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PARECERES
2022
0rganização
Carlos PortugalGouvêa
Mariana Pargendler
Maurizio Levi-Minzi
mTRIMÓNIO
Biblioteca-$p
ALMEDINA
FUSÕESE AQUISIÇÕES
B. Segundoquesito t3
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FUSÕESE AQUtSiÇÕES 13 OBRIGAÇÕES VINCULADAS À CLÁUSULA DE EÁRN-OUr PREVISTANO CONTRATO
Assim, com fundamento na figura do dolo acidental e na cláusulageral i. A existência de uma cláusula de ear7z-ozlt
em uma compra e venda
de boa-N, a Consulente instaurou procedimento arbitral contra o Sr. L, ale- de participação societária de controle impõe algum dever ao comprador,
gando, em síntese, que, se não tivesse sido enganada por ele, teria firmado conforme a legislaçãobrasileira, para além dos deveresexpressamente
o Contrato em outras condições, pagando preço bem menor. previstos no contrato? Caso afirmativo, quais são?
Em contraposição a tudo o que Êoisustentado pela Consulente, o Sr. L nega ii. A cláusula de Cariz-oufimpõe alguma obrigação ao comprador para
que tenha praticado qualquer ato fraudulento para supostamenteinalar os agir em defesaaos interesses do vendedor ou para "cuidar«.do interesse...
do;vendedor"?
negóciosdo Grupo Z. Além disso, apresentouna arbitragem pedido contra-
posto ("Reconve;ção"), alegando,em síntese,que a Consulente: (i) alterou iíi. A cláusula de ear?z-ouf
cria alguma obrigação ao comprador de pagar
drasticamente o modzlsoperandoadotado pelo Grupo Z até a compra e venda os valores de eam-oaf ainda que as condições previstas no contrato para
(ocorreram mudanças na administração, demissão de pessoas-chave, altera- pagamento não tenham sido implementadas?
çõesnas políticas de profissionalização e fidelização de parceiros relevantes, iv. As obrigações oriundas da cláusula de ear?z-oufpodem ser caracte-
rizadas como "deveresinstrumentais"?
degeneração de s(@wal'ede gestão de dados e operações, etc.);(ii) não com-
preendeu bem a atividade principal do Grupo Z;(iii) em vez de gerir o grupo v. Esses "deveres instrumentais" impõem, de fato, uma obrigação ao
diligentemente, de acordo com o curso normal dos negócios, administrou-o comprador (neste caso, a Consulente) de pagar os valores sob a rubrica
de ezzrlz-ozzf?
de forma descuidada e desordenada, razão pela qual asreceitas despencaram
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1-
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fício da empresaou de seusacíonistas?Como o comprador equilibra essa expressa, até que ponto a boa-íé objetiva imporia à Consulente a obrigação de
i.
obrigação com as demais previstas na cláusula de earzz-ouf? seguir a mesma estratégia e de adotar as mesmas práticas da gestão anterior?
111.0 comprador pode ser compelido a realizar o pagamento de um O simples fato de o Contrato ter uma cláusulade ear?z-oz/t
já seria suficiente
gare-ozztainda que as condições contratuais para essepagamento não para se extrair daí uma tal obrigação?
tenham sido implementadas? 6. Pararesponder a essasindagaçõese, de forma mais específica,aostreze
Permanecemos à disposição para quaisquer esclarecimentos que se quesitosformulados na Consulta, que giram em torno dessestemas(cláusula
âzerem necessários. de eal'?z-ozzf,
deveres impostos pela boa-íé objetiva, dever de diligência do admi-
nistrador, etc.), este Parecer divide-se sob os seguintes títulos:
Esta foi a consulta que recebemos por e'mail ("Consulta").
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FUSÕESE AQUISIÇÕES 13. OBRIGAÇÕES VINCULADAS À CLÁUSULA DE EARN-OUT PREVISTA NO CONTRATO
1. A cláusula de ear?z-out:
função, natureza jurídica e efeitos que o dever do comprador de pagar parte adicional do preço estará vincu-
ll. Incidência da boa-íé objetiva nas relações empresariais lado a evento futuro e incerto delimitados pelas partes, baseado não em suas
lll. Obrigações vinculadas à cláusula de earn-out expectativas subjetivas, mas em verificações concretas de perdas, rentabili-
IV. Função social da empresa e dever de diligência do administrador dadesecontingências.
9. A prática das operaçõesde aquisição de participações societária indica,
com efeito, uma tradicional dificuldade entre uma visão otimista, mais ou
1. A cláusula de Cariz-ozlf:função, natureza jurídica e efeitos menos genuína, do vendedor, e uma visão mais conservadora, do compra-
dor. Aquele estima que a sociedade cujas ações ou quotas estão sendo vendi-
7. A convenção de cláusula de earfz-ozlfem operação de M&A revela técnica das tem perspectivas de rentabilidade elevadas;este último tem pelo menos
negocial que estrutura o pagamento do preço de compra de uma sociedade a indispensável dúvida metódica a tal respeito. Ora, uma vez que o preço de
de forma parcelada e com o estabelecimento de condições. Sãogeralmente uma operação dessanatureza é usualmente determinado pelo valor presente
utilizadas em operações nas quais vendedores e compradores não convergem dosfluxos fiituros de lucros e dividendos da participação societária comprada,
acercada performance futura e do real valor da sociedadeem negociação.: a diferença de perspectivas afeta de forma relevantíssima a avaliaçãodeitapor
Com isso,por meio dessacláusula, aspartes da relação contratual optam por cada uma das partes no potencial negócio.
estruturar o pagamento em duas parcelas, sendo uma certa (fixa) e outra 10. E, adicionalmente, a determinação do valor presente dessesfluxos
incerta(variável). O cariz-oufrepresenta a parcela variável do preço, um acrés- futuros, já por si só incertos, depende ainda de outras variáveismacroeco-
cimo ao valor âxo, que apenasserádevido,see somentese,em determinado nómicas, que se resolvem na taxa de desconto a ser adotada(taxa futura de
período de tempo, após o fechamento da operação (também chamado de juros - livre de risco e com o acréscimo do risco específico do país e, even-
;'período de Cara-ouf"), certas metas económicas/ânanceiras futuras e pre- tualmente, a volatilidade do próprio neg(Seio- e, em muitas situações,tam-
deânidas forem atingidas. bém a taxa de câmbio, em ambos os casos durante o período adotado para
8. Ao ser utilizada como uma forma de postergar, sob a condição do bom computar tais fluxos futuros).
desempenho da sociedade adquirida, o pagamento de parcela contingente do 11.Tudo isso faz com que se use o faze-ozifcomo uma verdadeira "ponte"
preço de aquisição, a cláusula de ear?z-ouf
revela-se como forma de pagamento de entendimento entre comprador e vendedor:3 este último aceita, condicio-
condicionada,: assumindo,quando efetivamente devida, natureza jurídica nalmente, as premissas otimistas do vendedor, mas condiciona o pagamento
de preço. Estabelece, portanto, uma obrigação sob condição suspensivo, em do preço a que elas efetivamente se realizem.
12. O eventual pagamento do ear?z-ouf pelo comprador ao vendedor con-
âgura, assim, uma contraprestação adicional, devida após a data de fecha-
l Nesse sentido, explica-seque: "Com efeito, estacláusula é em regra pactuado em operaçõesde
mento, na medida em que o negócio adquirido atenda a determinadas metas .ii
aquisição societária em que têm, aspartes, "opiniões diversas sobre o valor justo da companhia-alvo
e suaperformance futura". Ao fixar o preço, o alienante anuncialucros futuros de alta monta, mas de desempenho definidas contratualmente. Quando o suporte fálico de inci-
o adquirente não tem como se assegurarpreviamente da veracidade desta informação. Combina- dênciada cláusula de earzz-ouf
se concretiza, o valor ali pactuado assumea
se, então, o pagamento de valores discernidos no tempo e na determinação: uma parcela é fixa e natureza de preço, devendo ser inclusive computado para eeeítosde ganho
paga no momento da conclusão do negócio; outra será paga se os tais lucros foram, efetivamente,
de capital, como observa a doutrina especializada:
alcançados em determinado período, em regra, os antigos sócios permanecendo por este período
na administração do negócio". MARTINS-COSTA, Judith. Contrato de cessãoe transferência de
quotas: acordo de sócios: pactuação de parcela variável do preço contratual denominada ear/zazzf:
características e função("causa objetivo") do earn oat. Revlsfa deAróítragem eMediação, São Paulo,
v.42,P.153-188,jul.2014.
2 MASTINS-COSTA, Judith. Contrato de cessãoe transferência de quotas. Acordo de sócios. 3 ZILVETI, FernandaA.; NOCETTI, Daniel A. Earlzozlf- aproximaçãointerdisciplinar e a IN
Pactuaçãode parcela variável do preço contratual denominada carizout. Características e função ng1.700/2017.Jíz;PINTO, Alexandre E.; SILVO,Fabio P. da;MURCHA, Fernando D. R.; VETTORI,
("causa objetivo") do cariz ouf, cíf., p. 153-188. GustavoG. (org.). Corzfrop/rifas./ziríafco-cozzfcíóefs.
SãoPaulo: Atlas, 2020. p. 131.
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r:
Nos parece claro que nas situações em que o Earn Out é utilizado vendida, não receber nada além do que o valor âxo já pago. A referida cláusula
como uma forma de postergar o pagamento do preço a ser pago como revela-se, por isso mesmo, conveniente para ambas as partes sob diversos sen-
contrapartida para transferência da participação societária da vendedor tidos: (i) alinha interesses;(ii) reduz a assimetria informacional presente nas
até que as premissas adoradas ou expectativas oferecidas se conârmem, transições de aquisição de sociedade; (iii) reduz o risco de comportamentos
sua natureza é de parte do preço de compra. oportunistas; (iv) doca riscos; e (iv) permite que a avaliação da sociedade seja
Nos casosem que se posterga o pagamento de parte do preço de com- fruto do efetivo faturamento obtido, e não somente do prognóstico esperado
pra através de Earn-Out, sua natureza é a mesma do preço de compra pelas partes, cuja precisão normalmente é incerta. Da cláusula de cariz-ozzf
pago à vista, sendo contrapartida pela alienação da participação socie- despontam, portanto, múltiplas funções, assim como diversos efeitos.
tária, devendo inclusive ser incluído no cálculo do ganho de capital do 16.No caso em análise, ao se estabelecer o preço de compra no Contrato,
vendedor quanto do seu recebimento.' as Partes pactuaram um preço fixo para a aquisição integral do Grupo Z no
valor de mais de reais, pagosna data de fechamento,bem como dois acrés-
13. Se,por um lado, a estipulação da cláusula de ezzrn-ozzf
possibilita que cimos variáveis. O primeiro acréscimo corresponde ao pagamento de um
os vendedoresrecebam, além do preço âxado como certo, um acréscimo, cariz-ozlfadicional de até R$ N2A milhões a serem pagos ao Sr. L sob deter-
levando em consideração sua conâança no potencial de desenvolvimento da minadas condições previstas no Contrato ("Ear7z-oufA"). E o segundo acrés-
sociedade vendida, por outro lado os compradores postergam o dispêndio cimo diz respeito ao pagamento ao Sr. L de um ear?z-ouf adicional de até
de parte do preço, Guiopagamento estará vinculado aosganhos advindos do R$ N2B milhões, condicionado aos termos do Contrato ("Ear?z-ozzf B").
atingimento das metas financeiras, garantindo, assim, que o adicional só será 17.Os Anexos do Contrato tratam das condições cuja implementação seria
devido mediante o efetivo bom desempenho da sociedade adquirida. A cláu- necessária para que o Comprador se tornasse obrigado ao pagamento do eam-ozlf.
sula de earfz-oufatende, a um só tempo, aos interesses do credor e do devedor. Tais condições, em resumo, vinculam-se exclusivamente ao atingimento de
14.Não é preciso dizer muito para explicar que, embora o preço seja ele- determinadas metas de desempenho financeiro pelas sociedadesdo grupo-
mento essencial da compra e venda, não é necessário que seja aprf07/ deter- 18. O atingimento de tais metas ânanceirasnão era certo. Do contrário,
minado; basta que seja objetivamente determinável (C. Civil, art. 487). as partes não precisariam ter se valido de uma cláusula de ear?z-oz/f,
bastando
No caso concreto, apenas parte do preço não é certa, que é exatamente a par- simplesmente 6xar o preço em R$ N. Exatamente porque o atingimento das
cela que diz respeito à cláusula de ear?z-oul.
Esta cláusula proporciona verda- metas não era certo, as Partes negociaram o cariz-ouf,devido se - e somente
deiro alinhamento de interessesentre as Partes:garante-se aocomprador que se - determinados resultados fossem alcançados.
o preço pago pela sociedade não será excessivo,ao mesmo tempo em que se 19.Em nossa opinião, é fora de dúvida que a cláusula de ear?z-outnão com-
garante ao vendedor a possibilidade de receber um acréscimo do preço que preende uma obrigação de resultado, mas, sim, quando muito, uma obriga-
poderia não ser recebido se dependesseapenasdo pagamento imediato pelo ção de meio. Em nenhum momento, a Consulente se comprometeu a atingir
comprador reticente quanto ao real valor do grupa- determinado resultado, que conÊeririaao Sr.L o pagamento dos ezzr?z-Quis.
Até
IS. A cláusula de earn-ouf estabelece, igualmente, como será a aloca- porque, nesse contexto, a pactuação de uma obrigação de resultado sequer
ção de riscos dentro do programa contratual onde está inserida. Enquanto seria possível. De fato, não se pode pactuar uma obrigação de resultado vin- .i
o comprador assumeo risco de ter de pagar quantia adicional ao que, de culada ao desenvolvimento dos negócios da sociedade por seus administrado-
fato, compreendia valer a sociedade adquirida, o vendedor assume o risco res. Isso âca muito claro diante da compreensão de que a diligência que deve
de, caso a condição não venha a ser implementada pelo fracasso da sociedade nortear a atuação da administração de uma sociedade não gera necessaria-
mente sucessoempresarial ou um resultado positivo para a sociedade.Assim,
a atividade de administração e o dever de diligência caracterizam-se como
4 KALANSKY, Daniel; SANCHEZ, Rafael B.Eanzoufnas operações de fusões e aquisições(M&A).
obrigação de meio, e não de resultado. Ao tratar do assunto, Luiz Antonio
l7z:BOTREL, Sérgio; BARBOSA, Henrique(coord.). Fínalzfascorporativa. SãoPaulo: Atlas, 2016.
Sampaio Campos assim explica:
P.156.
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FUSÕES E AQUISIÇÕES
A atividade de administração e, bem assim,o dever de diligência direito a qualquer valor adicional nos referidos anos. Diante dessaconstata-
caracterizam-se como obrigação de meio, e não de resultado, conforme ção, o Sr. L apresentou Reconvenção no âmbito do Procedimento Arbitral,
nomenc[atura mais uti]izada pe]a doutrina. ]«.] Os mausresu]tados de uma na qual, dentre outros pedidos, requereu a responsabilização da Consulente
companhia não decorrem, necessariamente, da violação do dever de dili- pelo inadimplemento da obrigação de pagamento do Cariz-ouf, que, em sua
gência. Da mesma forma, uma companhia na qual os administradores vio- opinião, só não restou devido por conta da forma de gestão adotada pela
lem certos deveres de diligência nem por isso terá, necessariamente, seu Consulente após a aquisição.
resultado a6etado.É sempre uma questão de fato, que deve ser examinada 22. Alega o Sr. L que a Consulente tinha a obrigação de gerir as socieda-
no caso concreto de forma a se verificar a violação do dever de diligência des de acordo com o curso normal dos negócios, já que essaforma de atuação,
e a sua relação causal com o prejuízo apontado. O risco do negócio ou da ao seu ver, era a única maneira de se realizar uma administração diligente.
empresa é uma situação da vida e da qual os administradores estão isentos Assim, uma vez que a Consulente não adotou tal forma de gestão,isto é, uma
de responsabilidade ao menos do ponto de vista legal. Assim, o insucesso vez que alterou o curso normal dos negócios, ela teria inadimplido a obriga-
empresarial não traz, por si só, responsabilidade aos administradores das ção vinculada ao cariz-ouf.O parecerista contratado pelo Sr.L também argu-
companhias, embora possa trazer reprovação social. [-.] Justamente em menta nessesentido, aârmando que as Compradoras teriam descumprido
razão desseconceito de obrigação de meio, e não de resultado, é que sur- deveres instrumentais oriundos da boa-fé objetiva ao deixarem de observar
giu a remansosaconstrução legal, doutrinária e jurisprudencial, segundo as práticas empresariais que, historicamente, tornaram rentáveis asatividades
a qual o conteúdo das decisões dos administradores, em princípio, não é do grupo adquirido. Com essalinha de argumentação, o parecerista sustenta
sindicável, nem sujeito ao juízo de conveniência e oportunidade. A ava- que a Consulente deve arcar com o pagamento dos valores de earn-ozzf,
ainda
liação deve restringir-se à veri6cação de que o comportamento se con- que as metas financeiras previstas não tenham sido atingidas.
forma com o padrão de diligência previsto na lei. O administrador é livre 23. O que parece ser necessário esclarecer neste Parecer, então, é se havia,
para decidir sobre a conveniência e oportunidade dos negócios sociais, de fato, uma obrigação, vinculada ao princípio da boa-fé objetiva, de a Con-
podendo, natura]mente, ter sucessoou não na sua decisão. ]-.] Há diversas sulente adotar nassociedadesadquiridas uma metodologia de administra-
razões para que o Poder Judiciário - ou mesmo os juízes administrativos ção conforme as práticas de gestão até então conduzidas pelo Sr. L. Para
- não interfiram no mérito das decisões tomadas pelos administradores, essaanálise, é necessário, inicialmente, tecer alguns comentários acerca da .i.
especialmente quando esse juízo se dá exposf. Destaca-se a diâculdade aplicação do princípio da boa-fé objetivo nas relações empresariais, o que se
em se reproduzir o contexto em que a decisão foi tomada, notadamente passará a fazer na sequência.
as pressões presentes à época, o tempo e as informações disponíveis no
momento da tomada de decisão, além da própria visão peculiar do admi-
nistrador a respeito do negócio, da prioridade e relevância da decisão ll. Incidência da boa-fé objetivo nas relações empresariais
e do impacto nos negócios sociais. 5
A. Crítica ao uso desmedido da boa-fé
20. É aqui que a discussão toma corpo.
21. De acordo com as informações que nos foram prestadas, as metas de 24. Antes de analisar propriamente a incidência da boa-Éénas relaçõesempre-
desempenho não foram atingidas nos anos de 2017 e 2018, e, portanto, a con- sariais, é preciso ter em vista os prejuízos advindos da aplicação desmesu-
dição para o pagamento do cara-ozltnão foi verificada, ficando o Sr. L sem rada da boa-fé objetiva, enquanto cláusula geral, a partir de suautilização
"comoumapazzacea de czzn/zo mora/",6justificadora das mais antagónicas
posições. A advertência de Judith Martins-Costa, realizada desde a vigência
s CAMPOS, Luiz Antonio S. Deveres e responsabilidades. llz: LAMY FILHO, Alfredo;
PEDREIRA, José Luiz B. (coord.). Dfreífo dascompanãfas.v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
P.1103-1104. 6 MARTINS-COSTA, Judith. .A óoa:#ZlzoDíreífo Privado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 278.
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do Código Civil anterior, encontra paralelos na doutrina estrangeira' e, de em "noção depositária de todos os anseios"," até mesmo daqueles sem
acordo com a própria autora, deveria servir de lembrete aos perigos da idên- o devido amparo legal.
tica aplicação da cláusula a uma inanidade de situações sem a devida concre- 29. Em nossa opinião, o caso concreto é um típico exemplo de uso des-
ção ao cenário íático para sua correta utilização. medido ou inadequado do conceito de boa-íé objetiva. Na falta de uma cláu-
25. Não é possível, enâm, reduzir o Código Civil inteiro, na sua aplicação sula contratual que imponha à Consulente a obrigação de manter a antiga
prática às relaçõesnegociais, a um único artigo(ou, no máximo, a dois, com a administração do grupo para além de um delimitado período de transição,
invocaçãoda dita função social do contrato, de que trataremosmaisadiantei. o Sr.L recorre à boa-fé objetiva como tentativa de criar - e dar fundamento -
26. Enquanto cláusula geral, cabe ao intérprete e ao aplicador da boa-íé a essasuposta obrigação. Não se desconhece que uma dasfunções da boa-íé
objetivo a especiâcação das consequências jurídicas de seu emprego no caso objetivo, como alardeado por toda a doutrina, é a criação de deveres anexos
concreto. Ainda que não se ignore asbenesses desta estrutura genérica, é pre- de conduta. No entanto, daí a dizer-se que, em razão da boa-fé, a Consulente
ciso estar atento aos riscos representados pelo preenchimento inadequado tinha o dever de não fazer qualquer alteração na forma de gestãodo grupo
do sta7zdard em questão.Não raro, nota a doutrina, criam-se "decisões con- há uma distância muito grande. A tese soa estranha - para dizer o mínimo -
traditórias, antinâmicas ou díspares sobre uma mesma situação de fato" tanto mais se se considerar (i) que a aquisição foi integral; e (ii) que, depois
em prejuízo da segurança jurídica.; de assumir o controle, a Consulente era a principal interessada no sucesso
27. Mais grave ainda o cenário em que são proferidas decisões colzfxa / agem do grupo De6nitivamente não é dessaforma que a boa-fé incide nas rela-
com fulcro na aplicação da boa-fé objetiva, situação que não pode ser tole- ções empresariais.
rada já que, em regra, a aplicação de uma cláusula geral não pode subverter 30. Até do ponto de vista estritamente lógico, é preciso tomar em conta
as consequências legais atribuídas pelo legislador a determinadalaffispecíe, que o legislador adotou o conceito de boa-íé objetivo. Não é possível, por isso,
sob pena de desrespeito à própria legalidade. como pareceestar ocorrendo aqui, uma desvirtuação conceptualque trans-
28. No limite, portanto, é preciso criticar a banalização da boa-fé obje- forma a objetividade em algo totalmente subjetivo, ou seja, que faz suposta-
tivo, que sói florescer na falta de argumentos ou normas jurídicas devida- mente fugir à boa-fé aquilo que não concorda com o entendimento subjetivo
mente aplicáveis,9justiíicadoras do resultado pretendido pelo intérprete de uma das partes: "age contra boa-fé objetiva o terceiro que não faz o que eu
ou pelo aplicador. Não se pode ignorar que o emprego desmedido da boa-íé acho correto e adequado ou que eu faria nas circunstâncias" é um raciocínio
objetiva conduz, ao fim e ao cabo, à sua invocação arbitrária como justiâca- mais frequente do que se imagina, e que tisna gravemente a validade do con-
tiva ética a uma série de decisões "que nada dizem tecnicamente com seu ceito e invalidade a sua aplicação em cada caso, como aqui parece ter ocorrido.
conteúdo e suas funções".:' Inclusive, necessário considerar que no âmbito 31. Um conceito fundamental na interpretação das normas deve ser o cui-
das relações contratuais sua utilização exagerada converteu-se, muitas vezes, dado permanente em evitar a transformação de qualquer conceito jurídico
em uma verdadeira "norma de encerramento': ou seja,algo que se aplica, para
7 Menezes Cordeiro, por exemplo, critica a mitiâcação do conceito da boa-fé, na medida em regular uma determinada situação jurídica, quando nenhuma outra regra
que 6oitransformado "em princípio todo poderoso,em regra fundamental que tudo domina". positiva ou contratada tem aplicação.No caso da regulação jurídica dos con-
O autor continua suacrítica afirmando que "estalinguagem grandiloquente, pitoresca 1-.1é, quanta tratos em geral e, especialmente, de contrato como o ora discutido, não é pos-
ao conteúdo, profundamente vazia" e a encerra de maneira contumaz: "sua própria ilimitação
sível substituir, na interpretação do negociado,a ausênciade um certo tipo
descaracteriza-o de tal modo que impossibilita o retirar de quaisquer soluções reais". CORDEIRO,
António Manuel da R. e M. Da óoa:áZfzo
Durefo C{Pf/.Coimbrã: Almedina, 1984.v. 1. p. 402-403. de pacto, potencialmente cabível, mas no caso inexistente (i.e., de premissas
B MARTINS-COSTA, Judith. Á óo#:#Z lzo Dfrefto Privado, cíf., p 191. de comportamento negocial claramente anta-intuitivas e contrárias ao que
9 TORRES, Heleno T. A boa-6éobjetivo no Direito Tributário: efeitos e aspectospolêmicos sobre normalmente sucede - o clássico íd gzzorzzmp/erumgzle
accídif), pela aplicação
asconsultas e práticas reiteradas da administração. Revista/rzfenzac/oíza/
deDireito #íZ)ufárfo,Belo da boa-íé objetiva.
Horizonte, v. 6, p. 21-54, jul./dez. 2006. p. 24.
io SCHREIBER, Anderson. A proíóíção decolnpor&ame?zlo
foafradífór/o: tutela da confiança e ventre
ro?zíralacrumProPnzlm.
4. ed.Rio deJaneiro:Renovar,2016.p. 80-82. n SCHREIBER, Anderson. Aproíófçãodecomporfamelzfo
calzffadílórío,cíf«p- 80-82
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FUSÕESE AQUISIÇÕES 13. OBRIGAÇÕES VINCULADAS À CLÁUSULA DE EARN-OUT PREVISTA NO CONTRATO
32. Como se verá adiante com mais vagar, este conceito de que na ausên- 36. Na atualidade, como explica Judith Marfins-Costa, muito embora
cia de limites, restrições e guias no comportamento do comprador na con- a boa-fé seja um instituto geral, incidente em todos os setores do ordena-
dução do negócio adquirido, tais limites, restrições e guias existiriam, não mento jurídico, os princípios e regras próprios de cada um destescampos
obstante, apenas pela suposta boa-fé objetivo, é pelo menos contraditório, criam um regime especíâco que modela a referida cláusula geral, conâerindo-
já que dá suposta objetividade a uma visão subjetiva e individual do vende- -lhe feições diversasem cada um destessetores.n É lícito, então, concluir que
dor de como o negócio deveria ser conduzido após a transferência da pro- existem diferenças entre o regime da boa-fé no que diz respeito à sua mani-
priedade, mesmo sem nada ter sido acertado a tal respeito. festação no Direito Civil, Comercial ou do Consumidor, por exemplo. Como
33. E é previsível que nada se acerte a respeito - sem prejuízo do dever de bem expõe a autora:
colaboração a que se fará alusão adiante - também por uma razão lógica na
negociação de contratos de compra e venda de empresas, que fazem parte do Pjrincípios e regimes especiais,diversos daqueles atuantes apenas no
meu dia a dia proâssional, e que é bem simples de explicar. Os contratos de Direito Civil, regem os contratos comerciais e os negócios de Direito Socie-
compra e venda de empresa, especialmente quando incluem parcelas contin- tário, muito embora o Código Civil de 2002 tenhaviabilizado a unificação
gentes de preço, como é o caso,baseiam-seem uma expectativa de preço do das obrigações naquilo que há de comum ou geral na atividade negocial.
comprador de que pode, na suagestão,e pelo aperfeiçoamento dos processos Embora conâgurando instituto que atumem todos essescampos pelos
de condução do negócio, realmente concretizar a expectativa de preço que quais está espraiado o Direito das Obrigações, a boa-fé será matizada em
o vendedor embutiu na negociação. cada um deles, em razão da atuação conjugada com os demais institutos,
34. Dito de outra forma, o comprador assumeque pode, de alguma princípios e regras incidentes no setor específico. Há re/anão de inferdepe?z-
relações empresariais, não seignora a redação histórica do art. 131do Código n TEPEDINO, Gustavo;BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Mana Celina B. CódgoCfví/
fnferprefado col1lnrmea Cazzstífuffão da Reptíó/fca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. v. 2. p. 17.
Comercial de 1850,cuja previsão determinava que a interpretação contratual
's Judith Martins-Costa elenco,dentre estasparticularidades, a noçãode mercado, a importância
seria regulada, entre outros parâmetros, pela "inteligência 1-.1que for mais daspráticas das partes, o dinamismo da atividade empresarial, entre outras MARTINS-COSTA,
conforme àboa-fé" Judith. A óoa:/ZízoDírelfo Prí ado,cff., p. 301-309.
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de acordo com as práticas do mercado, típico de "comerciantes cordatos",16 momento, porém, a Consulente criou para o Sr. L a legítima expectativa de
sendo orientadas pela confiabilidade, credibilidade e previsibilidade.:' que não faria alteraçõesna forma de administração do grupo. Ao contrário,
39. Muito embora em uma relação paritária, como aquela travada entre basta ler o Contrato para inferir que a antiga administração não seria man-
empresários, a boa-fé não possua um caráter protetivo ou reequilibrador,'8 tida pela Consulente - salvo, como ocorreu, por breve período de transição,
sua incidência implica expansão das fontes dos deveres obrigacionais,:9que para que a Consulente pudesse conhecer melhor o grupo e imprimir a sua
não podem ser exauridos aprioristicamente, estando ligados à natureza do própria forma de gestão. O fato de o Contrato ter uma cláusula de ea7n-ozzf
contrato e à condição económica das partes.:o Os deveres oriundos da boa- não modifica essaconclusão, porque esse tipo de cláusula nada mais é do que
-íé não possuemfronteiras nítidas ou classificaçãoúnica, e,por isso,a título um instrumento de alocação de riscos.
exemplificativo - mas de grande relevância - tratar-se-á brevemente dos 43. Por âm, os deveres de proteção incluem o cuidado à pessoa e ao patri-
deveres de cooperação, de lealdade e de proteção. mónio da contraparte, paraque não sofra qualquer tipo de dano. Muito embora
ti
40. O primeiro, mais comumente associado à boa-fé, destaca a necessi- os deveres de proteção sejam comumente associadosà fase pré-contratual,
dade de consideraçãoaoslegítimos interessesda contraparte,:: isto é, de se 1!
eles também devem ser guardados reciprocamente na formação do contrato
buscar uma forma de cooperação qualificada pela finalidade e pela correção e mesmo durante e após a sua execução,24 mas nenhum desses deveres impõe
da conduta, em busca do adimplemento satisfatório a partir de uma conduta à Consulente a obrigação especíâca de seguir com o mesmo modasopeKnndíde
proba e leal, das partes envolvidas.:: Embora a Consulente tenha o dever de gestão, o que, evidentemente, dependeria de cláusula expressa nesse sentido.
cooperar com o Sr. L para a boa execuçãodo Contrato - dever este que, aliás, 44. Uma vez compreendida a incidência diferenciada do princípio da
é recíproco -, a boa-fé objetivo não Ihe impõe o dever específico de manter as boa-íé objetivo nas relações empresariais, é possível, agora, analisar as obriga-
práticas de gestão anteriormente adotadas pelo grupo çõesvinculadas à cláusula de cariz-outprevista no Contrato de modo a enten-
41. Como dito acima, o Contrato poderia trazer essaespecíficaprevisão, der se houve infringência por parte da Consulente de algum dever anexo após
mas a boa-fé objetiva não. A boa-fé limita-se a impor um genérico compor' o fechamento da operação.
tamento colaborativo.
42. O dever de lealdade vai além, pois serve para impedir a prática de atou
comissivos ou omissivos das partes, nas diversas fases da relação obrigacional, lll. Obrigações vinculadas à cláusula de Cariz-ozzt
prevista no
que venham a frustrar as expectativas originadas no contrato.2sEm nenhum contrato
'' A expressão, originalmente empregada pelo Visconde de Cairu, é frequentemente lembrada 45. A única obrigaçãovinculada ao atingimento dasmetas de desempenho
por Paula Andrea Forgioni. FORGIONI, Paula Andrea. Teoríageru/ doscolzfrafosempresariais. 2. ed. prevista contratualmente corresponde ao que se chamou de "Declaração do
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 99-1o3.
Ear7z-ozlf".Consiste essadeclaração em uma obrigação da Consulente de, uma
17MASTINS-COSTA, Judith. A óoal#lzoDÍ e foPr parto,cff., p. 310.
i8 SCHREIBER, Anderson; TEPEDINO, Gustavo.A boa-fé objetivo no Código de Defesada vez por ano, discriminar ao Sr. L o cálculo da Receita do cariz-ozzf,
bem como
Consumidor e no Novo Código Civil. Irz;TEPEDINO, Gustavo(coord.). Oór#ações:estudos na em uma obrigação de declarar a quantia devida a título de ear?z-ozlt naquele
perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro:Renovar, 2005. p. 34-35. período, fornecendo documentação, conforme razoavelmente requerida, para
SILVO,Jorge CedaF. da. A óoa:#Ze a v o/anão positiva docolztrafo.Rio de Janeiro: Renovar, 2002,
270
Ç
comprovaçãodas informações contidas em tal relatório. Após o recebimento
zo TEPE])INO, Gustavo;BARBOZA, Heloisa Helena;MORAES, Mana Celina B. CôdeaC vf/ dessadeclaração,o Sr.L teria vinte dias paranotiâcar a Consulente,infor-
interpretadoconformea ConstituiçãodaRepública,cit., v. 2, p. 19. mando se concorda ou rejeita o cálculo apresentado.
zi REALE, Miguel; REALE JR., Míguel. Função social e boa-fé na valoração dos contratos. llz:
REALE, Miguel; REALE JR.,Miguel. Qziesiões
aMaIsdeDireito. BeloHorizonte: Del Rey,2000.
P.124-125. 24 CORDEIRO, António M. O princípio da boa-fé e o dever de renegociação.Revistadedo rifa das
zz MARTINS-COSTA, Judith. A óoa:#ZlzoBife fo Privado, cíf., p. 576-577. Sociedades,Lisboa,v. 1,n. 3, p. 487-535,2013.p. 528.Em sentido semelhante:LEITÃO, Luís Manuel
n SILyA, Jorge Cesa Ferreiro da. A óoa:Hê
e a vío/açãoposíüva
docolztrafo,cíf.,p. 92-112. T. de M. Direito dasoórg iões.3. ed. Coimbrã: Almedina, 2003. v. 1,p. 57-58.
360 361
[
FUSÕESE AQUISIÇÕES
''1 ]3. OBRIGAÇÕES VINCULADAS À CLÁUSULA DE EÁRN-OUr PREVISTA NO CONTRATO
46. Nada mais há no Contrato que atribua qualquer outra obrigaçãoàs 51. Os deveres decorrentes da boa-fé objetiva não funcionam, portanto,
Compradoras no que se refere tanto ao atingimento das metas de desem- "para tutelar o interesse privado e individual de cada um dos contratantes,
penho quanto à forma de administração das sociedadesadquiridas após maso interessemútuo que se extrai objetivamente na avença".27
Ou seja,
o fechamento do negócio. a aplicação da boa-fé não pode ir contra os interesses comuns das partes
47. No que se refere à incidência, no caso concreto de eventuais obri- e impor/criar uma obrigação cora do programa contratual.28
gaçõescriadas a partir do princípio da boa-fé objetiva (art. 422 do Código 52. No caso em análise, eventuais obrigações da Consulente criadas pela
Civil), deve-se levar em consideração os especíâcos sfazzdardsde conduta que incidência da boa-fé objetivo na relação não correspondem aospossíveis inte-
envolvem aspartes dessarelação, alguns deles já delineados acima, bem como resses do Sr. L, mas, sim, aos interesses mútuos extraídos do próprio acordo
a prevalência da autonomia privada em sua regulamentação- estabelecidoentre as Partes, bem como dos riscos nele alocados.Ou seja,
48. Além disso, para compreender a incidência da boa-fé no caso em o dever anexo de diligência que deve pautar a gestão do grupo pela Consulente
análise, deve-se ponderar acerca dos efeitos da interpretação conforme a boa- durante o período de eaM-ozztestará exclusivamente relacionado aosinteres-
-fé com relação ao ear?z-ouf,qual seja, a de conformar as condutas das partes e sesque âzeram asPartes celebrar o Contrato da maneira como 6oi celebrado.
adequa-las segundo a intenção mútua consubstanciada na declaração nego- 53. Em operações de M&A, após a transferência das participações e pas-
cial, isto é, as legítimas expectativas dos contratantes. sado o período de transição, modiâcações na gestão das sociedades são espera-
49. Como explicado acima, apesar de aplicável às relaçõesempresariais, das,como se viu adiante. O emprego, pelo novo gestor, do seu próprio método
a boa-fé contratual não deve ser expandida para além de suasreais potencia- de gerir a sociedade que ele adquiriu é algo natural, ou um verdadeiro pres-
lidades, transformando-se em um mecanismo de perigoso assistencialismo suposto da aquisição.
contratual.2s Sendo assim, os deveres anexos de conduta geralmente citados 54. A adoção das práticas empresariais historicamente seguidas pelos
como originados da boa-fé objetiva para complementar o conteúdo contratual antigos proprietários da sociedadevendida pode ser, de fato, uma alterna-
e pautar a conduta das partes(como, por exemplo, os deveres de cooperação, tiva teórica para os adquirentes. Alternativa que, inclusive, as partes podem e
lealdade, diligência e ínformaçãoD,:' encontram espaço de aplicação limitado devem negociar se 6or do interesse delas. No entanto, não é a única alternativa,
no âmbito das relações societárias, em que as partes, após longo processo de muito menos a única que pode influenciar no bom desempenho da sociedade.
negociação, distribuem de forma específica os riscos contratuais. 55. Assim, salvo previsão contratual expressa em contrário, a autonomia
50. A análise pelo intérprete do cumprimento dessesdeveresde conduta privada confere ao adquirente e novo controlador liberdade na escolhada
impostos pelo princípio da boa-fé não pode deixar de considerar a distribui- estratégia económica e comercial que, de acordo com sua visão negocial, seja
ção dessesriscos negociados pelas partes. Isto é, na prática, o intérprete, ao a mais adequada para que a sociedade adquirida se desenvolva e tenha um
analisar o contrato e o seu contexto, deve tutelar as condutas corresponden- bom desempenho.
tes aos riscos que as partes distribuíram para atingir o Cara-ozif. 56. E, no caso vertente, é preciso destacar ainda mais os aspectos concretos
da situação: a empresa adquirida guarda similaridade, maior ou menor, com
362 363
FUSÕES E AQuiSiÇÕES
] .i
13. OBRIGAÇÕES VINCULADAS À CLÁUSULA DE EAKN-Our PREVISTANO CONTRATO
aempresaadquirente, sendototalmente contraintutivo supor que o compra- alterações na gestão da sociedade adquirida.3: No entanto, tal manutenção,
dor de um negócio ao qual está afeito não o vá conduzir da forma pela qual, no caso concreto, não 6oi prevista, mas, sim, claramente afastada.
com sucesso,o tem feito historicamente em diversos mercados. Para tanto, 59. Isso âca ainda mais evidente ao se levar em consideração que não há
obrigações negativas bastante detalhadas(e diâcilmente justiâcáveis) teriam qualquer previsão contratual acerca de como a gestão deveria ser desenvol-
que existir. Não é o caso. vida pela Consulente ao longo do período do ear?z-ouf,nem de eventual inter-
57.Nessalinha, mesmo que deveresanexosnão previstos contratualmente ferência do Sr. L nessa administração.
possam incidir na relação estabelecida entre comprador e vendedor por corça 60. Toda essaconjuntura, ao contrário de impor um dever de a Consulente
da boa-fé objetiva, eles não teriam como imputar à Consulente a obrigação de, gerir as sociedadesadquiridas de acordo com o curso normal dos negócios,
após o fechamento da operação, adotar gestão que observasse necessariamente demonstra que tanto as intenções, quanto os interesses das Partes quando
o curso normal dos negócios para, com isso, satisfazer os interesses pessoais da realização do negócio e a vontade declarada no Contrato sempre foram
do Sr. L de receber o valor referente ao ear?z-ouf.Como a doutrina bem aponta:
}
Rio de Janeiro, v. 14., jan./jun. 2014. p. 143-190. accfdíf".MARTINS-COSTA Judith. Os contratos de /easíngfinanceiro, a qualificação jurídica da par-
ao Fomos informados de que, em um período inicial, imediatamente após o fechamento, algumas cela denominada valor residual garantido - VRG - e a sua dupla função: complementação de preço
pessoasvinculadas à administração antiga permaneceram na gestão das Sociedades adquiridas e garantia. Revista deDíreffo Baizcárío edo i14ercadode Capílaís, v. 49, p. 109-148, jul. 2010. p. 145-146.
IS BUSCHSNELLI, Gabriel S. K. Compra e vezzdadfparf cPafõessacíefár asde colzfro/e.São Paulo:
para auxiliar na transição necessária. Esse fato, no entanto, não altera o cenário de a administração
das Sociedades para o futuro ter sido confiada a pessoasnomeadas pelas Compradoras.
QuartierLatia,2018.
p. 231.
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,j
[
FUSÕES E AQUISIÇÕES
''1 13. OBRIGAÇÕES VINCULADAS À CLÁUSULA DE EARN-OUT PREVISTA NO CONTRATO
62. A boa-fé objetiva, portanto, não tem como incidir aqui para criar dever 66. Assim, o mero fato de, no caso,a Consulente ter seguido linha diversa
extremamente específico, que, no âmbito de uma negociação, naturalmente da gestão antiga não é suficiente, a meu ver, para caracterizar uma adminis-
geraria diversas discussões e ponderações, inclusive para fins de alocução de tração não diligente e contrária à boa-6é. Ainda mais se levarmos em conside-
riscos. Os deveres anexos decorrentes da boa-fé objetiva não têm o condão ração que não há qualquer motivo obscuro por trás da atuação da Consulente
de substituir a letra do contrato, tampouco de criar deveresque poderiam ser na gestão adotada que possacomprometer suasescolhas. Pelo contrário,
antecipados e discutidos pelas partes na fase de negociações ao determina- a Consulente tinha tanto interesse quanto o Sr.L em que as sociedadesadqui-
rem o método de administração que seria empregado na sociedade adquirida. ridas apresentassem uma boa performance e atingissem asmetas estipuladas.
63. Na Reconvenção apresentada, apesar de todo o esforço efetuado para E isso nos parece claro se observarmos que o valor âxo pago no fechamento
defender a tese de que a Consulente descumpriu o Contrato aonão ser supos- 6oi substancial em comparação ao valor adicional previsto a título de ear7z-ouf.
tamente diligente na observância das práticas de gestão anteriores, o Sr. L A tese defendida pelo Sr. L, portanto, sequer parece fazer sentido do ponto
reconhece que o dever do comprador de agir de forma diligente "não quer de vista económico.
dizer que em um contrato de M&A em que há previsão de ear?z-oaf o compra- 67. Do ponto de vista jurídico, chega-se a mesma conclusão. Considerando
dor não pode realizar alterações na gestão da sociedade adquirida". E esseé, todos os princípios aplicáveis às operações de M&A e a forma como a boa-íé
de fato, um fator importante a ser levado em consideração na análise da inci- objetiva incide nas relações empresariais, sem que haja no contrato qualquer
dência dos deveres anexos. previsão acerca de como essagestão deve-se dar, são totalmente teóricas as
64. Eventuais deveres anexos relacionados à diligência que se espera de um hipóteses em que o descumprimento de obrigações vinculadas ao ezzrzz-ozzf
comprador vinculado a uma cláusula de ear?z-ozzf
correspondem, no máximo, poderia estar ligado ao modo de gestão empregado pelo comprador na socie-
a obrigações de empregar melhores esforços dentro de sua estratégia empre- dadeadquirida.
sarial para que a sociedade obtenha um bom desempenho. Até porque, além 68. E sempre considerando a vida dos negócios,é evidente que, ao aceitar
de, como acima visto, o bom desempenho e Qatingimento das metas não con- a pactuação de um ear?z-ozzt.
o comprador está partilhando com o vendedor o
figurarem uma obrigação de resultado, mas, sim, de meio, também é do inte- resultado potencial da realização dessa expectativa, mas para si reservando
ressedo próprio comprador que a sociedade adquirida tenha bons resultados. uma parte do mesmo,sendodifícil de conceber que todoo resultado decor-
65. No entanto, tais esforçosnão dependem exclusivamente de se seguir rente da melhora da gestão do comprador que permita a realização da expec-
aspráticas habitualmente adotadaspela pretérita gestão.Uma administra- tativa futura de ganhos seja entregue pelo vendedor ao comprador. Em sendo
ção boa e diligente consiste naquela que atumpara a consecução do interesse assim, ao admitir-se, em tese, que o comprador tenha interesse em frustrar
social da sociedade,não havendo o dever de adotar práticas específicas,inclu- a realização do cariz-ozif.admite-se também a premissa ilógica de que o com-
sive no que diz respeito ao atingimento das metas para eeetivaçãoda condi- prador tem interesse em frustrar o próprio ganho, o que impõe um ânus pro-
ção do pagamento do earzz-oul,ainda mais quando não há qualquer previsão batório absolutamente particular.ss
a respeito. A doutrina, inclusive, ressaltao seguinte: 69. No caso em análise, no entanto, a opção da Consulente de não manter
após o fechamento da operação as práticas empresariais empreendidas pelo
1...1na cláusula de ear?z-ozit,
não há obrigação de a sociedade obter
algum resultado, menos ainda obrigação de o comprador ou de o vende-
as Como a doutrina explica: "Para diminuir a incerteza e os riscos da negociação,criou-se
dor adorar algum comportamento.3' o conceito de earlzozzf
(preço contingente), pelo qual, contratualmente, as partes estabelecem
percentuais sobre ganhos futuros e fixam metasque, casoatingidas, disparam o gatilho da con-
traprestação monetária adicional. 1-.1Essasolução contratual aparenta ser uma boa saída para
se aproximar de um preço justo pela venda da empresa, uma vez que, em alguns casos,o valor
do earnoufnão é fixo, mas sim um percentual de determinada expressãode riqueza". ZILVETI,
s4 BUSCHSNELL], Gabrie] Saad Kik. Compra e venda de participações societárias de controle, Fernanda A.; NOCETTI, Daniel A. Earfzozif' aproximação interdisciplinar e a IN ng 1.700/2017,
cÍf.,P.227-228. cÍf.,P.130
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FusõES E AQuisiÇÕES
'1 b
13. OBRIGAÇÕESVINCULADAS À CLÁUSULA DE EARN-OUT PREVISTA NO CONTRATO
Sr. L e a forma como conduzia o seu negócio não configura atuação abusiva target in the ordinary course ofbusiness consistent with post practice,
ou oportunista. Além de os interesses económicos entre as Partes estarem and will attempt to reserve, through contractual covenants, some autho-
alinhados com a cláusula de ear?z-ouf,não havia qualquer previsão contratual rity regarding major decisions madeduring the earnout period.
de como a gestão deveria ser conduzida no período dos earzz-ozzts.
70. E, destaque-se,a própria previsão de que a administração da empresa 74. O conceito é o mesmo: é possível negociar restrições para a atuação do
adquirida deveria ser substituída choca-sede frente com a premissa susten- comprador. Ausente essanegociação e ausentes quaisquer restrições, não é
tada pelo vendedor de que, malgrado esseEito, a empresadeveria ser condu- possível substitui-las por conceitos abstratos, de sorte a concluir que o negó-
zida de acordo com os padrões da administração substituída. cio adquirido deveser conduzido de tal ou qual forma.
71. A este respeito, convém lembrar uma obra clássica sobre o tema de 75. Tudo parece se impor neste caso, que não deveria ser resolvido com
M&A, talvez a mais importante delas, escrita por um sócio do Skadden,Arps, base na cláusula geral de boa-fé objetiva. Na ausência de qualquer obriga-
JamesFreund, e que dedica um longo capítulo ao tema do preço contingente, ção expressade como a gestão deveria ser conduzida durante o período
ou seja,dos earzz-oufs,
em uma perspectiva essencialmente prática. Nessatoada, do earn-ouf,o que de fato importa na gestão é se a Consulente preservou o
recomenda ao advogado do vendedor o seguinte: interesse social das sociedades adquiridas, tema que toca na função social da
empresae no dever de diligência dos administradores.
[-.] you ought to make fure your cliente recognízes that basic face of
corporate lide - namely, the purchaser's ultimate control over all the parts
ofhis business empire, including the seller's own domain. IV. Função social da empresa e dever de diligência dos adminis
l think the key to solvethis problemís to abandonthe high concep- tradores
tual plane and try to get the seller 6ocusíng on the particular matters that
really concernhim, with aview to workíng our reasonableassurancesand 76. Embora o dever de boa-fé possa limitar a atuação maliciosa do novo con-
limited guarantees regarding those items.3' trolador em certos casos,a regra é de que o controlador deveconduzir a
sociedade de forma a cumprir o seu objeto social e atender a sua função
72. A citação cai como uma luva: ou o contrato seguiu o caminho sugerido, cia
social
e focou especiâcamente as restrições à condução do negócio de parte do com- 77. Por função social não se deve entender que o interesse de terceiros deve
prador, ou não dá para substituir as omissõesdo contrato, exposflacfo,pelo ser colocado acima dos da sociedade ou dos acionistas, mas que, o controlador
plano elevado de Bs teóricas, que outra coisa não seria, no caso concreto, do tem um deverinstitucional de "usar o poder jde controlei com o õm de fazer
que a invocação descabida do onipresente princípio da boa-fé objetiva, subs- a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres
tituída - como já se disse, por uma visão totalmente suó/ef/pa e interessada de e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela
como o negócio deve ser conduzido. trabalham e para com a comunidade em que atum,cujos direitos e interesses
73. E JamesFreund não estásozinho. Em um interessante trabalho, Maryann deve lealmente respeitar e atender".s8
A. Waryjas, uma sócia de Katten Munchin Zavis Rosenman,s' também adverte: 78. Tal dever decorre do reconhecimento, expressamenteafirmado
pelos autores do anteprojeto da Lei das Sociedades por Ações ("LSA"), de
In situations in which the target's management team will not be retai- que a empresamoderna é um meio que permite (i) a produção e circula-
ned post-closing, the sellers will likely require that the buyer operate the ção de bens e serviços; (ii) a repartição da renda da atividade económica;
368 369
}
13. OBRIGAÇÕESVINCULADAS À CLÁUSULA DE EARN-OUT PREVISTA NO CONTRATO
FUSÕES E AQUISIÇÕES
e(iii) a indução de poupança e investimento.s9Disso também decorre a impo- de forma informada, refletida e desinteressada, conforme impõe o óusí zess
sição, seja para o controlador, seja para os administradores," de sempre bus- judgement Tule.
car gerir a empresa de modo a permitir o seu desenvolvimento, i.e., gerando 84. A ózzsf?zessyuí@eme?zf
rzz/eé um standardde revisão judicial que visa deter-
lucro e renda, na forma de salários, dividendos ou preço pelos produtos, insu- minar se o dever de cuidado (#zzl7(!fcareDdos administradores(e, por extensão,
mos e serviços adquiridos. do controlador) foi violado no processo de tomada de uma decisão negocial.
Nesse sentido:
79. Tendo isso em vista, a pergunta da qual não se pode fugir nesse caso
é a seguinte: caso a Consulente ou os administradores por ela apontados
entendessemque o curso original dos negócios era prejudicial e insustentá- A regra tem como objetivo ainda evitar que os tribunais e os próprios
vel - como alegado pela Consulente -, ainda assim seriam obrigados a manter sóciossubstituam os administradores em seu mister. Com efeito, os admi-
as mesmas práticas que, supostamente, seriam a base do sucessodo vende- nistradores possuem poderes de gestão explícitos e implícitos. Os explí-
dor na condução das Sociedades adquiridas? A reposta, por óbvio, é negativa. citos são os necessários à efetiva condução dos negócios da companhia,
80. Ainda que, por argumento, se aceitassea ideia de que o dever geral visando à condução do objeto e dos âns sociais, tendo em vista o interesse
de boa-B criaria paraasCompradorasuma obrigaçãode observaraforma de da sociedade. Os implícitos envolvem a discricionariedade do administra-
condução histórica dos negócios das Sociedades adquiridas, tal dever esta- dor, que escolhe os meios adequados para tanto. Ou seja,o administrador,
ria restrito, por expressa disposição legal, à preservação do interesse social dentro dos limites da lei e do estatuto social, tem a liberdade para decidir
dasSociedades. sobre a oportunidade e a conveniência de seus aros.
81. Dessa forma, a questão não é se o curso de ação "x" ou "y" deveria ser O juízo de oportunidade e conveniência (discricionariedadeD de uma
tomado, mas se as açõeseeetivamentetomadas pela Consulente e, por exten- decisãoempresarial não pode ser exercido por juízes ou por quaisquer
são, pelos administradores por elas nomeados, visavam ao interesse social. outras pessoas.Trata-se de prerrogativas exclusiva dos administradores,
Tanto assim, que o art. 159,$ 6', da LSA, expressamente ressalvaa possibili- que, em razão de sua experiência e do acessoa informações, estão mais
dade de exclusãoda responsabilidadedo administrador quando o julgador habilitados do que os juízes e os próprios acionistas a tomarem quaisquer
houver se convencido de que "este agiu de boa-fé e visando o interesse da decisões referentes aos negócios da companhia. ':
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l
1'
fique caracterizado que as decisões tomadas pela Consulente e por seus admi- V. Resposta sintética aos quesitos
nistradores satisfazem os critérios para aplicação da óusness./aí<gemezzf
ru/e,
não será possível imputar a essesuma atuação temerária, como pretendido 89. Diante do cenário que nos Éoiapresentado, nossasconclusõespodem ser
pelovendedor. assim resumidas:
86. O teste da ózzsÍ?zessyzz(geme?zf
rzz/eé aceito amplamente no Brasil e consa-
grado pela Comissão de Valores Mobiliários - CVM -, cujas decisões servem de
referencial para o mercado e também para o próprio Judiciário. Nessesentido, A. Primeiro quesito
no âmbito do ProcessoAdministrativo SancionadorCVM n. RJ2005/1443,
o Colegiado da CVM estabeleceu que uma decisão estásujeita à proteção da Qual é a natutezajurÍdica de ama cláusula de Cara- out?
óz/sízzessluí<geme?zf
ru/e caso atenda aos seguintes critérios:
O ear?z-oaf representa a parcela variável do preço, um acréscimo ao valor
(i) Decisão informada: A decisão informada é aquela na qual os admi- fixo, que apenas será devido, se - e somente se - certas metas financeiras
nistradores basearam-senas informações razoavelmente necessáriaspara forem atingidas em determinado período de tempo apóso fechamento da
toma-la. [-.]; (ii) Decisão refletida: A decisão reíletida é aquela tomada operação. Quando o suporte fático de incidência da cláusula é preenchido,
depois da análise das diferentes alternativas ou possíveis consequências o ear?z-oufassume a natureza jurídica de preço, surgindo para o compra-
ou, ainda, em cotejo com a documentação que fundamenta o negócio. ]-.]; dor a obrigação de pagar esseacréscimo ao preço, conforme determina
e(iii) Decisão desinteressada: A decisãodesinteressadaé aquela que não o contrato.
resulta em benefício pecuniário ao administrador ]«.].'2
': CVM, ProcessoAdministrativo Sancionadorn. RJ2005/1443, dir. rel. Pedra Oliva Marcilio de
Sousa,j.l0/05/2006.
372 373
1.
FUSÕES E AQUISIÇÕES
A cláusula de Cara-out impõe algema obrigação ao comprador pata Esses"deveres instrumentais" impõem, desato, uma obrigação ao
agir em di:lesa aos interessesdo vendedor ou pata "cuidar do interesse comprador (nestecaso, a Consuletite) deparar os valores sob a rubrica
ãa vendedor"? deearn-out?
.'l cláznu/a de earn-out cria a/gtima oórilgução ao comprador de Á e ístênciadealmaclázn Zadeearn-out ílnpõeazia/queroórilga-
pagar os valores de Cara-out ainda que as cottdiçõespt'evistas no con- ção ao comprador de conduzir o negócio adquirido dealguma maneira
trato para pagamento não tenham sido implementadas? específica?
Não. A cláusula de eízrzz-oufsó cria essaobrigação para o comprador se ascon- É evidente que não. Paraimpor ao comprador o dever de conduzir o negócio
dições previstas no contrato tiverem sido implementadas, isto é, se as metas adquirido de alguma maneira especíâca, o contrato precisaria ter uma cláu-
ânanceiras que limitam a aplicação da cláusula tiverem sido atingidas. sula expressanessesentido, o que não é incomum. No entanto, no casocon-
creto, ao invés disso, o Contrato conferiu ao comprador o poder de nomear
a nova administração, deixando claro para o vendedor que o comprador não
E. (2uintoquesito tinha nenhum compromisso de seguir a mesmalinha de administração e con-
dução dos negócios. Parece-me, em razão disso, que não há de se falar aqui
As obrigaçõesotiuttdas da cláusula de earn-out podem ser em quebra de /egüímasexpectativas.Seo vendedorverdadeiramente tinha
cai"acterÍzadascomo"deve?esinstrumentais" ? alguma expectativa de que o comprador manteria a mesma forma de gestão,
essaexpectativa não era, em uma palavra,/egítíma.
Não. As obrigações oriundas da cláusula de ear?z-ouf,notadamente a de pagar
o preço adicional, são deveres prestacionaís que decorrem do próprio pro-
grama contratual. Há deveresinstrumentais que decorrem da boa-fé objetivo, H. Oitavo quesito
como, por exemplo, o dever de lealdade, mas a boa-íé não impõe ao compra-
dor a manutenção da mesmaforma de gestãoempregada pelo vendedor, mas Exmac]á szl]a de earn-outpade finpor ao co]npradar zzmaoõrf-
apenas que ele aja com um comportamento probo, ético e leal. Mudar a forma gaçãodeconduziro negóciodealgumajomla especÍ©ca
paragarantir
de gestão da sociedade adquirida não representa uma conduta desleal, tanto as condições/limites estabelecidosna própria cláusula? Por exemplo,
mais quando o contrato expressamente confere ao comprador o direito de estabelecer ama obrigação que demande que o comprador contrate cer-
nomear novos administradores. tas pessoas,oa venda determinados produtos, oti ser proibido a mudar
il
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FUSÕESE AQuiSiÇÕES 13. OBRIGAÇÕESVINCULADAS À CLÁUSULA DE EARN-OUT PREVISTANO CONTRATO
especíâca ou não poderia adotar certa prática de gestão. Isso não só é possí- algum parâmetro legalcomum que se aplique ao cumprimento de cláu-
vel, como também não é incomum na prática, masnão foi o que aconteceu sula de cara-oui em um contrato de compra e venda de um negócio(para
no casoconcreto. Se o Contrato tivesseuma previsão nessesentido, a obri- além da boaJZ estabelecida no art. 422 do Código Civil)?
gaçãodecorreria da autonomia privada, masnão do art. 422 do Código Civil.
O comprador deve conduzir o negócio observando os interesses sociais,
a função social da empresae conforme a óusí?zess./u(geme zt ru/e,que é um
1. Nono quesito sfa zdardde revisão judicial que visa determinar se o dever de cuidado (dut?
afcareDdos administradores (e, por extensão, do controlador) foi violado no
(i) Pode oa deveo vendedor opinar ativütnente sobre ajorma como processode tomada de uma decisão negocial. No silêncio do contrato, são
o comprador condiz o negócio,para além de qualquer termo previsto essestrês parâmetros que deverão orientar a conduta do comprador e dos
tto contrato? (ii) Caso a$rmativo, como essasobrigações são normal- administradores por ele indicados. O princípio da boa-íé objetivo também
mente previstas e onde geralmente estão dispostas? (iii) Seo vendedor impõe ao comprador - aliás, a ambas aspartes contratantes -, a adoçãode
puder opinar at valente e essas especiFcações e parâmetros são, pot um comportamento ético, probo, leal, colaborativo, etc. No entanto, como
exemplo, estabelecidasno contrato, essesparâmetros impõem alguma expliquei ao longo deste Parecer,isso está longe de obrigar o comprador a
obrigação ao comprador de agir em cot#brmidade com essasespeci$- manter as mesmas práticas de gestão empregadas pelo vendedor, quando
caçõeseparâmetros estabelecidospelo vendedor? estavaà frente da administração. Isso dependeria de previsão contratual
expressa.
(í) Poder opinar, a rigor, o vendedor até poderia, mas o comprador não esta-
ria obrigado a seguir a sua orientação, o que equivale a uma resposta nega-
tiva. Paraalém dos termos previstos no contrato, o vendedor não deve opinar, K. Décimo primeiro quesito
nem o comprador está obrigado a seguir ou a concordar com a sua opinião.
(ii) Para que o comprador seja obrigado a seguir as "opiniões" do vendedor, O earn-out Á ízo Colzfrafo de Compra e Renda oõrlga a Colzs#/ente
uma tal obrigação teria de estar expressamente prevista no próprio contrato a conduzir o negócio do Grupo Z de algamajorma particular depois da
de compra e venda. Do contrário, o comprador tem ampla liberdade para aquisição?Espec$cameTtte, a cláusula obriga a Consulente a cotititlaar
empregar o seu próprio método de gestão, contento que observe os interesses a conduzir o negócio como estava sendo antes da a qatsição?
sociais, a função social da empresae adote um comportamento leal e probo.
(iíi) A resposta depende muito da forma como a cláusula estiver redigida. Para ambas as perguntas, a nossa resposta é não. Pelo contrário, o Contrato
C)contrato poderia, por exemplo, expressamenteprever que, no período de indica expressamente que a Consulente poderia nomear a nova administra-
earzz-ozzf,
a sociedade permanecerá sendo administrada pelo próprio vende- ção.Daí já se infere que a forma de conduçãodo negócio diâcilmente seria
a mesma.
dor, mas não foi isso que aconteceu no caso concreto. Ao contrário, o Con-
trato estabeleceuque o comprador poderia nomear uma nova administração.
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L
FUSÕESE AQuiSiÇÕES
(i) É evidente que sim.(ii) Não equilibra. Ainda que o Contrato tivesse uma
previsão que obrigasseo comprador a adotar uma determinada prática de
gestão, esta disposição não seria válida se não atendesse ao interesse social e
à função social da empresa. O controlador tem o dever institucional de "usar
o poder jde controlei com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto
e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os
demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comuni-
dade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e aten-
der", tal como impõe o art. 116da LSA.
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