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Teoria da agência: ausência do espírito de dono

Grande parte das empresas está preocupada em ter bons


princípios, boas práticas. Elas têm determinado atitudes éticas em todos os
níveis, não esperando comportamento diferente da diretoria e dos
colaboradores. Nessa perspectiva, as empresas resolvem implementar um
programa de compliance e passam a vê-lo como o verdadeiro e, muitas vezes,
o único solucionador de todos os problemas. A área de compliance é
considerada como sendo a área que tem a função de educar tudo e todos
fazendo com que atuem com ética; sejam íntegros; deixem de corromper e ser
corrompidos, mesmo para os que não tenham caráter, formação e disposição
para tal.
Não adianta, entretanto, treinamentos para os colaboradores e criação de
códigos de ética e de conduta, se as práticas dos acionistas, do conselho de
administração e dos diretores, ou seja, das pessoas responsáveis por dar o tom,
por dirigir as empresas para que atinjam seus objetivos, não condizem com
aquilo que esteja sendo implementado.
Não é possível esperar comportamentos éticos de todos dentro da
estrutura organizacional, se os responsáveis pela gestão não dão o bom
exemplo; o Norte a ser seguido. Nesse caso, a liderança se dará pelo exemplo.
São os donos, os gestores, quem dirige a empresa aquelas pessoas que
deverão, com a prática, demonstrar, claramente, quais são as atitudes e o
comportamento esperados dentro daquela organização.
Do contrário, ficamos com a mesma sensação de uma pessoa que está
cavalgando e, depois de um certo tempo, percebe que o animal está sedento. A
pessoa, então, leva o cavalo até a beira do rio e o aproxima da água para que
ele possa matar a sua sede. Entretanto, o animal simplesmente empaca; não
quer dar nem mais um passo; não quer beber aquela água, ainda que saiba dos
benefícios do ato. É igualmente semelhante ao empurrarmos um automóvel com
problemas mecânicos em uma subida íngreme. Por mais que nos esforcemos,
não haverá força suficiente para fazê-lo chegar ao destino.
Nos dois casos, não podemos fazer muita coisa: nem salvar o animal, nem
mover o veículo. Contudo, no ambiente da empresa, podemos e devemos agir.
Não podemos permitir que a empresa morra ou fique paralisada diante de um
problema por estar composta por pessoas desinteressadas na solução dos
conflitos apresentados. Devemos tomar atitudes adequadas à situação e, se for
imprescindível, trocar os “empacados”, os resistentes às mudanças e substituí-
los, não necessariamente por novos talentos, mas, principalmente, por quem
acredita no líder e responde aos comandos quando demandado.
Assim como tem sido dito e publicado sobre compliance, as abordagens
sobre a governança corporativa têm também aumentado sobremaneira muito em
razão dos escândalos do início da década de 1990. Uma empresa com uma boa
governança possui uma melhor avaliação no mercado e é vista como bom
investimento aos olhos dos investidores, da comunidade e das instituições
financeiras. Essa conclusão é lógica, pois, quanto mais aderente às boas
práticas, ao cumprimento das leis e das normas do setor em que atua e das
políticas internas, melhor será o seu posicionamento perante clientes,
fornecedores, financiadores e instituições governamentais.
Continuando com os temas abordando a “farra com o dinheiro do
acionista” e “ausência do espírito de dono”, quando pessoas que se encontram
em posição de gestão, que se sentem tão importantes e dizem sem a menor
preocupação frases como “você sabe com quem você está falando”?”, que não
se preocupam tanto em gerar dividendos e crescimento para os acionistas, a
prioridade é gerar benefício para si próprio, vamos entrar agora na abordagem
de um item que vemos em muitas empresas. Ainda nos dias de hoje, com grande
avanço da tecnologia, implantação dos diversos aplicativos de transporte de
passageiros, se pode observar nestas empresas certo e corriqueiro abuso no
uso dos veículos corporativos.
Muitas empresas concedem benefícios a seus empregados visando a
tornar mais agradável o ambiente de trabalho, trazer maior comprometimento
das equipes, facilitar a execução de determinados tipos de tarefas de acordo
com a necessidade de cada uma das funções.
O objetivo não pode nem deveria ser burlar a legislação previdenciária,
deixando a empresa de arcar com os encargos sociais por fornecer, de maneira
indireta, renda, salário para os seus empregados. A utilização destes benefícios
deveria ter o caráter, exclusivo, de facilitar a execução do trabalho para o qual
aquele empregado foi contratado.
Um dos exemplos desses benefícios é a cessão de um veículo para o
empregado na execução de seu trabalho e que, portanto, somente deverá ser
utilizado no trabalho, certo?
Vários cargos e funções necessitam de um veículo para trabalhar
e isso, por si só, já justifica a cessão de um veículo para esse empregado. É o
caso do vendedor, que vai de cliente em cliente apresentando o produto.
Também é o caso daquelas funções que prestam serviços de manutenção e
assistência técnica nos equipamentos vendidos pela empresa e que não é viável
que o cliente transporte o equipamento até a empresa que o vendeu, devido ao
tamanho deles. Mas... e os conselheiros, diretores, superintendentes, gerentes,
por que é tão comum vermos este tipo de profissional com direito ao veículo
corporativo?
Sem noção
Num trabalho de auditoria que eu fui fazer em uma empresa que tinha
crescido rápido e que vários diretores que tinham entrado naquele ambiente se
sentiam donos por terem participado do crescimento, me deparei com situações
claras de desvios no uso dos veículos corporativos. A empresa não tinha, em
seus quadros o cargo de vendedor, já que os serviços executados a seus clientes
eram obtidos por meio de contratos negociados caso a caso, projeto a projeto.
Também não havia profissionais responsáveis por prestar manutenção e
assistência técnica, pois todas as vezes que algum problema era identificado
pelo cliente, após discussão e identificação da falha apresentada, agendava-se
um trabalho de reparo a ser executado por uma equipe que ficaria nas
dependências do solicitante por um período mais longo, não apenas por um ou
dois dias.
De posse da relação dos veículos, identifiquei, em um dos escritórios, a
existência de oito - tipo sedam - com motoristas, sendo cinco deles blindados.
Como era uma segunda-feira, cheguei ao escritório para inspeção e entrevista
para entendermos a necessidade dos veículos e dos motoristas.
Quando entrei no escritório da empresa, era numa casa, havia dois
senhores lavando os veículos numa espécie de lava jato. Os veículos estavam
imundos, como se tivessem rodado em estradas de terra e, de fato, era o que
havia ocorrido. Os carros pertenciam à empresa e estavam cedidos a gerentes
e diretores comerciais, que deveriam utilizar o veículo apenas a trabalho, mas
praticamente todos os finais de semana, permaneciam em seus sítios. Sendo
assim, na segunda-feira era normal que aqueles veículos estivessem imundos e
alguém deveria se preocupar em deixá-los limpos. Já há alguns anos aqueles
dois senhores lavavam aqueles veículos duas vezes por semana.
Estava ali a primeira falha: os veículos da empresa atendendo a
interesses particulares aos finais de semana.
Existia também uma segunda falha, pois aqueles dois lavadores de
veículos estava ali todos os dias, de todas semanas, há mais de 15 anos. Como
era a remuneração deles? Já que eles estavam ali, todos os dias da semana, à
disposição dos empregados da empresa para poderem lavar seus veículos, será
que não haveria algum risco trabalhista? Como é que eles recebiam a
remuneração pelos serviços prestados, já que dificilmente eu acreditava que
aqueles executivos fariam o pagamento retirando o dinheiro do seu próprio
bolso? Guardemos esta informação com expectativa, pois ela será esclarecida.
Com relação aos veículos, iniciei um diálogo com aqueles motoristas.
Como era uma manhã de segunda-feira, estavam ali, os oito a postos, e eu
pensei que cada um deles estava à espera das ordens e demandas daqueles
que deveriam transportar. Eu tinha em mãos o resumo da folha de pagamento,
e eram eles, os motoristas, os maiores ofensores no quesito hora extra. Havia
registro de 180 horas extras, em média, todos os meses, para apenas um deles.
Como era possível um motorista, uma profissão tão arriscada e que requer
tamanha atenção, dirigir por 400 horas em um único mês sem colocar a vida de
quem ele transporta em risco?
Aquele dia, provavelmente, deveria ser uma exceção, pois todos os
motoristas estavam ali, muito tranquilos!
A conversa realizada foi mais ou menos na seguinte sequência:
- Bom dia. Os senhores estão esperando seus chefes?
- Não, senhor. Às segundas-feiras, nós nos levantamos cedo, por volta das
4 da madrugada. Pegamos o carro numa garagem que a empresa aluga
para podermos deixar o veículo. O senhor sabe, né, nós não temos
garagem em casa, nossas residências são muito simples.
- Ah, entendi. E, de lá, vocês levam os chefes ao aeroporto e voltam para
cá?
- Não, quando voltamos do aeroporto, temos que ir até a casa deles e pegar
os meninos para podermos levá-los às escolas. Só depois disso é que
voltamos para o escritório para o Sr. Zé e o João lavarem os veículos. O
senhor viu como estão cheios de bosta de boi? O meu chefe tem uma
fazenda, lotada de boi, é uma beleza a fazenda dele!
- E quando é que eles voltam da viagem?
- Bem, o meu chefe só volta na quarta-feira. Outros três ficam até a sexta-
feira e os outros quatro voltam hoje, mas amanhã já têm viagem de novo.
- Que horas que eles chegam hoje?
- Ah, doutor, por volta das 22 horas. Quando acontece isso é o dia mais
cansativo para a gente porque nos levantamos às quatro da manhã e
vamos dormir depois da meia noite. Ainda bem que a empresa é correta,
é justa e nos paga todas as horas extras para a gente.
- Mas, e durante o dia? O que é que vocês fazem enquanto seus chefes
não estão aqui, estão viajando?
- Uai, primeiro, como eu falei para o senhor, a gente leva os meninos na
escola. Depois, a gente tem que buscar também. Aí, vai variando o que
cada um tem que fazer. No meu caso, por exemplo, a esposa do chefe
faz supermercado toda terça-feira. Eu tenho que ir lá pegar e levar as
compras até o apartamento dela. Já a esposa do Sr. Fulano, que o Toni
é o motorista, tem um tal de fazer unha toda quarta-feira e massagem na
quinta-feira. Ele tem que levar menino, pegar menino e carregar a
madame.
- Mas vocês não cansam de ficar aqui o dia todo, não?
- Nós não temos outra opção, né. Enquanto esperamos, ficamos, aqui,
jogando conversa fora, truco, buraco, passando o tempo.

Encerrei por ali, agradecendo àqueles simpáticos motoristas pelas


informações que me foram passadas. Naquele momento, vi no
estacionamento da empresa, um dos acionistas, dirigindo o seu próprio
veículo, um Tempra 1996!
Era surreal! Oito executivos tinham veículos caros, alguns deles
blindados, com motoristas recebendo horas extras para ficarem,
praticamente, à toa – dentro do direito deles, pois estavam à disposição da
empresa – ou, ainda, atenderem a interesses particulares!!! Não poderia
tratar da mesma empresa da qual aquele acionista recebia seus dividendos.
Na contramão!
Duas informações ainda estavam pendentes e eu precisava apurar. Quem
pagava aos dois lavadores de carros? Eu suspeitava de que era a empresa
que arcava com a despesa. A segunda questão era como é que a empresa
pagava o aluguel destinados à locação das vagas de garagem destinadas à
guarda dos veículos, já que os motoristas não tinham garagem em casa.
Investiguei, primeiramente, os aluguéis. Eram imóveis simples,
localizados nos bairros em que moravam os motoristas. Aqueles imóveis
simples, como já dito, tinham apenas uma vaga de garagem. Os proprietários
então deixavam seus veículos na rua e alugavam o espaço para que os
motoristas deixassem os veículos da empresa estacionados em segurança,
cada um em um endereço diferente, mas com o mesmo procedimento.
Você se lembra daquelas horas extras? Pois é, não havia contrato de
locação de imóveis. Poderia levantar suspeitas – sem falar no descaramento
dos executivos! Então, o combinado entre eles e os motoristas é que
incluiriam horas extras nos salários e eles pagariam o aluguel. Tudo errado!
O custo para a empresa ficou maior em razão dos encargos sociais sobre o
valor que ela lhes pagava. Era um combinado entre as partes, tudo estava
correto na cabeça dos motoristas, não estavam prejudicando ninguém e o
objetivo era atender da melhor maneira possível o “chefe” e isso estava sendo
alcançado.
Esclarecida a situação do aluguel, parti para tentar entender como é que
aqueles dois senhores, super gente boa, recebiam pela lavagem dos
veículos. Conversa vai, conversa vem, eles me disseram que estavam ali há,
pelo menos, 15 anos. Sua função era lavar os carros da empresa e
pertencentes aos empregados. No caso dos veículos pertencentes aos
empregados, não havia dúvidas. Cada um dos proprietários combinava uma
maneira de pagar àqueles lavadores e nada seria arcado pela empresa, cada
um pagando o custo que lhe correspondia.
Como eu sabia o nome completo dos dois, pesquisei para verificar se teria
havido pagamentos destinados a eles. Não localizei nada, nunca haviam
recebido dinheiro da empresa.
Não sei se todos sabem como funciona o relacionamento nas empresas
em Minas Gerais, mas você chega e antes de começar a trabalhar inicia a
conversa com um “e aí, tudo bem? Como está sua família? E a sogra? Os
cachorros? E o seu time, ganhou o jogo do final de semana?” Normalmente
a pessoa te responde muito mais do que um simples “tá tudo bem” e aí você
vai conversando, proseando, quando vê já são amigos de infância. Era assim
a minha relação com aqueles dois lavadores de veículos
Como eu tinha proximidade com os dois, já tinha feito estas tradicionais
perguntas de interação várias e várias vezes, além de saber de sua inocência
ou falta de malícia, perguntei quem é que lhes pagava. Sem pestanejar, o Sr.
João me disse que recebiam, em dinheiro, todo dia 05 e 20 de cada mês. A
secretária responsável por atender àqueles executivos, com mais de 20 anos
de casa, emitia recibos de táxis como se os executivos tivessem utilizado
esse meio de transporte até o aeroporto de Confins, que dista 50KM do centro
de Belo Horizonte e é, algumas vezes, mais caro o traslado até o aeroporto
ida e volta do que o bilhete aéreo. Ela então recebia o reembolso no caixa da
empresa e lhes entregava o dinheiro. Tudo era, na visão deles, tão simples,
tão certo. Eles prestavam um serviço e recebiam corretamente. Certíssimo!
Tudo pronto e esclarecido, mas faltava investigar os recibos de táxis.
Fazendo uma pesquisa nos documentos da empresa constatei que,
realmente, a secretária informava um número de aleatório de placa de veículo
e os assinava, cada dia uma assinatura diferente.
Como ela vinha praticando este procedimento praticamente desde que
assumiu aquela função de secretariar os executivos, percebi que, como ela
fez isso a vida toda para regularizar uma situação irregular, viu a
oportunidade de também se beneficiar do procedimento incorreto. A
quantidade de recibos emitidos era muito maior que o valor recebido
quinzenalmente pelos lavadores de veículos. Era praticamente o dobro!
Aqueles senhores recebiam cerca de R$1 mil, cada um deles, durante uma
quinzena, ou R$2 mil ao mês. Como ela vinha fazendo o mesmo
procedimento há, pelo menos, 12 anos, calculei de maneira rápida e
mediante um raciocínio simples, uma fraude de R$24 mil ao ano ou quase
R$300 mil apenas em desvios durante o tempo em que ela secretariava os
executivos daquela empresa.
Como se pode ver, o problema gerado pela cessão de oito veículos
corporativos a oito de seus executivos, criou um descontrole tão grande que,
ao final, percebem-se fraudes, descontroles, abusos, desperdícios.
Após analisar ponto a ponto o relatório que foi entregue à administração
daquela empresa continha recomendações extremamente relevantes e, ao
final da leitura, foram tomadas as seguintes decisões pela empresa:
• Desligou, imediatamente, a secretária que estava gerando
processos fraudulentos;
• realocou três dos oito motoristas em seus projetos e demitiu cinco;
• vendeu os oito veículos;
• estabeleceu que, a partir daquela data, os trajetos
residência/aeroporto/residência seriam feitos por meio de
transporte por aplicativos.
Acabaram-se os aluguéis, os recibos de táxi e os serviços particulares.
Alguém poderá até perguntar se auditor interno não possui coração. É
claro que sim e, particularmente, no meu caso, sempre tive grande dificuldade
em tomar certas decisões que fossem afetar pessoas, principalmente, as
honestas, que agiam corretamente, e por erros, falhas e omissões de outros
poderiam ser prejudicadas.
No caso dos motoristas, fiquei entristecido, pois conhecia a grande
maioria e sabia da honestidade, do bom serviço prestado por cada um deles.
Eles tinham certeza de que cumpriam seu papel: ordens de seus chefes! Eram
eles quem davam as ordens e cabia a eles apenas cumpri-las.
Acontece que os tempos são outros. Não combina empresa sustentável,
geradora de resultados positivos, crescentes e constantes com concessão de
privilégios para alguns poucos. Há toda uma equipe olhando e atenta a tudo,
esperando correção e coerência entre o discurso e a prática.
Para o Sr. João e o Sr. José, os dois lavadores de veículos, o final foi feliz.
Houve uma redução em suas atividades, uma vez que perderam oito clientes de
duas vezes por semana, entretanto os empregados que ali estacionavam
continuaram lavando seus veículos semanalmente. A empresa manteve o risco
trabalhista até então desconhecido, uma vez que eles receberam por serviços
prestados ao longo de cerca de 20 anos lavando veículos. Como eles
continuaram trabalhando até se aposentar como autônomos, aquele risco não
se materializou, o Sr. João e o Sr. José não se sentiram prejudicados, apesar de
terem trabalhado uma boa parte de sua vida lavando veículos, recebendo de
maneira indireta da empresa e deixando de receber seus possíveis direitos
trabalhistas.
Novamente decisões tomadas visando o benefício de poucos gerou um
conflito de interesses, pois o benefício concedido, a concessão de veículos
corporativos, causou outros problemas derivados, devido à sua má utilização, a
falta de senso crítico por parte dos colaboradores que tinham o direito de utilizá-
los a serviço da empresa, mas que se beneficiavam extrapolando o seu direito e
causando prejuízos à empresa.

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