécnicos e universidades vai crescer nos próximos anos.

A União Europeia estabeleceu que, até 2020, deveria haver um mínimo de 40


por cento de cidadãos, com idades compreendidas entre os 30 e 34 anos, com um
diploma de ensino superior. Portugal está no bom caminho para alcançar esse
desafio?
Essa é uma decisão que está a ser preparada à escala de toda a União Europeia e que
todos os países devem cumprir até 2020. Neste momento Portugal tem cerca de 1/3 dos
jovens com 20 anos a frequentarem o ensino superior, o que está dentro das médias eu-
108 Actual Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. No XIII e XIV Governos Constitucionais, entre 1995 e 2002,
liderados por António Guterres, foi Ministro da Ciência e da Tecnologia. Em 2005 foi nomeado Ministro da Ciência, Tecnolo-
gia e Ensino Superior do XVII Governo Constitucional, liderado por José Sócrates, cargo pelo qual foi renomeado para o XVIII
Governo Constitucional. É professor catedrático do Instituto Superior Técnico.
Entrevista de João Carrega, realizada em Maio de 2009.

‹ 215
ropeias. Aquilo que também se verifica é que esse número tem vindo a subir e é muito
superior, nalguns pequenos países europeus - como os nórdicos - em que apostaram há
vários anos no ensino superior para as suas populações. Penso que Portugal deve seguir
essa via, ou seja, tem que ter um número muito superior de jovens no ensino superior,
e não me espantaria que, dentro de algumas décadas, tivéssemos cerca de 60 por cento
dos jovens a frequentar o ensino superior. Claro que, neste caso, pouco importa se os
jovens têm 20 ou 30 anos, pois muitos deles entram na vida activa e depois decidem
continuar os seus estudos. O que importa é que no total da população activa tenhamos
cerca de 50 por cento dessa mesma população tenha formação superior. Nos Estados
Unidos da América esse número é de 60 por cento.

Portanto o objectivo é ultrapassar a média europeia?


Sim, o objectivo é estarmos muito acima da média europeia.

Continua a defender que, ao nível das instituições de ensino superior, é urgen-


te o estabelecimento de acordos e parcerias?
É extremamente importante que exista uma associação entre institutos politécnicos,
para que, sobretudo à escala regional, trabalhem uns com os outros, evitando a dupli-
cação das suas formações. É importante que nos Politécnicos, mas também nas univer-
sidades, haja reorganização das escolas, pois em muitos casos existe uma duplicação.
Hoje existe a necessidade de se rentabilizarem recursos para que se forneçam melhores
serviços aos seus utilizadores e para que os estudantes tenham melhor ensino. Neste
momento, tenho muita esperança no movimento que se está a verificar no interior dos
politécnicos para que venham a ser feitos consórcios regionais, de modo a que haja uma
especialização dos institutos - uns em relação aos outros -, que não haja dispersão de
esforços em pólos sem viabilidade e que se verifique uma concentração de recursos em
benefício dos estudantes, os quais estão a aumentar nos politécnicos.

Há alguma data estabelecida pelo Governo para que as instituições de ensino


se entendam, de forma a criarem consórcios?
Não, esse é um trabalho que tem que ser feito pelos próprios politécnicos. É eviden-
te que há sempre a possibilidade de se estabelecer uma data, mas creio que não é neces-
sário. Na maioria dos institutos temos que aguardar pela eleição dos Conselhos Gerais
e dos seus órgãos, pois cabe a esses novos órgãos tomarem as decisões. Neste momento
tenho muita confiança daquilo que foi transmitido ao Governo pelos institutos, que
progressivamente vão criando consórcios à escala regional.

O alargamento do acesso ao ensino superior passa pelos Institutos Politécnicos?


Já passou nos últimos anos. E essa aposta está a ser ganha. O aumento do número
de estudantes no ensino superior, passa essencialmente pela subida do número de
216 ›
alunos no ensino politécnico. Os estudantes universitários também estão a aumentar,
mas em menor ritmo.

E esse facto deve-se a que razões?


O ensino superior politécnico recolhe alunos de várias proveniências. Tal como
acontece com o ensino universitário, absorve alunos através do concurso geral de
acesso, pelo programa maiores de 23, mas recolhe também estudantes que entram
nos politécnicos através dos cursos de especialização tecnológica. Muitos desses
jovens que entram para os Cursos de Especialização Tecnológica, os designados
CETs, e que estão no mercado de trabalho, normalmente prosseguem os seus estu-
dos no ensino superior.

Relativamente à reorganização a rede de ensino superior, a questão dos consór-


cios é, para si, o único vector dessa transformação...
Há uma parte a reorganização que tem vindo a ser feita através da oferta formativa,
da progressiva fusão de cursos, e de possibilitarmos que cursos que estavam artificial-
mente divididos uns dos outros passassem a oferecer um leque mais amplo de oferta
formativa, o que beneficia as escolhas dos alunos, pois se eles tiverem uma formação
inicial muito fechada terão mais dificuldades no mercado de trabalho. Um outro vec-
tor importante nessa reorganização da rede, diz respeito à nova Agência de Avaliação
e Acreditação, a qual vai separar o trigo do joio. É essa Agência que vai verificar quais
os cursos que têm condições para continuar a ser ministrados e quais terão que ser
reformulados para se manterem, ou que simplesmente não se devem manter e os seus
recursos devem ser afectos a outras formações.

Uma das questões que afirma querer ver resolvida, diz respeito aos Estatutos
das Carreiras Docentes do Ensino Superior. Já há datas para que eles venham a
ser aprovados?
Estamos a fazer a revisão dos estatutos da carreira docente universitária, politécnica
e de investigação. Neste momento foram aprovados, em Conselho de Ministros, os
documentos de revisão dos estatutos da carreira docente para a universidade e para
os politécnicos, no sentido de se aumentar os níveis de qualificação dos docentes, de
rejuvenescer o corpo docente e de consolidar as instituições, sobretudo aquelas que
têm muito pessoal precário. Iniciámos o período de negociação com as várias estruturas
sindicais e esperamos que esse período fique concluído este mês.

A aposta, ao nível dos politécnicos, passa pela abertura das instituições aos
profissionais que se encontram no activo, os quais podem desempenhar uma
função docente?
Essa é já uma intenção dos próprios politécnicos. O Conselho Coordenador dos
‹ 217
Institutos Superiores Politécnicos propôs que esse número fosse da ordem dos 25 por
cento do total do número de docentes. Uma percentagem que seria ocupada por pro-
fissionais que, em tempo parcial, procedessem à leccionação nos politécnicos, e desse
modo contribuíssem para melhorar a relação dos estudantes com a vida activa e pro-
fissional. Penso que essa meta é razoável e será incorporada nos estatutos de carreira.

218 ›
Eduardo Catroga 109

Os jovens têm de ser empreendedores

O ex-ministro das Finanças não está optimista quanto à recuperação do nosso


país do ponto de vista económico. Eduardo Catroga defende que as reformas de
fundo, como a do sistema educativo, são um longo e contínuo processo e aponta
o fim do ensino técnico-profissional como um dos «piores erros» do 25 de Abril,
referindo a carência de formação técnica ao nível do secundário como uma das
explicações para a elevada taxa de desemprego que Portugal regista na actualidade.

Um autêntico «tsunami financeiro» abalou o Globo. Pensa que o pior já


passou ou estamos ainda na fase das réplicas?
Creio que estamos na fase das réplicas e, por vezes, com receio que apareça uma
nova onda. Predomina ainda a incerteza, mas existem sinais encorajadores que, a
pouco e pouco, caminhamos para a estabilização do sistema financeiro internacio-
nal e dos mercados de capitais. Sem esta estabilização, não haverá retoma económi-
ca. Contudo, é cedo para garantir que já se iniciou a recuperação económica.

Quer dizer que temos de padecer mais algum tempo?


Penso que o pior já foi ultrapassado, só que a ressaca na economia real ainda se
109 Economista e gestor de empresas. Assistente do ISCEF, de 1968 a 1974, manteve-se nessa instituição como professor
catedrático convidado a partir de 1990. Foi chamado a funções governativas, como ministro das Finanças do XII Governo
Constitucional, o terceiro liderado por Cavaco Silva, entre Dezembro de 1993 e Outubro de 1995. Em 2006 foi agraciado pelo
Presidente da República, com a Grã-Cruz da Ordem de Cristo.
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva, em Agosto 2009.
‹ 219
vai reflectir durante algum tempo. A primeira economia a dar sinais de recuperação
será a norte-americana, lá por volta de meados de 2010. O que significa que teremos
alguma, ténue, recuperação europeia na parte final desse ano.

E quando é que a retoma poderá chegar a Portugal?


Só lá para finais de 2011. No entanto, a economia nacional, não nos iludamos,
atravessa duas crises que se sobrepõem. A crise conjuntural, em consequência da
quebra da actividade económica a nível mundial, e a crise estrutural, que radica nas
nossas próprias debilidades e que se estende desde 2001. Na primeira década do
século XXI tivemos o pior desempenho relativo das últimas 8 décadas. Registaram-se
diversas flutuações durante o processo histórico mais recente, mas os últimos 9 anos
foram verdadeiramente desastrosos.

Que factores estão na origem desse mau desempenho?


A economia e a sociedade portuguesas estão com dificuldades de adaptação estru-
tural ao novo contexto que é caracterizado por um acréscimo da concorrência global
e pela introdução da moeda única. Infelizmente, não tivemos, ainda, respostas estra-
tégicas coerentes, quer da política empresarial, quer das políticas públicas, de modo
a retomar um processo de crescimento sustentado fundamental para atingirmos os
padrões dos países mais desenvolvidos.

Porque é que diz que entre 1995 e 2001 perdeu-se uma oportunidade de ouro
para estabilizar o país do ponto de vista económico?
Se fizermos uma breve resenha histórica, concluímos que os portugueses são espe-
cialistas em dar tiros nos pés e em desperdiçar oportunidades soberanas. Não soubemos
fazer a transição da ditadura para a democracia, acompanhada pela descolonização, o que
nos custou uma estagnação de 10 anos em termos de nível de vida. Por outro lado, de-
saproveitámos o contexto económico e financeiro internacional de entrada no euro para
aprofundarmos um conjunto de reformas estruturais. Ao invés, num período de alguma
prosperidade, entre 1995 e 2001, engordámos desmesuradamente o sector público e cri-
ámos um «monstro» de despesa pública, aumentando a carga fiscal sobre as famílias e as
empresas. Isto para além de termos falhado a reforma de sistemas públicos fundamentais,
como são os da educação e formação profissional, justiça, concorrência e regulação dos
mercados. Estamos a pagar uma elevada factura resultante da inacção estrutural.

Em termos empresariais, também tem faltado dinâmica?


Um número significativo do universo empresarial ainda se mantém num estado
de adormecimento, ignorando as mutações da economia internacional. Os desafios
da inovação e da internacionalização não foram convenientemente enfrentados.
Mas o problema não se resume às empresas. As famílias continuam a achar que
220 ›
podem gastar mais do que os seus rendimentos e deixaram cair as respectivas taxas
de poupança para metade. As taxas de juro baixas foram uma grande ilusão em
que todos embarcaram através do endividamento para consumo. Foram melhora-
dos os índices de bem-estar, mas não foi criada uma base produtiva capaz de criar
condições para um desenvolvimento económico sustentado. Penso que este é o
grande desafio para a próxima década. E para começar é precisar interiorizar as
nossas verdadeiras vulnerabilidades estruturais no “mundo novo” para redefinir as
prioridades estratégicas.

O emprego é um problema sem solução nos próximos tempos?


A criação de emprego no sector público está esgotada e a tendência é para a re-
dução líquida do número de efectivos na função pública. Significa isto que temos de
fazer crescer as empresas, a inovação e o sector dos bens e serviços transaccionáveis.

Preocupa-o que em Portugal existam 12 empresas a falir por dia?


Isso é natural. As empresas nascem, vivem e morrem. Faz parte da dinâmica da
economia de mercado a falência de empresas, o que é fundamental é que no tecido
empresarial a taxa de natalidade seja superior à taxa de mortalidade. A renovação
contínua do nosso tecido produtivo é o grande desafio que se coloca à sociedade
portuguesa nos próximos anos. E não podemos ter a veleidade de desperdiçar as
oportunidades.

A que oportunidades se refere?


Temos que saber aproveitar as oportunidades que existem em todos os sectores
da economia. Por exemplo, pouca gente sabe que andámos adormecidos durante
décadas, porque consumíamos 60 mil toneladas de azeite e só produzíamos cerca de
metade. Só agora, com o novo olival que está a ser desenvolvido no Alentejo, é que
dentro de 2/3 anos seremos auto-suficientes no consumo de azeite e, porventura,
excedentários para exportação. No vinho melhorámos exponencialmente a qualidade
da nossa produção e a respectiva penetração internacional.

Em que outros sectores podemos dar cartas?


Os “clusters” em que podemos ser competitivos são diversos. Por exemplo, na
exploração oceânica. O mar é uma riqueza muito inexplorada. Temos a fileira da flo-
resta e um grande potencial de desenvolvimento neste domínio, na produção de pas-
ta, papel, na biomassa, etc. No campo das energias renováveis há imenso por fazer,
tanto no campo da energia solar, energia eólica, biomassa, etc. Isto já para não falar
no domínio dos serviços a empresas, novas tecnologias da informação, actividades
da cultura e lazer, turismo residencial e nas indústrias da saúde. O campo de oportu-
nidades é, como vê, vasto. Só se está mesmo à espera é que sejamos mais empreen-
‹ 221
dedores e que o Estado desenvolva politicas públicas adequadas para incentivar esse
dinamismo, seja no campo do capital de risco, na burocracia, incentivos fiscais, etc.

Há incentivos suficientes para as novas gerações mostrarem o seu potencial?


Os jovens têm que pensar também em ser empreendedores. A minha geração, dos
anos 60, quando saiu da universidade encontrou um clima de facilidades. Era amplo
o campo de escolha de emprego, em qualquer sector, e quase todos bem remunera-
dos. Os jovens de hoje têm uma vida muito mais árdua, fruto da feroz concorrência.
Há uma imensa mole de estudantes que saem das universidades todos os anos e que
se deparam com muitas incertezas e nenhumas garantias. É preciso procurar encon-
trar soluções criativas.

O que defende que se deve mudar na abordagem nacional do ensino?


No domínio do ensino secundário, só muito recentemente, se começou a dar im-
portância a partir do 9.º ano ao ensino técnico-profissional. Nem todos os jovens têm
vocação ou querem ir para a universidade, mas seguramente, todos têm que ter uma
profissão. Por isso, o ensino técnico-profissional é fundamental. Eu próprio passei
por uma escola técnica.

Desprezar esta vertente do ensino foi prejudicial para o sistema educativo?


Um dos piores erros estratégicos do 25 de Abril foi ter acabado com o ensino
técnico-profissional. O ensino técnico-profissional tem de ser um ramo autónomo
dentro do sistema educativo, com instalações e professores adequados, com uma boa
interligação com o meio empresarial e local. Só com mais inovação, criatividade e
risco é que se torna possível gerar empregos e crescer de forma sustentada.

Este ano aumentaram as vagas para o ensino superior. Por exemplo, na advo-
cacia, o Bastonário assegura que seria possível prescindir de aproximadamente
metade dos 26 mil advogados inscritos na Ordem. Não é um contra-senso?
Em Portugal, somos especialistas em perpetuar ideias que estão ultrapassadas.
Repare: o facto de um indivíduo tirar um curso de Direito, não quer dizer que siga
esta área. A formação de base é que é fundamental. A formação universitária tem que
ser entendida, sobretudo nos três primeiros anos, como de banda larga, permitindo
uma adaptação posterior ao projecto de vida profissional.

Mas os mercados profissionais estão saturados...


Com certeza. Por isso é que é urgente descobrir novas profissões. No campo dos
tele-serviços e da multimédia, só para citar dois exemplos, há novos trabalhos, para
além das funções clássicas, que também tendem para uma especialização por seg-
mentos ou nichos. Creio também que temos pessoas em excesso com formação ge-
222 ›
neralista e humanista, quando precisamos é de mais recursos com formação técnica,
capazes de trabalhar em laboratórios, oficinas, fábricas, em design ou protótipos. O
que aconteceu nos últimos 20/30 anos, e que explica, parcialmente a taxa de desem-
prego, foi uma falta de formação técnica ao nível do secundário. O resultado está à
vista: electricistas e canalizadores a menos e muitos candidatos a empregos como
administrativos que, pura e simplesmente, não existem. Da mesma forma que temos
psicólogos, sociólogos e jornalistas a mais para o mercado e carência de efectivos no
domínio das tecnologias da informação.

Quer dizer o universo educativo está autista perante a realidade que o rodeia?
Essa realidade deriva de juízos errados formulados pelas famílias e pelas pessoas e
reside em factores sociológicos e culturais. Felizmente, vai-se reagindo e hoje em dia
temos mais jovens à procura do ensino técnico-profissional, de ramos tecnológicos e
até de profissões que há duas décadas eram rejeitadas.

É comum ouvir-se que muitos jovens recusam empregos dignos como tra-
balhar num café ou num restaurante. É um preconceito trabalhar nessas áreas?
Essa relutância explica-se pelos tais preconceitos de natureza cultural e sociológi-
ca. No estrangeiro, é banal os universitários trabalharem na área da restauração para
angariarem dinheiro para fazer face aos encargos dos estudos. Estas experiências são,
aliás, muito importantes em termos de preparação para a vida. A reforma das men-
talidades é um processo lento. Não há milagres de curto prazo. Por vezes, é preciso
cometer erros para reencontrar novos caminhos. O que é preciso é que, todos juntos,
pessoas, famílias, empresas, governos e elites, interiorizem que o nível de emprego, a
qualidade de iniciativa empresarial e dos sistemas públicos só melhora se todos fize-
rem por isso. Não é em 2 ou 3 anos que se faz uma reforma da administração pública,
da Segurança Social ou do sistema educativo. São processos contínuos. Nada está
concluído e, para além disso, as políticas devem adaptar-se à evolução do contexto.

Como ex-ministro que foi, que mensagem deixaria à classe política?


Os sinais recentes indicam que o actual regime partidário carece de uma renova-
ção de pessoas e de métodos, tendendo para o esgotamento. Os partidos e os líderes
devem pôr os interesses da nação acima dos interesses das respectivas forças políticas
e realizar as reformas no sistema político que se impõem.

‹ 223
Valter Lemos 110

A escola pública é mais igual

Com o novo ano lectivo à porta, e em final de mandato, o Secretário de Estado


da Educação presta contas do trabalho desenvolvido no Ministério da Educação,
liderado por Maria de Lurdes Rodrigues. Valter Lemos afirma que, hoje, a escola
é mais igual para todos do que o que ocorria há quatro anos, quando iniciou as
funções que actualmente desempenha.

A actual equipa do Ministério da Educação foi uma das que mais altera-
ções tentou introduzir no sector da educação básica e secundária. Os objec-
tivos foram atingidos?
Na sua esmagadora maioria foram atingidos. Esta foi uma das épocas em que
se cumpriu, de forma mais exaustiva, um programa do Governo. Isso é muito
satisfatório para uma equipa política, que se comprometeu com um conjunto de
medidas e promessas, sobre as quais, no final, deve apresentar contas. Nós pode-
mos apresentá-las de cara levantada, já que cumprimos, na íntegra, o programa
do Governo.

110 Foi Presidente do Instituto Politécnico de Castelo Branco e membro da Comissão Instaladora da respectiva Escola
Superior de Educação. Eleito deputado, pelo PS, nas IX, X e XI legislaturas. No XVII Governo Constitucional, de maioria PS,
liderado por José Sócrates, foi chamado a desempenhar o cargo de Secretário de Estado da Educação, sendo Ministra Maria de
Lurdes Rodrigues. Actualmente, é Secretário de Estado Secretário do Emprego e da Formação Profissional, do XVIII Governo
Constitucional, liderado por José Sócrates.
Entrevista realizada por João Carrega, em Setembro 2009.

‹ 225
Hoje pode dizer-se que a escola pública é igual para todos?
É mais igual, sem dúvida. Não é totalmente igual para todos, mas isso, provavel-
mente nunca o será, pois os sistemas sociais não se conseguem desenhar de uma forma
perfeita. Mas não tenho dúvida nenhuma, que a escola pública é mais igual para todos.
E essa é uma das questões centrais da política do Ministério da Educação, durante
este mandato. Requalificámos a escola em todos os sentidos, quer nos termos físico e
material, quer da sua missão. Havia um desgaste dessa missão e a ideia de que a escola
pública não servia para alguns. E o nosso objectivo foi o de garantir um princípio es-
sencial das democracias europeias e modernas, que passam por a escola pública servir a
todos. E hoje estamos muito melhor do que há quatro ou cinco anos atrás. Não só para
aqueles que lá andavam, mas para aqueles que regressaram à escola.

Os resultados escolares foram uma preocupação para este Ministério?


Na perspectiva deste Ministério o Alfa e o Ómega de todas as políticas educativas
devem ser os resultados escolares. Essa é uma questão central. Ou seja todas as medi-
das devem ser realizadas de forma global, articuladamente, para que o resultado seja
melhor. Mas o resultado escolar não é só aquilo que ele aprende, mas também na pro-
moção de igualdade de oportunidades, dos valores de cidadania e das condições do
exercício dessa cidadania nas gerações futuras. E em Portugal, onde a escola pública
tem um papel histórico muito importante, é fundamental garantir esses princípios,
tendo como meta o objectivo de obter melhores resultados.

E isso significa…
Significa ter mais alunos na escola, durante mais tempo e a aprender mais. Não
vejo outra forma de estruturar as políticas com outro objectivo. E todas as políticas
sectoriais devem centrar-se nesse objectivo global.

Nessa perspectiva a escolaridade obrigatória deve englobar o 12º ano?


Criámos todas as condições para que a Lei que agora aprovámos se cumpra rapi-
damente nos próximos anos. Há quatro anos quando chegámos ao Ministério toda
a gente dizia que era impossível cumprir uma lei como essa. Neste momento nós só
temos 30 mil jovens fora da escola com menos de 18 anos. Conseguimos que as taxas
de escolarização dessem um salto significativo, através das políticas sectoriais desen-
volvidas. Neste momento já atingimos os 100 por cento de taxa de escolarização aos
16 anos e quase 90 por cento aos 17.

Mas também é importante que os jovens não estejam apenas na escola, é relevante
que obtenham outros resultados...
Conseguido o objectivo de ter os jovens na escola, importava atingir outro que passava
por fazer com que o percurso escolar deles seja bem sucedido, em que aprendam e se pos-
226 ›
sam qualificar, de modo a que a escola promova a igualdade de oportunidades. Não nos
podemos esquecer que a desigualdade de oportunidades está relacionada com a desigualda-
de escolar. O horizonte civilizacional do nosso país, como refere o Primeiro-ministro, deve
ser o ensino secundário como referencial de qualificação para todos os portugueses. E junto
das novas gerações estamos prestes a atingi-lo. Todos os números mostram que o progresso
desde 2005 foi extraordinário.

O principal problema que afectava o país neste domínio era o abandono escolar?
Eram as taxas de insucesso e abandono escolar, pelo que importava melhorar isso para
atingirmos um dos nossos primeiros objectivos. Objectivos que passavam por os alunos
permanecerem mais tempo na escola, e que estando lá adquirissem mais qualificações. Por
isso implementámos medidas, que passavam pelos planos de recuperação para os alunos
que começam a ter problemas de aproveitamento, para depois passar pelos planos de acom-
panhamento, ou pelos percursos alternativos ou os cursos de educação formação. Isto para
garantir que em cada momento do percurso há uma resposta adequada ao aluno. E este era
um problema que existia no sistema de ensino, pois a única resposta que ele tinha quando
o aluno falhava era não fazer nada e reprová-lo. Estas medidas conseguiram recuperar o
ensino básico, pelo que hoje nenhum aluno está fora dessa escolaridade.

E no ensino secundário?
Tivemos que enfrentar um problema que todos os estudos indicavam: em Portugal ape-
nas existia uma via de estudo para os alunos. Ora nenhum país do mundo fazia isto! Nem
mesmo os menos desenvolvidos. Permitir que os alunos façam os seus estudos com êxito
passa por lhes dar diferentes opções. Mas a nossa escola pública só tinha o ensino geral.
Houve uma ou duas tentativas de resolver o problema, como demonstra a criação das esco-
las profissionais, pelo ministro Roberto Carneiro, numa medida que se revelou insuficiente.
Mas que demonstrou que aquele modelo de ensino funcionava. Contudo, importava que
a escola secundária pública respondesse a todos, e não apenas a alguns alunos. Por isso,
essas escolas tinham que ter disponíveis diferentes vias de ensino. E isso foi feito com muito
sucesso o que surpreendeu muita gente. Primeiro porque ninguém estava à espera que a
medida fosse tão acertiva, depois porque as pessoas não acreditavam que a escola pública
fosse capaz de responder eficazmente, e por fim porque Portugal tem a tradição de não
acreditar em si próprio.

E todo este processo foi implementado sem recurso ao facilitismo?


Essa questão é, como diria o Primeiro-Ministro, um insulto aos Professores. Toda a gente
percebe que não é a ministra, nem os secretários de Estado, que vão dar as aulas, fazer os
testes ou avaliar os alunos. Isso era dizer que as escolas e os professores faziam batota. O que
não acontece! Essa questão serve apenas para fazer política, mas ninguém acredita nisso.
Toda a gente sabe que uma grande parte dos professores se manifestou contra o Ministé-
‹ 227
rio da Educação, pelo que menos sentido faria dizer que os professores fossem «simples»
cordeiros a cumprir orientações de facilitismo por parte do Ministério. Isso é algo que não
faz nenhum sentido. Nos últimos dois anos os resultados melhoraram em todos os anos de
escolaridade, do 1º ao 12º, naqueles que tiveram exames e nos que não tiveram. Pelo que
essa questão de facilitismo nem se coloca. Obviamente que os resultados são a consequên-
cia das medidas tomadas pelo Ministério na escola. Além disso, como todos sabemos há
uma questão fundamental no processo de aprendizagem: para aprender é preciso querer-se
aprender. E os jovens para querem aprender têm que ter percursos escolares que sejam
motivadores para eles.

Esse sucesso deve-se também a uma mudança de estilo governativo por parte do
Ministério da Educação?
Há uma mudança de estilo desta equipa ministerial, sem dúvida. E não estou a falar nas
ideias ou das estratégias de política, porque anteriores equipas também o tiveram. Refiro-me
à questão da realização: ou seja garantir que a política acontece e que as coisas se fazem. Nin-
guém nos vai tirar o mérito, por exemplo, por nos cursos profissionais termos mais 100 mil
alunos no sistema. E isso foi feito com a legislação que já estava em vigor. Apenas adoptámos
medidas de organização e gestão com as escolas.

Isso demonstra que a escola pública estava preparada para responder aos desafios?
Demonstrou que estava melhor preparada do que aquilo que se dizia. É importante
recuperar as afirmações de muita gente, nessa altura, em que não houve ninguém que dis-
sesse que a escola tinha condições para avançar nesse sentido. Sofremos logo críticas dos
sindicatos afirmando que não havia condições. Os comentadores disseram que éramos vo-
luntaristas. Ora a nossa convicção é de que se arriscássemos a ideia de que a escola não
conseguiria dar resposta aos problemas da qualificação dos jovens, teríamos que por em
causa a natureza da escola. A escola é uma das maiores realizações da civilização humana
e que permitiu os níveis de bem estar da sociedade. Nesse sentido, não estaria disponível
trocar isso por nada. Estamos muito satisfeitos de ter sido possível provar, no terreno, que
a escola pública está em condições de cumprir as suas funções. E esse é um dos principais
resultados destas medidas.

E a igualdade de oportunidades deve começar logo no 1º ciclo?


No 1º ciclo a desigualdade que se verificava era brutal, era ofensiva para uma consciência
de cidadania. Eu sentia-me ofendido. Havia crianças, no 1º ciclo, que não tinham direito
a nada. Eram escolarizadas em escolas que tinham apenas uma sala de aula e um quadro
preto, por onde passavam quatro ou cinco professores no mesmo ano lectivo. E havia ou-
tras em que tinham excelentes condições, com meios informáticos e quadros interactivos.
Ou seja havia uma desigualdade que nos ofendia. Em 2005 havia crianças que não tinham
direito a alimentação. Estavam o dia todo sem comer. Eram situações que ultrapassavam as
228 ›
meras questões de política educativa. Daí que a nossa primeira acção fosse para o 1º ciclo,
encerrando escolas sem condições e com poucos alunos, melhorando as condições de ou-
tras, criando centros escolares, resolvendo a questão da colocação dos professores, fazendo
com que eles ficassem mais anos na escola, e resolvendo também o acesso ao saber. Só as
crianças da classe média tinham acesso à música, à educação física ou à aprendizagem do
inglês, por exemplo. Fizemos uma grande revolução completa no 1º ciclo. Neste momento
estão em construção cerca de 300 centros escolares em construção, o que garante outro tipo
de condições aos alunos.

O papel das autarquias foi importante?


Foi mais um dos sectores em que só havia retórica anteriormente. Não havia nenhuma
descentralização. Só é possível garantir que, num sistema que tem milhares de escolas, que
numa determinada escola estão a ser prestadas e acompanhadas determinadas condições,
se isso for feito por quem está no terreno, por quem conhece. É uma questão de princípio.
Quando lançámos o conceito de escola a tempo inteiro tínhamos duas opções. Ou era o
Ministério a colocar os professores e teríamos hoje com uma execução de 30 por cento, ou,
em alternativa, atribuir recursos às autarquias e fazer com que o projecto fosse implemen-
tado por elas. Esta experiência, como refere a Associação Nacional de Municípios, foi feita
com toda a transparência. Isto permitiu-nos verificar que era possível implementar o pro-
jecto mais depressa, pois não poderíamos aceitar a ideia de que as crianças que já estavam
no sistema não pudessem usufruir destas medidas. Como esta parceria com as autarquias
funcionou bem, partimos para outro patamar como a transferência de espaços físicos e de
funcionários para as autarquias. Todo este processo foi realista e através de negociação com
as Câmaras - neste momento o acordo foi já feito com 100 autarquias.

Ainda no que respeita à requalificação do parque escolar português. Esse é um


processo que vai continuar?
Fizemos a maior operação de qualificação física escolar de toda a história portuguesa.
Só para se ter uma ideia a requalificação de todas as escolas secundárias custa o mesmo que
a construção do aeroporto de Alcochete. Mas investimos também no plano tecnológico,
colocando a escola portuguesa na linha da frente. Antes entrávamos na escola e tínhamos a
ideia do passado e não do futuro. O plano tecnológico na educação visou dotar as escolas
de meios modernizando-a para o futuro. É fundamental que os alunos tenham acesso à
internet em qualquer lado, que haja uma utilização dos quadros interactivos, que haja uma
disponibilidade tecnológica ao mais alto nível. E hoje Portugal é alvo de estudo, não só
nesta matéria, por parte de outros países desenvolvidos. Somos o primeiro país do mundo
a colocar um computador pessoal na mão de cada aluno, com acesso à internet. E isto não
é estritamente uma questão educativa, mas também social, de igualdade de oportunidades.
Milhares de crianças tiveram acesso a isso, quando de outra forma não teriam. Este facto
demonstra que, mesmo partindo mais atrás, conseguimos dar saltos significativos.
‹ 229
João Lobo Antunes 111

A educação escolar é um exercício de amnésia programada

A desvalorização da memória promovida pela pedagogia moderna, o gradual de-


saparecimento da Filosofia dos programas escolares e a tentativa de aniquilar o livro
são ameaças ao futuro educativo do País, alerta João Lobo Antunes. O neurocirurgião
lamenta que os valores da autoridade e da reverência tenham sido afastados da escola,
ferindo a própria ciência do acto de ensinar. Em entrevista ao Ensino Magazine, o
Professor Catedrático debruça-se também sobre as inquietações, as perplexidades e
os desafios éticos que se colocam à prática médica quotidiana.

A morte e o envelhecimento são temas dos seus livros. Os idosos são despre-
zados pela sociedade?
Antes de mais, creio que a sociedade tomou consciência de que está envelhecida.
Por duas razões: devido ao aumento da esperança média de vida e pelo facto de a
natalidade ter diminuído substantivamente. Consequência disso é a inversão da pi-
râmide etária. Há localidades, nomeadamente na Beira, em que há mais pessoas com
65 anos, do que com menos de 15. Isto é um problema muito grave ao nível da saúde
- Há que procurar preservar uma boa qualidade de vida até mais tarde. Ou seja, dar
vida aos anos e não dar anos à vida; ao nível económico – com o aumento das presta-
111 Neurocirurgião e Professor Catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa Entre 1971 e 1984 viveu
em Nova Iorque, onde foi bolseiro da Comissão Fullbright e professor associado no Departamento de Neurocirurgia da Uni-
versidade de Columbia. Presidiu à Sociedade Europeia de Neurocirurgia. Foi também professor convidado da Universidade de
Pequim. Actualmente dirige o Serviço de Neurocirurgia do Hospital de Santa Maria,
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva, em Novembro 2009.

‹ 231
ções sociais para segurança social e as reformas; e no domínio da solidariedade social,
segurança, solidão e risco de violência contra idosos fruto da sua vulnerabilidade, já
para não falar do facto de as cidades não estarem preparadas para acolher idosos. O
envelhecimento da população será certamente um dos grandes problemas sociais das
próximas décadas.

Abandono, pobreza e violência são uma combinação de factores perigosa. Es-


tamos a criar uma sociedade baseada na indiferença e de distância relativamente
ao próximo?
Isso é uma mensagem pessimista e quem tem estudado o tema de forma aprofun-
dada não pode estar de acordo. A ideia de que a tecnologia, os valores do dinheiro, da
beleza, da vitória e da competição são os que prevalecem na sociedade contemporâ-
nea, precisa de ser vista com outro sentido crítico. Temos hoje uma sociedade vertical
e multi-geracional, em que cada vez mais os avós olham pelos netos e vice-versa.
Prevalecem valores muito sólidos pelos quais vale a pena afirmar e lutar, para que
perdurem no tempo e se transformem em actos.

Faz aproximadamente 400 operações por ano, no sector público e priva-


do. A questão das listas de espera é um dos principais problemas do SNS.
O problema é de falta de meios ou meramente de défice organizativo?
O caso da minha área, a neurocirurgia, é muito particular. Repare que não te-
mos listas de espera para tumores cerebrais, por exemplo, visto que estes doentes
são altamente prioritários. Na minha opinião não há neste momento no serviço
público meios para abolir eficazmente listas de espera em patologia de coluna. O
meu serviço tem uma produtividade muito considerável, inclusive é o número um
do País, segundo a avaliação da Escola Nacional de Saúde Pública, mas nós não
chegamos para as encomendas. Mesmo que as duas salas de operações estivessem
a trabalhar todo o dia não seria suficiente. O que não significa que eu concorde
que o recurso a instituições privadas seja feito da forma actual. Nada garante que
a qualidade prestada em instituições desta natureza seja avaliada do modo que eu
entendo, quanto aos procedimentos e quanto às indicações. A regulamentação do
privado é um passo fundamental para harmonizar ambos os sectores, segundo a
conceptualização que considero mais indicada.

Defende uma melhor articulação entre ambas as realidades?


Existe um papel legítimo do privado, que eu tenho defendido, mas é preciso
definir padrões de qualidade: quem faz, quem não faz, para não acontecer que após
uma operação no privado, e pós alguma complicação que surja, o paciente regresse
ao público. Ou seja, a responsabilidade do privado limita-se, praticamente ao acto
cirúrgico em si, o que na minha visão não é a filosofia mais correcta.
232 ›
O curso de Medicina, ao contrário dos de Gestão, Economia e Psicologia, garante
alguma estabilidade profissional. É essa segurança que explica a grande procura em
termos de carreira universitária?
Acho que não. Continua a haver uma grande apetência, especialmente da população
feminina - cerca de dois terços dos alunos de Medicina são mulheres - e um genuíno inte-
resse e atracção pelas Ciências da Saúde, até pela possibilidade utópica de praticar o bem.
Evidentemente se houver uma pletora de médicos e não existir prudência na regulação
do seu número, pode chegar-se a situações de desemprego, o que seria uma catástrofe.
Mas veja que ao contrário de um psicólogo, um economista ou um jurista, que têm
uma multiplicidade de saídas profissionais, nós praticamente só temos a Medicina. Claro
que é possível ir para a indústria ou para a investigação, mas são carreiras sem significado.
Por isso as nossas aptidões são limitadas.

Continua a entender que o universo de médicos está mal distribuído pelo País?
Isso é uma evidência constatada pela realidade. Portugal hoje está próximo de si próprio.
Já não existem distâncias intransponíveis. Estou convicto que se pode ter uma vida muito
agradável e de satisfação profissional seguindo esta carreira, o que é preciso é garantir os
meios e criar atractivos para que as pessoas se desloquem para fora dos centros urbanos.
Reconhecer e retribuir o esforço e o mérito é fundamental, especialmente nesta profissão.

«Conheço muitos professores, e nos últimos meses, ainda não vi nenhum feliz»,
afirmou numa entrevista no auge do «braço de ferro» entre os docentes e a tutela.
Que estados de alma partilharam consigo os professores que passaram aqui pelo
seu consultório no Hospital de Santa Maria?
Digamos que a mensagem fundamental se pode resumir a isto: não fazem aquilo para
que foram treinados. Existe uma desadequação entre aquilo que sabem fazer e as funções
que lhes foram distribuídas.

Sentiu muita amargura nesses testemunhos?


Há uma enorme incerteza relativamente a tudo: ao futuro, às posições, aos lugares, às
vagas, etc. E separam-se casais de uma forma desumana. Da mesma forma que na Medi-
cina os médicos se casam com médicas, no ensino os professores contraem matrimónio
com professoras. Há situações de casais muito jovens, a começar a vida em conjunto,
separados por centenas de quilómetros. É algo que faz sangrar o coração. Não sei qual a
solução para isto, mas que o fenómeno humano e social existe, lá isso existe.

Este conflito aberto entre a tutela e os docentes feriu de morte a autoridade


dos professores?
Talvez não seja politicamente correcto o que vou dizer, mas toda a forma de
ensino é um exercício de autoridade. Esta tolerância máxima nas escolas e aquilo
‹ 233
que se reclama com os direitos dos alunos, mais do que com os seus deveres, parece
ofuscar o facto fundamental de que há uma assimetria de autoridades. O professor
sabe, o aluno aprende. O professor ensina, o aluno é o receptor. Portanto, tudo o
que de alguma forma ameace a assimetria de autoridades acaba por ferir a própria
ciência do acto de ensinar.

O Liceu Camões completou recentemente 100 anos. Na condição de antigo


aluno, pronunciou um discurso em que destacou o rigor com que o Reitor
Sérvulo Correia geriu a prestigiada escola de Lisboa. Que recordações tem
desses tempos?
O Reitor era muito severo e autoritário, mas tinha o mérito de governar um
grande liceu. E quando olhamos para trás vemos que a disciplina que reinava era o
ingrediente fundamental do processo de aprendizagem na altura.

É o ingrediente que agora falta?


Há algumas posições absurdas, porque o exercício de autoridade é sempre este
deslizar para um despotismo não esclarecido. A autoridade não se impõe pela força,
mas pelo respeito. E também por outro sentimento que está muito fora de moda
e a que o George Steiner chamou «reverência». A reverência tem que existir rela-
tivamente à pessoa, mas também tem que existir pela carga simbólica do cargo.
Quando oiço pessoas com responsabilidade usarem relativamente ao Presidente
da República certas expressões, espanto-me como é que esses indivíduos poderão
exigir aos alunos respeito pelos professores.

A reverência pelo velho mestre que tudo ensinava perdeu-se em definitivo?


O professor merece reverência, a começar pelo cargo que representa, pelo sim-
ples facto de ser professor. A partir do momento em que se mina esse sentimento,
tudo pode acontecer.

Os actos de violência nas escolas foram a expressão que se perdeu o respei-


to à classe docente?
Sem dúvida. Hoje em dia dou algumas aulas, a pequenos e a grandes grupos, e
quando vejo alguém a enviar um SMS dentro da sala, interrompo-a de imediato e
convido a pessoa a sair. Sei que não é prática corrente, mas parece que hoje em dia
os professores têm medo dos alunos. Eu não aceito.

Admite que falta vocação a alguns professores?


Sou frequentemente convidado para palestras em escolas secundárias. Das mi-
nhas viagens constato que existem docentes com uma enorme boa vontade. Tal
como a Medicina, o ensino e a docência são vocações. É o vocatio, a resposta a um
234 ›
chamamento. Eu sou por natureza um educador, porque percebi a importância que
teve para mim a educação. Ou seja, o processo de transformação da forma como eu
me fiz, naquilo que sou. Isso cria um dever moral quase de retribuição. A cirurgia
tem de ser ensinada e é muito compensador observar que o processo de evolução
das pessoas é transformativo.

Definiu o computador “Magalhães” como uma espécie de vacina anti-ilite-


racia. Porque é que afirma que é uma solução fácil que não contribui para a
memorização e para exercitar o cérebro?
Um dos enormes disparates da pedagogia moderna foi desvalorizar a memória.
A educação escolar é hoje, em grande medida, um exercício de amnésia programa-
da. Recordo que a minha aprendizagem de Medicina foi, desde sempre, um exercí-
cio de musculação da memória. A memória é essencial para a vida, em geral, e para
o exercício de uma profissão, em particular.
O melhor professor de Matemática que tive, e que marcou muitos dos que passaram
no Liceu Camões, o professor Carneiro da Silva, obrigava-nos a decorar as fórmulas
matemáticas e, no dia seguinte, dizia simplesmente isto: «cantem meninos, cantem».

Hoje em dia abusa-se das receitas educativas mais fáceis e de resultados rápidos?
Abusa-se. Outro disparate é a tentativa de aniquilar o livro.

Tem combatido o que diz ser o «apagamento» da filosofia nos programas


do ensino secundário, sublinhando a importância desta disciplina na sua vida
profissional e pessoal. O que perde um ser humano em construção cívica e
moral sem as referências filosóficas?
Como dizia o Fernando Gil, provavelmente o melhor filósofo português do sé-
culo XX, sem a Filosofia perde-se «a capacidade de ver para lá da aparência das
coisas». Digo que também que se perde sentido crítico, a percepção das contingên-
cias da verdade e da evidência e o sentido da administração do transcendente. A
outra dimensão da nossa existência. No fundo, a escola e o mundo sem a Filosofia
tornam-se num enorme empobrecimento.

Corre-se o risco de a Filosofia desaparecer por completo da escola?


É o mesmo risco que se corre ao desvalorizarmos os portugueses, se insistirmos
na relativização de tudo, em que tudo vale a mesma coisa, o que não é verdade…

O seu pai trabalhou de perto com Egas Moniz. Já confidenciou que o Prémio
Nobel da Medicina, em 1949, foi uma das pessoas que o influenciou a seguir
esta carreira e está, neste momento, a trabalhar na biografia de Egas Moniz, a
lançar no próximo ano durante as comemorações do Centenário da República.
‹ 235
Quer falar-nos um pouco desse projecto?
É uma empresa demorada, custosa e difícil, mas muito gratificante. Não sei se será
possível ter a obra pronta a tempo das comemorações do Centenário da República,
mas pela investigação que tenho feito já percebi a dificuldade de compilar a vida
de uma pessoa que viveu tanto tempo e que deixa um legado tão rico. Eu gostaria
muito, de acordo com as minhas possibilidades, que esta fosse a obra mais perfeita
que consegui fazer com aquilo que tenho. No fundo, pretendo, em colaboração com
outros «egófilos» que existem neste País, chamar a atenção para o significado que este
português teve na história das neurociências a nível mundial.

Sem ser político, tem estado perto deles e merecido a sua confiança para
funções de destaque. Foi mandatário nacional das candidaturas presidenciais
de Sampaio e Cavaco e, actualmente, é Conselheiro de Estado. Os políticos e as
políticas não têm dado resposta para os problemas do País. Acha que os políti-
cos são incompetentes ou incompreendidos?
Se calhar é um pequenino componente de ambas as coisas. A minha primeira
palavra é de respeito para os que conseguem ser políticos. Qualquer cargo desta na-
tureza é de uma enorme delicadeza e complexidade. Tenho encontrado muitos com
sentido de Estado e do dever. Nutro uma enorme admiração pelo poder autárquico,
tendo-me cruzado, ao longo destes anos, com gente admirável e empenhada. Inde-
pendentemente dos pecadilhos que possam ter, seja de ambição pessoal, vaidade, etc.
Isso a mim não me interessa. Um político vale basicamente pela obra, o que não quer
dizer que aprove todas as maneiras de a colocar em prática.

De que políticos não gosta verdadeiramente?


Não gosto dos políticos que mancham o serviço público com a intolerância, que
recorrem ao insulto por não terem liberdade intelectual para reconhecer a bondade
de opiniões opostas. Confesso que também não gosto dos políticos que nasceram na
política e nunca fizeram outra coisa na vida e que desconhecem o mundo real e as
verdadeiras dificuldades das pessoas. Tenho uma enorme suspeita por quem nasce,
cresce e acaba por morrer dentro da política, sem ter tido outra experiência qualquer.
É preciso reconhecer que da mesma forma que há maus médicos e jornalistas deso-
nestos, é possível que também haja políticos incompetentes. Acontece que eu tenho
uma enorme tolerância para com as fraquezas da natureza humana.

E também há os que são trucidados pelo sistema...


O dever cívico comum a todos nós é desempenhar da melhor forma possível, no
dia-a-dia, aquilo que nos compete fazer. Deixe-me falar de dois políticos, que já não
estão em funções e que foram severamente criticados. Tome-se, por exemplo, a ex-
ministra da Educação Maria de Lurdes Rodrigues, pessoa que critiquei várias vezes.
236 ›
Tenho um enorme respeito por ela. Tenho a certeza absoluta que as suas medidas
foram tomadas em consciência, tendo em vista o melhor para o País, alunos, profes-
sores e sociedade em geral. Veja-se, também, o ex-ministro, Correia de Campos, na
Saúde, que por ser tão criticado, acabou afastado. Ele tinha uma ideia convicta, em
certos aspectos com muito mérito, mas acabou traído por alguma inabilidade política.
Tenho muito respeito por ambos. Eu não era capaz de fazer o que eles fizeram.
Prova disso, é que já fui convidado para ser ministro e não aceitei.

Define-se como um «médico que escreve». Os seus irmãos, Nuno e António, tam-
bém são escritores de sucesso. Lê o que eles escrevem? Trocam críticas literárias?
Temos uma enorme independência, mas alguns dos assuntos que se encontram
nos livros são temas das nossas conversas. O António refere-se, uma vez por outra,
àquilo que eu escrevo. Reconheço uma autoridade em relação à minha escrita que eu
não tenho em relação à escrita dele. Mas aprecio quando há uma palavra de elogio.
Não posso deixar de o confessar. Quanto ao Nuno, escreve também muito bem. Nou-
tro registo. Ambos merecem o meu respeito e aplauso.

Os irmãos Lobo Antunes, escritores, não disputam os mesmos públicos?


Temos públicos diferentes. Não sei qual o meu nicho mas, vai para uns tempos,
encontrei um senhor muito idoso, aqui no Hospital de Santa Maria, que se dirigiu a
mim para me agradecer o prazer que lhe dava com a minha escrita.
Se houver um só leitor que seja a pensar desta maneira, então acho que vale a
pena escrever.

‹ 237
Garcia Pereira 112

Bolonha enferma de uma estratégia economicista

Fiel ao seu estilo frontal e polémico, Garcia Pereira afirma que o contínuo des-
prestígio da Justiça mais não é do que o requiem do Estado de Direito e condena a
impunidade das violações do segredo judicial, apontando que as fugas partem do in-
terior do próprio sistema. O Professor e advogado lança um aviso à navegação: é nos
momentos de convulsões sociais e desconfiança na Justiça que pescam os Bonapartes.
Critica ainda a falta de pensamento estratégico para a educação e denuncia que se
estão a formar cidadãos «amorfos e pouco conhecedores». Em entrevista ao Ensino
Magazine recorda ainda o dia 12 de Outubro de 1972, quando presenciou a morte
do dirigente estudantil Ribeiro dos Santos, às mãos da PIDE.

O ano passado publicou um livro com um título premonitório, intitulado


«Um país sob escuta». Como advogado e cidadão, como vê Portugal, à luz dos
mais recentes acontecimentos?
Condeno veementemente a violação sistemática do segredo de justiça e, conse-
quentemente, a destruição do valor da privacidade dos cidadãos. Acho que vamos
por muito mau caminho se persistir a impunidade para essas violações. O Estado de
Direito dispõe de regras e leis que têm de ser respeitadas, por muito que não esteja-
112 Advogado, Professor Universitário e dirigente político do PCTP/MRPP. É o actual líder daquele partido e tem encabeçado
diversas candidaturas, quer para as eleições legislativas, pelo círculo eleitoral de Lisboa, quer para as autárquicas, no municí-
pio de Lisboa, quer para a Presidência da República. É considerado um dos maiores especialistas portugueses em Direito do
Trabalho.
Entrevista de Nuno Dias da Silva, realizada em Fevereiro de 2010.
‹ 239
mos de acordo. É um espectáculo degradante ver que uma providência cautelar de-
cretada por um tribunal é ostensivamente incumprida através do expediente de dizer
que não está nenhum dos visados na redacção do jornal. Uma situação como esta é o
verdadeiro «requiem» do Estado de Direito.

E qual é a origem das violações sistemáticas do segredo de justiça?


As principais fugas do segredo de justiça provêm de dentro do sistema, ou seja da
polícia, do Ministério Público e dos juízes de instrução criminal. Assiste-se a um jogo
completamente perverso que consiste em procurar ganhar fora de campo, aquilo que
pelos vistos não se consegue ganhar dentro de campo. Já tenho anos suficientes de
advocacia para concluir que casos mediáticos em que existem violações do segredo
de justiça e presunção de inocência dos arguidos, tudo isso indicia que, em sede de
investigação criminal, não se conseguem elementos suficientes para sustentar um
juízo de acusação processual. Logo, à guisa de compensação, a moral da história é:
«não te conseguimos agarrar do ponto de vista da responsabilidade criminal, mas ao
tribunal da opinião pública não te escapas».

Com isso pretende tirar legitimidade ao uso de escutas na investigação?


O uso de escutas é um uso e um abuso. Há excepções, mas de forma genérica, a
investigação criminal tem perdido eficiência, viciando-se em meios de investigação
que se fundam na auto-culpabilização dos arguidos, ou seja nas escutas. Em Portugal
escuta-se de forma desmesurada – quatro vezes mais aqui do que em França, para dar
um exemplo. Outro dos meios usados é a confissão dos arguidos, muitas vezes obtida
através de meios a que se chamam eufemisticamente «interrogatórios informais», a
meio da noite, e bastante musculados. Nos processos onde não há escutas e onde os
arguidos têm capacidade de defesa forte, fruto do seu poder económico, obtêm-se
derrotas impressionantes.

Esta crise do regime democrático é irónica porque coincide com o centenário


da República...
Sem dúvida. Estamos a viver um período extremamente perigoso e é precisamente
nestas águas turvas que pescam os Bonapartes. Os salvadores da pátria costumam ter
saída em períodos de crise e em que não de desenham alternativas. Não esqueçamos
que o Hitler chegou ao poder aos ombros dos operários.

O Direito do Trabalho é a sua área especialidade. Alertou para uma hecatom-


be nos tribunais em termos de pendência processual acumulada. Em que pé está
a situação?
Está a agravar-se, especialmente nos tribunais de trabalho das grandes urbes, em
particular Lisboa. É mais um crime contra os cidadãos trabalhadores deste País do
240 ›
qual o engenheiro Sócrates não pode ser absolvido. Ainda antes do agravar da crise,
o tribunal de Trabalho de Lisboa tinha uma pendência média de cerca de 1 ano. En-
tretanto, o então ministro da justiça, Alberto Costa, com base num estudo que nun-
ca ninguém viu, decidiu a extinção da terceira secção dos cinco juízos do tribunal,
amputando-a em um terço a sua capacidade de resposta. Com isto a duração da pen-
dência nos processos triplicou. Neste momento temos julgamentos a ser marcados
para 2012. Quer isto dizer que muitos desempregados vão ver o seu processo chegar
à fase de julgamento, encontrando-se completamente vulneráveis, sem subsídio de
desemprego, com rendas de casa por pagar, etc.

Isto num período em que as situações de litígio aumentam devido ao agudi-


zar da crise…
É evidente. O que é chocante é que os responsáveis políticos foram avisados para
este cenário, mas o executivo mantém uma visão neo-liberal destas questões e acha
que a Justiça não é um direito fundamental, mas sim um mero serviço. E quem o quer
usar, paga-o. Paga-o e bem. Visto que aqui a justiça laboral é paga e de forma muito
cara e o sistema de apoio judiciário praticamente só se aplica a quem vive debaixo
das pontes.

Porque que afirma que o Estado viola a lei laboral?


Um país que tem uma capacidade produtiva residual, que aceitou destruir a sua
agricultura, a indústria, as minas e as pescas, mantendo apenas um fraco sector terci-
ário, assente nos call centers e outras coisas do género, continua a ter por essencial da
sua estratégia de competitividade o velho modelo taylorista da utilização intensiva de
trabalho barato e mal pago. Somos os chineses da Europa, como disse o ex-ministro
Manuel Pinho. Por isso é que se torna socialmente admissível aceitar uma fraude
completa à lei que são os chamados «recibos verdes» para encobrir verdadeiras rela-
ções de trabalho subordinado. O principal autor dessa fraude não é outro que o Esta-
do. Qual é a autoridade moral do Estado de chegar ao pé de um empregador privado
e exigir que este não pode ter trabalhadores a «recibo verde»?

O ex-presidente do Conselho de Reitores alertou o governo para a necessi-


dade de travar a «epidemia de cursos» do ensino superior. É sustentável que
tenhamos 4 mil cursos em Portugal?
Tem-se assistido a um total desinvestimento no ensino como ferramenta estratégi-
ca do futuro, descurando o controlo e a supervisão sobre os padrões de qualidade. O
Estado só reparou que a Universidade Independente era o que era quando espoletou
o caso da licenciatura do Primeiro-Ministro? Bolonha, que mais não é do que a lógi-
ca económica da época da mundialização aplicada ao ensino, foi transformado, em
alguns países, nomeadamente o nosso, como um óptimo pretexto para diminuir o
‹ 241
financiamento do Estado no ensino superior, convertendo as faculdades em autênti-
cas empresas do Vale do Ave, particularmente interessadas em mandar trabalhadores
(leia-se professores) borda fora.

Esta lógica de desinvestir vai ter consequências nocivas na qualidade do ensino?


O problema vem muito atrás, porque não existe em matéria de educação ne-
nhum pensamento estratégico. Os últimos anos tornaram essa realidade mais clara
ao perceber-se que as preocupações do governo são meramente estatísticas. Opta-se
pela facilitação completa se isso permitir fingir que temos mais qualificações do que
tínhamos, o que é mentira. Portugal não tem doutores e engenheiros a mais, pelo
contrário. Tem duas vezes e meia menos possuidores de qualificações de licenciatura
ou graus superiores, relativamente à média da União Europeia.

O que é ensinado nas universidades tem correspondência prática com o


mundo real?
Essa é outra falha grave: os conteúdos. Qual é o papel fundamental do ensino? Para
mim é criar cidadãos activos e conscientes, capaz de pensar pela sua própria cabeça.
O que se faz no ensino é o oposto. Os professores do secundário e do superior deviam
debater que conhecimentos os cidadãos de um país da Europa, que se pretende avan-
çado, devem possuir. Eu sou Licenciado, Mestre e Doutor em Direito e defendo que a
Matemática e o Português deviam ser obrigatórios em todas as áreas de ensino.
Já o cientista Damásio diz que não se pode pensar adequadamente sem o domí-
nio da própria língua. A Matemática é fundamental para a formação do raciocínio
lógico. Enquanto isso, entretemo-nos com as nacional-pacovices que garantem que a
internacionalização do ensino passa por se darem umas aulas em inglês, mesmo que
existam pessoas que mal saibam falar e escrever a Língua de Camões.

Com esse baixo nível de exigência corremos o risco de formar gerações


de medíocres?
O sistema de ensino instalado tende a formar cidadãos amorfos e muito pouco
conhecedores, cuja ignorância sobre as coisas fundamentais da vida é disfarçada pelas
estatísticas para inglês e, já agora, português ver.

Perdeu-se tempo demais com a questão da avaliação dos professores, em vez de


se ter dirigido a atenção para a avaliação dos alunos e a discussão dos conteúdos?
O tempo perdido deveu-se simplesmente à arrogância do poder político. A luta
travada pelos docentes foi justa e heróica. As ideias para o sistema de avaliação da
anterior ministra em nada dignificavam a excelência do ensino, baseando-se apenas
na sujeição dos professores a uma lógica de fábrica e a sua domesticação dentro de
esquema do «portas-te bem, talvez progridas na carreira» ou «se levantas problemas,
242 ›
ficas estagnado». Valeu a pena a luta empreendida pelos professores. Em boa medida
eles são os responsáveis por o governo PS ter perdido a maioria absoluta. Passada esta
fase, a grande luta deve ser pelos conteúdos do ensino e pelos métodos de trabalho e
de aprendizagem e pelo apelo à inteligência crítica dos alunos em detrimento da ca-
pacidade de memorização. O dramático é que nada foi feito até agora. Aqui também
estamos no grau zero.

Enquanto estudante universitário, um momento marcante para si foi o assas-


sinato de Ribeiro dos Santos, que simbolizou o movimento estudantil contra a
ditadura até ao 25 de Abril. Que memória guarda desse dia?
Esse momento trágico representou o meu salto qualitativo em termos de mili-
tância política activa e clandestina. Tinha enorme admiração por Ribeiro dos San-
tos. Estávamos num meeting contra a repressão no dia 12 de Outubro 1972, em
Económicas, o actual ISEG. O faro anti-bufo era muito apurado e desconfiámos de
um elemento que estava na plateia. Quase sem aviso, Ribeiro dos Santos foi morto
à queima-roupa com dois tiros no peito por um membro da PIDE. O funeral foi um
acto memorável de mobilização da população, indiferente à intimidação do regime,
que colocou milhares de polícia de choque nas ruas, armado até aos dentes, com cães
e ambulâncias, já temendo o pior. Tive a nítida sensação de que o princípio do fim
do regime tinha começado ali. E havia muito mais gente a lutar contra o regime do
que parecia. Lembro-me que apanhei a carreira 27 rumo ao funeral e não conhecia
ninguém dentro do autocarro, mas tive a convicção que os que ali estavam, iam todos
para o mesmo destino. Logo a seguir aceitei ser recrutado para membro da organiza-
ção do MRPP para a juventude estudantil. E assim tudo começou…

‹ 243
Mira Amaral 113

A situação do ensino é dramática

Portugal não sairá da crise tão cedo. Palavra de economista. Luís Mira Amaral
afirma que o país desaproveitou o período de vacas gordas e. de aluno aplicado. ra-
pidamente reprovou no controle da despesa pública. O resto já se sabe. A receita do
ex-ministro é simples e radical: cortes no número de deputados, câmaras municipais,
freguesias e na composição dos governos. Sobre o sector do ensino diz que a situa-
ção é dramática e diagnostica os problemas: sobra em dinheiro, o que falta em rigor
e competência e critica sem piedade as teorias modernas dos “sinistros” pedagogos
do ensino. Mira Amaral conclui com uma nova pista para debate: as universidades
devem reciclar jovens já formados, reorientando as suas qualificações para suprir
necessidades do mercado laboral.

Lançou recentemente a obra «E depois da crise?». É um livro que perspectiva o


futuro da economia nacional e mundial após serem ultrapassadas as dificuldades?
É um livro que aponta os cenários possíveis para a saída da actual crise. Isso signi-
fica que o mundo já perspectiva cenários posteriores à crise, uns mais e outros menos
felizes. Acontece que há países melhor preparados do que outros para superá-la.
113 Engenheiro, economista e gestor de empresas. Iniciou a sua carreira académica como assistente do Instituto Superior
Técnico, onde é Professor Catedrático convidado. Foi membro dos X, XI e XII Governos Constitucionais, do PSD, liderados
por Cavaco Silva. Aí ocupou os cargos de Ministro do Trabalho e Segurança Social (1985-1987) e Ministro da Indústria e
Energia (1987-1995). Exerceu ainda o mandato de deputado à Assembleia da República (1995-1999), integrado no Grupo
Parlamentar do PSD.
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva, em Agosto de 2010.

‹ 245
E no nosso caso?
De uma forma clara a objectiva, afirmo que Portugal não vai sair da crise. Porque
antes desta tormenta financeira que assolou o mundo, o país já vivia numa crise
estrutural muito séria, desde os tempos do governo Guterres. Simplesmente a con-
juntura tornou mais explícitas as nossas fragilidades estruturais. Eu previ que em
2013 ou 2014 estaríamos na situação actual, mas a nossa impreparação acelerou o
processo. Nós antes da crise já estávamos em péssima forma física, só que em tempo
de vacas gordas não fizemos o trabalho de casa e o resultado está à vista.

Há dias um jornal especializado questionava: «Afinal quem tramou a econo-


mia portuguesa?». Tem resposta?
Fomos bons alunos para apoiar a boleia da Europa. Quando entrámos na
moeda única, como que nos deslumbrámos, esquecendo-nos que o trabalho feito
anteriormente era para prosseguir. O governo Guterres poupou cerca de 5 pontos
percentuais nos juros da dívida pública e aproveitou isso para aumentar a despe-
sa pública corrente. A expansão da despesa pública é eloquente: era de 26,7 por
cento do PIB, em 1990, quando eu era ministro, e agora, 20 anos depois, anda
nos 42 por cento PIB. Não é preciso ser economista para detectar este disparate.
A euforia do euro desencadeou um despesismo completo, traduzindo-se num
engordar do Estado, especialmente concretizado num injustificado aumento dos
funcionários públicos. Ou seja, ficámos com salários muito acima do nosso nível
de produtividade. A perda de competitividade é a consequência imediata. Goste-
mos ou não, é esta a dura realidade.

Defende a diminuição de salários ou de funcionários públicos? Onde é que o


despesismo público pode ser cortado?
Para começar, defendo que se devia cortar na quantidade de organismos públi-
cos e empresas municipais inúteis que existem, com milhares de administradores
e funcionários. Seria uma boa machadada nos sempre dispendiosos consumos in-
termédios. Quanto aos funcionários públicos penso que os que estivessem a mais
deviam ir para casa, e o Governo, posteriormente, negociaria com os sindicatos a
sua situação, individualmente.

É dos que partilha a ideia que o Parlamento também devia ser alvo de um
emagrecimento?
Temos deputados, câmaras municipais e freguesias a mais. E, claro, elencos go-
vernamentais excessivos. Um governo mais pequeno gasta necessariamente menos.
Quanto mais secretários de estado existirem, mais eles têm que justificar a sua im-
portância política, logo, é mais um acréscimo de gastos. Isto seria um bom sinal em
termos de despesa pública.
246 ›
E no que diz respeito às sempre tão tíbias ou adiadas reformas estruturais. O que
foi feito ficou aquém do esperado?
Os engenheiros civis sabem que um edifício aparentemente muito sólido é o primeiro
a ceder a um tremor de terra. Os edifícios que resistem são os que mexem, abanam, mas
não quebram. Esta imagem quer dizer que os sistemas abertos ao exterior têm de ter graus
de liberdade que se acomodem aos choques externos. No tempo do escudo tínhamos
instrumentos que permitiam controlar as crises. Quando entrámos na moeda única per-
demos esse instrumento e devíamos ter começado a flexibilizar os mercados de trabalho
e emprego, apostar na educação e na qualificação, de modo a aumentar a produtividade,
etc. O desemprego galopante e o desequilíbrio das finanças públicas são apenas duas
consequências por nada ter sido feito.

Com as lacunas que aponta avizinha-se a continuação de tempos muito difíceis?


Seguramente temos travessia no deserto para muitos e bons anos. Há muito
tempo que alertei para isto. Cheguei, inclusive, a escrever um artigo num jornal
intitulado «o tango argentino e o fado lusitano», em que comparei a situação das
finanças públicas nacionais com o que se passou na Argentina e que obrigou aquele
país sul-americano a desligar-se do dólar. Lembro que nesse momento também falei
na eventualidade de Portugal sair do euro e da insustentabilidade do nosso modelo.
Na altura chamaram-me pessimista e exagerado, mas infelizmente, o tempo está a
dar-me razão.

O que se pode esperar à escala global?


A nível mundial as potências emergentes vão alterar a geografia económica do
século XXI, com especial destaque para o Brasil, a Rússia, a Índia e a China – os
chamados países do BRIC. A globalização não vai parar, mas desta feita vai deixar
de ser ditada unicamente pelos americanos, que vão ter de conviver com a concor-
rência. Aliás, neste momento estamos já a assistir a uma bipolarização entre os Es-
tados Unidos e a China, que são duas nações claramente interdependentes. A União
Europeia não entra neste jogo, porque continua a ser um anão político.

É um político com experiência de gabinete e no terreno. Foi deputado e


exerceu funções governamentais no governo de Cavaco Silva. Que explicação
encontra para os políticos serem tão impopulares?
Creio que por vezes a opinião pública é injusta e mete tudo no mesmo saco.
Os governos de Cavaco e o primeiro executivo de Guterres foram os únicos que
conseguiram reunir gente competente, recrutando muitos ministros e secretários de
Estado na sociedade civil. Eu próprio, quando assumi funções, não tinha qualquer
experiência política, foi o meu primeiro cargo. Nem sequer era filiado no PSD. Toda
a vida fui um tecnocrata.
‹ 247
A lógica de recrutamento alterou-se e a qualidade foi sacrificada?
A partir do segundo governo de Guterres mudou o critério de recrutamento e passou-
se a ir buscar pessoas no seio dos próprios partidos, facto que diminuiu a qualificação. A
sociedade civil desistiu da vida política e as juventudes partidárias ocuparam esse espaço.
Muitos deles nunca trabalharam, não estudaram e não têm qualquer experiência de vida.
É obvio que neste momento não estamos a ser governados pelos melhores.

Falou anteriormente na falta de qualificação dos portugueses e nas oportunidades


desperdiçadas no período de vacas gordas. Os recentes resultados dos exames dizem,
genericamente, que Matemática, Português, Física e Química não são o forte dos nos-
sos jovens. Como se altera este panorama num país que investe tanto no ensino?
É uma boa questão e que eu abordo em detalhe no meu livro. O dinheiro não resolve
tudo na vida. Tem-se gasto muito dinheiro no sector do ensino, mas muito mal gasto.
O sistema não precisa de mais dinheiro, precisa é de rigor e competência. Urge acabar
com o facilitismo instalado. As deficiências dos jovens nas disciplinas que elencou são
dramáticas. Criou-se uma linha de pedagogos que têm sido sinistros para a educação em
Portugal e que defendem que se exigir rigor, seriedade e avaliação, estamos a violentar e
traumatizar os alunos. Olho para a minha geração e sinceramente não vejo nenhum trau-
matizado. Bem pelo contrário, vejo muitos exemplos de pessoas bem sucedidas na vida.

Atribui culpas ao rumo pedagógico das nossas escolas?


Completamente. Ao contrário do que se diz a culpa não é só dos ministros, mas apon-
to o dedo em particular aos tais pedagogos e às suas teorias assentes em modernices. O
rumo pedagógico do sistema é funesto para o nosso país. Tudo o que se relacione com
rankings e avaliações é automaticamente rejeitado, com o argumento que é prejudicial.
Assim, promovemos uma sociedade sem incentivos. E quando assim é torna-se difícil
fazer melhor e diferente. É trágico a bitola de exigência com que os jovens se deparam no
seu percurso académico. Este é o grande drama do ensino em Portugal e que traduz uma
irresponsabilidade incrível.

Não é paradoxal que num período de dificuldades se passar um sinal oposto de


um certo laxismo?
A escola transmite sinais de facilitismo que a vida real não tem. A vida profissional dos
jovens de hoje é muito mais dura do que foi a minha, mas não é essa a mensagem que
passa durante as aulas. Estão a ver o filme ao contrário. O cenário lá fora é de tremenda
competição e o desemprego agravou as dificuldades.

Já foi Ministro do Trabalho. Quem são os mais lesados por uma taxa de desem-
prego a roçar os 11 por cento?
Os mais prejudicados vão ser os jovens e os desempregados de longa duração. Aos
248 ›
primeiros o ensino não lhes deu skills para o mercado de trabalho. Dou-lhe um exemplo:
Em Maio de 2008, quando arranquei com o projecto do banco BIC, tinha dezenas de
pedidos de “cunhas” para empregar amigos e conhecidos licenciados em cursos que eu
chamo de ensino livresco. Realmente na altura do que eu precisava era de um engenheiro
informático, um técnico de operações ou um gestor financeiro, que são profissões onde é
difícil recrutar recursos humanos. Depois há o caso preocupante dos desempregados de
longa duração, com 40/50 anos, e porque não se actualizaram, são autênticos analfabetos
tecnológicos. Essa gente só volta ao mercado de trabalho com salários 30 a 40% inferiores
ao que auferiam. Os sindicatos deviam pressionar o patronato a dar formação contínua às
pessoas para terem skills de empregabilidade.

O sistema falhou na qualificação de recursos humanos?


O sistema de ensino tem formado gente em demasia para determinadas áreas e es-
queceu o ensino técnico e os quadros intermédios que as PME precisam como de pão
para a boca. Quis tudo ser doutor e engenheiro e agora há muito gente sem qualificações
adequadas para o mercado de emprego. Chegou-se à comum situação de ver licenciados
em Direito e Gestão a guiar táxis em Lisboa, em call centers ou em caixas de hipermer-
cados. O que eu defendo é que as universidades reciclem jovens com novos skills que o
mercado de trabalho carece, dando-lhes uma segunda oportunidade. Depois é necessária
uma nova legislação laboral que facilite a integração desses jovens no mercado de trabalho
e incentive as entidades patronais a admiti-los.

As universidades e as empresas ainda estão de costas voltadas, partilhando vi-


sões e interesses distintos?
Essa ligação não se estabelece por decreto-lei, mas sim gradualmente. No caso dos jo-
vens, como atrás referi, e volto a frisar, é preciso uma legislação especial para os atrair, até
porque se não houver emprego aqui, e se eles tiverem qualidade, certamente vão tentar a
sua sorte no estrangeiro.

Passou por diversas universidades na condição de docente. Pensa que em


particular no chamado domínio dos cursos de lápis e papel existe excesso de
oferta formativa?
Está-se a formar mais licenciados que depois não têm saídas profissionais suficientes.
Para ser equidistante, não queria criticar apenas as privadas, que criaram muitos cursos
de papel e lápis, mas as responsabilidades também devem recair sobre as escolas públicas,
universidades e politécnicos, que não estão a fazer o que deviam. Estou em crer que muitos
cursos deviam fechar, por serem desnecessários e sem qualquer utilidade social. O seu desti-
no devia ser, pura e simplesmente, a extinção. O que é preciso são engenheiros informáticos,
técnicos de marketing e especialistas na área financeira e contabilística, onde há carências
dramáticas. No Direito, na Gestão e na Comunicação Social já temos de sobra.
‹ 249
As escolas deviam fechar a torneira a uma boa parte desses ciclos de formação?
Restringir o acesso a estes cursos e dar uma segunda oportunidade aos que já tiraram
algum destas licenciaturas, reciclando-os para outra vertente, é o caminho que eu sugiro.
Depois há outro caso que rotulo de extraordinário e que gostaria de partilhar: estão a
simular-se muitos exames ad-hoc para aumentar as admissões. Há politécnicos que estão
a fazer isso, pervertendo um esquema que até era uma boa ideia.

250 ›
David Justino 114

Não há visão de futuro para a educação

David Justino quebra o silêncio ao lançar a obra «Difícil é Educá-los», um ensaio que
classifica como um «contributo pedagógico» para uma discussão informada sobre o sistema
educativo. Em entrevista ao Ensino Magazine o ex-ministro lamenta que se discuta a educa-
ção como se discute futebol e considera não existir visão estratégica sobre o que se quer para
o sector para os próximos 15/20 anos.
David Justino acrescenta que a Lei de Bases em vigor está parcialmente ultrapassada e
que o sistema educativo tem de, rapidamente, recuperar o tempo perdido e defende que o
reforço das qualificações é o melhor antídoto para combater as desigualdades e a pobreza.

Em «Difícil é Educá-los» analisa os factores que poderão justificar o atraso do siste-


ma educativo português. O que concluiu, em traços gerais?
Para começar faço uma distinção de acordo com três eixos fundamentais: primeiro, o
da quantidade da educação (mais escolarização, mais escolas, mais professores, etc.); segun-
do, o da qualidade da educação (até que ponto o modo que estamos a formar se adequa
aos tempos actuais); e, finalmente, a equidade (em que medida existe oportunidade de
igualdades para os diferentes alunos que entram no sistema de ensino). No fundo, tento
114 Ocupou o cargo de Ministro da Educação no XV Governo Constitucional (2002-2004), do PSD, liderado por Durão
Barroso, tendo sido precedido por Júlio Pedrosa. Economista e sociólogo, é Professor da Universidade Nova e consultor
da Presidência da República para os Assuntos Sociais. Foi vice-presidente da Comissão Política Distrital de Lisboa do PSD,
vereador na Câmara Municipal de Oeiras (1994-2001) e deputado à Assembleia da República (1999-2002). Recebeu o Prémio
Calouste Gulbenkian de Ciência e Tecnologia (1988).
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva, em Dezembro de 2010.

‹ 251
demonstrar o progresso verificado relativamente à educação na vertente quantidade. É uma
evolução assinalável, mas não tão rápida quanto seria de desejar. Há países do mundo que
já ultrapassámos, no que diz respeito à adaptação à rapidez da mudança, mas em relação a
outros ainda estamos atrás.

Em que é que consiste esse processo de adaptação à rapidez da mudança?


Em haver mais pessoas com acesso à educação e simultaneamente com grau de sucesso.
Isso pressupõe a existência de mais escolas e professores. Infelizmente, a minha investigação
concluiu que, pese embora os progressos, não conseguimos sair da cauda. Os estudos in-
ternacionais revelam que Portugal se mantém numa posição modesta. Nomeadamente nos
testes internacionais feitos pela OCDE permanecemos teimosamente na retaguarda. Basica-
mente o que se constata ; é que progredimos na vertente quantitativa, mas não o fizemos no
que diz respeito à qualidade daquilo que é ensinado.

Existe mais equidade no acesso ao ensino?


Os critérios tradicionais de selecção foram substituídos por outros, menos visíveis.
O que vai acontecendo é que com as taxas de insucesso os jovens vão saindo e vão
ficando para trás. Os resultados demonstram que o sistema de ensino é muito selectivo
e fica aquém do desejável que é alcançar a escolaridade obrigatória dos 12 anos. Urge
desenvolver um sério esforço neste domínio e vai ser preciso trabalhar bastante para
alcançar esse objectivo.

Que reflexos tem na prática um ensino que é melhor em quantidade do que


em qualidade?
Na prática gera níveis de inadequação relativamente aos desafios da sociedade actual.
Isto só pode ser resolvido com uma visão de futuro da educação. Andámos a perder mui-
to tempo a discutir questões acessórias e marginais que em nada se traduzem em melhor
educação. Desvalorizámos que a acelerada mutação social não foi acompanhada pela conse-
quente transformação educativa. A educação não responde aos desafios actuais.

O que é concluiu relativamente ao grau de exigência do sistema?


Deixo uma pergunta: Como é que se mede a exigência? Trata-se de um falso proble-
ma. Isso é o tipo de discussão de bancada e de senso comum em que eu não entro. Se
a exigência é chumbar então o sistema é exigente, mas creio que é uma falsa exigência.
É selectivo, sem ser exigente. Em suma, o sistema ao ser ilusoriamente facilitador acaba
por ser selectivo.

Depois do recato auto imposto pela sua função de assessor em Belém, quebrou o
silêncio sobre o estado da educação, em Março de 2008, no blogue Quarta República,
relembrando opiniões sobre a necessidade de reformas no ensino. Depois de citar
252 ›
textos de Oliveira Martins sobre o estado da Educação, publicados em 1888, diz que
temos problemas no sector com um século. Quer concretizar?
Existem duas perspectivas: ou os problemas têm um século, ou a forma como eles
são encarados é que tem um século. Ou seja, o discurso sobre educação tende a repro-
duzir estereótipos e alguns deles têm mais de cem anos. Quando citei Oliveira Martins
era para chamar a atenção que o discurso utilizado no século XIX, em alguns aspectos,
não mudou nada. Insiste-se muito no registo de insatisfação, mas as críticas não são ne-
cessariamente fundamentadas. Hoje toda a gente discute educação como quem discute
futebol. Na verdade, não discutem, porque falam sem saber. As pessoas não estudam,
não analisam e reproduzem o que lêem nos jornais e ouvem na televisão. Seria preciso
debater sobre dados concretos e o meu ensaio é um contributo pedagógico para isso,
procurando transmitir que certos problemas só se resolvem num contexto mais alarga-
do, distanciado da agitação do dia-a-dia.

O mediatismo em torno do sector tem prejudicado a resolução dos problemas


mais prementes?
A educação está há demasiado tempo no topo da actualidade. Desde meados da década
de 90 que a educação é uma espécie de constante campo de batalha. Vivemos numa socie-
dade de senso comum, em que as pessoas preferem achar a pensar e que reflecte o nível de
escolarização que existe em Portugal.
Não existem hábitos de reflexão e análise sobre os problemas, preferindo-se enveredar
pela lógica do confronto. O problema é que andamos há 15 anos a porfiar sobre temas que
em nada resolvem os problemas da educação. A opinião pública entretém-se a chafurdar
naquilo que é acessório, ao sabor das notícias dos jornais, e dos casos da professora que
tirou o telemóvel à aluna, do bullying, etc. Muitas das pessoas que hoje falam mal das novas
gerações porventura já se esqueceram do que é que eram.

Está a referir-se ao termo «geração rasca»?


Esse é um termo injusto, datado de meados da década de 90, porque nessa altura a
maior parte das pessoas era menos escolarizada do que é hoje. Como é que uma geração,
com muitos analfabetos, tem a ousadia de criticar uma geração bem mais informada e com
uma nova perspectiva? Insurjo-me muito contra essa frase feita de «que no meu tempo é
que era»… Quando eu era aluno a maior parte da população era analfabeta. As pessoas
esquecem-se disso…

A lógica instalada do «diz-se que diz-se» mina a coesão social?


O país precisa de assumir colectivamente uma atitude construtiva e o ponto de partida é
definir claramente o que é que queremos. O problema é que as pessoas não sabem o que é
que querem da educação. Mesmo os que têm responsabilidades políticas estão de tal forma
enredados na teia mediática que se esquecem de resolver os problemas de médio e longo
‹ 253
prazo, limitando-se a apagar os «fogos» que vão aparecendo todos os dias. Muitas políticas
são introduzidas a reboque das manchetes dos jornais.

Onde fica a visão de futuro com esta exclusiva gestão do dia-a-dia?


Não existe. Devíamos estar preocupados com o tipo de educação que vai ter uma criança
que entra agora num jardim-de-infância nos próximos 15 ou 20 anos. Alguém fala disso?
Este país consome-se no curto prazo, e a educação não foge a essa vertigem, e não consegui-
remos progredir sem uma visão de longo prazo.

Portugal aparece bem situado em termos do nível de investimento, mas o retorno


nos vários rankings em matéria de desempenho é escasso. Como interpreta este des-
fasamento?
Em termos comparados e relativos sim, em termos absolutos não. O custo por aluno
ponderado pelo PIB por habitante é uma das medidas utilizadas para mensurar o investi-
mento. Neste indicador somos dos que mais gastam em comparação com os países que têm
resultados mais humildes. Andamos a gastar e não apresentamos resultados. E é uma ten-
dência preocupante que se mantém e não dá mostras de inversão. Utilizando um termino-
logia económica posso dizer que investimento não tem a rentabilidade desejável, mas se ca-
lhar com o mesmo investimento conseguíamos ter melhores resultados. Penso que com um
nível organizacional e de qualificação de aprendizagem diferente, para melhor, os resultados
podiam ser outros. O problema não está na quantidade, mas na qualidade do investimento.

Pode-se falar em investimento perdido quando se forma ainda demasiado para o


desemprego?
É preocupante ver o Estado despender dinheiro em pessoas formadas que no futuro
não terão colocação no mercado. Ninguém teve a coragem de orientar a oferta educativa
para formações mais necessárias. O sistema não pode estar apenas preparado para formar
pessoas para o ensino superior, mas também tem de orientar-se para o mercado de trabalho.
Estamos a pagar muito caro o erro de o ensino secundário ter estado durante muito tem-
po vocacionado apenas para formar pessoas para entrarem na faculdade. Entretanto, esta
situação melhorou. Já temos mais jovens no ensino profissional. Precisamos de cada vez
mais pessoas com competências profissionais, em detrimento das que não têm qualificação
profissional e cuja saída mais previsível é o desemprego.

O tempo tem feito a selecção natural das universidades, as mais e as menos capa-
zes, mas a imagem da fábrica de produção em série de diplomados pode ainda aplicar-
se com propriedade às nossas faculdades?
Houve um fenómeno previsível de massificação do ensino superior. Se alguém tiver
vontade e condições para frequentar o ensino superior deve fazê-lo. O problema é outro:
estão a oferecer cursos onde à partida não há saída profissional. Por vezes os cursos servem
254 ›
mais para justificar a existência de professores do que propriamente a existência de alunos.
Creio que o ensino superior tem margem de progressão, mas é preciso tratar com especial
atenção a colocação dos alunos em certos cursos, adequando-a em função dos objectivos.

Se nada for feito em tempo útil o que pode acontecer?


Antes de mais é urgente reflectir seriamente sobre que tipo de sociedade vamos precisar
daqui a 15 ou 20 anos. Vamos continuar a precisar de médicos e engenheiros, naturalmen-
te, mas também há novas profissões que despontam. O problema é que se o futuro não é
acautelado, só nos resta resolver os problemas como sempre temos feito, à pressa e sem
preparação. Sem planificação e visão prospectiva dificilmente lá chegaremos. Insisto: não há
uma visão de futuro para a educação em Portugal.

Não fica incomodado quando vê pessoas que passaram uma vida a estudar a traba-
lhar num call center ou a conduzir um táxi?
Não me incomoda. Se o trabalho for digno merece todo o meu respeito. Se há uma
situação de desemprego, é natural que transitoriamente as pessoas circulem por outras ocu-
pações. Isso acontece em qualquer país da Europa. Habituámo-nos a pensar que o curso
na mão era uma garantia de emprego para a vida. Isso acabou. As oportunidades são cada
vez menores. Por isso recuso-me a falar de «geração rasca» porque estes jovens têm menos
oportunidades do que a minha geração. Vão ter de competir e de se sacrificar mais e, como
se está a ver, terão de aprender a viver com menos dinheiro.

Mas os melhores têm saídas e procuram especialmente as oportunidades que sur-


gem do estrangeiro. Como vê o fenómeno que se acentua da «fuga de cérebros»?
Esse é um investimento perdido. O País investe e quando devia obter esse retorno no
futuro, ou deixa as pessoas no desemprego ou elas abandonam o país por iniciativa própria.
Neste momento, há uma autêntica “caça” aos alunos que saem das melhores faculdades
portuguesas. Isso é uma política lesiva do interesse nacional, mas é impossível barrar a saída
de quem quer lutar pelo seu futuro. Trata-se de potencial perdido que podia ser aproveitado
aqui se lhes fossem proporcionadas todas as condições.

Foi ministro da educação entre 2002 e 2004. Desde 1987 passaram 12 ministros
diferentes pelo edifício da 5 de Outubro. Não é demasiado, inviabilizando qualquer
política coerente para o sector e em que cada um tem a tentação de deixar a sua marca?
Essa é outra ideia feita. A mediatização tende a fulanizar demasiado este cargo político.
Em determinadas situações o importante não é o ministro, mas a política. Não me importo
nada se os ministros mudam e as politicas estruturantes se mantiverem, com os ajustamen-
tos necessários. Se houver uma consensualização sobre onde queremos chegar, nomeada-
mente em termos da avaliação em todo o sistema e a aposta na qualidade (em que creio
todos estão de acordo), é obvio que todos compreenderão que há politicas que têm de ser
‹ 255
tomadas. Um ministro, seja de esquerda ou de direita, terá de adoptar as medidas próprias
em função de um objectivo que todos querem atingir. Infelizmente, dá-se prioridade a ou-
tros valores, assentes em histórias passadas e em preconceitos, impedindo a definição clara
desses objectivos. Sou daqueles que pensam que é mais fácil unir as pessoas pelo futuro do
que pelo passado.

O braço de ferro entre os sindicatos de professores e a tutela é um desses exemplos


que contribui para neutralizar o progresso?
Os sindicatos têm que existir e é bom que existam. Talvez a relação nunca tenha sido
tão conflituosa como agora. Eu próprio, enquanto governante, tive alguns problemas com
sindicatos. São concepções diferentes e eles têm que fazer o seu papel. O problema é este:
se na sociedade, no ministério ou nos órgãos de representação política não há consciência
de que há coisas que têm de ser feitas, e podem ser mudadas de um dia para o outro, en-
tão os sindicatos ganham força. No caso de as respostas a esses problemas fundamentais
forem consensualizados, então a legitimidade dos eleitos tende a sobrepor-se à legitimi-
dade corporativa. Estou certo que se houvesse uma política educativa, uma estratégia e
um quadro de referência claros, discutia-se antes as políticas e não os seus intérpretes.
Por exemplo, está-se a trabalhar sobre uma Lei de Bases parcialmente ultrapassada, no-
meadamente em termos da organização do sistema educativo e à enunciação dos grandes
objectivos. Tanto que o mundo e a sociedade mudaram nestes 23 ou 24 anos… O sistema
educativo tem que recuperar este tempo perdido para a sociedade, precisamente porque
forma pessoas a longo prazo.

Defende uma menor exposição pública e mediática dos titulares dos car-
gos políticos?
Não. A lógica é essa, não é possível contorná-la. O governante não pode é deixar
de fazer o fundamental do seu trabalho, sacrificando as políticas à dinâmica do dia-
a-dia. Esta mensagem é valida para a administração pública em geral, para as escolas,
para os cidadãos.

Vivemos num mundo onde impera a rápida mutação de modas e o paradigma


tecnológico que condiciona padrões de valores. Aquilo a que chamou o «período
de aceleração distorcida da História”. A Internet traz-nos, ao mesmo tempo, mais
informação e um défice de conhecimento. Como equilibrar ambos?
Esse é o ponto-chave: saber se o que estamos a ensinar aos nossos miúdos está de
acordo com as exigências tecnológicas e culturais que a sociedade do futuro vai colocar.
Educar é sobretudo capacitar e preparar as novas gerações para os problemas do futuro.
Como pressupõe a sua pergunta, sociedade de informação e sociedade de conheci-
mento são distintas. Só há sociedade de informação plena se existir sociedade de co-
nhecimento. Informação há muita, mas para saber rentabilizá-la e torná-la socialmente
256 ›
útil, preciso de possuir conhecimento para pesquisar, sistematizar, tratar e dar valor
acrescentado a essa informação. Perante isto, não é bom tornar os jovens um depósito
de informação, mas antes dotá-los da capacidade de processar e utilizar a informação.

Hoje é tão fácil procurar em motores de pesquisa, como o Google, que em


poucos segundos substituem uma enciclopédia. Quais os perigos do excesso de
informação, muita dela descontextualizada?
Vivemos na ilusão tecnológica. O computador é como um livro. Mas o computador
só dá as respostas se eu fizer as perguntas adequadas. É como resolver um problema de
matemática. Os grandes problemas que existem é a abundância e obsolescência da in-
formação, com nova informação a matar a informação anterior. Há um vórtice enorme.
Estamos na sociedade da informação, mas continuamos muito longe da sociedade do
conhecimento. Creio que só lá chegaremos se prepararmos e capacitarmos as gerações
para saber pensar e reflectir, a partir do conhecimento acumulado, que não é uma bi-
blioteca fechada. Não basta ser consumidores de informação, temos de essencialmente
ser produtores de nova informação. Qualquer computador dá uma receita, temos é de
ter capacidade de pensar nas soluções.

Desde 2006 é assessor para os assuntos sociais do Presidente da Republica,


Cavaco Silva. Que trabalho de pesquisa e de terreno desenvolve como conselheiro
do Chefe de Estado?
O meu papel é ajudar. Sirvo-me da experiência que tive como vereador para as
questões sociais durante 8 anos da Câmara de Oeiras e também do facto de ser profes-
sor de Sociologia e estar neste departamento na minha faculdade a coordenar uma série
de investigações. São experiências de extrema utilidade para municiar o Presidente da
República no enquadramento de problemas de âmbito social, de forma a permitir que
ele responda de forma adequada, nomeadamente nas deslocações que faz ao terreno.

É licenciado em Economia e doutor em Sociologia. Em que medida é que esta


crise de contornos económico-financeiros vai fazer mossa em termos sociais e
na alma do povo?
Já fez muita mossa. E aqui entra a questão das qualificações. A situação de crise é
potenciada ainda mais por apresentarmos dos níveis de escolarização mais baixos da
Europa. Pessoas com baixos graus de escolaridade ficam com maior risco de cair em
situações de pobreza. E o problema agrava-se na faixa etária acima dos 40 anos. Há
muitos casos destes. Perderam o emprego e devido ao baixo grau de qualificação têm
dificuldades em regressar ao mercado de trabalho, potenciando o risco de insolvên-
cia. Por outro lado, as pessoas com maior nível de escolarização integram-se melhor
social e profissionalmente. O melhor antídoto para as desigualdades e a pobreza é
haver mais e melhor educação.
‹ 257
Como sociólogo teme que o clima de insatisfação social acabe por desencadear
situações de conflito?
As conflitualidades geram-se de formas diferentes e em contextos diferentes. As nossas
estruturas, nomeadamente sociais, também são diferentes de países onde aconteceram con-
frontos, como a França e a Grécia. Estamos muito ligados à família e às origens. Os meca-
nismos de entreajuda acabam por funcionar mitigando a conflitualidade. Outro factor que
atenua a conflitualidade traduz-se nos fluxos migratórios que continuamos a manter. De há
5 ou 6 anos a esta parte que os portugueses continuam a emigrar, para Espanha, Irlanda,
Inglaterra, Luxemburgo, Angola, etc. Isto já para não falar do recurso à economia subterrâ-
nea, etc. São várias «fugas» que impedem explosões sociais. O que não significa que de um
momento para o outro não se registem erupções de conflitualidade relativamente graves.
Pode acontecer.

A «Rede Escolas de Excelência» é um projecto-piloto da Universidade Nova, co-


ordenado por si, ao qual aderiram cinco concelhos (Castelo Branco, Batalha, Loulé,
Constância e Oeiras). Que princípios estão na origem desta iniciativa?
O ponto de partida do projecto é municiar as escolas com informação de modo a que
estas melhorem os seus desempenhos. Isso tem sido feito. E não obstante a instabilidade
que existe, já se nota que os estabelecimentos começam a incorporar e a adoptar medidas
internas que podem ajudar a uma melhor qualificação. Mas tal como na política, a educação
não produz resultados imediatos. Não há milagres possíveis. O trabalho tem que ser feito
com tempo e persistência. Este projecto une, neste momento, 37 escolas dos cinco conce-
lhos que referiu. Monitorizamos todas estas instituições e constatamos que os resultados
têm melhorado.

A que se deveu a escolha desses cinco concelhos?


Os condicionalismos financeiros levaram a que tivéssemos seleccionado uma amostra o
mais pequena possível, mas ao mesmo tempo representativa, para além da garantia dos res-
pectivos autarcas de plena colaboração. O financiamento desta iniciativa não é abundante,
contamos com as verbas dos municípios e da Fundação para a Ciência e Tecnologia. Em
termos científicos, as mais-valias são imensas e recompensadoras. Considero que a «Rede
Escolas de Excelências» é um laboratório e ao mesmo tempo permite prestar um serviço às
escolas, fornecendo-lhes relatórios periódicos para que saibam como estão a evoluir, permi-
tindo-lhes uma auto-avaliação permanente.

Que fases se vão seguir?


Em 2012 termina a primeira fase do projecto. Faremos a avaliação do que foi feito. Esco-
las e municípios terão de definir se querem continuar ou não. Contudo, para não dispersar
meios não pensamos adicionar mais escolas ao projecto, mas sim difundir a experiência para
que outras escolas associadas sigam este modelo.
258 ›
Valter Lemos 115

As novas oportunidades do país

O Secretário de Estado do Emprego e da Formação Profissional, Valter Lemos,


classifica o programa Novas Oportunidades como uma mais-valia para a formação
dos portugueses e para a economia nacional. Aquele membro do Governo mostra-se
satisfeito com os resultados divulgados pelo PISA (Programa Internacional de Avalia-
ção de Alunos).

Recentemente o Programa Novas Oportunidades foi alvo de uma avaliação


externa. Quais os resultados desse estudo?
Foi uma avaliação externa internacional efectuada por um grupo de trabalho da
Universidade Católica, dirigido pelo engenheiro Roberto Carneiro e que contou com
a participação de peritos internacionais que testaram os resultados. Entre esses peri-
tos esteve o director geral da educação para adultos da Unesco, o qual classificou o
programa como o de maior dimensão em termos internacionais. Este programa tem
uma importância estratégica para Portugal. É pena que a pequena política seja impe-
ditiva de ver as implicações de tudo isto.
O Programa Novas Oportunidades é uma questão estrutural que remedeia um
problema de atraso de décadas no nosso País, mas que ainda precisa de ser acelerado.
115 Professor do Ensino Superior Politécnico. Secretário de Estado do Emprego e Formação Profissional do Governo de José
Sócrates. Ex- Secretário de Estado da Educação, sendo ministra Maria de Lurdes Rodrigues no XVII Governo Constitucional
(PS). Ex-Presidente do Instituto Politécnico de Castelo Branco.
Entrevista realizada por João Carrega, em Janeiro de 2011

‹ 259
Em 2005 se continuássemos a trabalhar ao mesmo ritmo, as contas demonstravam
que nós demoraríamos 70 anos para poder alcançar a média europeia. Se nós uti-
lizarmos os dados do progresso feito entre 2006 e 2008, verificamos que Portugal
reduziu para 30 anos esse período. É evidente que ainda é preciso acelerar tudo isto.
Os nossos atrasos eram de tal forma grandes que é necessário colocar mais velocidade
neste processo, formando e qualificando mais gente.
Não há nada de paralelo na história portuguesa, não só para com os adultos, mas
também para a formação dos jovens.

A diminuição da taxa de abandono escolar acabou por estar ligada ao apare-


cimento desse programa?
Foi este programa que permitiu, por exemplo, a criação dos cursos de educação
formação nas escolas públicas. Mais, foi este programa que permitiu que tivéssemos,
em 2009, a maior queda de abandono escolar da OCDE (Organização para a Coo-
peração e Desenvolvimento Económico), quando éramos o país com maior taxa de
abandono. E como sabemos o abandono escolar transforma-se em atraso.
O Programa Novas Oportunidades já certificou centenas de milhares de pesso-
as, mas não se resume ao sistema de Reconhecimento Validação e Certificação de
Competências (RVCC). Este programa tem o eixo dos adultos e o dos jovens. E é por
ser um programa global e integrador que consegue atingir estes números. Além do
RVCC, surgem os cursos de educação-formação de adultos, as formações modelares
escolares e profissionais, o ensino recorrente, os sistemas de conclusão do ensino se-
cundário (por exames extraordinários), a formação profissional, bem como, no caso
dos jovens, o alargamento das chamadas vias de dupla qualificação. E hoje estamos
quase a atingir a meta de ter todos os jovens na escola até aos 18 anos de idade, o que
era considerado uma miragem em 2005 por todos os especialistas. Mas estas metas
foram alcançadas porque existe o Programa Novas Oportunidades, porque há alter-
nativas de formação para os jovens.
O nosso objectivo foi o de actuar em dois sentidos. Por um lado, não deixar os jo-
vens para trás na sua formação, e por outro lado ir buscar os adultos e reconvertê-los
para dentro da pirâmide da qualificação usando todos os instrumentos disponíveis.

Há muitos analistas que criticam o programa classificando-o como promotor


do facilitismo…
Esse tipo de críticas tem duas razões. Uma é a ignorância. São críticas feitas por
pessoas que nunca se deram ao trabalho de ir ver como aquilo é, de assistir, de parti-
cipar e de ver as provas finais. Ou seja são críticas como arma de arremesso político.
E esse tipo de críticas resolve-se com o esclarecimento. A outra razão é o ciúme social.
São críticas feitas por aqueles que acham que as outras pessoas não devem alcançar
aquilo que eles já alcançaram. É um tipo de críticas que se alimenta com facilidade. É
260 ›
o mesmo argumento que leva ao aparecimento de críticas do género «não é a mesma
coisa fazer aquilo do que quando se estuda na escola secundária». E é claro que não é
nem pode ser. É errada a ideia de que um adulto com 40 anos tinha que fazer o mes-
mo percurso escolar que o seu filho de 15, como se o adulto não soubesse nada tal
como o seu filho. E este foi um dos problemas em Portugal, onde se gastaram milhões
e milhões e se deixaram os portugueses desqualificados. O programa Novas Oportu-
nidades tem uma metodologia diferente e é hoje matéria de estudos internacionais.

Mas a avaliação externa também apontou algumas fraquezas…


E estamos a corrigi-las, como a questão do RVCC profissional, e do acesso dos
desempregados. Mas indicou também que mais de 96 por cento do total de pessoas
que se inscreveram no programa (num universo de mais de um milhão de pessoas)
garantiram estarem satisfeitas com as Novas Oportunidades.

E as empresas têm sabido aproveitar esse programa?


Essa é a maior certeza de que o Programa é uma mais-valia para a economia
portuguesa. As grandes empresas nacionais todas têm programas de qualificação no
âmbito das Novas Oportunidades. São exemplos disso, a Sonae, Jerónimo Martins,
Portugal Telecom, etc. Recentemente estive na entrega de certificados da Jerónimo
Martins, a 500 funcionários. Esse grupo emprega 25 mil pessoas, das quais mais
de três mil já fizeram o programa novas oportunidades. Neste momento temos 100
grandes empresas e três mil pequenas e médias empresas (PME’s) aderentes às Novas
Oportunidades.

Durante cinco anos exerceu o cargo de Secretário de Estado da Educação,


numa época em que se procederam a muitas alterações no sistema de ensino.
Agora o PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) revela que os
alunos portugueses, em 2009, tiveram a evolução mais expressiva nas áreas da
leitura, matemática e ciências, desde que Portugal aderiu a esse programa. Qual
o significado destes dados?
Essa foi uma das notícias, em toda a minha vida, que me deu mais alegria. Por
duas razões: eu estive no Ministério da Educação no período em que decorreram as
alterações nesse programa e sei o que foi a batalha para conseguir as alterações efec-
tuadas. Poucos políticos têm a sorte de ver os resultados do trabalho imediatamente
a seguir. A outra razão, a mais importante de todas, é a razão nacional. Isto é muito
importante para o País. O País percebeu que não estamos condenados. A ideia de
que nós estávamos condenados a ter um sistema educativo com baixa qualidade e
com resultados negativos, estava enraizada nos portugueses. A partir de agora já não
haverá a ideia que não é possível fazer melhor. Por outro lado, provou-se que não é
necessário esperar uma eternidade para mudar as coisas.
‹ 261
Foi essa a nossa convicção e para além das medidas tomadas pelo Governo, há
um aspecto muito importante: os professores e os alunos trabalharam mais e melhor.
A estruturação da actividade escolar é completamente diferente daquilo que foi em
2005. O número de horas de aula para os alunos, o tempo que eles passam nas salas e
no recreio, e o número de horas que os professores passam na escola é diferente. Não
tenho nenhuma dúvida que hoje se trabalha mais e melhor na escola.

Com estes resultados as exigências são maiores?


A nossa progressão foi a melhor de sempre e a melhor registada nos países da
OCDE. Em 2006 estávamos nos últimos lugares e hoje estamos na média. É verdade
que temos muito que melhorar, só que com a diferença de aspirar a estar no topo. E
temos obrigação de ter essa aspiração. Isto revela também que as políticas implemen-
tadas na área da educação fazem diferença.
Nós já tivemos outros dados positivos como a melhoria dos resultados dos exames
e do sucesso escolar, e a diminuição do abandono escolar. E as críticas que ouvimos
foram sempre as mesmas, ou porque houve manipulação, ou porque os professores
passam mais facilmente os alunos, ou ainda porque os exames são mais fáceis. Críti-
cas, com as quais obviamente não concordo, feitas porque as medidas eram internas.
Só que agora surgem resultados externos e internacionais. O PISA está para a educa-
ção como os sistemas indicadores da OCDE estão para a economia.
O efeito destes resultados demonstram que as políticas públicas são importantes e
podem ser decisivas na mudança da realidade. No dia em que deixarmos de acreditar
nisso deixamos de acreditar na democracia e no sistema. O que acontece muitas vezes
é que se tenta vender o descrédito dos políticos para vender o descrédito das políticas
e em último caso do sistema democrático.
O Primeiro-ministro e a anterior Ministra da Educação mereciam isto. As políticas
foram implementadas com muita adversidade e o Primeiro-ministro nunca hesitou
em apoiar o ministério. Não tenho dúvidas que hoje os professores olhando para es-
tes resultados se sintam recompensados pelo trabalho desenvolvido.

262 ›
Pedro Lourtie 116

Cortes ameaçam instituições de ensino superior

Pedro Lourtie assegura que o maior problema do ensino superior é a falta de di-
nheiro e, a prazo, podem estar seriamente comprometidos os padrões de qualidade.
O ex-governante aborda o tema das fusões e reestruturações, o financiamento, a rede
de ensino superior e os défices de interpretação dos seus alunos, em consequência do
que chama a «cultura do computador e das SMS»

É das personalidades que melhor conhece os contornos que deram origem


ao Processo de Bolonha, tendo representado Portugal no exterior, no âmbito do
seu processo de aplicação. De que forma analisa a implementação deste modelo?
Quando a Declaração de Bolonha foi redigida, tendo eu participado nesse mo-
mento histórico, não havia uma ideia totalmente concreta sobre o que seria a evo-
lução desse processo, nomeadamente em relação aos objectivos de aprendizagem.
Mas, grosso modo, o que foi previsto está a ser implementado nos diferentes países
a nível europeu, tendo ido mais além em determinados aspectos, como por exem-
plo a definição de um quadro de qualificações. Havia a ideia, um pouco romântica,
que os cursos iriam evoluir de uma forma harmónica. É sabido que os interesses e
as culturas de cada país fazem com que isso não seja possível. Em 2001 o que es-
116 Professor Universitário (IST). Ex-Secretário de Estado do Ensino Superior no XIII Governo Constitucional, presidido por
António Guterres e sendo Ministro da Educação Eduardo Marçal Grilo. Ex-diretor Geral do Ensino Superior e ex-represen-
tante do governo português no processo de Bolonha. É considerado um dos maiores especialistas portugueses sobre políticas
educativas europeias. Actualmente preside ao Conselho Geral do Instituto Politécnico de Leiria.
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva, em Outubro de 2011
‹ 263
tava em cima da mesa é que as instituições colaborariam na definição dos cursos a
nível europeu por área de conhecimento. O relatório que desenvolvi apontava para
que fazia mais sentido que os cursos de Medicina, Engenharia, Letras, Economia e
outros, fossem mais parecidos nos diferentes países. O objectivo era a mobilidade.
Com esta orientação estaria a conferir-se mais poder às instituições e menos poder
aos governos. Os ministros rejeitaram esta ideia. Optaram por definir a nível nacio-
nal um sistema de graus, com um quadro genérico de qualificações para o espaço
europeu do ensino superior.

Os egoísmos europeus prevaleceram?


Ao nível dos tratados o sector da educação é apenas objecto de cooperação entre
estados da União Europeia. Só que os ministros não quiserem abrir mão do seu po-
der, rejeitando transferi-lo, mesmo que parcialmente, para as instituições.

Comparar Bolonha a uma espécie de «euro do ensino» é uma associação


continua a fazer sentido?
Ao definir um quadro de qualificações nos vários países significa que são seme-
lhantes e têm o mesmo valor. Nesse sentido, este processo pode ser perfeitamente
comparado à união monetária.

Todas as instituições nacionais já converteram os cursos em créditos (tal


como Bolonha exigia) mas este processo é mais do que isso, pois o ensino passa
a ser centrado no aluno. Esse foi um desiderato alcançado?
Não totalmente, apenas de uma forma genérica. Há um caminho que está a ser
feito nesse sentido. Em função da definição dos objectivos de aprendizagem é pre-
ciso aferir se o aluno cumpriu a metas. Bolonha trouxe métodos pedagógicos e uma
organização do ensino que é muito mais favorável à focalização no aluno, do que o
tradicional ensino de cátedra, em que o professor debita e o aluno assimila. Regista-se
um progresso, mas é preciso sublinhar que o ensino superior é um sistema constituí-
do por homens e mulheres, com experiências e culturas próprias, e que não muda de
um dia para o outro. Vai mudando…

Os professores das instituições já interiorizaram o facto de terem que mudar


a forma de ensinar?
Estão interiorizando. Quero lembrar que no tempo em que fui aluno de facul-
dade, em final dos anos 60, quem frequentava este grau de ensino era uma elite. O
que se verifica hoje, olhando para as estatísticas, é que os alunos na casa dos 20 anos
representam 37 por cento do grupo etário dominante. No meu tempo esta percen-
tagem era de 4 por cento. Isto significa que hoje chega ao ensino superior uma faixa
muito mais alargada. Perante isto, a escola precisa de organizar-se de forma diferente
264 ›
de modo a proporcionar o desenvolvimento de competências que estão nos objec-
tivos de aprendizagem de Bolonha. É o caso das competências de comunicação. Ser
capaz de defender e transmitir uma ideia, quer aos seus pares, quer a especialistas.
Creio que a mudança qualitativa vai acompanhar a mudança quantitativa dos que vão
chegando ao ensino superior.

Concorda com os que afirmam que esta geração de alunos, apesar de possuir
acesso a um manancial de informação, demonstra uma fraca preparação para
responder às solicitações?
Não se pode generalizar. Se comparar os jovens do meu tempo e estes, digo sem
reservas que esta geração está, globalmente, muito melhor preparada. Contudo, admito
que existem défices significativos, nomeadamente ao nível da interpretação de textos.

A que atribui essa lacuna?


Principalmente a aquilo que eu chamo a «cultura do computador» e das SMS. O
contexto que nos rodeia, no que diz respeito à cultura da publicidade e do marke-
ting, veicula imagens e mensagens curtas, aquilo a que os políticos chamam «sound
bytes», que não precisam de uma interpretação sofisticada. Para além disso, hoje
existe informação em excesso que não é seleccionada de forma coerente e acaba por
levar à dispersão.

O ministro Nuno Crato identificou a Matemática e o Português como fracas-


sos crónicos dos alunos. São duas pechas a colmatar?
É preciso melhorar a capacidade de atenção e de interpretação de textos mais
complexos. Quando elaboro enunciados, alguns são longos e exaustivos e a sensação
com que fico é que os meus alunos não conseguem acompanhar toda a explanação do
teste e perdem-se pelo caminho. A certa altura, “desligam”. Este é um dos principais
dramas com que se confrontam os jovens que chegam ao ensino superior.

A massificação do acesso ao ensino superior, fruto da explosão dos estabele-


cimentos de ensino privado, foi danosa em termos qualitativos?
Houve um período inicial em que o ensino superior público não foi capaz de dar res-
posta. Depois do 25 de Abril, inaugurou-se uma fase em que se pensou «tudo é possível
para toda a gente» e o sistema ficou algo desregulado. Só mais tarde, aumentaram as pre-
ocupações de qualidade, com a introdução de um sistema que zelasse pela sua garantia, a
avaliação de instituições e assegurar as condições mínimas do corpo docente. Tornou-se
famoso o caso dos «turbo-professores» que davam aulas em diversas faculdades, em si-
multâneo. Descobriu-se que um docente estava em oito universidades diferentes. Isto já
para não falar de ilegalidades que se registaram em certos estabelecimentos, como aconte-
ceu com a Universidade Independente, depois de se terem «zangado as comadres».
‹ 265
Nos últimos anos tem ganho consistência a ideia de que concluir um curso
é apenas uma licença para aprender e não um emprego. Considera que hoje em
dia é quase um pecado ter habilitações a mais?
Nunca se tem habilitações a mais. É preciso recuar até meados dos anos 80, mo-
mento em que o número de diplomados cresceu muito rapidamente, tendo aumen-
tado numa década até 5 vezes. No nosso país verificou-se uma mudança quantitativa
num período muito curto de tempo, ao contrário do que sucedeu noutros países, com
o fenómeno mais espaçado temporalmente.

Defende que se reduza as vagas de acesso em determinados cursos?


Não sou favorável. Defendo que se deva fornecer aos candidatos a informação
sobre a situação das saídas profissionais. Quando fui director-geral do ensino su-
perior, arrancámos com um processo denominado «Sistema de Observação dos
Percursos de Inserção dos Diplomados no Ensino Superior», em que se fez um
primeiro levantamento com o Ministério do Trabalho, questionando os diplomados
sobre o seu percurso profissional depois de terem terminado o curso. Se compa-
rarmos aquilo que são os níveis de desemprego e remuneratórios das pessoas que
têm um curso de ensino superior e dos que não têm, conclui-se que Portugal é dos
países onde ser diplomado dá mais rendimento. A diferença salarial entre os que
têm e os que não têm ainda é maior. Acredito que uma formação superior, se for de
qualidade, facilitará as pessoas a obter emprego, com vantagens competitivas em
relação aos que não a têm.

As entidades empregadoras tendem a desvalorizar o diploma e a enfatizar


outras características do indivíduo, nomeadamente no âmbito das competências
práticas e das relações humanas. Esse é o rumo certo?
É uma tendência que se acentua. O diploma é indispensável para começar. Pos-
teriormente, os empregadores vão querer saber se o candidato se adapta a trabalhar
em grupo, se tem características de liderança, se é capaz de comunicar e defender
ideias, capacidade de iniciativa, etc. São estas novas qualificações da formação que se
ministra nas faculdades que, hoje em dia, se revelam determinantes na forma como
se compete no mercado de trabalho. Veja o caso do empreendedorismo, de que tanto
se fala. Não é frequentando uma cadeira de empreendedorismo que faz das pessoas
mais dinâmicas, mas pretende-se dar-lhes competências de assumir riscos e ter inicia-
tiva. Os professores têm o papel fundamental de valorizar e elogiar uma solução ou
uma ideia de um aluno, mesmo que esta seja diferente do convencional. É isso que
acontece quando se faz investigação.

Existe uma mão cheia de universidades portugueses muito bem cotadas no


estrangeiro, mas os nossos melhores alunos continuam a demandar outras pa-
266 ›
ragens após alcançar o diploma. Vê esse êxodo para o exterior com dramatismo
ou como uma oportunidade?
É uma oportunidade. O nosso objectivo é formar as pessoas o melhor possível,
dotando-as de capacidade para fazer coisas. O que se passa é que o ensino superior
andou mais depressa do que a nossa economia. Se estamos a formar mais gente do
que o nosso tecido empresarial consegue absorver, então prefiro que os meus alunos,
especialmente os melhores, vão para a Airbus, a Agência Espacial Europeia, uma fá-
brica de componentes electrotécnicos de ponta, etc. Provavelmente alguns vão fixar-
se lá fora, mas fica sempre a ligação ao país de origem. E é uma ponte que se mantém
entre Portugal e o resto do mundo. Mais dos que os limites geográficos do país, o país
são os portugueses, onde quer que eles estejam e onde sejam bem-sucedidos.

Devia ser um desígnio nacional colocar uma universidade nacional no


ranking das 100 melhores do mundo?
Não sou grande entusiasta dos rankings, creio que eles revelam a dimensão das ins-
tituições consideradas. Uma vez escrevi um artigo no “Diário Económico” que resultou
de uma pergunta que o meu neto me fez: «Avô, o que é que é maior: o elefante ou a
girafa?». Depende do critério. O elefante é mais pesado, mas a girafa é mais alta. Com os
rankings das universidades passa-se exactamente o mesmo. Há aquele exemplo clássico
da Universidade de Berlim que nos anos 20 teve um prémio Nobel, mas depois dos
conflitos mundiais se dividiu em duas instituições. A grande disputa era quem ficava
com o vencedor do Nobel para subir mais umas posições na tabela. A moral da história
é que os rankings não alteram, no essencial, a qualidade das instituições.

O Primeiro-Ministro garantiu recentemente que os sacrifícios também vão


chegar à educação, sendo extensíveis ao ensino superior. Está preocupado?
É possível sobreviver durante algum tempo com situações financeiras desfavo-
ráveis. O ensino superior público teve nos últimos anos uma redução significativa
em termos orçamentais. Se se concorrer a mais projectos internacionais utilizando
receitas próprias é possível resistir mais algum tempo, a minha dúvida é que com os
apertos registados as instituições não tenham capacidade para investir. A prazo esta-
mos a comprometer a qualidade do ensino superior. Percebo que durante a crise vai
ser preciso apertar o cinto. Visto que muitas universidades já usam receitas próprias
para pagar salários, a minha dúvida é se não se estará a ir longe demais e a ameaçar
as instituições de ensino superior.

Os alertas do Conselho de Reitores têm sido repetidos. Sem dinheiro, não


restará outra alternativa que não seja despedir professores e fechar laboratórios?
Tenho constatado ao longo dos anos uma grande apetência dos sucessivos minis-
térios das Finanças pelos saldos das instituições de ensino superior. Quero lembrar
‹ 267
que as instituições não sobrevivem sem saldos. Chegam ao princípio do ano e não
conseguem fazer nada. Isto é fatal para o desenvolvimento de projectos de investiga-
ção em que há que pagar peças, comprar reagentes, pagar a pessoas, etc. É preciso
ter sensibilidade para não «rapar» por completo os saldos das instituições. Outra
situação é o reforço das regras burocráticas existentes para gastar dinheiro, o que
torna os actos de gestão cada vez mais complexos. Este sistema de regras instituídas
funciona com base na desconfiança, sentimento que já vem do tempo de Salazar com
o chamado «visto prévio».

O presidente do Instituto Superior Técnico já disse publicamente ter dúvi-


das que o governo reestruture o ensino superior. Partilha esta visão?
No que diz respeito à lei de financiamento do ensino superior esta precisa de ser
pensada e trabalhada para um período pós-crise. Devíamos discutir, sobretudo, quem
deve financiar o ensino superior e como. Temos duas certezas: o financiamento tem
que diminuir e as propinas não podem aumentar porque estão limitadas constitucio-
nalmente. O que se faz? Reduz-se o número de alunos? Há muito que reflectir sobre
como encontramos um sistema de financiamento que seja sustentável a longo prazo.

É em alturas conturbadas, ou a «quente» como se costuma dizer popular-


mente, que se deve debater este tema?
Esta é uma oportunidade para pensar no assunto. É uma forma de dar às institui-
ções uma perspectiva que de futuro as coisas não vão continuar a ser ad-hoc como
aconteceu durante os períodos de crise.

Quais são as suas expectativas para a tutela conjunta, educação e ensino su-
perior, no ministério da 5 de Outubro?
Não muda tanto quanto se possa pensar. Devido a razões orçamentais este go-
verno decidiu ter menos ministros, concentrando num núcleo duro mais restrito
os titulares das pastas, enquanto os secretários de Estado se ocupam do despacho
corrente. Provavelmente, até à data, não se tem ouvido falar muito dos secretários
de Estado e do próprio ensino superior porque o ministro Nuno Crato está muito
associado às universidades.

A instabilidade política em Portugal tem sido a imagem de marca das últimas


décadas. Sempre que se muda um ministro, altera-se o rumo da educação. É esse
um dos problemas do ensino em Portugal?
É natural que cada ministro tenha as suas ideias, mas o principal problema é a
enorme rotatividade de ministros que se tem verificado. Urge acabar com o mau hábi-
to de querer mudar tudo de repente, antes de aferir o que está bem e está mal. Essa é
uma das pechas portuguesas. E esse é um dos principais problemas do nosso sistema
268 ›
de ensino. Veja que Mariano Gago esteve 6 anos no Ministério do Ensino Superior o
que lhe permitiu fazer reformas concretas e implementá-las no terreno.

Muito do desenvolvimento do interior do país está associado ao ensino su-


perior, sobretudo aos politécnicos. Na reorganização da oferta formativa em
Portugal, como é que esta rede poderá contribuir para que as assimetrias entre
o litoral e o interior sejam mitigadas?
Na rede do ensino superior há dois objectivos que temos de compatibilizar, o que
nem sempre é fácil: o papel do ensino superior a nível regional e ter massas críticas
que permitam tornar o sistema eficaz. Lidei com um caso mais extremo do que Por-
tugal, tendo integrado a equipa da OCDE que fez um exame temático na Noruega.
No nosso caso específico creio que devemos pensar nas academias. Tomemos, por
exemplo, o que se passa na Beira Interior. Seria desejável compatibilizar os cursos
entre as várias instituições, nomeadamente tornando os primeiros anos comuns nos
vários cursos, com uma parte especializada a ser feita apenas numa instituição.

Defende a repartição de tarefas?


Promover a partilha seria preferível a fechar instituições ou encerrar de todo uni-
dades orgânicas de instituições. Trabalhar em conjunto a oferta educativa seria o
ideal para formar também equipas de investigação envolvendo as várias instituições
da região. Deve ir-se em busca de soluções imaginativas para manter as instituições
enquanto pólos de desenvolvimento e, em simultâneo, tornar mais eficaz do ponto
de vista financeiro a oferta do ensino superior. O mote é trabalhar em conjunto, mas
reconheço que nem sempre é fácil.

‹ 269
D. Manuel Clemente 117

A educação e o ensino são o portal da vida social

Numa altura em que se desmonta o binómio, antes assegurado, entre ensino-profissão,


o Bispo do Porto defende uma educação virada para a «pessoa humana», capaz de dotar
os que aprendem de uma maior capacidade inovadora. D. Manuel Clemente afirma, ain-
da, que a indisciplina é sinónimo de irresponsabilidade, mostrando-se partidário de uma
educação personalista capaz de contrariar os valores do individualismo e da massificação

No seu livro «Porquê e Para quê? - Pensar Com esperança o Portugal de


hoje», a páginas tantas, cita uma frase que proferiu durante a entrega do Prémio
Pessoa que o distinguiu em 2009: «O melhor de Portugal pouco aparece. E não
abre geralmente os noticiários. Mas existe e por ele mesmo continuamos nós a
existir. Apesar de tudo, mas não apesar de nós». Quer com isto dizer que esta
espécie de depressão colectiva que afecta o nosso povo é fruto de uma mensa-
gem que é deturpada pelo mensageiro, neste caso, os órgãos de comunicação
social, e que há um «outro» Portugal por desvendar?
A comunicação social participa da mentalidade global que é de contraste, não
de consenso. Compreende-se isto, porque a nossa cultura (mentalidade + sensibi-
117 O Bispo D. Manuel Clemente Doutorou-se em Teologia Histórica, com uma tese intitulada ‘Nas origens do apostolado
contemporâneo em Portugal. A «Sociedade Católica»’ (1843-1853). Foi director do Centro de Estudos de História Religiosa
da Universidade Católica. É membro da Sociedade Científica da Universidade Católica e Sócio Académico Correspondente
da Academia Portuguesa de História. D. Manuel Clemente foi, ainda, coordenador de projectos financiados pela antiga Junta
Nacional da Investigação Científica/Fundação para a Ciência e Tecnologia.
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva, em Setembro de 2011

‹ 271
lidade) é liberal - hoje quase libertária - e desconfia de unanimismos que ponham
em causa a decisão individual. Tem algumas razões para isso, mas, no caso da nossa
auto-imagem colectiva, resvala facilmente para o decadentismo ou o confronto e
não valoriza suficientemente os sinais positivos e consensuais, que de facto existem.
No sector do ensino, o contacto com escolas estatais ou não-estatais demonstra-me
muita vontade de progredir, integrar e inovar, por parte de vários elementos da
comunidade pedagógica. E bons exemplos não faltam.

Segundo dados, recentemente divulgados, Portugal tem cerca de 2 mi-


lhões de pobres e quase 13 por cento de desempregados. Com que meios
conta a Igreja, debatendo-se também com a diminuição dos donativos, para
dar resposta a um contexto social tão adverso?
O principal contributo da Igreja à sociedade, em qualquer contexto, é a mo-
tivação cristã. Só esta explica que na generalidade das paróquias, associações e
movimentos católicos surjam ou se mantenham iniciativas solidárias com gran-
de número de voluntários, que aumentam quando é mais preciso. É o caso, por
exemplo, do que tem sucedido na distribuição de refeições gratuitas.

Os mais carenciados são sempre os mais visados com o endurecer das


medidas de austeridade propostas pela troika. Alimentação, vestuário e
medicamentos, são as principais necessidades de quem tem menos?
Alimentação, vestuário e medicamentos, correspondem a necessidades bá-
sicas que têm de ser imediatamente atendidas. Não admira que a acção social
da Igreja e doutras instâncias incida mais nesses campos, sobretudo em tempo
de “crise”.

O Bispo Auxiliar de Lisboa, D. Carlos Azevedo, alertou para a imperio-


sa necessidade de existir em cada paróquia um grupo de acção social para
fazer frente às dificuldades e aos crescentes casos de privação. Subscreve?
O ideal é que qualquer comunidade cristã seja, já por si, um “grupo de acção
social”. Evangelicamente, não pode ser outra coisa, mesmo que se criem orga-
nismos específicos e oportunos.

Solidariedade social é uma palavra que faz cada vez mais sentido numa
sociedade crescentemente dual e em que os valores do individualismo ga-
nham terreno?
A solidariedade significa que não existo sem os outros e vivo para o bem
comum. Creio que a actual situação, tanto local como internacional, não deixa
margem para dúvidas nem atrasos neste ponto. Cabe à cultura e à pedagogia em
geral tirarem daqui a devida conclusão e consequência.
272 ›
Revolta, medo e insegurança são sentimentos que se apoderam das pessoas.
Até à data não temos registado convulsões sociais nas ruas, ao contrário, por
exemplo, do que sucede na Grécia. Teme que o clima de contestação social ad-
quira uma agressividade ainda não vista depois do Verão?
O medo e a incerteza aumentam a agressividade. É absolutamente necessário que
os responsáveis políticos e sociais dêem informações claras e constantes do que se faz
e pode fazer para superar positivamente as actuais dificuldades.

Admite que a perda de solidez do tridente: família, Igreja e escola, pode ser
responsável pelo aumento dos casos de indisciplina e comportamentos desvian-
tes que se assiste em alguns sectores da juventude?
A indisciplina é outro nome da irresponsabilidade. Quando os vínculos sociais
se afrouxam - famílias, comunidades religiosas, escolas, etc. - é mais fácil que cada
um se sinta menos responsável (= devedor de resposta) em relação aos outros. Urge
uma educação personalista, em que cada um se descubra e revele na relação com os
outros; todos como “pessoas” insubstituíveis, muito além das abstracções opostas do
individualismo ou da massificação.

Nas suas intervenções tem criticado o facto de a Educação ter um pendor


menos humanista e de o saber ser transmitido de forma fragmentada. Quer con-
cretizar o seu ponto de vista?
O humanismo requer uma educação que tenha sempre em conta a “pessoa humana”
que cada educando ou educador realmente são, ao mesmo tempo receptores e porta-
dores da herança cultural colectiva, onde entram saberes teóricos e práticos, tradições
culturais e religiosas, modos de agir em sociedade e interagir com os outros. “Antes”
do engenheiro está a pessoa que exerce engenharia, “antes” do filósofo está a pessoa
que pensa… As presentes dificuldades no campo do emprego desmontaram a ligação
garantida ensino-profissão e há muitos exemplos de como alguém humana e humanis-
ticamente capacitado tem maior capacidade de procura e inovação profissional.

O êxito no sistema de ensino é chave para uma sociedade mais dinâmica e


com os seus integrantes mais preparados para uma vida em cidadania plena?
A educação e o ensino são o portal e o átrio da vida social. Requerem a participa-
ção de todos os agentes de socialização e o melhor do que nos garanta o futuro aonde
ele precisamente começa, ou seja, nos mais novos.

‹ 273
Marques Mendes 118

Há que cortar a direito na educação

Mesmo estando afastado da política activa, Marques Mendes é uma das vozes
mais respeitadas sempre que se faz ouvir. O ex-ministro de Cavaco Silva defende uma
«profundíssima descentralização» no Ministério da Educação, delegando competên-
cias da 5 de Outubro para as autarquias locais, bem como a reabilitação da fragiliza-
da autoridade da classe docente, tendo em vista melhorar a preparação dos alunos.
Sobre os que tempos que aí vêm, regulados pela receita da troika, Marques Mendes
afirma que os portugueses vão ter de fazer coisas muito simples de dizer, mas difíceis
de fazer: «poupar mais, trabalhar mais, produzir mais».

«O Estado em que estamos» é o seu mais recente livro. Considera-o a contribuição


cívica de um político que neste momento se encontra retirado?
É, sem dúvida. É um contributo cívico e de cidadania. Julgo ter uma experiência
política grande, um profundo conhecimento do Estado e da sociedade, que me permite
dizer que estamos numa fase muito difícil da vida do País. Portugal está numa encruzi-
lhada. E considero que todas as pessoas, nomeadamente as que têm um grande capital
de experiência adquirido, podem e devem dar o seu contributo, não apenas para o diag-
118 Militante do PSD, exerceu funções no poder local, e foi diversas vezes eleito deputado à Assembleia da República.
Presidiu ao Grupo Parlamentar do PSD entre1996 e 1999. Foi chamado a funções governativas como Secretário de Estado
Adjunto do Ministro Adjunto e dos Assuntos Parlamentares do X Governo; Secretário de Estado da Presidência do Conselho
de Ministros, no XI Governo; Ministro-Adjunto do Primeiro-Ministro do XII Governo; Ministro dos Assuntos Parlamentares,
no XV Governo. Foi, ainda Presidente da Comissão Política Nacional do PSD.
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva, em Junho de 2011

‹ 275
nóstico da situação, mas sobretudo, para o encontrar de soluções para o futuro. Numa
palavra, eu creio, que pese embora a encruzilhada em que estamos, Portugal tem solu-
ção. Tenho para mim que os portugueses merecem voltar a ter confiança e esperança.
Para isso é preciso desenvolver um debate sério e aprofundado, com conhecimento de
causa. Que o meu exemplo, através desta edição, seja seguido por outros, igualmente
com um capital de conhecimentos muito proveitoso.

No seu livro traça uma análise transversal a toda a sociedade. Se lhe pedissem para
sintetizar numa palavra que ideia defenderia como urgente e prioritária para Portugal
e os portugueses?
Competitividade. Acho que essa é a ideia nuclear. Voltar a ser um País competitivo é
a chave do nosso sucesso. Já o fomos, no passado. Particularmente entre 1985 e 1995.
Deixámos de ser nos últimos anos. Com isso estamos a baixar de divisão na Europa.
A perder sistematicamente poder de compra. A ver o desemprego atingir proporções
alarmantes. E até, mais recentemente, atingimos o limite dos limites de praticamente
termos chegado à bancarrota.

Quer concretizar de que forma e que em áreas é que a dimensão competitiva na-
cional deve imperar?
Para começar, é preciso ser competitivo na economia, ter empresas competitivas, ter
uma educação que favoreça a competitividade, e uma justiça que incentive um país compe-
titivo. E, inclusive, precisamos de ser competitivos no plano político de forma a termos um
sistema que favoreça a estabilidade e a governabilidade. Em suma, a ideia central deve mo-
bilizar todos: políticos, não políticos, Estado e cidadãos. Até podemos divergir relativamente
às políticas para atingir este objectivo, mas o que devia estar na cabeça de todos, da direita à
esquerda do espectro político, era fazer de Portugal um país competitivo.

Quando foi presidente do PSD tomou uma decisão que lhe causou dissabores jun-
to dos seus próprios colegas de partido, ao não incluir nas listas de deputados pelos
sociais-democratas candidatos com problemas com a justiça. A vida política precisa
de ser como a mulher de César, «não basta ser é preciso parecer»?
Sem dúvida. É preciso credibilizar e moralizar a vida política. Os políticos são muito me-
diáticos, logo estão muito expostos. Tornam-se muito conhecidos e estão permanentemente
nas páginas dos jornais ou nos ecrãs de televisão. Como diz o ditado popular, «o exemplo
vem de cima», e se de cima, dos políticos, não vem um bom exemplo, isso contamina ne-
gativamente a sociedade. Por isso, de um político exige-se, não apenas que seja competente,
dedicado, trabalhador, mas também que seja um exemplo em termos de seriedade, credibi-
lidade e respeito por princípios éticos que são hoje absolutamente incontornáveis. Ninguém
é hoje obrigado a fazer política. Mas quem a faz, terá de ter preocupações inerentes. Se não
as tiver, descredibiliza-se a si próprio e descredibiliza a vida política em geral.
276 ›
A política é vista por muitos como um terreno pouco recomendável. É isso que
leva os mais competentes a manterem-se à margem das tarefas políticas?
A política é um bocadinho o reflexo de toda a sociedade. Se a política tem qualidades
e defeitos, julgo que, em grande medida, é o espelho das qualidades e defeitos da socie-
dade, em todos os sectores e segmentos de vida. O que eu creio é que tem que haver um
esforço de moralização, os maiores sacrifícios têm de vir de cima. E hoje existe um pro-
blema adicional: há pessoas de muita qualidade no meio empresarial, na gestão, etc, mas
que de um modo geral recusam fazer política. O caso mais paradigmático e preocupante
é o dos jovens. Convivo muito com eles, e devo dizer que temos jovens de grande com-
petência, mérito e talento. Comparado com os jovens do meu tempo, arrisco dizer que os
desta geração são melhores.

Que causas estão na base do afastamento dos jovens da política?


Criou-se a ideia negativa que a política é a arte do vale tudo, que não tem regras, que se
norteia apenas pelo interesse individual e de grupo, que não cumpre requisitos éticos, etc.
Perante este cenário, formatado à partida, os jovens apesar do talento profissional mostram-
se indisponíveis, de uma forma geral, para enveredar por uma carreira política. Isso é mau
e considero esta atitude um erro. Um país, seja ele qual for, tem que ser governado por
políticos. Se não forem estes, são outros. Agora se os melhores se afastam, ficam os piores. A
tendência será ainda mais negativa.

No seu livro tem um capítulo intitulado «Uma Educação virada do avesso», em


que aponta o dedo ao centralismo do Ministério. Porquê?
O Ministério é uma das raízes do mal do sistema. De há uns anos a esta parte o ministé-
rio é uma estrutura pesadíssima, aquilo que se pode chamar um «monstro». Isso é um erro.
Têm passado pela 5 de Outubro vários governos, de todas as cores políticas, sem excepção,
e não tem havido coragem política para alterar esta situação. Não compreendo que um mi-
nistro da educação em Lisboa, dotado de uma estrutura gigantesca, tenha de decidir coisas
em Freixo de Espada à Cinta ou em Vila do Bispo.

Defende uma descentralização de competências para a administração local?


Na minha opinião acabar com esta situação implica levar a cabo uma profundíssima
descentralização. Sublinho, profundíssima descentralização. Em matéria de educação
a maior parte das competências devia passar para as autarquias locais. Com a redução/
ampliação/apetrechamento de escolas, colocação de pessoal, etc. Só deviam ficar no
Ministério em Lisboa as competências eminentemente nacionais. Há muitos burocratas
que estão instalados no ministério que são contra esta mudança. Como também, valha
a verdade que se diga, que há muitos sindicatos que também não estão pelos ajustes.
Eu creio mesmo que os sindicatos são outra força de bloqueio na Educação. Em tese
tenho um grande apreço pelos sindicatos e por uma vida sindical saudável, mas depois
‹ 277
em concreto acho que muitas das nossas forças sindicais pararam no tempo e são pré-
históricas. Vivem em circuito fechado e pensam apenas nos interesses corporativos.
Acontece esta coisa extraordinária que é a seguinte: com a taxa de desemprego que
acumulamos, os nossos sindicatos preocupam-se mais com os direitos de quem está
empregado, do que com os que estão á procura de emprego.

Por aquilo que descreve, na sua opinião o Ministério obeso e o anacronismo dos
sindicatos impedem que o sistema de educação evolua?
Há uma coligação profundamente negativa entre sindicatos e a estrutura macrocéfala do
Ministério da Educação. Enquanto não houver um governo capaz de cortar a direito, temo
que a situação não possa melhorar substancialmente.

Professores e alunos têm sido os grandes prejudicados por anos de inércia?


São dois dos protagonistas do sistema, mas eu creio que a escola deve ser virada para o
aluno. A razão de ser da escola é o aluno, dando-lhe uma boa formação e preparação. No
fundo, ter uma ferramenta que o habilite ao exercício cabal de uma profissão. Isto tem de
ser o objectivo central da escola. Infelizmente nos últimos anos, vi eu e viram os outros por-
tugueses, andou-se a discutir com mais afinco o estatuto da carreira docente ou a avaliação
dos professores do que os problemas centrais que afectam o aluno. Neste aspecto creio que
as prioridades têm estado, muitas vezes, invertidas. Com isto não quero significar, bem pelo
contrário, que não deve haver uma grande atenção pelos professores É que a seguir aos
alunos a grande prioridade são os docentes.

Concorda que esta classe perdeu prestígio e autoridade perante os alunos


e a sociedade?
A ideia de maltratar, desprestigiar ou desvalorizar os professores é um crime. Um país
no domínio da educação só tem sucesso se tiver bons professores, motivados, prestigiados
e com um grande estatuto. Dou-lhe este exemplo: Antes do 25 de Abril, e nem tudo era
mau antes desta data, o professor era uma autoridade, não apenas dentro da escola, mas
no seio de toda a localidade onde leccionava. Era visto com respeito, com prestígio, era um
opinion maker muito importante. Hoje o professor, de um modo geral, está desvalorizado.
Dentro da escola não tem autoridade e então fora da escola está desvalorizadíssimo. Isto é
terrivelmente perverso e negativo. Para que os alunos sejam centro das atenções é condição
prioritária ter professores prestigiados e motivados.

É esta estratégia desfocada da realidade que tem sido seguida que tem alimentan-
do os casos de laxismo e indisciplina dentro das salas de aula?
Se o professor não tem prestigio, não pode ter autoridade. Se não tem autoridade, a
tendência é o facilitismo, a indisciplina, a violência até. Ou seja, tudo factores que devem
ser urgentemente erradicados do meio escolar. Chamo a atenção que ainda hoje os países
278 ›
mais desenvolvidos do mundo não são aqueles que têm mais reservas de petróleo, porque
se assim fosse os países árabes eram os mais desenvolvidos do mundo e não são. Os países
mais desenvolvidos do mundo são aqueles que apostam muito forte na educação, no conhe-
cimento e na inovação. Ou seja, na economia do conhecimento. Neste campo a ferramenta
das qualificações e da educação é essencial.

Como é que caracterizaria a aposta que temos feito neste campo. Insuficiente
ou esforçada?
Nós em Portugal temos insistido em apostar noutras coisas, que não nos nossos recursos
humanos. Penso que tem que existir uma inversão de prioridades.

O Governo que cessa funções foi acusado de ter seguido uma lógica estatística em
detrimento da evolução qualitativa dos nossos alunos. Subscreve?
Este Governo foi o mais incompetente e irresponsável que tivemos depois do 25 de
Abril de 1974. Em todas as áreas. Admito que tenham existido aspectos positivos, aliás era
difícil em seis anos fazer tudo errado. Mas globalmente falando o executivo foi politicamente
criminoso e desde logo no domínio da educação. Criou um mau ambiente e um mau estar
neste sector verdadeiramente insuportáveis, apresentou a questão da avaliação dos professo-
res em tom persecutório e quase punitivo, procurando virar docentes contra docentes. Estes
seis anos de desordem vão levar muito tempo até ser reposta a normalidade e retomar-se um
caminho sadio e saudável.

Educação e justiça são dois dos maiores fracassos do Portugal democrático?


Do Portugal democrático e em especial destes seis anos de governo socialista. Creio que
a Justiça é capaz de ser ainda pior. Se na educação a actuação do executivo foi desastrosa, na
justiça foi certamente criminosa. O sistema judicial está pelas ruas da amargura. O governo
tentou perseguir magistrados, interferir no andamento dos processos e tudo isto sem conse-
guir introduzir qualquer medida que alterasse o actual estado de coisas. Hoje em Portugal,
se as pessoas forem verdadeiras, dirão inequivocamente que não acreditam na Justiça. In-
clusive muitos dos próprios agentes do sistema. E Porquê? Porque a justiça bateu no fundo.

A renovação do parque escolar, o encerramento de escolas com meia dúzia de alu-


nos e a entrega de computadores «Magalhães» não são reformas que minimizam a má
imagem que tem da política educativa deste governo?
Não posso dizer que são medidas negativas, mas é manifestamente insuficiente. Na edu-
cação o problema central que vai levar anos a melhorar é o estatuto dos professores. Eu
recomendaria ao próximo governo que apostasse tudo em repor a dignidade, o prestígio e
a motivação da classe docente. Professores com estas características têm mais autoridade e
conseguem preparar alunos de forma mais eficaz. Isto não tem preço, não se faz por decreto,
faz-se acarinhando os professores, estimulando-os e reforçando o seu estatuto pessoal.
‹ 279
Elencaria as finanças/economia, a educação e a justiça como prioridades nacionais
para o próximo executivo?
Chegámos a uma fase em que não há volta a dar. Todos os sectores terão de apertar
ainda mais o cinto. A prioridade das prioridades é a situação financeira. Portugal está à
beira da bancarrota. Sem a ajuda externa provavelmente nesta altura teríamos sem dinheiro
para pagar salários. Em todos os sectores vamos pagar a factura, no dobro ou no triplo, de
não termos agido no devido tempo. Agora vamos passar uns anos, sublinho uns anos, em
recessão, sem crescimento económico, com impostos altos, com corte de despesa e com
um desemprego de 13 por cento, o que à escala portuguesa é uma brutalidade. Portanto, os
tempos são muito difíceis. Numa palavra vamos ter de fazer coisas muito simples de dizer
mas difíceis de fazer: poupar mais, trabalhar mais, produzir mais. Só lhe dou este dado: te-
mos um problema de produtividade terrível. A nossa produtividade é sensivelmente 55 por
cento da média europeia, praticamente metade. Isto quer dizer que um trabalhador nacional
precisa do dobro do tempo de um europeu para fazer a mesma coisa. Este paradigma terá
de ser alterado se quisermos um dia subir salários e repor os nossos níveis de bem-estar e
prosperidade. Produzimos como um país do terceiro mundo e consumimos ao nível dos
mais desenvolvidos, até um dia que isto rebentou pelas costuras.

O agravar da situação social pode gerar convulsões?


Pode acontecer, até porque a situação vai ser mais dramática. Mas é bom que todos
reconheçamos que nenhum problema se resolve com base na violência, mesmo compreen-
dendo o estado de desespero em que se encontram muitas famílias. Estamos claramente na
cauda da Europa a 27 em termos de assimetrias sociais.

«Acabou o emprego único para a vida» é o tema de mais um capítulo do seu livro.
Os jovens, motores de desenvolvimento e sangue novo nas organizações estão emi-
grar. Como vê esta situação?
Sinto um misto de satisfação e preocupação. Esse é o sinal exterior de mais um falhanço
deste governo. Ver jovens aos milhares, que estudam no exterior e por lá ficam, ou que
estudam cá e vão embora, é a prova de duas coisas: primeiro, o fracasso político de um exe-
cutivo que aposta nas qualificações, no ensino superior e depois não lhes dá oportunidades
para cá dentro desenvolverem as suas competências. Em segundo lugar, é também a prova
da grande qualidade dos nossos jovens. Lá fora têm sucesso. Isto reforça a ideia que o que
está errado é o País e as políticas que conduziram a esta situação. E nós, agora mais do que
nunca, precisávamos de investir nos nossos talentos ou pelo menos criar condições para os
que saíram possam em breve regressar.

280 ›
Silva Lopes 119

Faltam incentivos aos bons professores

«Passámos da carroça e do burro, para o automóvel e a auto-estrada»


O ex-ministro das Finanças não tem dúvidas: Portugal não conseguirá sair desta
situação de crise tão cedo e sem a ajuda externa. O endividamento continua a um ritmo
galopante, muito devido aos investimentos dispendiosos em auto-estradas e estádios de
futebol, mas o vício de pedir dinheiro emprestado está a terminar. Silva Lopes diz que
resta continuar a apertar o cinto e fazer com que os ricos contribuam de forma mais
substancial para o sacrifício nacional. Sobre a educação, o ex-Governador do Banco de
Portugal lamenta que peque, à semelhança de outros serviços públicos, pela ineficiên-
cia. Crítico impiedoso dos pedagogos e da falta de disciplina nas escolas, Silva Lopes
refere que são os grupos de interesse que dominam o Ministério da Educação.

Define-se como um pessimista. Diz mesmo que estamos a atravessar a pior


crise económico-financeira das últimas décadas. Era previsível esta hecatombe?
Esperava um cenário negativo, mas confesso que não tão mau como está a ser. Como é
que aqui chegámos? Basicamente por duas razões: perdemos competitividade internacio-
nal e gastámos muito e mal. Quanto à questão da competitividade, a Europa, para onde
as nossas exportações tinham acolhimento privilegiado, abriu as fronteiras aos países de
119 Foi governador do Banco de Portugal. Fez parte dos primeiros quatro governos do pós-25 de Abril e, mais tarde, foi
Ministro das Finanças e do Plano, em 1978. Representante de Portugal junto do Banco Europeu de Reconstrução e Desenvol-
vimento. Exerceu funções como consultor do FMI e do Banco Mundial. Foi presidente do Conselho Económico e Social, entre
1996 e 2003.
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva em Março de 2011
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leste e às nações não europeias e a concorrência aumentou bastante. Entretanto, o merca-
do nacional foi ocupado por empresas estrangeiras em áreas em que tínhamos produção.
Foram factores que contribuíram para que o crescimento fosse muito reduzido de 2000
até aos dias de hoje. Por isso é que o rendimento em média disponível pelos portugueses
pouco ou nada progrediu.

E como explica que tivéssemos sido perdulários em período de vacas gordas?


Apesar de não crescermos, o consumo não cessou. O consumo aumentou muito mais
do que a produção. Por outro lado, o investimento registou uma tendência de queda nos
anos recentes, inclusive no domínio da habitação. Apostou-se muito em investimento
pouco eficiente e com escassa perspectiva de futuro. Seria preferível apostar na construção
de uma fábrica competitiva com vista ao crescimento do país.

Já para não falar dos grandes investimentos públicos, os materializados e outros


idealizados, muitos deles com reduzida relação custo-benefício…
O país encheu-se de auto-estradas, que reconheço é um investimento que traz grande
comodidade para quem gosta de passear de norte a sul, mas sem grandes repercussões
para o crescimento económico. Temos mais automóveis por habitante que os holandeses
e os belgas. Passámos directamente da carroça e do burro, para o automóvel e a auto-
estrada, mas no resto ficámos iguais. Cometeram-se disparates enormes. Por exemplo,
os estádios do Euro 2004. Em Leiria querem deitar o estádio abaixo. Defendo, meio a
brincar, meio a sério, que se mantenha o estádio, a ganhar erva, para servir de exemplo
à população de como se gasta dinheiro de forma perdulária. Seria um monumento à es-
tupidez nacional. O endividamento foi muito grande. Anualmente estamos a gastar, em
média, mais de 10 por cento do que aquilo que podemos. Isto é incomportável. A solução
tem sido ir ao estrangeiro pedir emprestado, mas qualquer dia fecham-nos a torneira.

Aos erros estratégicos do Estado soma-se o descontrolo e desgoverno por parte


dos particulares. Há algum fenómeno de imitação?
Depois de na década de 80 termos tido uma alta taxa de poupança, especialmente
quando os emigrantes enviavam para cá dinheiro, a taxa de aforro dos particulares é, pro-
vavelmente, uma das mais baixas da Europa. O mesmo se passa com o aforro do Estado e
das empresas. Um país que insiste em viver à custa do empréstimo externo não consegue
sair deste ciclo vicioso. Eu sinceramente pensava que a crise estalava por volta de 2005, o
que teria sido melhor para nós.

Colhe o argumento que se ouve da vox populi que são sempre os mais desfavore-
cidos a sofrerem a maior fatia dos sacrifícios?
Quem sofre verdadeiramente com as restrições orçamentais são os desempregados e a
parcela mais pobre da população que perde os apoios sociais que tinha. Disso não tenha-
mos dúvidas. Se compararmos com as pessoas que mantiveram o seu emprego, constata-
se que estas até não sofrerem um abalo tão forte. Os grandes protestos estão a vir de gru-
pos bem organizados, que estão longe de ser os mais necessitados, mas que não querem
abdicar de ceder o seu bocadinho. Hoje em dia ninguém quer perder direitos adquiridos,
toda a gente acha que deve ganhar mais. Os polícias, os professores, etc. Quando devia
acontecer o contrário, deviam ganhar menos.

Subscreve que pagamos muitos impostos, mas ao contrário de outros países não
temos contrapartidas reflectidas, por exemplo, na Saúde, Justiça ou Educação?
A carga fiscal em Portugal não é excessiva em relação à média europeia. Não é isto que
surpreende. Chocante é a ineficiência dos serviços públicos. No domínio da educação de-
víamos se calhar investir ainda mais dinheiro, e melhor, devido às tais razões de natureza
social que atrás referi. O sistema de Saúde é bem melhor que o da Educação e da Justiça.
Existe uma clara ineficiência, mas não é dos piores no contexto europeu. Mas isto explica-
se pelo paradigma cultural: Aqui, à mínima dor de cabeça, corre-se para as urgências. Em
Inglaterra, sistema que conheço bem porque a minha filha trabalha lá, os médicos dão
aos doentes apenas aquilo que devem dar e não tudo aquilo que eles lhe pedem. Aqui os
médicos não têm autoridade suficiente para se impor. Neste sector como na educação os
lóbis são ainda mais diversificados e quiçá mais poderosos, mas não vejo outra alternativa
que não seja racionar os medicamentos.

Os mais poderosos ficaram, uma vez mais, à margem dos sacrifícios?


Concordo com a crítica que os ricos estão a pagar pouco a crise e não estão a contri-
buir suficientemente para o sacrifício nacional. Contudo, existe um pormenor que difi-
cilmente se conseguirá iludir: os mais abastados têm facilidade em escapar, conseguindo
depositar o seu dinheiro no estrangeiro, eventualmente em paraísos fiscais, fugindo aos
impostos, etc. Não é uma situação desejável, mas é o mundo em que vivemos…

Qual é o maior problema do sistema educativo português?


São vários. Residem, fundamentalmente, no Ministério da Educação, nos pedagogos
e na falta de disciplina existente nas escolas. Mas há um ponto que importa ressalvar:
Portugal é dos que pior desempenho têm em matéria de ensino na União Europeia e
que gasta em termos de proporção do PIB o equivalente, mais ou menos, à média eu-
ropeia. Resumindo, gasta o mesmo que outros, mas apresenta muito piores resultados.

A culpa é do sistema?
O sistema de ensino é ineficiente, mas a principal responsabilidade reside nas famílias.
Os filhos de pais analfabetos têm menos possibilidade de sucesso escolar do que os filhos de
pais com um nível de instrução médio ou alto. O Banco de Portugal fez um estudo recente
que demonstra que a ineficiência do ensino é atribuída ao facto de termos um sistema social
‹ 283
em que a ignorância e pobreza familiar ainda dominam. Por estes factores até admito que
Portugal invista mais que os outros países europeus, visto que o Estado tem de fazer o esfor-
ço que a família não faz por falta de condições.

A falta de exigência é a eterna pecha que há que ultrapassar?


Tem de acabar a ideia de que o aluno vai passando sempre sem dar provas. É inaceitável.
É uma lógica negativa para os alunos maus e perigosa para os alunos bons. Andam todos a
passo de caracol por causa dos menos capazes. Conheço o caso dos Estados Unidos, onde
estudam os meus netos, em que existe uma turma central e depois os mais avançados e os
com mais dificuldades têm aulas extras em turmas separadas. É fundamental que se adopte
este modelo. Lamento que os interesses corporativos, nomeadamente os sindicatos, e epi-
sodicamente uma associação de pais, dominem excessivamente a educação e prejudiquem
fortemente o seu natural desenvolvimento. Na educação seguramente que a maioria dos
ministros que por lá passaram, nem 30 por cento do que o sector precisava fizeram. Toda
a gente sabe que quem manda no ministério da 5 de Outubro são os grupos de interesse e
não o ministro. E sempre que se quer fazer alguma coisa neste país, seja a avaliação, fechar
escolas com dois alunos ou outra coisa qualquer, os sindicatos opõem-se.

A crispação decorrente do braço de ferro entre sindicatos e a ex-ministra, Maria de


Lurdes Rodrigues, prejudicou o normal funcionamento do sector?
Bom não foi. Admito que o modelo de avaliação preconizado por Maria Lurdes Rodri-
gues se tornou demasiado complicado e pecou por inoperância. Não podemos é tratar por
igual o professor que é mandrião e nada sabe da profissão, ao que trabalha e sabe o que está a
fazer. E actualmente tratam-se todos da mesma maneira. Não pode ser. Acho extraordinário
como no acesso à carreira docente não se fazem exames. Há uma coisa que se chama con-
curso documental que é uma verdadeira farsa. E isto passa-se há anos. Do mesmo modo que
acho pouco próprio o sistema de incentivos que existe em Portugal para a classe docente.
O comportamento racional de um professor seria não trabalhar. Aqui progride-se pela anti-
guidade, em vez de se avançar pelo mérito. Para quê ser competente, dedicado e esforçado?

O debate entre o público e o privado, tanto em termos de qualidade como nos


apoios estatais, são tema recorrente. Toma partido por qual?
Eu entendo que o privado só deve ter auxílio do Estado quando não cobra propinas. Se
cobrar, estamos a dar a estas instituições não públicas uma vantagem competitiva enorme.

Relembro uma frase sua: «Há qualquer coisa de atávico de não valorizar em Por-
tugal o conhecimento e a formação». O ensino juntamente com a Justiça são duas
marcas do desastre do Portugal moderno?
O ensino português é um desastre. O analfabetismo decaiu, mas o nível de literacia
nacional é provavelmente o mais baixo de toda a Europa. Um escândalo. Sem mão-de-obra
284 ›
qualificada não se pode ir a parte nenhuma e não temos oportunidade de concorrer com
países que possuem sistemas educativos muito mais evoluídos. O crescimento económico
depende, fundamentalmente, da qualidade profissional dos recursos humanos. Empresas
eficientes e competitivas precisam de gente capaz. No que diz respeito à Justiça, temos uma
legislação excessivamente “garantística”. Os exemplos estão aí. O caso BPN que envolve o
Oliveira e Costa tem 800 testemunhas! Qual é o sistema que permite isto? Dentro de 10
anos prescreve. O Maddof foi condenado em 6 meses.

As universidades salvam a honra do convento?


De facto, há que reconhecer que enquanto o ensino primário e secundário regrediram
para um nível insatisfatório, as universidades progrediram. O ensino superior português
produz recursos humanos de qualidade média e muitos deles dão o salto para o exterior.
Temos várias instituições que fazem boa figura em qualquer parte do mundo.

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Leopoldo Guimarães 120

Pressão da sociedade exige respostas

Leopoldo Guimarães, ex-reitor da Universidade Nova de Lisboa e presidente da


Comissão Consultiva da Futurália, considera que a sociedade exige respostas do en-
sino e que a reorganização da rede do ensino superior em Portugal é necessária. Leo-
poldo Guimarães fala, ainda, da internacionalização das instituições de ensino supe-
rior, e refere que “não poderemos descurar os aspectos ligados à formação humanista
dos futuros cidadãos interventores na política, cultura, ciência ou na tecnologia”.

A qualificação dos portugueses é apontada como uma das soluções para tor-
nar o país mais competitivo. Isso está a ser conseguido?
Num mundo que pensávamos estar organizado, ou seja, o mundo tecnologica-
mente avançado não tem tido capacidade de resolver os problemas mais candentes
das nossas sociedades contemporâneas, que se tornaram reféns do império da tecno-
logia. No seu crescimento hegemónico, a tecnologia vai condicionando a trajectória
civilizacional, num mundo de enormes desequilíbrios, potencialmente gerador de
conflitos multilaterais que por vezes são disfarçados por razões de natureza étnica,
religiosa ou outra. Constituem exemplos flagrantes da preponderância argumentativa
da intervenção da tecnologia na problemática da segurança das nações, consumir
menos energia na produção de bens transaccionáveis, contrariar o espectro da degra-
120 Professor Universitário. Foi Director da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e Reitor da
Universidade Nova de Lisboa. Actualmente preside à Comissão Consultiva da Futurália.
Entrevista realizada por João Carrega, em Janeiro de 2012.
‹ 287
dação do ambiente, ou ainda equilibrar tecnologicamente o avanço do terrorismo,
especialmente por parte dos países detentores de tecnologia avançada.

Isso repercute-se na educação?


A repercussão destes factores na Educação, é evidente. No entanto, os tempos da
Educação não são compatíveis com os tempos que caracterizam a evolução tecnoló-
gica, em resposta à pressão da sociedade, nos seus aspectos políticos e económicos.
Por isso se abre um fosso que infelizmente se vai alargando.
Caberia à Educação no seu conteúdo mais lato contribuir de forma relevante para
equilibrar este fenómeno. Não o tem feito tanto como deveria! Antes pelo contrário,
tem cedido à cultura da avaliação apenas unidireccional, contribuindo assim para
servir a chamada teologia do mercado, que tende a centrar a sua perspectiva, sobre
bases economistas e orçamentais.
Embora confrontados com as exigências de curto termo impostas pela necessi-
dade de aumentar os índices de competitividade, de produtividade, não poderemos
descurar os aspectos ligados à formação humanista dos futuros cidadãos intervento-
res na política, cultura, ciência, na tecnologia…. Algo está a ser feito nesse sentido,
projectando-se na adesão de muitos sectores da sociedade ao compromisso civiliza-
cional com o equilíbrio educação/formação que começa na infância e se estende até
ao fim da vida de cada um de nós. Mas não chega, teremos que fazer mais.

Hoje a internacionalização das instituições de ensino superior marca a agenda


de muitas universidades e politécnicos. Na sua perspectiva de que forma é que
essa internacionalização deve ser feita e quais as vantagens que daí podem advir?
A importância da internacionalização, no seu conceito estratégico mais lato, re-
presenta um factor que nos tempos que correm não levanta dúvidas nem discussão.
A forma que reveste a sua execução na prática pode no entanto mostrar deficiências
e por vezes insuficiências que devem ser assumidas. O acesso a alguns dos progra-
mas internacionais em curso, mostra uma face muito positiva e consistente como
é exemplo o programa Erasmus. A oferta de formações em língua inglesa em áreas
determinantes criteriosamente seleccionadas constitui um caminho a percorrer com
insistência.
A ligação estrutural de instituições do ensino superior, em academias com maior
poder de intervenção no âmbito internacional, deve ser fortemente encorajada.

Ou seja defende também parcerias ao nível internacional?


A organização de cursos em parceria com instituições estrangeiras pode e deve ser
um desígnio estratégico. Concomitantemente, as instituições do ensino superior, para
melhor cumprirem os seus objectivos de compromisso com a nação, exigem maior
flexibilidade na gestão, não só utilizando melhor a autonomia de que já dispõem, mas
288 ›
também verem aliviadas as amarras, as que lhes são por vezes desnecessariamente
impostas pelos órgãos de soberania, designadamente os ligados às finanças públicas.

A reorganização da rede de ensino superior é um tema já antigo, mas pouco


debatido de forma clara e objectiva. De que forma se pode reorganizar a rede,
garantindo a coesão territorial do país e o acesso ao ensino superior à maioria
dos portugueses?
É do domínio público que a oferta actual do ensino superior, mostra sinais preo-
cupantes de grande dispersão e de alguma inconsistência. As designações dos cursos
são muitas vezes escolhidas por critérios ligados à preocupação das instituições de
tornarem as suas ofertas curriculares atractivas, dando satisfação a uma procura que
se tem mostrado particularmente condescendente para com as imagens promocionais
de determinadas áreas temáticas.
A relação entre o nome e o conteúdo de alguns cursos apresenta-se frequentemen-
te desajustada: Uma mesma denominação pode dar abrigo a perfis de formação muito
heterogéneos e designações diferentes podem corresponder a perfis muito próximos.
Daqui resulta uma opacidade perniciosa quer para os candidatos ao ensino superior,
quer para os próprios empregadores.
Afigura-se que a reorganização da rede passa também por dois procedimentos. O
primeiro leva a uma consagração das designações das formações reduzindo-as a um
número que corresponda a uma oferta coerente, compreensível por todos os sectores
intervenientes e potencialmente interessados. O segundo desembocará na formação
de academias através da junção (não significa fusão) de instituições próximas, permi-
tindo o desenvolvimento de estratégias de ofertas curriculares integradas, obedecen-
do a uma economia de esforços, a uma clarificação pelo menos a nível regional e a um
aumento do poder de intervenção em todos os campos de actuação.

‹ 289
Fernando Rosas 121

A democracia pode estar ameaçada

Sem papas na língua, o historiador e Catedrático da Universidade Nova de Lisboa


alerta que está em curso uma «profunda mudança de regime», que se traduz num «re-
trocesso» ao nível de diversas conquistas de Abril. Fernando Rosas fala em «mercantili-
zação» e «elitização» no acesso ao ensino, afirma que o governo trata as universidades
como trata o país e adverte que os cortes orçamentais podem levar ao encerramento de
80 por cento das unidades de investigação de ciências sociais em Portugal.

O 38.º aniversário do 25 de Abril tem um significado especial devido à con-


juntura que atravessamos?
Acabo de receber a notícia (entrevista gravada a 23 de Abril, de 2012) de que a
Associação 25 de Abril não vai estar na cerimónia oficial na Assembleia da República
por entender que este governo está a desenvolver uma política contrária aos ideais
de Abril. Para além disso, o ex-Presidente da República, Mário Soares, também se
solidarizou com esta tomada de posição. Isto para lhe dizer que estamos a assistir
no nosso País a uma rotação da governação ao centro e a uma tentativa de mudar
os paradigmas fundamentais da democracia portuguesa. Está em curso um processo
político, económico, social e ideológico de mudança do regime.
121 Professor Universitário, Doutorado em História Contemporânea. Actualmente preside ao Instituto de História Contempo-
rânea, é consultor da Fundação Mário Soares e director da revista História. Participou na fundação do Bloco de Esquerda, cuja
Comissão Permanente integrou. Deputado à Assembleia da República, foi candidato à Presidência da República, em 2001,
com o apoio do BE.
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva em Maio de 2012
‹ 291
Qual é o objectivo desta «mudança de paradigmas»?
A pretexto da crise e do seu necessário combate, pretende-se uma alteração
dos alicerces de todos os sectores da sociedade, educação incluída. Alguns dos
fundamentos que eram a essência do 25 de Abril estão a ser postos em causa. A
própria democracia, creio eu, pode estar ameaçada. Não se trata só de retirar direi-
tos sociais, de fomentar o desemprego, baixar a indemnização por despedimento,
de exercer uma brutal punção, directa ou indirecta, sobre os salários, etc. Sem de-
mocracia social não há democracia política. Aquilo que se está a passar no domínio
da destruição do Estado social e dos rendimentos, vai ter repercussões inevitáveis
no funcionamento da democracia política. Isto é uma verdade que se vai verificar,
mais tarde ou mais cedo.

Consegue apontar alguns sintomas da ameaça democrática de que fala?


Fico completamente alarmado com a irresponsabilidade com que se assinou
este tratado europeu sobre o equilíbrio orçamental. Este documento passa por
cima das competências da Assembleia da República e desparlamentariza a Re-
pública portuguesa. As decisões de um povo soberano representado em S. Bento
passam a valer nada.
Veja que somos obrigados a cumprir um valor de défice que estrangula a econo-
mia portuguesa, que a impede de ter um Estado social. Se não cumprirmos, corremos
o risco de sofrer multas por parte de um tribunal europeu.
Assiste-se a um esvaziamento de competências dos órgãos do estado-nação, preci-
samente onde nasceu a democracia. O desmantelamento silencioso dos órgãos nacio-
nais vai levar a que dentro de pouco tempo sejamos governados por órgãos suprana-
cionais que ninguém elegeu, coisa que aliás, já se passa.

Está a referir-se ao papel da troika e o facto de se imiscuir na nossa


soberania?
A troika toma, com inteiro à vontade, decisões no plano económico e finan-
ceiro que são muitas vezes competências do governo e do Parlamento. E não
é só a troika. Neste processo de esvaziamento da democracia são os poderes
fácticos, a troika e o governo alemão, a tomar as rédeas. Alguém votou na se-
nhora Merkel ou na troika para governar Portugal? Qual é sua a legitimidade
democrática?

Portugal não perdeu a capacidade para se auto-governar?


Temos de ser senhores das decisões que tomamos! Não pode ser uma troika, um
comando autoritário, não eleito e fáctico, a decidir qual vai ser a política financeira
e económica de Portugal. Nunca concordarei com isso, apesar de achar que o nosso
país deve estar na União Europa e na moeda única.
292 ›
Há uma tendência para os tecnocratas assumirem o poder, como aconteceu
com Monti, em Itália?
Essa é a aparência da verdade. Mas não há governos tecnocratas. Oliveira Salazar
em 1928 chegou a ministro como um técnico das finanças, era o «mago das finan-
ças», como lhe chamavam. Só que o problema era de solução mais política do que
técnica. Os próprios elementos da troika não são tecnocratas, são agentes de políticas
muito bem comandadas e orquestradas a partir da Alemanha.

Rejeita então que existam soluções técnicas?


Completamente. Há diversas formas de reagir à crise. Mas o que temos visto são
respostas políticas com impactos muito gravosos ao nível social e com reflexos na
qualidade da democracia. O “New Deal” no início dos anos 30 foi uma resposta nova,
precursora do “keynesianismo”, e que contrariava completamente o discurso ortodo-
xo de resposta à crise.

A oposição tem defendido que o governo tem ido para lá da troika. Trata-se
de mera submissão ou é calculismo eleitoral?
Não é o facto de se ter ido além da troika que está mal, o problema começa logo na
aprovação do memorando. O PS está numa espécie de esquizofrenia política: aprovou
um documento que é um instrumento central de aplicação da estratégia de austerida-
de, mas condena o excesso de austeridade.
Faço parte de uma corrente de opinião que entende que o memorando de enten-
dimento não devia ter sido aprovado. O documento assinado pelo governo de Só-
crates tem na sua génese a destruição da nossa economia, mergulhando o país numa
recessão cumulativa, da qual não se sai num estalar de dedos.

Qual era a alternativa?


Existiam diversas soluções estratégicas que, passavam, necessariamente por outro
rumo para a economia do que o que estamos a trilhar. Vamos demorar, seguramente,
largos anos até recuperarmos da recessão profundíssima em que nos encontramos.

Este governo tem demonstrado capacidade para reformar o país?


O termo reforma é um eufemismo para não dizer que não se está desmantelar
certos sectores. A começar pelo Serviço Nacional de Saúde, tendo como caso vertente
a maternidade Alfredo da Costa. O governo cede às parcerias e aos lóbis exercidos pe-
los privados e cria capacidade excedentária e a valência que encerra é a melhor e mais
exemplar maternidade, que agora é chamado «o berço de Portugal». A saúde é hoje
um negócio frutuoso para os interesses privados. Isto já para não falar no plafona-
mento da segurança social, que é uma privatização parcial do sistema de pensões, que
vai terminar com uma lógica geracional que existia. E depois, quem tapa o buraco?
‹ 293
Ao nível da sua área de actividade, o que gostaria de salientar como altera-
ções de fundo?
Há muita coisa a mudar, mas não é para melhor. Pela primeira vez desde que
sou professor universitário, há quase 30 anos, constato a realidade intolerável
de alunos que não podem cursar as licenciaturas, as pós-graduações, os mes-
trados e os doutoramentos, por razões de ordem económica. Neste momento
há milhares de jovens que se vêem na contingência de abandonar o ensino por
insuficiência económica. Pela primeira vez desde a “revolução dos cravos” está
a verificar-se uma discriminação económica no acesso ao ensino superior e das
pós-graduações. Só os mais ricos e afortunados podem estudar. É a pior face
da mercantilização do ensino. O que me entristece é que foi contra isto que
lutámos no 25 de Abril.

Trata-se, na sua opinião, de um retrocesso?


O acesso ao ensino volta a ser, como antes da revolução, uma questão condi-
cionada do ponto de vista da situação de classe de cada um. Está em curso uma
elitização do ensino com efeitos destrutivos. Nesse sentido, vejo com uma grande
preocupação os boatos que por aí circulam acerca do que poderão ser as políticas
do executivo para o ensino superior, nomeadamente no âmbito da investigação.
Estou francamente apreensivo.

Os cortes orçamentais nas universidades agravam os problemas?


Estou preocupado especialmente ao nível da investigação. Oiço dizer que bolsas
individuais de doutoramento vão desaparecer, financiamentos plurianuais vão aca-
bar, tudo vai ficar pendurado em projectos que dependerão do mercado da Europa.
Se isto for assim, 80 por cento das unidades de investigação das ciências sociais
terminam, sofrendo este domínio um golpe tremendo. Com o lamentável prejuízo
de uma geração de investigadores que vai ficar pelo caminho.

Trata-se de uma realidade exclusivamente nossa?


Isso é o que se está a passar em países como a Inglaterra e a Itália, em que a
desvalorização da investigação nesta área em total, perante uma insensibilidade
terrível que existe. Em Portugal, a realidade que melhor conheço, todo o inves-
timento global no ensino e na investigação sofre cortes brutais no orçamento.
Tenho dificuldade em prever como é que se vão assegurar os gastos de funciona-
mento de muitas universidades. Deixe-me ironizar um pouco: numa economia
mergulhada na recessão e no atraso, para que é que são precisos diplomados
no ensino superior? A maneira como o governo trata a universidade é um com-
plemento da forma como está a tratar o país, destruindo capital humano que a
economia não absorve.
294 ›
Isso é um convite indirecto à emigração?
Não precisa de assegurar o futuro de uma economia que está reduzida à sua ex-
pressão mais simples. O futuro da educação no quadro desta política geral é absolu-
tamente negro. Já para não falar da educação do ensino secundário, onde a política
do ministro Nuno Crato é o retorno a todos os lugares comuns do autoritarismo em
matéria de pedagogia, infelizmente com alguma popularidade.

A que se refere em concreto?


Os exemplos são diversos e sinistros ao nível da orientação pedagógica, com me-
didas conservadoras e autoritárias. Exames da quarta classe, por exemplo. Turmas
para bons e para maus alunos? Reinstalação do quadro de honra? Métodos de se-
lecção? Tentar assinalar objectivos não por níveis de conhecimento mas por metas
curriculares precisas? Confesso que me surpreendeu que a reacção dos professores
tenha sido tão tranquila. O governo sabe que se não tocar na questão da avaliação e
dos rendimentos dos professores esta classe não vai fazer barulho.

Os frenéticos sindicatos dos professores vão ficar passivos?


Os sindicatos não deviam tratar exclusivamente dos problemas sindicais dos do-
centes, mas ocupar-se também dos problemas da profissão, orientação e estratégia do
ensino. A vida dos professores não será fácil se o ensino se transformar num “papa-
guear” autoritário de objectivos, esvaziando os aspectos progressivos que se tentaram
introduzir no ensino.

Nuno Crato está a fazer tudo para «fumar o cachimbo da paz» com os
docentes?
O governo está a ser cuidadoso, mas repare que a concentração dos grupos esco-
lares e a reorganização curricular vai levar ao despedimento, sem dor e sem dar por
isso, de milhares de professores. O aumento das turmas também - Estivemos anos a
lutar por um limite para as turmas, e agora…

Os múltiplos bloqueios ao sistema educativo português devem-se, na sua


opinião, a erros de pessoas ou à estrutura burocrática do ministério da 5 de
Outubro?
A massificação do ensino, que é indispensável à qualidade, foi feita relativamen-
te há pouco tempo, pouco depois do 25 de Abril. Houve barreiras para ultrapassar:
Demasiados professores impreparados, instalações incapazes de albergar um “mar”
de gente e currículos que pertenciam ao passado e tinham de ser adaptados. Isto
era o baixo nível geral, em todos os campos. Compatibilizar a quantidade com a
qualidade é um trabalho prolongado e difícil. Considero o grande desafio democrá-
tico para o ensino.
‹ 295
Ao contrário do ambiente que se vive na Grécia e em Espanha, os âni-
mos em Portugal permanecem relativamente calmos. Teme que a corda, se
esticar mais, pode partir?
A constatação inicial é que a reacção às medidas do governo tem sido mo-
derada. Mas seria uma pura ilusão acreditar que o povo português tem uma
característica genética que o faz ser permanentemente manso, ordeiro e pacato,
atributos que o Estado Novo gostaria que ele tivesse, com a tal frase do «povo
de brandos costumes».

Admite o agudizar do grau de confrontação?


Tudo depende da relação de forças, da oportunidade e de acumular de ten-
sões. De um dia para o outro, uma circunstância aparentemente secundária,
pode originar uma incontrolável explosão em cadeia. Estou em crer que es-
pecialmente os trabalhadores por conta de outrem, os principais sacrificados,
serão os primeiros a reagir, não só de forma organizada, como de modo inor-
gânico. A manter-se esta política é quase inevitável. Eu diria mais, é quase
necessário.

Na Europa existe um “exército” de quase 30 milhões de desempregados.


Em Portugal, a chaga cresce a olhos vistos, alcançando os 15 por cento. Que
esperança podem ter estas pessoas que perderam a noção do seu horizonte?
Um povo de 10 milhões de pessoas que tem mais de 1 milhão de desempre-
gados, com a particularidade de mais de 30 por cento serem jovens, é um factor
brutal de desestruturação das relações sociais, com consequências, mesmo ao
nível psíquico e de mau estar social, imprevisíveis. Metade destes desemprega-
dos não têm subsídio e o RSI vai ser reduzido. Vão ser criadas legiões de gente
sem trabalho e sem subsídio. Como é que esta gente vai reagir socialmente?

O fosso social cava-se ainda mais e a classe média está esfrangalhada. Será
inexorável pensar que os ricos serão mais ricos e os pobres mais pobres?
As estatísticas demonstram que à medida que aumentam as curvas ascen-
dentes da crise, são absolutamente paralelas com as curvas ascendentes de en-
riquecimento das classes superiores e com o declínio das camadas intermédias
e inferiores. O agravamento da crise acentua o ângulo de distância entre ricos
e pobres. Há um processo de concentração de riqueza nas mãos de uns, e um
processo de depauperização nos outros. Na crise de 1929 passou-se isto e na
actual crise, desde 2008 a esta parte, está-se a passar rigorosamente o mesmo. O
que significa que se cria um ambiente de polarização social sem solução à vista.
Um cenário de pré-guerra. Estou em crer que a Europa, sobretudo a periférica,
pode estar nas vésperas de grandes convulsões sociais e políticas.
296 ›
Esteve três legislaturas na Assembleia da República como deputado.
Como explica que o nível de credibilidade dos parlamentares tenha descido
tão baixo?
O discurso medíocre e oportunista contra os políticos, a política e o Parlamento
em geral, é protofascista e contra a democracia. Há deputados bons e maus, como em
tudo. Também aqui a solução para o problema reside na política, nos partidos e nos
protagonistas políticos. As diatribes contra as políticas e os políticos, em geral, são
anti-democráticas e populistas. É uma crítica fácil.

‹ 297
Isabel Moreira 122

Portugal ainda é o país dos vícios privados e virtudes públicas

É uma “eleita” que se assume ostensivamente pela diferença. Na forma, na substância


e no modo de estar. Olhada de soslaio por uns, Isabel Moreira mantém-se fiel às suas
convicções e consciência. Sem amarras, lutou até à exaustão e sem vacilar, pelo reconhe-
cimento de direitos civis, nomeadamente o casamento entre homossexuais. Admite que
há muito preconceito ainda a vencer, «mas já se respira melhor no meu país». Sobre o
ensino superior, que conhece bem, porque aí lecionou, durante mais de uma década, diz
que deve ser «racionalizado» e que o Estado tem que tomar as rédeas deste sector, moni-
torizando e «fiscalizando» os cursos universitários.

As suas tomadas de posição no Parlamento têm dividido opiniões. Considera-se


a enfant terrible e a desalinhada do grupo parlamentar do PS?
Sou simplesmente a Isabel Moreira. Tenho a noção que fui eleita no sistema que temos,
ou seja, apesar de independente, não é possível uma eleição sem partidos. Mas deixe-me
que lhe diga que tenho sido absolutamente leal com o meu grupo parlamentar. Não faz
sentido uma bancada em que cada um faz o que lhe apetece, sem ponderar o reflexo que
a sua atitude pode ter no grupo onde se insere. Contudo, tenho de balancear este contexto
com um mandato constitucional que também me confere prerrogativas individuais.
122 Jurista e Professora. Revela-se quase impossível não realçar o facto de ser filha do histórico líder e membro do CDS,
Adriano Moreira, e, ao mesmo tempo, deputada independente no grupo parlamentar do PS. Para além disso, ainda defende
causas como a adopção por casais homossexuais ou a eutanásia. Comissões Parlamentares a que pertence: Comissão de Assun-
tos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias; Comissão para a Ética, a Cidadania e a Comunicação.
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva em Julho de 2012
‹ 299
Quem fura a disciplina de voto passa a ser considerado um traidor?
Todas as vezes que discordei da direcção do grupo parlamentar deveram-se a
questões de consciência, que iam para além do memorando da troika, e, de acordo,
com o regulamento interno, não estão inseridas na disciplina de voto. É mais fácil
colocar os holofotes sobre uma deputada independente e um pouco fora da norma,
desde a forma como se apresenta, ao seu percurso cívico, do que sobre um deputado
com um longo historial e que não interessa incomodar.

Leccionou durante 11 anos na Faculdade de Direito e disse quando assumiu


funções em S. Bento que ia para o Parlamento «fazer o que ensinei aos meus
alunos». Em que medida tem aproveitado a experiência de docente na «casa da
democracia», nomeadamente na Comissão que integra, Assuntos Constitucio-
nais, Direitos, Liberdades e Garantias?
Sinto um gosto enorme por estar numa comissão sobre temáticas relacionadas com
a minha formação académica. É uma grande vantagem ter ensinado Direito Constitu-
cional e Direito Internacional, para além de ter uma tese em Direitos Fundamentais.

Mas a política não é o mesmo que dar aulas…


Na política aprende-se todos os dias. Há facetas naturais da política às quais eu
não adiro. Jamais farei qualquer cedência pensado no meu futuro político enquanto
carreira e jamais alinharei em estratégias silenciosas para derrubar «x» ou «y». Con-
tinuarei a votar contra as alterações ao Código do Trabalho e aos cortes nos subsídios
e nas pensões, mesmo que isso hipoteque o meu futuro político. É uma nota que
introduzo na política, ou seja, não transigir em questões fundamentais. É esta dife-
rença que trago ao Parlamento e ao grupo parlamentar onde me insiro, romper com
a unanimidade, através de um grau de liberdade muito grande. Penso que a própria
opinião pública é sensível a esta forma diferente de fazer política, permitindo preci-
samente alargar o espectro do eleitorado.

Especialista como é em assuntos constitucionais, acha que a Lei Fundamental,


a tal que os políticos juram quando tomam posse, tem sofrido muitos atropelos?
Às vezes, por isso é que existe o Tribunal Constitucional (TC) e os recursos de
constitucionalidade. O TC faz muito mais do que apreciar leis que vêm da AR e do
governo. Os atropelos existem, mas não a um ritmo diário. Quando se legisla deve-se
fazê-lo o mais próximo possível da mensagem constitucional e acho que essa tendên-
cia se está a perder. Era praxe não legislar de forma retroactiva, ou pelo menos não
o fazer de forma repetida, era praxe ter atenção ao princípio da segurança jurídica,
ao princípio das tutelas das expectativas, etc. A forma como se esmagam direitos ad-
quiridos é um exemplo de que o espírito da Constituição está a desaparecer. A lei do
enriquecimento ilícito, promovida pela maioria, era, do meu ponto de vista, a tenta-
300 ›
tiva de fazer o crime mais “pidesco” que alguma vez tive conhecimento desde que me
lembro de ter consciência jurídica. (NDR: O Tribunal Constitucional chumbou em
Abril o diploma que criava o crime de enriquecimento ilícito porque entendeu que
eram violados os princípios constitucionais da presunção da inocência e da determi-
nabilidade do tipo legal).

Quando fala em esmagamento dos direitos adquiridos refere-se ao corte nos


subsídios e às alterações nas leis laborais. Podemos falar num retrocesso nos
direitos adquiridos?
Há uma forma de legislar que vem contrariando a principiologia constitucional. E
isso aflige-me, muito. Um cidadão tem a percepção que o seu contrato de trabalho não
vale nada em termos de segurança, comparado, por exemplo, com um contrato feito
pela Lusoponte. São ambos contratos, simplesmente um é feito por uma grande empre-
sa e é intocável, enquanto o vínculo do cidadão comum é alvo de tudo e mais alguma
coisa. É admissível à luz da dignidade humana que se trate com tremendas cautelas o
contrato com uma grande empresa, e tudo o que diz respeito às pessoas seja tratado a
pontapé. Os cidadãos sentem que têm menos valor do que o pilar de uma ponte.

Relativamente a questões sobre o ensino e a falta de empregabilidade. Somos


o terceiro país da UE com maior desemprego jovem. Como se chegou a esta
tragédia social?
Este governo continua obcecado com o défice e a austeridade, e recusa falar de
crescimento e de como combater o desemprego. A mim o que me assusta verdadei-
ramente não é a austeridade, mas a sua medida. Os licenciados têm qualificações
absolutamente extraordinárias, não têm oportunidades e são convidados à emigra-
ção. Tenho exemplos emocionalmente muito próximos. Aliás, esta crise tem essa ca-
racterística, todos conhecem pelo menos uma pessoa que está aflita. Se isto um dia
se endireitar, e assim esperemos, vamos constatar que milhares e milhares de jovens
foram embora. Isto é um flagelo social. É preciso começar do zero, primeiramente por
uma política completamente diferente para as universidades.

Defende uma reestruturação completa da rede do ensino superior?


O ensino superior deve ser racionalizado em todas as suas esferas, tanto o públi-
co, privado, politécnico, militar, concordatário. Tem que se ter em conta quais são as
necessidades do país e identificar os cursos que têm menos matriculados - provavel-
mente ter a coragem de fechar alguns estabelecimentos. Sou completamente favorável
á proposta do CDS que defende que o Governo deve ter a obrigação de informar
cada estudante, antes da inscrição, quais as probabilidades de saídas para o mercado
profissional e qual a percentagem de empregabilidade. Isto não limita a liberdade do
estudante, antes pelo contrário, vai ajudá-lo. Porque informação é poder.
‹ 301
O que temos vindo a assistir, e não é de agora, são diplomados a saírem do
banco das faculdades para a porta dos centros de emprego. É possível estancar
esta «hemorragia»?
O Estado tem aqui uma grande responsabilidade. Só certificar o curso não chega.
É preciso monitorizá-lo e «fiscalizar» o seu desenrolar, dando disso conta aos estu-
dantes. Relativamente ao ensino privado, o Estado demitiu-se por completo, esque-
cendo-se que a rede do ensino superior não inclui apenas o ensino público. Floresce-
ram cursos e universidades, com professores famosos que depois não punham lá os
pés e deixando essa tarefa a pessoas desprovidas de qualificações. O resultado não po-
dia ser bom e está à vista. É preciso que o Estado tome as rédeas do ensino superior.

A austeridade está a encurtar a margem de progressão das universidades,


limitadas pelos cortes. Como vê os alertas de reitores, docentes e alunos?
Vai ser um drama a todos os níveis. As faculdades já perderam a autonomia na
contratação e os professores vão ficar assoberbados de turmas e não lhes vai restar
tempo para investigar. A docência, a investigação e a produção científica vão sofrer
um corte de qualidade gigantesco, com reflexos nos futuros quadros de Portugal.

Participou no dia 30 de Janeiro num debate na Escola Alves Redol. Qual a


importância destas iniciativas que levam os deputados a saírem do Parlamento
e a contactarem de perto as populações?
Os deputados precisam de sair da Assembleia e como eleita pelo círculo de Lisboa
calhou-me uma escola da área, dentro do ciclo de debates que o grupo parlamentar
do PS está a organizar. Fui dar uma aula, a alunos entre os 15 e os 17 anos, sobre
como funciona a democracia, como funcionam os órgãos de soberania, o que é isto
de fazer leis, etc. Gostei imenso, foi bastante enriquecedor. Neste âmbito também
fui à Faculdade de Psicologia da Universidade Nova de Lisboa dar uma aula sobre
«Direito à saúde e Constituição». Mas a actividade parlamentar fora de S. Bento não
se fica por aqui.

302 ›
Luís Nazaré 123

As culpas da academia na crise internacional

O docente acusa muitas escolas de economia e gestão de um «seguidismo


acrítico» em relação aos conteúdos de cunho marcadamente liberal dos manu-
ais de estudo. Luís Nazaré acrescenta que a mensagem que é difundida acaba
por se reflectir posteriormente no comportamento dos estudantes no mercado
de trabalho, por exacerbar o espírito individualista, o culto do curto prazo e o
desenfreado embaratecimento dos factores produtivos.

Li um artigo seu em que diz que este Governo «distribui malvadezas


aos bochechos», aconselhando os políticos da maioria a lerem Maquiavel.
Quer concretizar?
O traço marcante da actual governação tem sido o cumprimento, mais do
que canino, daquilo que foi acordado com a troika (ou a tríade, como lhe cha-
mo) - e eu, deixe-me ressalvar, defendo que se deve respeitar o que foi contra-
tualizado. Acontece que o Governo tem ido para além do que estava previsto
por razões marcadamente ideológicas. Há um cunho ultra-liberal na acção go-
vernativa e isso tem feito com que as medidas fossem agravadas, com reflexos
devastadores na economia nacional.

123 Gestor, Professor Universitário (ISEG) e político. Colunista económico do Jornal de Negócios. Assessor do Primeiro-
Ministro para a Indústria, Comércio e Turismo no XIII Governo Constitucional.
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva em Setembro de 2012

‹ 303
Na última década têm aumentado as desigualdades e o fosso entre ricos e pobres?
Eu diria que nos últimos 25 anos esse fosso tem vindo a acentuar-se. Os ricos são
mais ricos e os seus rendimentos têm vindo a acelerar, cavando assimetrias ainda mais
profundas em comparação com as classes intermédias e os mais desfavorecidos. Portu-
gal, no quadro europeu, é um dos países onde o indicador de Gini é mais acentuado.

Perante um cenário que convida a uma atmosfera socialmente efervescente,


fica surpreendido por não se verificarem convulsões de rua, como se tem visto
na Grécia e em Espanha?
É um dado interessante constatar que as pessoas têm aceitado, de forma relativa-
mente serena, o plano de austeridade. Posso avançar com uma leitura: mesmo quem
não domina os conceitos económicos reconhece que o aumento do nível e da quali-
dade de vida foi feito à custa da sustentabilidade económica. Ou seja, vivemos acima
das possibilidades, como foi reiteradamente afirmado. Foi uma tese muito martelada
e acabou por entrar na cabeça das pessoas.

Os portugueses estão a consciencializar-se que viveram numa espécie de ilu-


são económica?
De alguma maneira, apesar de eu crer que é uma aspiração humana legítima atin-
gir melhor qualidade de vida, ter acesso ao consumo e obter rendimentos mais eleva-
dos, tanto mais no caso de Portugal em que somos dos países mais pobres da Europa
Ocidental. Gastou-se excessivamente, o acesso ao crédito foi demasiado fácil - para o
Estado, as empresas e as famílias - o que explica, em larga medida, o défice externo
a que chegámos e as condições de endividamento com que nos confrontamos. Penso
que deve apontar-se o dedo aos que nos emprestaram dinheiro, sem qualquer critério
ou base de sustentação. Quando há uma relação desproporcionada, temos de nos per-
guntar quem é que a causou, quem é que publicitou e promoveu esse acesso fácil ao
dinheiro? Quem beneficiou e quem é que não fez um trabalho de análise competente
sobre o credit scoring?

A resposta às suas perguntas é fácil, foram os bancos que emprestaram o


dinheiro…
Foram os bancos que emprestaram a quem muito pediu e quem emprestou aos
bancos foi o mercado financeiro internacional. Portanto, toda a gente é co-responsá-
vel. Não há que iludir as questões.

É docente do ISEG, tendo como especialidade estratégia organizacional. É


uma área fundamental nos dias que correm?
O mais possível. O sucesso de uma organização e a sua competitividade passa
muito pelo acerto nas escolhas estratégicas. Por mais eficiência produtiva que uma
304 ›
empresa demonstre ter ou gerar produtos capaz de afrontar a concorrência, se não
possuir uma estratégia bem pensada ela nunca conseguirá ser bem-sucedida.

A engenharia é um dos cursos com menos problemas de empregabilidade.


Pensa que a racionalização dos cursos chegou tarde demais?
Penso que temos de reflectir sobre diversas variantes. Primeiro, estamos perante
um pano de fundo em que o desemprego afecta sobremaneira o universo dos recém-
licenciados. A crise económica não permite que se gerem os postos de trabalho de-
sejáveis. Segundo, a natureza do curso que os jovens escolhem. Os de índole mais
técnica têm, de uma forma geral, mais saídas para o mercado trabalho. Engenharias é
um deles. Mas há outros. Houve durante muito tempo a ideia, e a economia acolhia
todas estas aspirações, que qualquer que fosse o curso escolhido havia de existir uma
colocação profissional. Portanto, muitos escolheram determinados cursos por terem
aversão a áreas mais técnicas, onde há cargas de matemática, física, etc. Perante isto,
foi natural a fuga para formações de outra natureza, no domínio artístico, social, hu-
manísticos, etc.

E o caos da procura a superar a oferta ficou à vista…


Estas escolhas são legítimas, até porque é importante que um jovem persiga os
seus sonhos e a sua vocação, mas não pode esquecer-se, quando escolhe o curso, que
amanhã terá de encontrar um trabalho. Ou seja, não pode perder o sentido prático
das coisas, por mais constrangedor que isto possa parecer. De há 15 anos a esta parte
assistiu-se a uma corrida às ciências da comunicação, as relações internacionais, etc.
- áreas respeitabilíssimas mas que não munem o jovem de competências específicas
que sejam imediatamente integráveis e compatíveis com as necessidades do mercado
de trabalho e das empresas. Não se pode estranhar que as mesas dos decisores este-
jam atafulhadas com CV de pessoas com estas formações.

Um curso de Direito, por exemplo, confere mais versatilidade ao candidato?


Certamente. O curso de Direito tem associado um grau de tecnicidade elevado e
que se coaduna com as necessidades do mercado, o que não quer dizer que também
não existam licenciados desempregados nesta área. Há outro factor, que não queria
deixar de mencionar, que está relacionado com o prestígio das próprias faculdades.
As instituições com níveis de exigência e desempenho mais altos são aquelas onde
os estudantes conseguem mais facilmente colocação. Não é por acaso que no domí-
nio das principais escolas de economia do país (caso do ISEG, do ISCTE, da Nova,
Católica e Faculdades do Porto e Coimbra) a empregabilidade dos jovens saídos das
licenciaturas ou dos mestrados é muito elevada. Pedem meças a qualquer escola in-
ternacional. Sei, até porque é o caso que conheço melhor, o ISEG tinha uma taxa de
empregabilidade superior a 90 por cento.
‹ 305
A massificação do acesso ao ensino superior fez aumentar o número da oferta
privada. Os casos da Independente e das equivalências do ministro Relvas na
Lusófona contribuem para desprestigiar os alunos que lá se formam?
Bem vê que a capacidade de absorção das escolas públicas é limitada, muito devido
aos critérios de exigência e selecção mais apertados que nem todos podem preencher.
Por isso, é legítimo que nasça um mercado paralelo, que é o ensino universitário pri-
vado. Nada contra desde que observados critérios de exigência e padronização com
vista à formação das pessoas. Em certos países, por exemplo, nos Estados Unidos, o
ensino privado tem uma qualidade melhor ou equivalente ao ensino público. Quanto
a eventuais comportamentos desviantes, a universidade é que fica responsável por
eles e terá de sofrer as consequências do facilitismo, deliberado ou inconsciente, na
sua relação com o mercado.

Está apreensivo com os cortes anunciados para o ensino superior e com o


número de alunos que foram obrigados a renunciar à sua formação por incapa-
cidade económica?
Os estudantes têm sido obrigados a abandonar a faculdade, nomeadamente por
falta de rendimentos para liquidar as suas propinas. É uma realidade terrível e um
fenómeno preocupante, tanto mais quando muitos deles têm capacidade e aprovei-
tamento para obterem o seu diploma universitário. Revela bem o estado agudo a que
o país chegou. É verdade que uma sociedade e um mercado de trabalho não se resu-
mem a pessoas com diplomas universitários, mas é óbvio que aqueles que acumulam
um conjunto de conhecimentos mais elevados tem mais condições para se revelarem
profissionais aptos a integrarem-se no mercado de trabalho

306 ›
José Medeiros Ferreira 124

Somos governados pelo culto da imagem

Já passaram quase 30 anos desde que esteve no Palácio das Necessidades, mas
a sua voz é respeitada e a sua opinião pesa. Apesar de afastado da política activa, é
uma espécie de «senador» da nação que conhece os protagonistas de ontem e de hoje
como ninguém. Sem ruturas, mas com muito espírito crítico, - precisamente o que
falta ao país - Medeiros Ferreira falou sobre o processo europeu, a troika, os políticos
e a importância da escola como «amortecedor das tensões sociais»

Foi o ministro dos Negócios Estrangeiros que pediu a adesão de Portugal à


Comunidade Económica Europeia, que acabou concretizada em 1986…
Ainda não estou arrependido…(Risos). Acostumei-me a dizer nos primeiros 20
anos de presença de Portugal na Europa que quando as coisas começassem a correr
mal haviam de se lembrar mais de mim, do que no início. A ver vamos.

Depois de 20 anos de ilusão, dinheiro fácil, fundos comunitários, surge o euro-


ceticismo e a Europa vista como causa para os nossos males. Qual é o seu balanço?
O balanço que faço é que a oligarquia portuguesa entrou com um espírito de-
masiado acrítico na União Europeia, em 1986. Nós tornamo-nos europeístas com a
124 Medeiros Ferreira foi deputado à Assembleia Constituinte (1975-1976) e ministro dos Negócios Estrangeiros do I Gover-
no Constitucional (1976-1978), chefiado por Mário Soares. É professor associado da Universidade Nova de Lisboa. É membro
do Instituto de História Contemporânea e presidiu ao Conselho Geral da Universidade Aberta.
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva, em Janeiro 2013

‹ 307
mesma mentalidade dogmática que fomos colonialistas. Depois, faltou sentido críti-
co, faltou estudo sobre a situação internacional e faltou estratégia própria dentro da
União Europeia.

Posteriormente, fomos vítimas do alargamento da União Europeia a leste?


Sem dúvida. Aliás, Portugal quando aderiu fê-lo à Europa Ocidental. Existiam
preocupações sérias com aspectos sociais, relacionados com a educação, a saúde,
a segurança social, etc. Esses países sentiam-se obrigados e motivados para edificar
uma política social sedutora.
Com a reunificação alemã, com o desmantelamento da União Soviética, com a
falência dos regimes de democracia popular dos países de leste e com a abertura da
Organização Mundial do Comércio aos produtos asiáticos, sobretudo, a União Eu-
ropeia perdeu o seu centro de gravidade. Portugal indirectamente acabou por sofrer
essas consequências.

Esta Europa padece de um problema de lideranças frouxas, desde a retirada


de Khol e Miterrand?
Repare que o tratado de Maastricht e a própria União Monetária foram materiali-
zados por homens como Khol e Miterrand e as consequências agora são as que estão
à vista…
Normalmente em situações de crise emergem grandes estadistas. Já quando a si-
tuação é mais rotineira os líderes afirmam-se mais pelo culto da imagem, que é quase
pior que o culto da personalidade, só que mais inofensivo. No fundo, somos gover-
nados pelo culto da imagem. É por isso que se diz que se elege um primeiro-ministro.
Na verdade, ninguém elege um primeiro-ministro, mas sim deputados. É pelo regime
vigente que temos que se desencadeiam mais crises políticas. Se a ideia fosse que o
primeiro-ministro fosse escolhido no seio de uma maioria no Parlamento talvez se
percebesse que era possível mudar de governo sem haver novas eleições.

Tem uma larga experiência como docente e foi até recentemente presidente
do conselho geral da Universidade Aberta. A educação é um sector atreito a
transformações e convulsões, e as mais recentes vieram do anunciado aumento
nas propinas e no corte dos recursos das faculdades. Há o risco de uma elitiza-
ção do ensino?
Sempre houve uma tendência para a criação de dois sistemas de ensino superior.
Há até uma universidade, da qual eu me vou abster de dizer o nome, que admite que
está a trabalhar para criar uma elite de excelência. Creio, contudo, que de uma forma
geral, a universidade portuguesa correspondeu razoavelmente ao desafio que lhe foi
colocado nos anos 80 e 90. Depois, com Bolonha, desorientou-se um pouco. E por-
308 ›
quê? Porque a maior parte das universidades adaptou-se a Bolonha com um espírito
acrítico. Nesse sentido, creio que se perdeu alguma da independência das universi-
dades. Como defensor que sou da independência, penso que existiu um retrocesso.

O pressuposto da racionalização dos meios é um bom ponto de partida para


a fusão da Universidade Técnica e da Universidade de Lisboa?
Esta crise ensina-nos uma coisa decisiva: Não podemos voltar a esbanjar meios. É
preciso mais ponderação. Vamos esperar pelo desenlace desse processo que está em
curso. Espero, até porque ambas as universidades têm dois bons reitores, que deste
processo saia um novo impulso. Mas creio que o ponto de partida para o êxito desta
fusão seja a reunião da massa crítica suficiente para fazer uma grande universidade.

Não estamos a esbanjar meios intelectuais quando os nossos estudantes li-


cenciados e doutorados rumam para fora do país?
Sem dúvida, estamos a dar de bandeja os nossos melhores recursos humanos.
Estamos a fazer tudo o que os outros países que recebem essa emigração querem.
Absorvem jovens muito mais bem preparados do que há 40 ou 50 anos e quem paga
essa formação é o Estado português e os portugueses. Por muitas críticas que se faça
ao sistema de ensino em Portugal a emigração qualificada baseia-se na formação que
foi ministrada pelas nossas escolas. Trata-se de um investimento na educação que está
a ser desaproveitado. É essa emigração que está a ser chamada para a Europa e para o
estrangeiro. Podia ser um rumo que, em primeira análise, podia ser prestigiante, mas,
no imediato, acaba mesmo por empobrecer a economia portuguesa.

Curiosamente, são as empresas alemãs e do leste europeu que mais cobiçam


os nossos recém-formados…
A Alemanha nunca escondeu que queria atrair quadros qualificados para o seu
território e aproveitou-se de uma consequência conhecida de uma zona monetária
que é o seguinte: o factor trabalho segue o factor capital, onde quer que ele exista. Re-
pare que há muitas vozes no centro da Europa contra as transferências financeiras que
era uma das características da União Europeia, juntamente com os fundos de coesão
e estruturais, com vista a reter as pessoas nos seus países de origem. Diminuindo os
fundos essas pessoas são obrigadas a seguir para onde está o investimento e o capital.

O médico neurologista António Damásio esteve há semanas em Portugal


onde inaugurou uma escola com o seu nome. Disse ele que «não é possível ha-
ver uma sociedade justa e com progresso se não houver educação». Subscreve?
Mantenho uma certa relação de afectividade com quem está no ensino em Portu-
gal e discordo, completamente, da imagem que se formou. Penso que a Escola é mui-
to pouco estimada em Portugal. E não é de agora, é um sentimento ancestral. Há uma
‹ 309
cultura refractária que penaliza, quase sempre, a escola pública. Na dúvida, estou ao
lado das escolas, porque acho que têm feito um trabalho admirável. Respondem aos
problemas inerentes à comunidade escolar, para além dos problemas decorrentes da
sociedade, seja dos menores rendimentos das famílias, pelo afluxo de imigrantes, a
desagregação das famílias, etc. A escola tem vindo a aumentar o seu leque de funções
de uma forma repentina, a que nem a sociedade e o poder político estão a conseguir
dar resposta. São as crianças com fome, a gestão das cantinas, os jovens imigrantes
que mal sabem falar português, etc. A escola está a funcionar como uma espécie de
amortecedor das tensões sociais.

Os professores vão conseguir recuperar a autoridade junto dos alunos e


da sociedade?
Houve um certo desvario, com culpas repartidas entre os professores e a tutela. Eu
teria sempre tendência a negociar. O movimento sindical dos professores não pode
deixar de ser um interlocutor. É preciso corrigir a lógica de ver no outro um antago-
nista e entender as partes do sistema numa lógica de cooperação. No actual contexto
económico, financeiro e social a educação será ainda mais determinante. Apesar da
filosofia de economia de meios, que é uma das lições da crise, não é possível abando-
nar as populações à sua sorte, retirando-lhes a saúde e a escola. É preciso ter cuidado
para não deitar fora o bebé com a água do banho.

Para finalizar e em jeito de remate. Como é que o cidadão José Medeiros


Ferreira vê o futuro do país?
Eu elencaria duas prioridades. A primeira: terminar a intervenção da troika em
Portugal em condições de reassumir-mos a nossa credibilidade externa. No fundo,
levar os senhores da troika à porta e fazer uma despedida, agradecendo a ajuda pres-
tada, não deixando de lamentar a elevada alta de juro cobrada. A segunda prioridade
seria definir os volantes em que nos devemos concentrar, em termos políticos, que
podem ajudar ao crescimento e criar emprego. Agir de forma concentrada e não difu-
samente. Apostar, por exemplo, no sector da educação, como fez questão de afirmar
o Presidente da República no discurso do 5 de Outubro. É preciso não esquecer que
a formação das pessoas passa pelas escolas, apesar do investimento neste sector não
ter resultados práticos de uma eleição para outra.

310 ›
Adriano Moreira 125

Memórias de Adriano

Adriano Moreira é um dos portugueses mais respeitados quando se fala de ensino


e universidades. Foi quase tudo nesta área e sem o seu impulso provavelmente o rosto
do ensino superior português não seria o que conhecemos. Connosco partilhou o seu
infinito saber, sobre este e outros domínios, bem como as suas dúvidas e inquietações
relativamente a este «Estado exíguo» chamado Portugal.

O Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) ainda hoje é


conhecido como «a escola de Adriano Moreira», instituição na qual foi director
e professor catedrático. Quer partilhar connosco a atribulada história e as suces-
sivas mudanças de designação desse que ainda hoje é um baluarte das ciências
sociais e políticas em Portugal?
Deixe-me fazer uma reflexão prévia: importa recordar que durante séculos Portu-
gal teve apenas uma universidade: a Universidade de Coimbra. O vasto império não
tinha ensino superior em nenhuma das ex-colónias, excepto em Goa, onde havia uma
escola médica, mas que atribuía títulos que não eram reconhecidos como formação
completa na metrópole. Com o passar das décadas o mundo tornou-se mais comple-
xo e creio que acompanhámos essa evolução com atraso. A minha interferência nessa
instituição, que no início da década de 50, se chamava Escola Superior Colonial, re-
125 Professor Universitário, ensaísta e conferencista. Co-fundador do CDS, foi deputado à Assembleia da República durante
várias legislaturas. Foi presidente do CDS de 1985 a 1988 e, interinamente, de 1991 a 1992.
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva, em Fevereiro de 2013

‹ 311
sultou de alguns factores, a começar pela minha visita a África e posteriormente pelo
tempo que acumulei como membro da delegação portuguesa nas Nações Unidas.
Foram experiências que me deram uma visão que o ensino teria, necessariamente,
que acompanhar a perspectiva de mudança que se desenhava.

Em concreto, qual foi o novo paradigma que introduziu?


Em vez de uma escola de quadros, como era a Escola Superior Colonial, preci-
sávamos realmente de uma escola de ciências sociais e políticas que correspondesse
à mudança que se acelerara, sobretudo depois da última Grande Guerra Mundial.
Foi deste modo, com a concordância do Almirante Lopes Alves (que era ministro do
Ultramar) e do professor Raúl Ventura (docente da Faculdade de Direito da Universi-
dade de Lisboa e subsecretário de Estado do Ultramar) que começámos por criar um
centro de estudos políticos e sociais na junta de investigação científica do ultramar,
cujo método era organizar esses centros numa escola ou faculdade para que ela de-
senvolvesse, na sua área, os problemas que mais interessavam ao país.

Mais tarde chegou a ministro e o seu ímpeto reformista não foi bem visto
pelo poder político de então…
Quando fui ministro pude transformar essa minha ideia em realidade, com a
concordância dos reitores da Universidade Técnica de Lisboa e da Universidade de
Coimbra, os professores Moisés Amzlak e Braga da Cruz, respectivamente, bem como
da Universidade do Porto. A este processo opôs-se o reitor da Universidade de Lis-
boa, o prof. Marcello Caetano. Apesar disso, a universidade foi reconhecida e o currí-
culo reorganizado. As ciências que me pareciam necessárias eram em primeiro lugar
as relações internacionais (que sempre condicionaram - e; muitas vezes severamente
- Portugal), a ciência política (o império euromundista estava em busca de uma for-
mulação de governo) e, só mais tarde, a estratégia. Foram essas três áreas de que me
ocupei. Posteriormente, fundei as duas primeiras universidades do Ultramar Portu-
guês: os Estudos Gerais Universitários de Angola e Moçambique - um nome que não
considero feliz, porque foi adoptado para dar ideia que era o mesmo espírito europeu
que levava a utilizar esta designação. Por grandes resistências que se verificaram na
área política em Lisboa estas instituições ficaram condicionadas a uma experiência de
3 anos. Se a experiência fosse bem-sucedida ficaria com o currículo completo e foi
isso que se verificou.

Foi uma experiência pioneira e inovadora…


Usámos ainda outra técnica inovadora, à época, que foi a seguinte: a Universidade
de Coimbra assumiu o patrocínio da Universidade de Moçambique, que se traduziu
no fornecimento do corpo docente, na sua maioria muito jovem. Receberam bolsas
de estudo, formaram-se e estava-lhes garantido que o grau hierárquico que tivesse
312 ›
na carreira quando acabasse o seu período em Moçambique era o mesmo grau com
que entravam na Universidade de Coimbra. O mesmo se fez para Angola com a Uni-
versidade Técnica, que assumiu o patrocínio relativamente a esta entidade do então
Ultramar. Isto significa que houve um movimento de grande solidariedade.

Da década de 60 até aos nossos dias, destaca alguma conquista do ensino


superior nacional?
De então até agora, multiplicaram-se as faculdades e as universidades, nomeada-
mente nas áreas em que fomos pioneiros. Creio que falta apenas neste momento que
o Instituto de Estudos Superiores Militares seja reconhecido com estatuto universitá-
rio e que o seu director passe a pertencer ao Conselho de Reitores. Isto porque esta-
mos num momento de grande crise e é necessário, a meu ver, repensar e racionalizar
a rede nacional de ensino superior. Tem sido difícil convencer os sucessivos governos
de que a rede nacional engloba a rede pública de universidades e politécnicos, a que
tem de se somar a rede privada e cooperativa, a rede católica e a rede militar. Sem esta
racionalização, que as próprias circunstâncias do País exigem, não aproveitaremos
devidamente a capacidade que precisamos de ter para enfrentar a mudança radical
que se deu no mundo depois da experiência de instalação no ensino superior nas
antigas colónias.

Defende uma racionalização integrada e global?


Tudo tem de passar pela rede. O conceito de rede está a ser aceite e debatido em
profundidade pelo Conselho de Reitores. Urge fortalecer a rede à luz das dificuldades
que Portugal atravessa e o ensino superior não é imune. É preciso entender que não
há uma rede pública, há uma rede nacional que é preciso racionalizar. Não menos
importante, creio que é preciso repensar a maneira como o Processo de Bolonha foi
aplicado em Portugal.

Que principais críticas tece a este processo?


Como sabe entre os argumentos teóricos para defender este Processo de Bolonha
um deles era que o mercado exigia uma formação mais rápida dos estudantes, mas
as circunstâncias estão a mostrar que foi completamente errada essa perspectiva. Por
outro lado, deu-se muito relevo ao ritmo do ensino (3+2 ou 4+1) esquecendo-se os
outros. Bolonha é ritmo mais melodia. Era imperioso modificar os programas. Há
factores históricos que mereciam ser tidos em atenção. O fim do império - não só do
português, mas o do império euromundista (porque os titulares do poder colonial
eram os países da frente marítima atlântica) - desvalorizou as fronteiras geográficas,
passando as fronteiras de interesse a serem, nos dias de hoje, dominantes. É essa
uma das razões que leva tão frequentemente a falar do globalismo, embora não haja
nenhuma definição fiável. Devemos encaminhar as universidades para aquilo que o
‹ 313
ex-reitor da Universidade de Coimbra, Fernando Seabra Santos e o Reitor da Uni-
versidade de Brasília (NDR: Naomar de Almeida Filho) chamaram num livro, que eu
prefaciei, editado em Dezembro, de «a quarta missão» da universidade.

No que é que se traduz essa «quarta missão»?


As universidades, até há pouco, fixavam-se nas exigências do país, até porque as fron-
teiras eram geográficas. Hoje, tudo mudou e deparamo-nos com as fronteiras não geo-
gráficas do globalismo, que ficam algures. E este cenário não existe só nas universidades,
passa-se na Defesa, Segurança, nos mercados, etc. Os novos horizontes exigem uma nova
consideração, nomeadamente na definição dos currículos, definição das profissões, no
esclarecimento à juventude para que ela decida em liberdade informada qual é a via que
deve optar e, ao mesmo tempo, além desta visão universal, há uma perspectiva particular
em relação ao país: até fins do século passado, os estudos da ONU, sobretudo do PNUD
(Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), referiam-se a países abaixo do
Sahara. Neste momento, a fronteira da pobreza passou para o norte do Mediterrâneo. Por-
tugal está na fronteira da pobreza. Foi abrangido por essa fronteira. Por isso, faz parte da
«quarta missão» da universidade. É preciso conciliar e racionalizar o desafio que é global,
com a absoluta necessidade de resgatar o país da situação de pobreza em que se encontra.

Como é que vê o fenómeno da fuga dos nossos jovens mais qualificados


para o estrangeiro?
Para começar, acho um erro que um membro do governo incite à emigração os nossos
melhores. Mas também acho que as pessoas têm o direito e o dever de procurar assegurar
o seu futuro e dos seus descendentes pelos quais são responsáveis. Mas o meu maior la-
mento é que os 80 ou 90 por cento de diplomados que conseguem colocação profissional
no estrangeiro vão ser empregados por conta de outrem. O país precisa é de iniciativa e
é cá. Não estou a criticar que eles vão, não pode é ignorar-se que o maior capital que nós
temos, que é o saber e o saber fazer, vai ser colocado à disposição de outrem. Vai ser em-
pregado, em vez de impulsionar a dinâmica empresarial dentro de portas.
Eu acredito que o país precisa da mentalidade do Eusébio. Explico: O ex-jogador
do Benfica deu uma entrevista onde revelava como é que conseguiu marcar um golo na
baliza adversária de um ângulo quase impossível. Com uma franqueza desarmante, ele
respondeu: «Vi buraco» (risos). É isto de que o país precisa. Iniciativa e capacidade de
assumir o risco. Não é seguindo o caminho que estamos a trilhar que vamos vencer a crise
que nos fez arrastar para a fronteira da pobreza.

Os portugueses são reconhecidamente óptimos profissionais quando demandam


outras paragens. Não é positivo marcar uma imagem de prestígio além-fronteiras?
Não tenho dúvidas que estes nossos emigrantes vão ter sucesso, só que provavel-
mente não voltarão e, o mais grave, vão trabalhar por conta de outrem. O país em-
314 ›
pobrece. Sabe que eu sou muito crítico de os portugueses serem muito sebastianista,
porque acho estranho que tenham escolhido para patrono um rei que foi vencido.
Eu sou mais partidário do Bartolomeu Dias. Porquê? Porque ele dobrou o Cabo da
Boa Esperança e teve de virar para trás. Teimoso, acompanhou a viagem do Vasco da
Gama, mas tinha ordem para voltar. Não voltou. Foi na viagem do Pedro Álvares Ca-
bral. O barco foi ao fundo e ele morreu no mar, sem chegar à Índia. Eu escrevi num
livro, «Bartolomeu Dias, um grande marinheiro que morreu, tentando». Porque ele
estava à procura do «buraco», o mesmo que o Eusébio viu e marcou…

Disse que o Estado «entrou em licença sabática», em 1974, referindo-se à


desregulação que existiu na homologação de cursos. O processo pioneiro de
fusão entre a Universidade Clássica de Lisboa e a Universidade Técnica vai re-
presentar um ponto de viragem no sector?
Naturalmente até pelas funções que desempenho, visto que sou presidente do
conselho geral da Universidade Técnica, sigo este processo com especial interes-
se. Considero que é oportuno, apropriado e esperamos benefícios disso. Sugeria
para meditar bem sobre esse assunto o seguinte: Já imaginou o tempo que levou
na evolução das universidades reunir com a mesma dignidade o saber humanísti-
co ao saber das ciências duras? Até ao século passado as faculdades de humanida-
des eram as mais importantes. Neste momento estão a ser secundarizadas e isso é
um dos elementos da crise mundial e do tal globalismo que atrás mencionei. Por-
quê? Os valores essenciais foram ultrapassados pelos valores instrumentais. Eu
costumo dizer que substituímos o valor das coisas pelo preço das coisas. Levou
muito tempo a que as ciências exactas e técnicas fizessem parte da universidade.
Em Portugal, por exemplo, é o que explica que a Universidade Técnica seja uma
verdadeira federação, porque foram escolas que nasceram completamente separa-
das em ministérios e que posteriormente foram reunidas numa entidade chamada
Universidade Técnica.

De que forma esse novo «xadrez» universitário vai ter consequências sociais?
Primeiro ponto: A Europa procura, entre outras coisas, evitar o conflito de ge-
rações em matéria de saberes. Por isso, começam a aparecer tantos cursos para a
terceira idade, para minimizar o corte de saber entre gerações. Segunda perspectiva:
depois de se ter ultrapassado a separação entre disciplinas, com a reiterada insis-
tência na interdisciplina, o desafio actual que se coloca estou em crer que é mais
severo: a transdisciplina. Por isso, é enriquecedor que esta fusão tenha unidades
que sejam possuidoras de todas as valências. A fusão da Técnica com a Clássica cria
uma universidade com todas as valências, como já existe na do Porto.
O processo está a correr com plena concordância, com fácil adesão dos interve-
nientes e imagino que vamos ter o projecto concluído em breve.
‹ 315
Qual a relevância de esta vir a ser a quarta maior universidade da Península
Ibérica em número de alunos, com 48 mil?
É relevante, mas o fundamental é o facto de todas as valências estarem agre-
gadas. Parece-me uma plataforma indispensável e que se espera seja de utilidade,
especialmente no que diz respeito à «quarta missão», no aspeto em que a univer-
sidade precisa de dar uma contribuição determinante para que Portugal saia da
fronteira da pobreza.

A democratização do acesso ao ensino superior está ameaçada pela crise eco-


nómica e financeira. Podemos regredir para uma elitização do acesso ao ensino?
Isso é um problema. Eu acho que esta crise foi causada pelos erros da civilização
ocidental e não especificamente por Portugal ou pela Europa. É o ocidente que está
em causa. Os próprios Estados Unidos estão a ser atingidos. Veja que houve uma
espécie de teologia do mercado que veio transformar-se em premissa de todas as
actividades. É por isso que há uma anarquia na definição de quem é que manda e
estabelece directivas na própria estrutura europeia. Isto para lhe dizer que a filosofia
do mercado também invadiu a área do ensino. Se ler os relatórios publicados do an-
tigo CNAVES (Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior), entidade a que
eu presidi, encontra lá frequentes advertências de que se está a transformar o ensino
numa actividade subordinada à filosofia de mercado.

A obrigação de pagar propinas insere-se nesta filosofia?


Quando se chama às propinas receitas próprias deve entender-se que estamos
a falar de taxas que são do direito financeiro. Isto transforma o aluno em cliente e
eu não consigo olhar para alunos meus e considerá-los clientes. Há uma espécie
de mentalidade que muda. O tema que o ensino é uma questão de soberania deve
ser debatido com maior frequência. É evidente que a soberania muda, é evidente
que tem de existir uma relação entre meios e objectivos. É evidente que Portugal
passou por um processo de degradação que nos tornou, em primeiro lugar, um
país exógeno, ou seja, sofreu consequências de acontecimentos em que não tinha
participado. Na guerra de 1914-18, que foi custosíssima para o país, não tivemos
parte nas causas, mas nos efeitos participámos de maneira severa. Depois, na guerra
de 1939-45, não participámos nas causas, mas sofremos as consequências. O país
precisa de olhar para isto.

Como podemos escapar ao condicionamento dos factores exógenos?


Á medida que a sociedade se tornou complexa, o Estado português evoluiu de
forma clara para o «Estado exíguo», inclusive cheguei a publicar um livro com esse
nome. E isso significa falta de proporção entre recursos e objectivos. Não se olhou
para isso e neste momento o país está em regime de protectorado. O que não pode-
316 ›
mos suprimir é o Estado Social porque na Constituição Portuguesa não é imperativo,
é um principiologia. Suprimir o Estado Social seria atirar a esperança pela janela. Não
se pode fazer.

O «Estado exíguo» de que fala pode ser um país irrelevante?


Por vezes é. Aquando da última definição dos impérios da Europa sofremos o
ultimato (1890). Quando foi da guerra de 1939/45 sofremos uma espécie de ulti-
mato e tivemos de corporizar a situação de «neutralidade colaborante», que pro-
vavelmente nunca mais se repetirá. Mais recentemente, na guerra do Yom Kippur,
os Estados Unidos também fizeram a imposição, tal como em 1939/45, para passar
pelos Açores.

Assiste-se a uma crescente subjugação das pequenas nações às grandes potências?


Repare, estamos a assistir a este fenómeno interessante: a hierarquia das próprias
potências está a modificar-se. As superpotências denominam-se como tal porque têm
capacidade militar e financeira. Neste momento, nomeadamente em tempo de paz,
quem prevalece é quem tem capacidade financeira. O caso da Alemanha é evidentís-
simo. É por isso que Portugal tem o maior interesse na estrutura europeia.

Diz que a Europa é o nosso único amparo. Quer concretizar?


A Europa é para Portugal o centro do nosso apoio externo. Neste momento quem
tem dimensão para estar no Conselho de Segurança da ONU não é a França, nem
a Inglaterra. Nenhum destes países tem capacidade para enfrentar o globalismo. É
a Europa como um todo, se se mantiver unida. O pior é que a Europa está a perder
influência na cena internacional.

A Europa corre o risco de se tornar um museu onde o resto do mundo vem


apenas visitar como meros turistas?
Se vierem…A Europa não está a cumprir os princípios dos homens que a fundaram,
que acho que tinham uma certa aura de santidade. Os criadores da Europa tinham saí-
do de uma guerra terrível e tiveram o engenho de transformar sofrimento em sabedoria.
Eles perceberam que precisavam de se unir. Estou em crer se os princípios de solida-
riedade forem feridos a Europa perde a voz no mundo. A Europa tem que se afirmar
como um bloco forte e representativo de uma região, como acontece na América do Sul,
em África e até no Oriente, onde tem emergido um regionalismo poderoso e que tem
capacidade de representação. Se o «velho continente» perder a unidade, também perde
a voz. O que acontece é que as lideranças europeias são muito fracas e ainda o são mais
quando evocamos as vozes encantatórias que foram as dos fundadores da Europa, de-
pois de dois conflitos em que morreram 50 milhões de pessoas. Extraordinário. Onde
é que estão essas vozes inspiradoras, neste momento? Não temos.
‹ 317
O projecto europeu ainda corre riscos de sobrevivência?
Acontece com os países o que acontece também muito frequentemente com as
pessoas. Eles conservam a convicção da sua superioridade quando já não a têm e é
isso que em grande parte explica a composição actual do Conselho de Segurança da
ONU e até a ausência das Nações Unidas em situações recentes fundamentais.

As Nações Unidas têm feito tudo o que está ao seu alcance?


Toda a gente aponta que a crise económica e financeira é mundial. Ouviu que te-
nham convocado o Conselho Económico e Social da ONU? Eu não. Se a crise é mun-
dial, devia ter sido convocado. Não quero atribuir as culpas ao secretário-geral da ONU,
até porque ele tem o problema da gestão dos recursos. Mas repare que o emblemático
«Programa do Milénio» também não será realizado. Os objectivos enunciados na con-
ferência do Rio de Janeiro também muito dificilmente serão alcançados. Eu por vezes
digo, admito que algo exageradamente, que as Nações Unidas parecem evolucionar
para tempos de oração a um deus desconhecido. É há problemas que subsistem se
nada for feito. Relativamente à paz, a fome é tão ameaçadora como a bomba atómica.
Os próprios Estados Unidos já dão mostras da falta de recursos. Quem são os donos da
dívida soberana americana? A China. Por isso é que os americanos só têm olhos para o
Pacífico. Deixe-me recordar-lhe que ainda há pouco a imprensa americana ficou muito
alarmada com o facto de os chineses terem colocado o primeiro porta-aviões no mar.
Quem dá este passo está a fazer grandes progressos do ponto de vista da capacidade
estratégica. E quem consegue aliar a capacidade estratégica à capacidade financeira só
pode ser uma grande potência. A China vai a caminho disso.

Direccionando a conversa para assuntos domésticos. Disse que «o credo dos


mercados suplantou o credo dos valores». Pode dizer-se que este governo ga-
nhou os mercados, mas perdeu o país?
Perdeu-se a escala de valores. A atitude da civilização ocidental guiava-se por
valores essenciais que resumíamos na ideia da dignidade humana. Eu digo que cada
homem, cada mulher, é um fenómeno irrepetível na história da Humanidade, o que
faz de cada um de nós um valor único. Os valores instrumentais dizem respeito ao
saber fazer e neste momento, o que acontece, é que o valor das coisas está substituído
pelo preço das coisas. De tal maneira, que os homens começam a ser traduzidos em
números. É uma espécie de voltar a ter confiança nas comunicações sem fios, porque
a estatística é uma comunicação sem fios.

O aumento da carga fiscal para níveis nunca visto é a redução dos objectivos
a números?
Não é possível dizer que é possível aumentar os impostos até onde for necessário.
Eu entendo que há um limite para a carga fiscal. Numa entrevista televisiva pergun-
318 ›
taram-me se eu achava que este aparente pacifismo da população que protestava não
podia, um dia, descambar para a violência? A minha resposta foi esta, que mantenho: a
fome não é um dever constitucional. Portanto, há um limite, que é a fadiga tributária.

Como é que os seus valores democratas-cristãos, a sua matriz política, têm


vindo a lidar com estas políticas neoliberais?
Deixe-me responder-lhe voltando ao Estado Social. Desde o Concílio Vaticano II
que apareceu o apoio ao Estado social e colocou em evidência a responsabilidade dos
pobres. O limite da dignidade humana devia ser um valor fundamental das demo-
cracias cristãs. Por isso é que sou frontalmente contra a supressão do Estado Social.
E deixe-me fazer uma ressalva: o Estado Social resulta de uma convergência da Dou-
trina Social da Igreja com o socialismo democrático e até com o “Manifesto” do Karl
Marx. Eu já desenvolvi o que costumo chamar, o poder da palavra contra a palavra
do poder. O consequencialismo disso é sempre imprevisível. Acha que o Karl Marx
imaginou o que aconteceria na Rússia quando escreveu o “Manifesto”? Não creio.

Foi deputado e vice-presidente da Assembleia da República. A desconfiança


entre eleitos e eleitores significa que o sistema carece de uma renovação demo-
crática com epicentro no Parlamento?
O país tem definitivamente de encontrar uma reconciliação com a figura do Chefe
de Estado, que não existe desde a morte do Rei D. Carlos. O Presidente da República
não precisa de aumentar os seus poderes, precisa é de aumentar a autoridade. A autori-
dade do Supremo Magistrado da Nação precisa de ser reforçada. É um aspecto funda-
mental. Em segundo lugar, as eleições para o Parlamento não estabelecem um vínculo
entre deputados e eleitores, porque as pessoas votam é em partidos. Creio que é nuclear
fortalecer essa relação e isso só é concretizável se os deputados forem escolhidos através
de uma eleição pessoal, com responsabilidades perante os eleitores.

Os 230 deputados que têm assento em S. Bento deviam ser reduzidos?


Acho que o número de deputados não devia de ser tanto, isto apesar do argumen-
to de que algumas correntes não teriam representação no Parlamento. Mas há muitas
correntes e movimentos que não estão neste momento representados em S. Bento.
Por isso, não vejo que isso obste a uma mudança. A definição tem que ser feita com
sabedoria, para que as forças politicas sejam coerentes internamente, mas plurais.

Um tema que lhe é muito caro é a definição do Conceito Estratégico Na-


cional, que afirma que não existe. Que desígnios são, para si, decisivos numa
perspetiva de futuro: a educação, o mar ou a Lusofonia?
Antes de mais, entendo que a definição do Conceito Estratégico Nacional tem sido
confundida com o Conceito Estratégico de Defesa e Segurança, que vai ser discutido
‹ 319
da Assembleia da República. Para se ter um Conceito Estratégico de Defesa e Segu-
rança preciso de dizer ao país o que é que ele tem de defender e qual é a segurança
que precisa. Se ler na crónica de Zurara que relata a reunião que o D. João I teve
com os filhos antes de decidir ir para o mar verificará que foram fixados objetivos e
avaliada a relação entre capacidade e objetivos. Isto para dizer o seguinte: Para além
de precisar do amparo da Europa, Portugal tem janelas de liberdade, como os outros
países têm.

Quais são as «janelas de liberdade» de Portugal a que se refere?


A CPLP é uma delas. Todos os países que a compõem são pobres, exceto o Brasil,
que tem uma imensa população, são todos marítimos, no fundo, todos precisam do
mar. Lamento que o conceito de reserva estratégica alimentar, que antigamente se
ensinava na instrução primária, tenha sido esquecido. Eu entendo o seguinte: a terra
que não se pisa, e a água que não se navega, deixa de ser nossa. É preciso defender o
território e o mar. Não ouve discutir a plataforma continental que é a riqueza futura
de Portugal se efetivamente as Nações Unidas reconhecerem que é propriedade nos-
sa. É a maior do mundo e é riquíssima. Os estudos das universidades dos Açores, de
Aveiro e do Algarve são importantíssimos na discussão sobre a importância do mar
que os jornais começam a dar eco com alguma frequência.

320 ›
Augusto Santos Silva 126

Escola pública corre riscos

Augusto Santos Silva já chefiou vários ministérios. Em entrevista diz que a escola
pública pode não resistir aos cortes previstos para o setor da educação.
Defensor do sistema binário no ensino superior, Augusto Santos Silva avisa que se
está a preparar o encerramento de instituições no interior do país. De caminho acusa
o Ministério da Educação e os sindicatos de terem um pacto e diz que na escola há
desesperança e medo.

Em momentos de crise, como a que o país e a Europa, atravessam, há sempre


a tentação de se cortar em várias áreas, sendo a educação uma das mais afetadas.
A escola pública, tal como a conhecemos, corre perigo?
A resposta depende do tipo da gestão de orçamento que se fizer. O Ministério da
Educação, na atual configuração, incluindo o ensino superior, é um dos maiores mi-
nistérios do Estado, pelo que é inconcebível a existência de processos de contenção
de despesa que não impliquem esse ministério.
No entanto, - e como o mandato de Maria de Lurdes Rodrigues demonstrou, entre
2005 e 2009 -, é possível gerir o orçamento do Ministério da Educação de modo a
126 Professor Universitário. Aderiu ao Partido Socialista em 1990. Foi eleito deputado à Assembleia da República em 1995,
embora chamado para o governo, tendo sido nomeado Secretário de Estado da Administração Educativa (1999-2000), depois
Ministro da Educação (2000-2001) e da Cultura (2001-2002), nos governos de António Guterres. Posteriormente assumiu os
cargos de Ministro dos Assuntos Parlamentares (2005-2009) e da Defesa Nacional (2009-2011), com José Sócrates. Integrou
o Conselho Nacional de Educação (1996-1999), a Comissão do Livro Branco da Segurança Social (1996-1998), representou
Portugal no Projecto de Educação para a Cidadania Democrática do Conselho da Europa.
Entrevista realizada por João Carrega, em Maio de 2013
‹ 321
gastar relativamente menos fazendo mais. As margens de ineficiência do ministério
eram grandes e, tanto quanto sei, ainda há algumas, designadamente em matéria de
gestão de pessoal docente. Os horários zero ou mobilidade de professores continuam
a custar ao país dinheiro mal utilizado.
Tenho, contudo, muitas dúvidas de que o sistema público de educação resista,
com a qualidade que hoje tem, a cortes como aqueles que estão programados no do-
cumento de estratégia orçamental. Como as medidas equivalentes a esses cortes não
estão detalhadas, não poderei, para ser honesto, dizer muito mais que isto.

Referiu o mandato de Maria de Lurdes Rodrigues. Nesse período houve uma


contestação elevada por parte dos professores, sobretudo devido a algumas medidas
que foram tomadas como as aulas de substituição (hoje já pacíficas), a escola a tem-
po inteiro ou o processo avaliativo. Mas hoje a escola parece estar mais nervosa…
Eu não fiz nenhum estudo científico sobre essa matéria, mas conheço muitos
professores e escolas. O sentimento que mais encontro é um misto de medo e deses-
perança. As pessoas estão desesperadas, com muito pouca esperança e muito medo.
E este é um facto que me preocupa. Se os professores, que são uma classe profissional
altamente qualificada, com condições de trabalho razoáveis se comparadas com ou-
tros trabalhadores, estão com medo, o que sentirão os reformados, os pensionistas,
ou os funcionários públicos pouco qualificados?

Esse medo resulta de que factores, da mobilidade especial?


Resulta de muitas coisas que aconteceram. E todas essas coisas surgiram de um
denominador comum: aquilo que se pensava que estava garantido, os direitos que
pensávamos estarem seguros, ou as expectativas que considerávamos seguras ficaram
em causa. E no momento em que fica em causa a pensão que uma pessoa recebe em
função dos descontos que fez, ou o salário a que tem direito, ou - no caso da função
pública -, a estabilidade do vínculo profissional, o medo instala-se.

E é esse medo que tem impedido os professores de se manifestarem como


num passado recente?
Não apenas. Evidentemente que esse medo e a desesperança limitam os movimen-
tos dos professores que protestam, se zangam e exprimem angústia e hostilidade, mas
que têm mais dificuldade em agir pela positiva, em se manifestar e em se organizar.
Mas nesta matéria importa sublinhar dois aspectos: os professores têm-se mani-
festado, o que deixou de acontecer foram manifestações específicas de professores e
de sindicatos. E isso verificou-se com as manifestações de 15 de Setembro e agora em
Março, por exemplo, onde participaram milhares de docentes, só que numa iniciativa
onde estavam outros movimentos cívicos. E estas manifestações chegaram a juntar
três gerações da mesma família.
322 ›
O segundo dado é a astenia da iniciativa dos sindicatos, em particular da FEN-
PROF. E isso é que é surpreendente. Na prática vigora uma espécie de pacto entre os
sindicatos e o Ministério da Educação. Esse pacto consiste no seguinte: o Ministério
da Educação congelou a avaliação dos professores e os sindicatos respondem com
uma contestação naquele limite que se fosse ultrapassado seria um escândalo nacio-
nal. E esse pacto, pelo que me apercebo, está em vigor, o que é muito triste.

A criação dos mega agrupamentos de escolas está a avançar no país, criando or-
ganismos com mais de três mil alunos com escolas, muitas vezes, afastadas. Isso
é governável? Há vantagens pedagógicas nessas estruturas, ou lógica é reduzir?
Isso é muito desaconselhável. Eu defendo os agrupamentos. Estava no Ministério da
Educação quando eles se iniciaram. Mas os agrupamentos eram constituídos por razões
de ordem pedagógica e organizativa. Tratava-se de por em comum e em articulação as
escolas pelas quais passavam sucessivamente ao longo da sua escolaridade o aluno. E
Portugal era um caso muito estranho nessa matéria, pois havia poucos países em que
uma criança entrava para um jardim-de-infância, saía para uma escola para fazer o 1º
ciclo, voltava a sair para o 2º ciclo e ainda voltava a sair para concluir o 3º ciclo. Por isso,
o agrupamento que ligue entre si escolas do 1º ciclo e jardins-de-infância, ou escolas de
1º, 2º e 3º ciclo, garante que a mesma direcção, o mesmo corpo de docentes e a mesma
instituição acompanhe a criança/jovem ao longo da sua escolaridade básica.

Mas a direita criticou os agrupamentos da altura?


A direita sempre contestou os agrupamentos, mesmo quando eram feitos nessa
lógica, em que uns tinham 300, outros 500 ou mais de 1000 alunos. Agora, por ra-
zões exclusivamente financeiras e com o único intuito de “permitir” libertar professo-
res - isto é de os despedir -, foram constituídos agrupamentos sem nenhum critério.
Como bem referiu na sua pergunta anterior, a principal questão não é a dimensão em
número de alunos. Não há um número mágico. Um estabelecimento pode ser bem
gerido com 200 ou com 2000 alunos. O problema está na extrema dispersão terri-
torial que constituem os agrupamentos. O objectivo essencial é tornar excedentários
professores e funcionários.

No ensino superior a rede de universidades e politécnicos abrange todo o


território nacional. O sistema binário continua a fazer sentido?
Sim. Até porque não estão ainda exploradas todas as suas potencialidades. A ló-
gica de constituição de um sistema binário assenta na progressiva generalização do
ensino superior. Hoje devemos ter um em cada três jovens, entre 18 e os 23 anos, a
frequentar o ensino superior. O que nos coloca na média dos países da OCDE. Esses
jovens são diferentes entre si e têm diferentes objectivos e expectativas. Por isso, o
ensino superior deve ser suficientemente diversificado para poder acolher essa diver-
‹ 323
sidade. A organização entre um sector mais próximo da investigação científica e das
ciências fundamentais (universitário) e outro mais próximo da vida económica e pro-
fissional, ligado directamente às tecnologias, às formações de natureza profissional
como nas engenharias, na educação e nas artes (politécnico), é útil.
A rede binária permitiu ao país, em pouco menos de 15 anos, cobrir todo o seu
território com instituições de ensino superior. Instituições, que como se nota bem no
interior do país, para além de serem uma oferta de educação, são um importantíssimo
factor de dinamismo económico e social local. O que seria hoje o interior do país sem
instituições de ensino superior? Há capitais de distrito em que elas constituem um
dos poucos pólos de dinamismo que as populações têm.

E quando se fala em reorganização da rede. Essas instituições correm perigo?


Temo que sim. Mas também digo que se se está a preparar o que parece, e o que
parece é o encerramento de várias instituições de ensino superior no interior do país -
politécnicas e universitárias -, isso só será concretizado se as pessoas deixarem. Se hou-
ver resistência essa medida, que é tão violenta, não conseguirá avançar. Contudo, tenho
que falar com cuidado porque o ministério não diz o que quer fazer, não só neste como
noutros domínios. Espero que não seja o encerramento das instituições aquilo que o
ministério quer fazer. Há outra alternativa bem mais interessante e positiva.

E qual é essa alternativa?


Considero que não devem estar abertos cursos que ninguém quer, ou que se de-
vam inventar alunos que não existem. É preciso adequar a rede do ensino superior
à evolução da demografia escolar. A própria Lei prevê formas de organização e coo-
peração entre instituições, que permitem que elas adquiram massa crítica sem terem
que encerrar. Falo dos consórcios, de formas de organização supra locais. Não vejo
porque é que os politécnicos, por exemplo no distrito de Santarém, se estiverem em
perda de alunos não se organizem e adquirem a massa crítica de que precisam.

Essa sempre foi uma medida defendida pelo ministro Mariano Gago, o certo
é que as instituições nunca se entenderam nessa matéria…
Eu não gosto de assumir o papel daquela personagem de banda desenhada, o Calime-
ro, que estava sempre a queixar-se de o tratarem mal. Espero que as instituições, as forças
vivas ou os grupos que resistiram tanto a medidas que os governos do Partido Socialista
tomaram para racionalizar as coisas sem ofender os direitos, tenham aprendido a lição.

Essa reordenação pode ser feita também com uma mais justa distribuição das
vagas no ensino superior?
Defendo uma lógica de competição entre as escolas do ensino superior. O Minis-
tério da Educação deve acompanhar a própria dinâmica da demografia escolar. O que
324 ›
já não faz sentido é instituições universitárias canibalizarem formações tipicamente
politécnicas, como acontece na área do turismo, por exemplo. O contrário já não é
possível, pois nenhum politécnico poderá dar um curso de medicina.

Recentemente os politécnicos apresentaram um estudo onde é referido que


essas instituições se deveriam designar de Universidades de Ciências Aplicadas,
à semelhança do que acontece noutros países da Europa. Em seu entender a mu-
dança de designação poderia trazer mais-valias a todo o sistema?
Não é pelo nome que a coisa se resolve.

Mudando de assunto. Mostrou preocupação de se estar a preparar o maior


ataque à coesão territorial do país desde os tempos de Oliveira Salazar. Isso sig-
nifica uma litoralização do país nas áreas estratégicas, como educação, a saúde,
entre outras?
Significa a litoralização do país, o qual fica encolhido nas áreas económicas. Não
conheço, hoje, nenhuma política de medida económica destinada a apoiar o interior
do país. O que tenho visto é a sucessiva derrogação e eliminação de todas as medidas
de política pública destinadas a incentivar a actividade e a radicação no interior do
país. Os incentivos fiscais foram eliminados, os poucos benefícios de que o interior
gozava em matéria de acessibilidades foram eliminados, com a introdução de porta-
gens. Todos os projectos de melhoria das acessibilidades e, portanto de diminuição
dos custos das pessoas e das empresas, foram eliminados tanto na ferrovia como na
rodovia, e não vejo nenhuma expressão política que se quer afirme a voz do interior
no quadro da actual maioria.

Mas há fundos comunitários que se destinam a promover essa coesão…


O erro mais crasso deste Governo é a não utilização dos fundos comunitários em
matéria de coesão regional. Aliás eles hoje estão a ser usados para tapar buracos orça-
mentais. O actual Governo tomou uma medida correcta que foi aumentar a taxa de
comparticipação comunitária: Hoje, pode obter 100% financiamento com apenas 10%
de esforço próprio. Mas essa medida só faz sentido se os fundos estiverem disponíveis.

‹ 325
José Gomes Ferreira 127

Os cursos superiores têm de ser orientados para a economia

Depois de uma longa apresentação do seu livro, num centro comercial de Lisboa,
e uma não menos prolongada sessão de autógrafos, José Gomes Ferreira falou em
exclusivo ao Ensino Magazine.

Quem escreve este livro, «O meu programa de Governo», é o José Gomes


Ferreira cidadão ou jornalista?
Durante a apresentação do livro também me chamaram porta-voz do cidadão (ri-
sos). Mas quero dizer que são os outros a apelidaram-me como tal, não tenho qualquer
pretensão. Independentemente disso, eu apenas quero dar conta às pessoas daquilo que
são problemas e má organização social, económica e política, propondo soluções para
desbloquear esses constrangimentos, criando condições para uma vida melhor.

Durante uma hora deu autógrafos e conversou com dezenas de pessoas. Qual
é o segredo para a admiração que nutrem por si?
Acredito que é o melhor prémio que eu posso ter. Todos nós profissionais, de
qualquer área de actividade, a maior gratificação que podemos ter acontece quando
127 José Gomes Ferreira é jornalista de economia. Em 1988, foi co-autor do livro Os Informadores Passivos, um estudo sobre
a dependência informativa em Portugal. Mais tarde, assumiu funções de jornalista da revista de economia Classe e da TSF
Rádio Jornal, onde também foi sub-editor. Foi sub-editor de economia no diário Público. A partir de 1992 foi jornalista da
SIC, onde foi editor de economia entre 1998 e 2001. A partir de 2001, desempenha a função de sub-director de informação,
na SIC.
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva, em Agosto 2013

‹ 327
temos o reconhecimento público. É óptimo estar a trocar ideias e interagir com pes-
soas sobre assuntos que dizem respeito à vida de todos nós. Vale muito mais do que
muitos prémios oficiais e até monetários.

Durante a apresentação do livro falou muitas vezes em «revolta». Está, subli-


minarmente, a apelar a uma reacção mais veemente nas ruas?
O termo «revolta» que empreguei e emprego é no sentido pacífico e de tomada de
consciência. Nunca no sentido de apelar a manifestações que descambem em actos
violentos. Nada disso. Não leva a nada. Eu costumo usar esta expressão: «Eu devo
indignar-me quando vejo que as coisas estão mal e agir, propondo ideias». Portanto,
o meu direito à indignação não o devo alienar. E é esse o reflexo do que eu penso
e que se traduz sob a forma de comentário na televisão, na intervenção pública, em
conferências e na escrita no livro que agora lancei.

Entrando propriamente nas questões concretas que mexem com o nosso bol-
so. Tem-se tentado «vender» a ideia de que todos os portugueses, sem excepção,
contribuíram para o caos financeiro a que chegámos. Esta perspectiva é a que
está mais próxima da realidade?
Ainda bem que me faz essa pergunta, porque é muito pertinente. Mas, se me
permite, deixe-me reformular a sua pergunta: «Vivemos acima das nossas possi-
bilidades?». Eu respondo-lhe, vivemos. E você vai ripostar dizendo que eu estou
como os políticos que são hipócritas e querem colocar tudo no mesmo saco, para
dizer que somos todos culpados. Não, não é isso. O facto incontornável é este: nós
vivemos acima das nossas possibilidades. Nós quem? Nós, 10 milhões de pessoas,
cidadãos portugueses, porque nos endividámos colectivamente. Mas tivemos todos
o mesmo grau de culpa? Não. Pelo contrário. A nossa culpa de cidadãos é incom-
paravelmente menor.

Então, a quem aponta o dedo?


A maior culpa dos cidadãos é terem deixado as coisas aconteceram de uma forma
insustentável. É a culpa da indiferença. Os outros, esses sim, tiveram a maior culpa,
porque assinaram as promissórias de pagamento, permitiram os créditos, contraíram
as dívidas, distribuíram benesses, passaram os cheques para os amigos, para grandes
negócios em nome do Estado, cuja titularidade da dívida ficou em nós todos.

E quem são os «outros» de que fala?


Foram políticos, banqueiros, grandes gestores, grandes empresários, accionistas
de grandes grupos, advogados, consultores e muitos professores universitários que
teorizaram para defender este modelo. E nós somos “convidados” a pagar a conta sem
termos assinado esses títulos de crédito.
328 ›
Está a falar das PPP, da Expo 98, do Euro 2004 e de outros empreendimentos
semelhantes?
Sim. Formas directas ou indirectas de nos comprometer a todos com pagamentos
futuros muito pesados.

A raiz do mal está nos políticos ou nas políticas?


Não adianta pensar que uma coisa está desligada da outra. As políticas são
feitas pelos políticos e estes são, umas vezes irresponsáveis, outras vezes corrup-
tos, outras vezes possuem agendas paralelas. Há de tudo. E também os há bem-
intencionados. Os que agora estão a cortar as rendas certas e permanentes das
PPP e das energias são políticos que devíamos respeitar, aplaudir e incentivar. O
que muitas vezes acontece é que dizemos mal deles, sem motivo. Como cidadãos
atentos temos de manter os olhos e os ouvidos bem abertos e atentos para impe-
dir que se repitam os erros e os negócios que ainda estamos e continuaremos a
pagar por muito mais tempo.

O seu livro tem dois capítulos dedicados à educação. Um deles chama-se


«formar mão-de-obra de que as empresas precisam» e o outro «reorientar a
educação e formação dos jovens portugueses». Primeira pergunta: tem-se diplo-
mado mais para a estatística do que para suprir as reais necessidades do país?
Sem dúvida. Há muitos cursos que têm muito poucas saídas profissionais, mas
temos vindo a assistir ao encerramento de alguns desses cursos. Lá está, entre as
coisas mal feitas, há coisas bem-feitas, que é a racionalização dos cursos em função
do rácio de empregabilidade de cada curso tendo por base critérios objectivos. Mas
pelos vistos nem todos concordam. Ainda hoje, no dia em que estamos a falar, ouvi
o presidente do Conselho de Reitores referir que este critério era «grosseiro» e que
permitia que se fechassem cursos que a economia precisava.

Discorda?
Claro que discordo. Desculpem lá - com toda a expressão popular portuguesa - por
uma vez usem um critério e não arranjem desculpas para nunca aplicarem esse critério.
Isso é como a avaliação dos professores. Respeito muito esta classe, mas de uma vez
têm de ser avaliados e responsabilizados. Eu também sou avaliado no meu trabalho, nas
conversas, nos comentários que faço, etc. Se eu falhar, toda a gente me cobra.

Entende, então, que os cursos estão desligados da realidade?


Os cursos superiores têm de ser orientados para a economia. Porque eu continuo
a ver no meu país, certas universidades, mesmo privadas, a fazerem propaganda de
cursos de Línguas, Relações Internacionais, só para dar dois exemplos, que não con-
seguimos absorver…
‹ 329
São os chamados cursos de caneta e papel…
Tal e qual. É um atropelo aos interesses dos cidadãos que ao não possuírem a
informação necessária são «convidados» a matricularem-se nestes cursos e depois
quando saem de lá com o canudo na mão não têm emprego. E o país gastou recursos
neles. Os estudantes acumulam frustrações, sentem-se defraudados. É o caso do meu
curso, Comunicação Social. O mercado está saturado, para quê continuar a formar se
há excesso de oferta? Perante isto é preciso reorientar os cursos.

Cita, na página 421 do seu livro, a crítica que no século XIX Eça de Queiroz
fazia ao «País dos doutores, dos letrados e dos intelectuais». Trata-se de uma
mentalidade, com cerca de dois séculos, que se mantém viva?
Ainda existe. Tudo o que tem a ver com Humanidades e cursos relacionados com
Ciências Sociais, Direito e até Gestão é o querer, através do diploma, ter um estatuto
que o próprio curso já não dá e a economia não remunera e, pior do que isso, não
absorve. É uma ilusão. Eu ainda hoje vejo neste Portugal em que vivemos institutos
politécnicos e universidades com laboratórios que são autênticas televisões monta-
das, apetrechadas com equipamentos muito caros, muitos deles pagos pela União
Europeia, que continuam a investir nessa área, quando essa área, manifestamente,
não faz falta à economia. Dou outro exemplo. Os advogados. Continuam a formar-se
em excesso.

E do que é que precisamos?


Olhe, muita coisa. Continuamos a importar mão-de-obra especializada de solda-
dura, de torneiro mecânico, etc. E isto acontece pelo crime cometido em 1976 com
o desmantelamento das escolas industriais e comerciais. A minha escola, a escola in-
dustrial e comercial de Tomar, Jácome Ratton, tinha no seu interior, nas oficinas, dois
motores de aviões. Todos os anos eram montados e desmontados pelos alunos. Eu
entrei na escola em 1976 e vi com os meus olhos as ferramentas e os motores abando-
nados e por montar. Desmantelaram pavilhões inteiros que serviam para ensinar artes
e ofícios e que eram necessários em Portugal. Não tenho medo das palavras: foi um
crime. Económico, social e político. Felizmente está-se a tentar recuperar esse erro
histórico, e honra seja feita, foi o governo anterior, o de José Sócrates, que apostou de
novo nos cursos profissionais. O actual governo percebeu que era importante e está
a dar seguimento.

Defende que o sector da educação tem pessoas a mais. Refere-se, nomeada-


mente, aos professores?
Sim. É público. Professores sem horário e outros com contratos que o Estado
não pode sustentar. Portanto, eu acho que deve haver uma reorientação no sentido
de ajustar a força de trabalho nesta área às necessidades do país. E isso, obviamente,
330 ›
significa reduzir pessoal. Não concordo é que se despeça da noite para o dia. É pre-
ciso mexer neste processo com ponderação, embora o tempo para o fazer já tivesse
começado a contar quando este governo tomou posse, em 2011.

A propalada reforma do Estado ainda não viu a luz do dia. Será mais de cor-
tes e menos de reorganização?
Os funcionários não devem ser perseguidos, até porque há gente muito capaz e
que trabalha bem e acima do horário das 35 horas, mas é preciso reduzir em muitas
áreas. Há muitos sectores do Estado (na administração central, local e regional)
com excesso de oferta de mão-de-obra. Institutos e departamentos que prestam
um serviço que não é útil. Pode traduzir-se em estudos, pareceres, análises, plane-
amento, processos de licenciamento, etc. Conheço o caso de câmaras municipais,
na área da Grande Lisboa, com 600 pessoas no departamento de urbanismo onde
entram um ou dois projectos por semana. O que é que está lá tanta gente a fazer?
Das duas uma: ou mandem-nas para outros departamentos do Estado onde ainda
há falta de gente ou convidem-nas a ir embora ou a ficar em casa - que é uma ideia
que pode ser seguida.

Quais as vantagens de ao não despedir, convidar as pessoas a ficar em casa?


Há uma poupança de cerca de 15 por cento em horas extra, subsídios de almoço,
subsídios de transporte, etc. E há outros 15 por cento que integram tudo o que são
gastos com papel, canetas, tinteiro para impressoras, electricidade, água, gás, manu-
tenção de edifício, etc. Podia-se poupar em todos estes aspectos sem a presença das
pessoas. Mantendo, claro, o seu ordenado base. Mas atenção, não era só ficar em casa.
Ao mesmo tempo, ficariam livres para poder procurar emprego, como trabalhadores
por conta de outrem, por contra própria ou decidir emigrar. Quando decidissem a
sua vida, comunicavam ao Estado. Esta é uma proposta, que é de vários economistas,
mas eu recuperei para o meu livro.

Os fracos frutos do investimento na educação devem-se à errada orientação


estratégica?
Explica-se porque o tipo de formação que se fez não serve os interesses da econo-
mia. Quantas empresas de metalomecânica precisam de técnicos? Quantas empresas
que exportam bens e serviços para todo o mundo precisam de técnicos? E também
há o trabalho mais manual e naturalmente menos qualificado, como nas áreas do
têxtil e calçado, por não existirem recursos humanos portugueses, que têm de ser
supridos com imigração. Esta é outra questão: nem todas as pessoas se sujeitam a
trabalhar em qualquer ofício e muito menos mal pago. No actual contexto, creio que
deve emergir uma atitude diferente perante o mercado de trabalho. É preciso mudar
a cultura instalada.
‹ 331
Disse numa entrevista que quando vivia na sua aldeia, nos arredores de To-
mar, chegava a andar quilómetros e quilómetros para chegar à escola primária
primeiro, depois ao ciclo preparatório e depois ao liceu. As origens familiares e
o meio envolvente são determinantes para a atitude em adulto perante a vida?
Quando as pessoas nascem em meio agreste em que contam só consigo próprias
e com o meio familiar e a vizinhança para sobreviver, a concepção do mundo é, à
partida, de muita versatilidade, adaptabilidade e de socorrer-se de todos os recursos
disponíveis para atingir resultados maiores. É uma espécie de sina para a vida.
Dispenso meios sofisticados, procuro fazer uso de ferramentas simples, de forma a
obter resultados melhores. A receita que norteia o meu dia-a-dia é sobriedade, noção
das proporções e tentativa de respostas simples a questões complexas.
Não quero ser muito pretensioso ao dizer isto, mas acredite que não preciso de
muitos recursos para viver o meu dia-a-dia e desenvolver a minha actividade profis-
sional. Em termos alimentares sou do mais simples que possa existir, o vestuário é o
essencial, obviamente respeitando o formalismo que a minha presença na TV obriga.
A vida ensinou-me que soluções muito complexas e elaboradas escondem inte-
resses secundários e agendas paralelas. Grandes problemas, soluções simples, posso
dizer que é o meu lema, o meu modelo de vida. Se acharem que está correcto e for o
meu modelo para outros, óptimo. Não o quero é impor a ninguém.

Falou do modo de vida. Esta crise vai tornar os portugueses mais frugais,
nomeadamente nos actos de consumo?
Já tornou. E ainda bem. Sabe o que lhe digo? Não era só a nossa dívida pública
e a nossa dependência externa, através da importação de tudo e mais alguma coi-
sa, que começou a mudar o nosso rumo para um plano inclinado. Foram também
as chamadas «lojas gourmet», os ginásios para pura ostentação, as refeições de
cozinha de autor, sofisticada e caríssima. Estes negócios não têm que existir. Cor-
respondem a um gasto de recursos que nós não temos para sustentar esse nível de
vida. E quem abandonar este negócio não tem outra solução que não seja procurar
empregos mais sustentáveis.

332 ›
Paulo Morais 128

Corrupção, diz ele!

Matemático de formação, Paulo Morais não se cansa de apontar o dedo às «cen-


trais de negócios» e a outras práticas obscuras que, na sua opinião, estão na raiz da
crise que atravessamos. Para os mais cépticos, o professor universitário e vice-presi-
dente da Associação Cívica - Transparência e Integridade, exemplifica: «Se tivermos
um estranho em casa que nos vai diariamente ao frigorífico roubar um produto, o
resultado ao fim de 20 anos é catastrófico».

Devido à sua exposição mediática, já é apontado na rua como o homem que


denuncia os casos de corrupção em Portugal?
Sim. Muita gente vem ter comigo na rua. Tanto pessoas de classe média, que têm
a sua vida estruturada, mas que se sentem indignadas, e que me vêm felicitar pela
coragem, como ultimamente tenho sido abordado por gente mais humilde, que sen-
te necessidade de falar dos seus dramas pessoais. São pessoas mais idosas, algumas
não contêm as lágrimas, que confessam as dificuldades por que passam em casa. Eu
concluo que ao salientarem a minha atitude, significa que estão com medo de uma
situação social para a qual não estavam preparadas.

128 Professor Universitário nas áreas da Estatística e Matemática e diretor do Instituto de Estudos Eleitorais da Universidade
Lusófona do Porto. Foi vice-presidente da Câmara Municipal do Porto, de 2002 a 2005, tendo sido responsável pelos pelou-
ros do Urbanismo, Ação Social e Habitação. É vice-presidente da Direção da Associação Cívica Transparência e Integridade.
Entrevista realizada por Nuno Dias da Silva, em Setembro de 2013

‹ 333
No livro que escreveu «Da corrupção à crise - que fazer?» sustenta a tese de
que a principal causa da crise em que Portugal está mergulhado se deve à cor-
rupção. Importa-se de concretizar?
A corrupção está largamente à frente de todas as outras, representando cerca de
80 por cento da causa da crise, logo seguida pelo desperdício. Os restantes factores
são manifestamente residuais.

Que casos de corrupção mais contribuíram para a dívida pública?


Assim de repente lembro-me de vários: a Expo 98, o Euro 2004, o BPP, o BPN,
as parcerias público privadas, etc. Só estes casos, representam milhares de milhões
de euros. É claro que se de forma reiterada, durante tanto tempo, na administração
pública e na política existem pessoas cujo objectivo é canalizar recursos públicos para
um conjunto de grupos privados, através de um fenómeno a que se dá o nome de
corrupção, o resultado não pode deixar de ser outro.

De que modo é que se processa essa corrupção?


O esquema é sempre o mesmo. Envolve promotores imobiliários ligados aos par-
tidos políticos, que compram terrenos agrícolas ou em reserva agrícola, conseguindo
através de uma licença de construção ou alvará de loteamento, transformando uma
qualquer parcela de território em parcela urbanizada e assim obtendo mais-valias
urbanísticas gigantescas. Muitas delas acabam por se destinar ao financiamento par-
tidário ou a outros mecanismos mafiosos.
Resumindo e concluindo, a dívida privada, à semelhança da dívida pública, é resul-
tado da corrupção. A primeira deriva de uma fortíssima, reiterada e continuada corrup-
ção na administração local, enquanto a dívida pública resulta de uma fortíssima corrup-
ção na administração central. Perante isto, a corrupção é a primeira das causas da crise.

A corrupção nas suas mais diversas modalidades é uma das faces do «pânta-
no» em que diz que vivemos?
Absolutamente. Atente que o caso concreto do domínio exercido pelos grandes
promotores imobiliários junto das câmaras municipais faz com que o poder local
fique refém e depois os próprios agentes das autarquias só têm que ter a preocupação
única de arranjar negócios para os promotores imobiliários e, simultaneamente, ar-
ranjar empregos para os apaniguados do partido para garantirem a próxima eleição.
Como? Com o financiamento que resulta dos negócios com os promotores imobiliá-
rios e com os negócios que resultam a nível intra-partidário de estarem a dar emprego
a toda a gente que é dos partidos. Neste momento, a estrutura de recursos humanos
das câmaras e das empresas municipais é praticamente coincidente com a estrutura
dos partidos a nível local. Assim, compram votos dentro dos partidos e compram
financiamento através de negócios imobiliários.
334 ›
Chama a «central de negócios» ao Parlamento, a casa da democracia, que é
entendida por outros como o «bloco central dos interesses», pela sucessiva co-
nivência entre PS e PSD, os dois partidos que se vão revezando no poder. O bem
comum está a ser ultrapassado pelos interesses particulares?
O Parlamento tornou-se o símbolo máximo desta conivência e promiscuidade
entre os negócios e a política. Mas especialmente relevante tornou-se o facto de ser
na casa da democracia que vão sendo construídos os mecanismos legislativos e de
articulação política que permitem que os grandes negócios se façam com a conivên-
cia de PS e PSD. Veja o que acontece em várias comissões parlamentares em que a
promiscuidade atinge o seu cúmulo. As comissões de maior relevância económica
são constituídas por deputados afectos aos grandes grupos económicos. Cerca de 60
deputados, ou seja, quase um terço do Parlamento, são ao mesmo tempo deputados
e administradores, consultores, directores ou delegados de grandes empresas ou gru-
pos que mantêm negócios com o Estado.

A situação que aborda configura um conflito de interesses?


Naturalmente. Eles estão no Parlamento não propriamente para resolver os pro-
blemas de quem os elegeu, mas antes para tratar dos negócios das empresas que
lhes pagam. As grandes empresas estão representadas em S. Bento com deputados
que no fundo, são seus lacaios. Estou-me a lembrar da EDP, a PT, os maiores ban-
cos, etc. Todos têm os seus representantes no hemiciclo. O nível de ligação de cer-
tos deputados é mais forte às empresas do PSI-20 do que ao partido ou ao distrito
onde foram eleitos.

No artigo a que deu o nome de «desastre educativo», traça as gestões dos


sucessivos titulares da pasta da educação. Sintetiza que «à era da despesa sem
critério, sucedem-se os cortes sem critério». Tem sido esta a linha de rumo dos
gestores da educação?
Tem faltado em Portugal, ao nível da educação, do governo e do Parlamento uma
definição estratégica adequada. E o que é triste é que mesmo que pessoas que reflec-
tem muito sobre educação, como aconteceu com Guilherme d’Oliveira Martins e o
próprio Nuno Crato, quando chegam a lugares com poder para implementar as polí-
ticas que andaram a defender parece que se esqueceram do que disseram.

Está a acusar o actual ministro da Educação de falta de coerência?


O professor Nuno Crato devia ler os livros que ele próprio escreveu. Se o ac-
tual ministro da Educação ler com atenção aquilo que ele foi escrevendo ao longo
da vida tem aí as maiores críticas ao que ele próprio está a fazer. Admito que esta
experiência política, pelos motivos que aduzi, esteja a ser particularmente penosa
para Nuno Crato.
‹ 335
Crato está a fazer o contrário do que escreveu?
Não digo isso. Acho que não está, como se esperaria que fizesse, a implementar aquilo
que andou a defender toda uma vida. No fundo, vai ao encontro do que tem falhado de
essencial no ensino: a falta de uma estratégia. No ensino básico e secundário devia existir
uma preocupação de uma formação integrada, que ministrasse uma formação científica
aos seus alunos, garantindo a sua formação psico-motora, através de uma actividade física
permanente, como aliás acontece na maior parte dos países da Europa. Isto já para não fa-
lar na formação psico-afectiva, com a promoção de actividades como a música e o teatro.
Isto seria um sistema de ensino completo à disposição dos nossos jovens.

O ensino superior é uma realidade à margem?


O ensino superior tem uma estabilidade e características muito próprias que não
se encaixam no que eu referi para o ensino básico e secundário. Nos anos 80, quando
a democracia estava consolidada e quando se deu a integração europeia era o timing
perfeito para se começar a construir um sistema de ensino completo. Um ensino com-
pleto fracassou e os jovens ressentiram-se de não ter uma mente sã e um corpo são para
assimilar a formação científica.

Com a falta de estratégia e planeamento quem paga é o desempenho escolar


de alunos e professores?
Sem dúvida. Os professores não têm gabinetes decentes nas escolas para receber
os seus alunos. Perante isto, não acho que tenhamos um sistema de ensino, o que
temos é um sistema de armazenamento de crianças e jovens em que nalguns interva-
los se dá alguma formação científica. O que a mim me impressiona é o dinheiro que
foi gasto no sistema educativo e os múltiplos estudos que foram encomendados. No
fundo, o que andaram a fazer foi negociar com os sindicatos e, nem tudo é mau, a
operar algumas melhorias e remendos no sistema. Mas nunca no sentido de operar
uma intervenção de fundo.

Os «remendos» e as «melhorias» são, por exemplo, os computadores Maga-


lhães e a requalificação da Parque Escolar?
Algumas dessas intervenções são boas, outras são disparatadas, mas a maior parte
são casuísticas, não resolvendo qualquer problema de fundo. Melhorar as escolas atra-
vés da realização de obras públicas é uma ideia positiva, o que acontece é que a maior
preocupação não foi tanto de melhorar as escolas, mas de fomentar negócios que pou-
cas mais-valias trouxeram ao sistema.

Quer concretizar?
Há heranças catastróficas e danosas por muito tempo em termos orçamentais, não
tanto pelas obras, mas pelos custos incomportáveis. Estou-me a lembrar dos candeeiros
336 ›
de autor e de arquitectos famosos na Parque Escolar, que podem revelar um apura-
do gosto estético, mas que estão distanciados daquilo que se pretende para uma rede
escolar. No âmbito do Parque Escolar, temos rendas de parcerias público-privadas ca-
ríssimas que vão comprometer os orçamentos da educação nos próximos anos e os
custos de funcionamento elevadíssimos, etc. O essencial, como por exemplo a criação
de gabinetes para os professores atenderem os alunos e os encarregados de educação,
ficou por fazer. Pior, é hoje em dia, não termos claramente definido qual é a função de
um professor. Um docente na Finlândia ou na Suécia tem a sua actividade previamente
estruturada, sistematizada e prevista.

É especialmente crítico do relacionamento da tutela com os sindicatos. Os mi-


nistros têm sido pouco hábeis no diálogo com as estruturas sindicais?
Eu dou o exemplo da negociação sindical no tempo de Manuela Ferreira Leite e as
suas consequências orçamentais danosas. Explico: Chegámos a uma situação em que
os docentes no início da carreira ganham muitíssimo pouco, miseravelmente até, e no
final das carreiras apanham-se a ganhar ordenados elevadíssimos, isto porque foi uma
estratégia do Ministério da Educação de empurrar o problema do pagamento destas
pessoas para a Segurança Social, por via das reformas.

As estatísticas mostram que os países com melhores índices educativos sofre-


ram menos recessão. Isto significa que uma educação com pobres resultados é
terreno fértil para as crianças de hoje e os adultos do amanhã estarem mais sus-
ceptíveis e permeáveis a práticas de corrupção?
O grau de desenvolvimento medido pelos índices das Nações Unidas está forte-
mente relacionado com a transparência dos países. Ou seja, quanto maior for a trans-
parência dos países, ou menor for a corrupção, se quiser, maior serão os índices de
desenvolvimento. É por isso que o combate à corrupção é estruturante e fundamental.
O investimento em educação é o mais rentável, só do ponto de vista das finanças pú-
blicas, ou seja, numa vertente estritamente contabilística. Quanto mais formação uma
pessoa tem, até do ponto de vista económico e de gestão de finanças públicas, irá ter
mais habilitações, irá auferir maior salário, irá gastar mais, irá ter mais património e irá
pagar mais impostos. Perante estes argumentos, querer poupar em educação é um erro.

Uma pessoa mais preparada e formada é necessariamente mais imposi-


tiva e exigente…
Os sistemas em que as pessoas são pouco formadas apenas favorecem os regimes
totalitários e que pretendem que as pessoas sejam pouco esclarecidas. Não é por
acaso que temos regimes mais corruptos em Angola do que na Dinamarca, basta
comparar o grau de formação existente nestes países. Uma das principais razões para
a queda do Muro de Berlim e da “cortina de ferro” foi a formação. As ditaduras que
‹ 337
ministraram muita formação aos seus povos invariavelmente ao fim de duas gerações
acabaram por determinar a queda desses regimes ditatoriais.

Fazendo apelo à sua formação em ciências exactas, gostaria que falasse um


pouco sobre o fracasso dos alunos portugueses em Matemática. Como é que se
desmistifica esse “papão”?
Dois motivos específicos podem explicar o insucesso: O ensino da Matemática só
se obtém pela via da escola. Não se aprende como o Inglês, a História ou a Filosofia.
Para além disso, o ensino da Matemática é sequencial, implica um encadeamento ló-
gico e natural de conhecimento, com especial importância para as chamadas bases da
disciplina. Se não se perceber as bases, dificilmente se vai entender o que virá a seguir.

Ou seja, o trabalho terá de começar pelos jovens de tenra idade e os resul-


tados não serão rápidos?
As consequências de retardar este esforço serão gravíssimas. Os alunos continua-
rão a fugir para as áreas das humanidades, não por vocação, mas simplesmente para
escapar à Matemática. São recursos humanos necessariamente mais frustrados e menos
produtivos. Isto tem efeitos económicos terríveis para a sociedade e para a economia.
O país em termos gerais fica carente em termos de recursos humanos nas áreas das
engenharias e da Matemática, com reflexos óbvios em termos da descompensação da
estrutura de emprego e de recursos humanos. Estou certo que muitos dos desempre-
gados formados em humanidades, decerto estariam hoje em dia empregados se tives-
sem ido cumprir a sua vocação no campo das engenharias, Economia ou Matemática.

Que soluções advoga?


O nível de controlo de qualidade teria de ser muito maior na Matemática. Isso pres-
supunha uma maior formação a começar pelos próprios professores da disciplina. Os
sistemas de avaliação têm uma componente muito pequena relativamente à formação
científica e pedagógica dos docentes. Chegámos a este contra senso que é o facto de
termos muitos professores de Matemática, que sabem pouco de Matemática…

338 ›
David Justino 129

Está na hora de sacrificar cursos para salvar instituições

O ex-ministro da Educação e actual presidente do Conselho Nacional de Educação,


David Justino, considera que as escolas na actualidade estão muito mais orientadas para
obter melhores resultados das aprendizagens do que estavam há dez anos atrás.
David Justino aborda ainda a reorganização da rede de ensino superior. Na sua
perspetiva está na hora de sacrificar alguns cursos para salvar algumas instituições.
Mas lembra que devem também existir “medidas de discriminação positiva, permi-
tindo que instituições que desempenham um papel fundamental no desenvolvimento
das regiões periféricas, não sejam «varridas» do sistema”.

Concorda com a ideia de que um dos maiores desafios da educação em Por-


tugal é a efectivação da escolaridade obrigatória até ao 12º, com resultados po-
sitivos (mais sucesso escolar e menos abandono)?
De uma maneira geral e como princípio concordo. O recurso a uma medida co-
erciva como é a escolaridade obrigatória é sempre um derradeiro passo que deverá
ser devidamente ponderado. Se a universalização do ensino secundário fosse possível
sem esse recurso seria bem melhor. Porém, a história da evolução do sistema de ensi-
no em Portugal revela-nos o efeito positivo da ação do Estado na definição de metas
de escolarização. Cada passo dado tem conduzido a níveis de escolarização mais
129 Professor Universitário e investigador na área das políticas educativas. Presidente do Conselho Nacional de Educação. Foi
ministro da Educação no XV Governo Constitucional, presidido por Durão Barroso.
Entrevista realizada por João Carrega, em Janeiro de 2014

‹ 339
avançados e tem contribuído para uma indução da qualificação da população que de
outra forma não teria sido atingida. O argumento do abandono e do insucesso esco-
lares, resultante de obrigar os alunos a frequentarem a escola contra a sua vontade, é
um mau argumento, porque em alternativa continuaríamos a ter alguns sectores da
população que nem sequer concluiriam o primeiro ciclo.

A escola pública está a viver momentos difíceis. O acesso ao ensino para


todos, como hoje o conhecemos, pode estar em risco?
Não creio! Tal como deveremos sempre evitar os momentos difíceis, teremos pri-
meiro de evitar os momentos de euforia e deslumbramento, para que não voltemos a
ter momentos difíceis. A ideia de que toda a despesa em educação é investimento não
é verdadeira. Para futuro, sempre que quisermos tomar uma medida de qualificação
do sistema de ensino deveremos pensar muito a sério sobre qual é a relação entre
custos e retornos. Não chega ter boas ideias e boa vontade, é necessário planear com
grande rigor a evolução do sistema de ensino e saber até que ponto os investimentos
realizados se estão a traduzir em melhor ensino e melhores aprendizagens. Porque,
se não for com esse objectivo, nem sempre valerá a pena fazer alguns investimentos.

O Ministério da Educação obrigou os professores com menos de 5 anos de


serviço a realizarem um exame de admissão à profissão. Faz sentido esta prova
na sua opinião?
Tudo depende do contexto de profissionalização em que se enquadre essa prova e
dos objectivos que se queiram atingir. Por exemplo, se o principal objectivo da prova
é de seriação dos candidatos a professores, poderá ser aceitável, se é de exclusão, tal-
vez não o seja. Se o objectivo é privilegiar o mérito e a qualidade da formação inicial,
poderei estar de acordo, se é um mero ritual de despiste dos candidatos, talvez não
tanto. Uma coisa é certa, o Estado tem o direito e o dever de escolher os melhores
professores para as escolas públicas. A escola pública, se quer ser valorizada e reco-
nhecida como uma escola de qualidade tem de ter os melhores professores. Enquanto
esse objectivo não for conseguido ficaremos sempre aquém do que possível fazer. Se
queremos defender uma escola pública de qualidade alguma coisa teremos de fazer
no recrutamento e selecção de professores, com prova ou sem prova.

Os resultados do PISA foram muito positivos para Portugal e reflectem todo


um trabalho realizado num passado recente. Como é que os analisa?
O problema é saber o que entende por “passado recente”. Quão recente? Aquilo
que sabemos da evidência proporcionada pela investigação é que os resultados em
educação demoram muito tempo a ser construídos. Por outro lado, julgo que es-
tamos demasiado centrados nas políticas públicas, quando há variáveis estruturais
que são bem mais importantes. Dou-lhe um exemplo: não tenho grandes dúvidas
340 ›
que o principal contributo para a melhoria de resultados tem a ver com os níveis de
escolarização dos pais. Hoje a geração dos pais das crianças que estão no sistema de
ensino é muito mais escolarizada que a geração anterior. Só esse facto explica uma
boa proporção da melhoria dos resultados. Segundo exemplo: muito provavelmente,
temos professores melhor preparados (em média...) do que tínhamos há 15 ou 20
anos atrás. As escolas na atualidade estão muito mais orientadas para obter melhores
resultados das aprendizagens do que estavam há dez anos atrás. Hoje nota-se que
emerge uma outra cultura escolar que olha para os resultados como um indicador
fundamental para qualificar as aprendizagens. Por isso, se considerarmos estes três
factores, veremos que há alterações que marcam os últimos 10 anos que são funda-
mentais para percebermos os resultados obtidos.

Um pouco por todo o país, foram criados os chamados mega agrupamentos


de escolas. Em que medida é que estas estruturas podem melhorar, ou não, o
ensino em Portugal?
Os agrupamentos de escolas existem desde finais dos anos 90. Generalizaram-se
a partir de 2003 e alargaram-se às escolas secundárias a partir de 2008. Mais do que
ganhos de eficiência na gestão administrativa ou de racionalidade financeira, o maior
potencial dos agrupamentos será, a prazo, de natureza pedagógica. Nesta perspectiva
a dimensão dos agrupamentos por si só pouco me diz. Julgo que é mais importante
o que eles representam de articulação dos diferentes níveis de ensino, de superação
de barreiras entre culturas profissionais que vivem de costas viradas, de reorientação
do focus da acção educativa para os trajectos escolares dos alunos e não uma seg-
mentação correspondente aos diferentes ciclos de ensino. Temos de “desconfinar”
as diferentes lógicas de ciclo e integrar a acção educativa em torno do aluno, da sua
progressão, do seu; acompanhamento e do seu sucesso. Os agrupamentos potenciam
essa verticalização pedagógica que é bem mais importante que os eventuais ganhos
de racionalização dos recursos.

No último concurso nacional de acesso ao ensino superior mais de 40% dos


alunos que concluíram o secundário não se candidataram. Na sua perspetiva isto
reflete o quê: desmotivação quanto ao futuro? Falta de dinheiro das famílias?
Não tenho informação privilegiada sobre o problema real que descreve. Julgo que
com base num inquérito bem elaborado poderíamos ter ideias mais claras e uma
melhor identificação das causas. Sem isso só poderemos especular e alinhar nas ex-
plicações mais fáceis. Decerto, sabemos que as razões que apontou terão alguma
importância, a dificuldade está em conhecermos outras razões e qual a hierarquia da
importância de cada uma delas. Eu prefiro ser comedido nessas interpretações ime-
diatas, não deixando de reconhecer que as dificuldades crescentes das famílias, em
especial em alguns sectores da classe média, são um factor considerável para explicar
‹ 341
o fenómeno. Teremos de encontrar soluções que nos garantam que nenhum aluno
se veja obrigado a abandonar os seus estudos por razões estritamente económicas.
Não nos podemos dar ao luxo de desperdiçar tão elevado potencial de capital huma-
no, mas, por outro lado, também importa criar oportunidades de integração desses
jovens na vida ativa. Se ao aumento da escolarização superior não corresponder um
aumento das oportunidades de inserção no mercado de trabalho então estamos a pro-
vocar uma frustração generalizada como a que sentimos em muitos jovens que depois
de terminados os seus cursos são obrigados a emigrar para conseguirem aceder a um
emprego ajustado às suas qualificações.

De que modo se pode inverter esta tendência?


Só há uma forma: mais investimento privado, mais crescimento económico para
podermos criar mais postos de trabalho qualificado de forma a absorver esse capital
humano. Duvido que a administração pública e o sector público tenham condições,
nos próximos anos, de poder suprir esse esforço de investimento. Se voltarmos
a cair nessa política, daqui a alguns anos voltaremos a enfrentar as dificuldades
por que passamos actualmente. É fundamental atrair investimento para actividades
de elevado valor acrescentado que exijam níveis de qualificação do trabalho mais
elevados. Se voltarmos a um modelo em que a maior procura incide sobre mão-de-
obra desqualificada, então será bem pior. Temos de escolher entre formar licencia-
dos para serem caixas de supermercado - por mais respeitosa que seja a actividade
- ou especialistas em empresas rentáveis e orientadas para a produção de bens e
serviços transaccionáveis.

O actual Ministério da Educação quer redefinir a rede de ensino superior,


falando em fusões e agregações entre instituições, nalguns casos de sistemas
diferentes. Faz sentido extinguir instituições, por exemplo no interior do país?
Temos de ser ponderados sobre as eventuais soluções conducentes ao reordena-
mento da rede de oferta de ensino superior. Andamos há mais de dez anos a falar
sobre o problema, mas por uma ou outra razão, pouco ou nada se fez. A situação está
a tornar-se insustentável. Esse tipo de soluções, feitas com tempo e em concertação
com as diferentes instituições, são sempre mais sustentáveis do que quando realiza-
das à pressa e sob a pressão da “austeridade”. Os responsáveis dos estabelecimentos
de ensino superior têm de se sentar à mesa e acordarem as melhores soluções para o
seu desenvolvimento. Caso não o façam, a solução virá de cima e, na maior parte dos
casos, não será necessariamente a melhor. Este estratagema de adiar indefinidamente
as soluções não creio que seja o melhor.
Ainda estamos a tempo, mas já bem perto do “prazo de validade”, de sacrificar
alguns cursos para salvar algumas instituições. Se não o fizerem, a muito curto prazo,
terão de fechar algumas das instituições. O país não suporta o financiamento da ac-
342 ›
tual estrutura de oferta de ensino superior e não poderá suportar que uma parte dos
cursos, irresponsavelmente, estejam a encaminhar os seus licenciados directamente
para o desemprego. Este é que é o problema.

A reorganização da rede da oferta formativa e dos números clausus não po-


deria ser uma solução?
Poderemos começar por aí, mas não podemos ficar por aí. Teremos de avançar, mais
tarde ou mais cedo, para um modelo de financiamento competitivo, de forma a dife-
renciar a qualidade e o desempenho dos diferentes cursos e das diferentes instituições.
No actual modelo estamos a sacrificar as instituições com maior potencial de cres-
cimento e competitividade, para mantermos os níveis de ineficiência das instituições
mais obsoletas. Porém, há um princípio que nunca poderá ser esquecido: o da soli-
dariedade territorial. Têm de existir medidas de discriminação positiva, permitindo
que instituições que desempenham um papel fundamental no desenvolvimento das
regiões periféricas, não sejam “varridas” do sistema. Não podemos ser insensíveis a
esse princípio, mas também não poderemos deixar de exigir maior racionalidade na
rede de ofertas. É para isso que serve a política: encontrar soluções concertadas e
compromissos que permitam manter a coesão territorial e ao mesmo tempo valorizar
os nichos de competência que ainda existem nessas regiões.

‹ 343
Maria de Lurdes Rodrigues 130

Quatro planos para a educação

Maria de Lurdes Rodrigues defende uma nova geração de políticas públicas educativas
assentes em quatro planos de intervenção. A ex-ministra da Educação fala dos eixos da
confiança, do conhecimento, da governabilidade e da afetação de recursos. Destaca, ainda,
a importância da escola a tempo inteiro e sublinha os resultados do PISA.
Sobre o ensino superior, diz que as únicas instituições a mais no país são as más,
e defende o fator qualidade como a condição fundamental para a reorganização da
rede de ensino superior.

A escolaridade obrigatória até ao 12º ano, com resultados positivos, é um dos


grandes desafios com que se debate o ensino em Portugal?
É isso que eu defendo e é uma batalha que tem muitos anos. Para que isso acon-
teça é necessária uma nova geração de políticas públicas centradas em quatro planos
de intervenção: o plano das convicções e da confiança; do conhecimento; da gover-
nabilidade; e da afetação de recursos.

O primeiro dos planos é o da convicção e da confiança. São esses dois fa-


tores determinantes?
130 Professora Universitária. Ministra da Educação do XVII governo constitucional, presido por José Sócrates. Presidente
do Conselho Executivo da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. Docente no Departamento de Sociologia do
ISCTE, Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa.
Entrevista realizada por João Carrega, em Fevereiro de 2014

‹ 345
É um plano em que todos partilhamos a convicção de que é possível todas as crian-
ças e jovens aprenderem as competências básicas e desenvolverem os seus percursos a
partir daí. Isto porque se uma parte de nós não acredita que é possível que os jovens
aprendam até ao 12º ano e que há obstáculos que são inultrapassáveis, isso é meio
caminho andado para não se concretizar esse desafio. Então mas o que é que nos pode
inspirar? É uma fé cega na educação? Não, o que nos pode inspirar é o exemplo de ou-
tros países, em que 70 ou 80 por cento dos jovens concluem com êxito níveis de esco-
laridade equivalentes ao 12º ano. E portanto, se noutros países esse desafio é encarado
e concretizado, não há razões para em Portugal não o concretizarmos.

Essa nova geração de políticas públicas assenta também no conhecimento,


em que perspetiva se enquadra este plano?
Para concretizarmos o desafio da escolaridade obrigatória, sobretudo agora
ao nível dos 18 anos, precisamos de conhecer mais profundamente matérias
relacionadas com a pedagogia, com as melhores formas de ensinar, com os
modelos de diversificação das ofertas formativas, e dos próprios processos de
ensino aprendizagem. E neste aspeto necessitamos conhecer melhor as experi-
ências de outros países. Por isso, os investigadores e as instituições de ensino
superior têm um papel muito importante no desenvolvimento de conhecimento
útil para a concretização desse objetivo. Eu já dei este exemplo: porque é que
nós conhecemos tão mal as razões de sete a oito por cento das nossas crianças
aos sete anos de idade não aprenderem a ler? Isto são matérias de investigação.
Era importante que as universidades colocassem na sua agenda os problemas
de ensino e aprendizagem.

Associado àqueles dois planos surge o terceiro, o da governabilidade…


É um plano que se relaciona com o quarto, o da afetação de recursos. Nós somos
herdeiros de um sistema educativo muito centralizado de governação, o qual por isso
é muito uniforme na atribuição de recursos. E aquilo que precisamos é de diversificar
e diferenciar essa afetação. Ou seja, é necessário atribuir mais recursos às escolas e às
regiões que mais necessitam para atingir patamares mínimos de qualidade. De igual
modo, importa termos um sistema de governação de maior proximidade, com mais
autonomia nas escolas, mas também com mais responsabilização e mais envolvimen-
to das autarquias e dos agentes de proximidade.

Enquanto ministra da Educação defendeu as parcerias com o poder local, em


particular com as câmaras municipais. Essa aposta teve resultados positivos?
Teve resultados imediatos em várias áreas. Uma delas foi a renovação do parque
escolar. Sem as autarquias não teria sido possível acabar com o problema das escolas
isoladas e em mau estado, renovar o parque escolar com a construção de centros
346 ›
escolares e promover-se a racionalização da rede ao nível local. Desde 1991 que o
país arrastava esse problema. Outra das provas positivas da proximidade com as au-
tarquias foi a escola a tempo inteiro. Não tinha sido possível arrancar com a generali-
zação do inglês no 1º ciclo, como o fizemos, em apenas quatro meses.

A escola a tempo inteiro foi uma das suas apostas e bandeiras. Essa escola
pública a tempo inteiro está hoje em risco?
Tudo está sempre em risco. A escola a tempo inteiro está em risco sobretudo desde
o momento que se desvirtuou o princípio de organização. A escola a tempo inteiro é
simultaneamente um espaço de apoio à família em que o serviço público de educação
é alargado no tempo – ou seja, durante mais tempo a escola presta um serviço de aco-
lhimento e de integração das crianças, tendo em conta a realidade das famílias em que
a maior parte das mães trabalha – e de enriquecimento curricular do ensino básico.
Desde 2001 que se previa a possibilidade de se introduzir as línguas estrangeiras, mas
nada tinha sido possível fazer. Portanto, a escola a tempo inteiro foi implementada
com o objetivo de adequar a escola às necessidades das famílias e ao mesmo tempo
enriquecer os currículos do 1º ciclo, proporcionando às crianças todas – e não apenas
a algumas – o acesso às línguas e às artes mais performativas.

O Ministério da Educação exigiu que os professores até cinco anos de experi-


ência tivessem que realizar uma prova para a entrada na profissão docente. Faz
sentido este tipo de provas?
Uma prova de acesso à profissão faz sentido, mas é no início, isto é quando se ace-
de à profissão e não quando se já está a meio da carreira. Por isso, este tipo de provas
como a que foi feita não faz sentido, sobretudo discriminando aplicando-a apenas aos
contratados, àqueles que têm um vínculo mais frágil. Isso não tem nenhum sentido!
Assim está usar-se o mecanismo de prova de acesso não para melhorar a qualidade do
recrutamento, mas sim para excluir e despedir, fazendo uma espécie de limpeza nas
escolas. E isso não é razoável. Não faz nenhum sentido realizar-se uma prova dessas a
professores com anos de experiência e ainda por cima apenas aos contratados.

Na sua perspetiva essa prova seria válida no início da carreira, ou no final


dos seus cursos. É isso que defende?
No início de carreira, no final dos seus cursos como um exame de acesso à profis-
são, mas antes de iniciarem funções. E o objetivo dessa prova seria a de colocar todos
os professores em igualdade de circunstâncias no concurso. E isso hoje não acontece.
Existem uma diversidade de instituições a formar professores e como aquilo que
conta para os hierarquizar no acesso à carreira é a nota de curso, há instituições que
usam isso como uma estratégia de proteção e de defesa do seu próprio trabalho. As-
sim, não temos os candidatos a professores colocados em igualdade de circunstância,
‹ 347
devido aos critérios de atribuição de notas de cada uma das instituições. Portanto,
aquilo que defendi foi que existisse uma prova, antes do início da profissão, que
pudesse contribuir para uma maior igualdade. Este é um processo que tem que ser
desenvolvido gradualmente, em conjunto com as instituições de ensino superior. E
não vejo que esta seja uma situação da máxima urgência. Urgente é combatermos o
abandono escolar!

Recentemente o atual Ministro da Educação, Nuno Crato, disse publicamente


ter dúvidas sobre as formações ministradas nas escolas superiores de educação por-
tuguesas. Quando tutelou o Ministério da Educação também teve essas dúvidas?
Nós temos que trabalhar na base de confiança com as instituições que criamos e
não estar constantemente a lançar a suspeição sobre o trabalho que se faz. Foi criada
uma agência de avaliação e acreditação dos cursos e das instituições do ensino supe-
rior, e já na década de 90 tinha sido criado um instituto com essa finalidade. Temos
que confiar nessa agência, a qual vai regular e distinguir o que são as boas e as más
práticas. O ministro não se pode substituir a essas instituições que são criadas, nem
tão pouco ir fazer o trabalho delas. Quem faz a avaliação das instituições de ensino
superior é a agência que foi criada pelo Estado Português. E temos que confiar que ela
está a fazer o seu trabalho, caso isso não se verifique temos que agir sobre ela, verificar
o que podemos melhorar e fazer um esforço para melhorar as instituições de ensino
superior portuguesas em vez de as estarmos a destruir. Em matéria de formação de
professores temos muito para melhorar, mas o esforço da política deve ser o de ajudar
a melhorar, dar orientações ou recursos e não a de destruir as instituições.

Os últimos resultados do PISA foram positivos para Portugal. Como é que


avalia esses dados?
Os resultados melhoraram sobretudo entre 2003, 2006 e 2009. Houve um perí-
odo em que mudámos de posição. De 2009 para 2012 mantivemos a mesma. Isso
significa que não houve regressão face à melhoria obtida em 2009. Mas temos que
olhar para esses dados e refletir para ver o que temos que fazer mais para melhorar e
não estagnar. Quando o relatório da OCDE vem um elogio aos programas que estão
em curso e nós ouvimos na comunicação social o ministro a dizer que se prepara para
rever esses mesmos programas, ficamos preocupados. Isso significa que se tomam de-
cisões políticas sem ter em conta aquilo que são recomendações e o que é informação
de base. Mas há mais exemplos. No relatório do PISA, a OCDE elogia uma série de
medidas que entretanto foram descontinuadas. Temos que ter consciência que corre-
mos riscos. As políticas e a confiança que transmitimos à escola são muito importan-
tes, pelo que não faz nenhum sentido que depois de serem divulgados os resultados
do PISA e publicadas recomendações, o Governo venha anunciar medidas ao arrepio
do que deveria estar a ser feito, que era dar continuidade ao que vinha sendo desen-
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volvido e que permitiu atingir estes bons resultados. São exemplos o plano de ação
para a matemática, os planos de recuperação etc. Tudo isto resultou de um esforço
imenso, porque a questão do insucesso e do cumprimento da escolaridade mínima
obrigatória não se resolve com uma única medida. Não basta introduzir os exames. É
preciso criar condições para que as equipas de docentes possam preparar os seus alu-
nos para esses exames e para outros desafios que os alunos vão enfrentar na vida, pois
o conjunto de competências que eles necessitam é muito vasto. Não chega colocar
objetivos, é necessário disponibilizar meios e recursos para que esses objetivos sejam
alcançados. Por isso, como referi no início da entrevista, eu identifico quatro planos
de intervenção para conseguirmos concretizar a escolaridade obrigatória.

No último concurso nacional de acesso ao ensino superior, mais de 40% dos


alunos que concluíram o ensino secundário não se candidataram. Que fatores
podem ter condicionado a escolha dos jovens? Falta de perspetiva de futuro?
Falta de dinheiro das famílias?
Há desmotivação, há falta de condições para estudar, e todos os dias ouvimos um
discurso político que incentiva os jovens a não estudarem, que desvaloriza a edu-
cação e o conhecimento. Aquilo que os jovens ouvem por parte do Governo, é um
discurso de desincentivo. Quando um jovem está em casa a pensar que quer ir para a
universidade aprender e estudar para ser professor, e ouve um ministro a dizer que as
instituições que formam professores são do pior que o país tem, isto cria uma grande
perplexidade. A situação é muito preocupante. Estamos longe de atingir os objetivos
da estratégia 2020, e para sairmos desta crise precisamos de jovens qualificados. Pre-
cisamos que os jovens acreditem que vale a pena estudar, e essa é a única alternativa.
É importante que isto lhes seja dito.
Como referi atrás, o discurso político é um dos elementos mais importantes na
mobilização para a educação. Na nossa história das políticas educativas temos exem-
plos de ministros que usaram o discurso político para mobilizar toda a sociedade para
o esforço da educação, casos de Leite Pinto, Veiga Simão ou Marçal Grilo. Todos eles
usaram a palavra para afirmar a importância da educação. E com isso conseguiram o
esforço imenso de mobilização da sociedade, dos jovens e pais.

O Ministério da Educação quer redefinir a rede do ensino superior. Chegou


a falar em fusões e agregações. Faz sentido extinguir instituições?
Não conheço suficientemente os planos do Governo. Mas uma coisa posso dizer:
os objetivos e os critérios só podem ser os da qualidade. Não podemos dizer que te-
mos instituições de ensino superior a mais. O que temos é um défice de qualificação
de população ativa e de jovens a necessitar de entrar nas universidades que é dema-
siado grande. Considero que estão a mais as instituições que não são boas. Portanto,
o critério da qualidade que orienta as estratégias de reorganização e da regulação da
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rede tem que ser único. Nem a procura pode ser condição, em sentido estrito. Isto
porque podemos ter a necessidade de sustentar cursos e instituições muito especia-
lizadas e importantes para o país, nos quais não é suposto formarem muitos diplo-
mados. O critério não pode ser apenas a procura, nem o número das instituições que
existem, nem o número de alunos que está a entrar no ensino superior, mas sim o
da qualidade. E para isso existe uma agência que avalia essa qualidade. Resumindo,
todos os cursos e instituições que não cumprem níveis mínimos de qualidade estão a
mais, todos os outros não estão. O que é necessário é uma campanha de mobilização
dos jovens e dos adultos para que frequentem níveis superiores de formação.

Referiu-se à questão da mobilização dos adultos. Um dos programas que per-


mitiu que muitas pessoas regressassem aos estudos, foi o Novas Oportunidades.
Como é que analisa o fim desse projeto?
Foi uma decisão muito negativa para todos. Para os adultos que não têm hoje
outra alternativa e para o país que não tem uma estratégia para a qualificação dos
adultos. Não se compreende como é que é possível que sendo Portugal um dos países
com maior défice de qualificação dos adultos não ter uma estratégia, nem nada para
dizer aos adultos. Aquilo que este Governo fez foi colocar na rua os adultos que es-
tavam nos centros de formação e nas escolas, e não lhes deu nenhuma alternativa. O
país vai pagar caro tudo isto. O esforço que vamos ter que fazer para voltar a inspirar
confiança nestes adultos, que acreditaram que tinham uma oportunidade, será enor-
me. Este Governo substituiu a política de formação, por uma política de demografia.
Deve esperar que todos os adultos se reformem ou morram, para que o problema do
défice da qualificação se resolva.

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