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Introdução ao mundo da comunicação gestual

Marcos Antônio de Sousa Júnior(*)

É possível observar, seja na rua de uma cidade, num restaurante, numa peça de teatro, num
shopping, num programa de TV, numa propaganda, pessoas utilizando sinais ou gestos corporais
para se expressar. O mesmo pode ser constatado ao observar pessoas cegas tateando ranhuras ou
pontos em uma folha de papel ao ler um texto em Braille, utilizado por esta categoria para ter
acesso a recursos escritos. De fato, a comunicação humana é bastante abrangente e envolve um
sem número de simbologias em canais como o oral-auditivo, o visual-gestual, o tátil-motor. A
virtude de ser humano é possuir um variado leque de possibilidades comunicativas que viabilizam
ao indivíduo uma relação contínua com o mundo que o cerca, ainda que não disponha do sentido
da visão ou audição para perceber certos tipos de estímulos do mundo externo. Porém, como
qualquer processo de aprendizagem, há o fator tempo e a habilidade de adaptação, que varia para
cada indivíduo. Assim, quem se habitua a um destes canais de comunicação, mudar para outro
requer certo esforço num certo intervalo de tempo.

As línguas de sinais utilizam gestos manuais, expressões corporais e faciais para formar a
simbologia característica desta modalidade. Estes gestos são frequentemente articulados
rapidamente, o que muitas vezes para um observador externo, dá a impressão de simplicidade.
Outras vezes é possível ver surdos sinalizando e oralizando simultaneamente, o que pode dar a
entender que cada gesto representa uma palavra falada em uma língua oral. E também há certos
gestos que, quando são identificados por um observador externo, muitas vezes dão a impressão
que se tratam de gestos utilizados cotidianamente por pessoas que ouvem, como por exemplo, o
gesto de “jóia”; o gesto de simular anotar algo na mão que normalmente se usa no contexto de
um restaurante significando “pedir a conta”; gestos obscenos; gesto de negação; gesto de
despedida, dar um tchau; gesto com o dedo indicador girando na têmpora indicando que a pessoa
é “doida”, entre muitos outros. Porém desde que se iniciaram pesquisas acerca da estrutura e
funcionamento das línguas de sinais na década de 1960¹, por todas partes do mundo os linguistas
foram constatando que estas formas de comunicação não se assemelhavam à gesticulação
espontânea que pessoas ouvintes utilizam no dia a dia e acompanham suas falas orais. O que estes
linguistas descobriram foi que havia uma estrutura subjacente à sinalização de pessoas surdas
usuárias de línguas de sinais. No decorrer das investigações, os pesquisadores se surpreenderam

(*) Professor da PUC Minas Virtual, formado em psicologia pela PUC Minas, especialista em linguística pelo PREPES/PUC Minas, pós-graduando em docência
da LIBRAS pela Uníntese e mestrando em linguística do programa de pós graduação stricto sensu em Letras da PUC Minas.
com o nível de complexidade que poderia ser alcançado por esta modalidade de linguagem, até
que finalmente pesquisas em neurociências constataram que o cérebro humano despreza o canal
ou o meio físico/material em que a comunicação se realiza, ou seja, independente da informação
simbólica ser constituída de gestos ou palavras, se possui estrutura e características equivalentes a
uma língua, o cérebro interpreta como informação linguística. Assim, a gesticulação convencional
utilizada pelas pessoas no dia a dia não é reconhecida pelo cérebro como tendo uma estrutura
linguística coerente e é processada no hemisfério direito. A língua de sinais utilizada pelos surdos,
por ser de natureza gestual e utilizar o espaço, é percebida pelo hemisfério direito, porém
processada no hemisfério esquerdo da mesma maneira que as línguas orais. Assim, a mais
importante diferença entre a língua de sinais e a língua oral é o fato que utilizam canais de
comunicação diferentes, ou seja, a língua de sinais utiliza o canal visual-gestual e a língua oral
utiliza o canal oral-auditivo.

Entre 1982 até o fim da década de 1990, os pesquisadores norte-americanos Klima, Bellugi,
Petito, Lillo-Martin, Van Hoek e O´Grady² desvendaram o processo no qual o cérebro humano trata
a informação como linguística se ela tiver esta estrutura, independente se ela vier de um sistema
de gestos corporais, ruídos sonoros, imagens visuais, relevo num papel ou qualquer outro meio.
Assim, as línguas de sinais passaram a ser consideradas línguas genuínas, idiomas falados por
gestos, e até os dias atuais têm sido descobertos numerosos processos linguísticos que vão pouco
a pouco consolidando a equivalência entre as línguas orais e de sinais.
Mesmo assim, atualmente ainda há resistência por parte de pesquisadores, linguistas,
profissionais de saúde, educadores, acerca do real status das línguas de sinais. Apesar de toda
pesquisa desenvolvida em centenas de países do mundo, ainda existem focos de resistência ao
reconhecimento das línguas de sinais. E isto, acreditam alguns pesquisadores, se deve aos mitos e
preconceitos que permeiam o imaginário social acerca do que realmente representam as pessoas
surdas, bem como as consequências da surdez enquanto vetores de uma deficiência da
comunicação e da linguagem. Porém não faltam evidências científicas que atestem a autenticidade
das línguas de sinais enquanto sistemas linguísticos equivalentes às línguas orais. Isto quer dizer
que, se existem variações regionais em línguas orais como o português, como por exemplo:
mandioca, macaxeira, aipim, o mesmo será encontrado nas línguas de sinais. Se existem hoje cerca
de 6 mil línguas no mundo, são conhecidas 136 línguas de sinais entre elas, e são tantos os dialetos
em língua de sinais como o são em línguas orais, respeitando a proporção entre grupos de surdos
e de pessoas não surdas. Os fonemas – ou tradicionalmente sons com a propriedade de avaliar
traços distintivos entre significados – que são encontrados nas línguas orais também existem nas
línguas de sinais, mesmo que não sejam sons e de fato já foram chamados de quiremas, derivados
da palavra grega Khiros(χέρι)³, que significa mão, porém o termo foi abandonado devido a
pesquisas posteriores que o consideraram muito limitado diante da complexidade das línguas de
sinais e o fato que não somente as mãos são utilizadas na articulação dos sinais, mas todo corpo.
Na LIBRAS, os fonemas são conhecidos também pelo nome de parâmetros fonológicos. Eles se
definem pela seguinte descrição:

1. Configuração de mãos – é a forma da mão, em um sinal podem haver uma ou duas


configurações de mãos, e no caso de duas configurações, as mesmas podem ser
iguais para as duas mãos(sinais simétricos) ou diferentes(sinais assimétricos).
Atualmente a LIBRAS utiliza um repertório de aproximadamente 73 configurações
de mãos;
2. Ponto de articulação – é o local no corpo – por exemplo na testa, atrás da cabeça,
sob o queixo – ou fora do corpo – por exemplo, em frente ao peito, na altura dos
olhos – é onde se posiciona determinada configuração de mão;
3. Movimento – são os movimentos dos braços, mãos e dedos. Os movimentos dos
braços e pulsos são chamados movimentos externos e os movimentos dos dedos
são chamados movimentos internos;
4. Orientação ou direção – é a orientação da palma da mão associada ou não a uma
direção em que esta mão vai enquanto se movimenta sob uma configuração de
mão e transitando ou não em determinado ponto de articulação;
5. Expressões não-manuais – São as expressões do corpo e da face que acompanham
obrigatoriamente – quando ocorrem – toda gesticulação manual.

A combinação destes parâmetros vai gerar o que se conhece tradicionalmente entre os


surdos usuários da LIBRAS como “Sinal”, equivale ao que nas línguas orais é chamado de “palavra”.
Assim, ao “sinalizar”, dois surdos estão, na verdade, fazendo exatamente o mesmo que pessoas que
ouvem fazem ao “falar”. A combinação destes sinais/palavras numa frase, da mesma forma que nas
línguas orais não ocorre de qualquer maneira – como não saímos por aí dizendo algo esquisito
como: “foi maria por de com joão temos” – mas seguindo uma lógica de coerência na organização
das expressões, gerando um contexto e respeitando regras muito semelhantes de combinação
sintática. Além disto, o repertório lexical ou o conjunto de expressões, o vocabulário da língua de
sinais nem sempre guarda semelhança com o conjunto lexical das línguas orais. Isto quer dizer
que, embora seja possível perguntar algo como “qual seu nome?” em língua de sinais, não
necessariamente isto ocorrerá usando as exatas mesmas expressões para formar esta frase com
este mesmo sentido. Um exemplo célebre que é possível utilizar para comparação se dá na língua
inglesa é ao perguntar a idade de alguém, o que tradicionalmente poderia ser feito usando a
expressão “How old are you?”, porém ao traduzir esta mesma expressão termo a termo, chega-se
ao resultado “como velho é você?”, expressão que no português não evocará o mesmo significado.
E se for tentado o inverso, também não formará uma expressão coerente: “How many years do you
have” não gerará a resposta equivalente para idade junto a um cidadão norte-americano,
australiano ou inglês. Por mais estranhas que sejam para o usuário de certa língua, estas
combinações de palavras estrangeiras se organizam desta forma devido às peculiaridades de cada
grupo em definir o que é significativo e relevante na estruturação social de sua comunicação. E os
surdos, como qualquer grupo humano, ao se unir em grupos que usam a língua de sinais, passam
por este mesmo processo. A LIBRAS não é uma língua de surdos, mas um idioma humano
concebido pela generosa adaptabilidade do cérebro em construir um sistema linguístico sob
circunstâncias alternativas àquelas que nossa sociedade atual definiu como o “padrão” de
comunicação, a expressão oral-auditiva e suas muitas variedades de línguas orais.
Uma outra questão é que, considerando a abrangente expressividade facial e corporal das
línguas de sinais, estas expressões não se prestam apenas e somente a demonstrar emoções e
sentimentos. É importante compreender o conceito de entonação ou prosódia. Nas línguas orais,
durante a emissão acústica, ocorre a modulação das propriedades fonético-articulatórias dos sons,
manipulados com variados propósitos como por exemplo: formar uma pergunta; dar uma ordem;
destacar ou enfatizar uma pronúncia; fazer um pedido ou suplicar; demonstrar uma proximidade
afetiva; aproximar pessoas; acalmar um interlocutor, etc. Estas modulações nos sons são possíveis
devido aos articuladores fonéticos da fala oral como a língua, os pulmões e os lábios. Modificando
a relação da saída de ar, a pressão do ar, o movimento das cordas vocais e a forma como o ar
atravessa a cavidade fonoarticulatória, modificam-se os sons produzidos. Refletindo como estas
relações se produzirão nas línguas de sinais que não possuem sons, mas utilizam muito mais
articuladores que as línguas orais, pois o corpo inteiro possui muitas partes móveis – os nós dos
dedos, os músculos faciais, olhos, língua, os pulsos, cotovelos, braços, pernas, o dorso, os pulmões,
pescoço – é possível depreender a razão dos surdos utilizarem tantas expressões faciais e
corporais, não necessariamente para exprimir emoções. A razão é que todo corpo é um articulador
fonológico da entonação em língua de sinais. Não é necessário sentir triste para fazer o sinal de
“triste”, mas é preciso que seja feita a expressão facial correspondente do sinal.
Uma questão significativa é apontada por Leite(2008), no que se refere às visões que os
alunos ouvintes trazem para o curso de Libras, determinados mitos, preconceitos e estereótipos
sobre as Línguas de Sinais parecem ser quase universais. Dificilmente um aluno ingressaria num
curso de línguas como o Francês, Alemão ou Inglês trazendo a expectativa que essa língua envolva
algum tipo de representação do Português, que se configure como uma forma simplificada de
língua ou ainda com a convicção que alcançará a proficiência em um breve período de curso.
Por essa razão entende-se que no ensino de Línguas de Sinais como segunda língua, aulas
sobre LIBRAS, sua história, seus mecanismos de funcionamento, e não somente aulas em que se
ensinam exclusivamente vocabulários eventualmente soltos, tornam-se cruciais para que os alunos
reflitam sobre ideias equivocadas e possam dimensionar adequadamente suas dificuldades e
expectativas no processo de aprendizagem.

¹ STOKOE, W.C.. Sign Language structure: an outline of the visual communication system of the
American Deaf, Silver Spring,Maryland: Linstok Press 1960.
² BISHOP, D. e MOGFORD, K. Desenvolvimento da linguagem em circunstâncias excepcionais. Rio
de Janeiro:Revinter, 2002.
³ <http://www.ipv.pt/millenium/esf9_luis.htm>, acesso em 17/11/2011 16:42h

LEITE, Tarcísio de Arantes e McCleary, Leland. Estudo em diário: fatores complicadores e


facilitadores no processo de aprendizagem da língua de sinais brasileira por um adulto ouvinte. in:
QUADROS, Ronice Muller e STUMPF, Mariane Rossi. Estudos Surdos IV. Petrópolis: Editora Arara
Azul, 2008.

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