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CienteFico. Ano IV, v.

I, Salvador, janeiro-junho 2004

Reabilitação cognitiva de pacientes com lesão cerebral


adquirida

Adriana D’Almeida, Daniela Pinna, Fernanda Martins, Gilsie Siebra, Ilca Moura1

Resumo
A reabilitação tem como objetivo central melhorar a qualidade de vida dos pacientes e
dos familiares fazendo com que as funções preservadas ou parcialmente preservadas
sejam melhor aproveitadas, ensinando o uso de estratégias compensatórias, a aquisição de
novas habilidades e a adaptação às perdas permanentes. Durante o período de tratamento,
percebe-se, no que diz respeito às seqüelas motoras, que o paciente se adapta com maior
facilidade. No entanto, quanto às seqüelas cognitivas, mais imprevisíveis e de evolução
variável, torna-se difícil a sua percepção, adaptação e aceitação. O psicólogo, portanto,
pode ser de importante contribuição, tendo como objetivo proporcionar a reflexão do
indivíduo sobre sua nova condição existencial, fazendo-o pensar sobre as conseqüências
cognitivas e emocionais de sua nova situação. Com isso, o psicólogo possibilita o
enfrentamento das perdas sofridas.

Palavras-chave:
Reabilitação, psicologia da saúde, reabilitação cognitiva, lesão cerebral adquirida.

A Psicologia da Saúde, segundo a Associação Americana de Psicologia, é


definida como sendo um agregado de contribuições, tanto científicas quanto
profissionais, específica da Psicologia, enquanto disciplina, visando à promoção e

1
Adriana D’Almeida, Daniela Pinna, Fernanda Martins, Gilsie Siebra, Ilca Moura são estudantes da
Faculdade Ruy Barbosa do curso de Psicologia.
manutenção da saúde, à prevenção e ao tratamento de doenças. Pode ser definida, ainda,
como sendo aquela que visa à identificação de correlatos etiológicos e de diagnósticos da
saúde e da doença, contribuindo para a análise e o progresso do sistema de assistência à
saúde e para a elaboração de políticas públicas de saúde sanitárias (Matarazzo, 1980).
Neste aspecto, pode-se dizer que a reabilitação compõe o escopo da Psicologia da Saúde
na medida em que esta assume o papel de promover saúde à proporção que reeduca o
indivíduo, potencializando e aprimorando as habilidades que ainda lhe restam,
proporcionando adaptação. Contudo, não se trata apenas de saber fazer coisas de uma
maneira diferente. A reabilitação também visa construir, juntamente com o paciente, uma
nova visão de mundo e de si mesmo, o que pode ser obtida através da elaboração de
estratégias de enfrentamento.
Segundo Ignarra (sem data), coordenadora da elaboração do guia de referência
para conselheiros municipais, pode-se afirmar que a reabilitação constitui uma atenção
em quarto nível, visto que as atenções primária, secundária e terciária constituem,
respectivamente, a promoção e prevenção da saúde, o atendimento ambulatorial
(assistência médica) e o atendimento curativo (internação hospitalar).
Sabendo-se ser de vital importância a existência de um suporte psicológico
durante o processo de reabilitação e depois dele, pode-se dizer, então, que a reabilitação
do paciente é função intrínseca da Psicologia da Saúde. Isto se confirma na medida em
que esta pode ser enquadrada como sendo um conjunto de práticas que atuam numa
integração da saúde mental com a saúde física e social do paciente (Angerami, 2000).
Atuar no processo de reabilitação do paciente torna-se um fator primordial ao
psicólogo, uma vez que a Psicologia da Saúde é dotada de um potencial crescente de
favorecer a aquisição de hábitos mais saudáveis pelo indivíduo. Conseqüentemente, há
uma melhora também na adesão ao tratamento e uma diminuição do estresse do indivíduo
em relação à doença, o que influencia diretamente no processo de reabilitação.
A metodologia utilizada para a confecção deste artigo consiste na revisão
bibliográfica, compilando várias visões, de diferentes autores, sobre o processo de
reabilitação de pacientes portadores de lesão cerebral adquirida, em especial a
reabilitação cognitiva.
REABILITAÇÃO

Segundo Maria Amiralian et al (2000), é considerada deficiência a “perda ou


anormalidade de estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica, temporária ou
permanente. Incluem-se nessas a ocorrência de uma anomalia, defeito ou perda de
membro, órgão, tecido ou qualquer outra estrutura do corpo, inclusive das funções
mentais. Representa a exteriorização de um estado patológico, refletindo um distúrbio
orgânico, uma perturbação no órgão”.
Quanto à incapacidade, diz-se que esta consiste em “restrição, resultante de uma
deficiência, da habilidade para desempenhar uma atividade considerada normal para o ser
humano. Surge como conseqüência direta ou é resposta do indivíduo a uma deficiência
psicológica, física, sensorial ou outra. Representa a objetivação da deficiência e reflete os
distúrbios da própria pessoa, nas atividades e comportamentos essenciais à vida diária”.
Pode-se constatar, portanto, que tanto a deficiência, considerada como perda, quanto a
incapacidade, enquanto reflexo desta perda, estão intimamente relacionadas ao paciente
saber lidar com seus limites, mesmo que não haja solução completa e definitiva para sua
deficiência (Amiralian et al, 2000).
Ao observar-se a importância destes dois conceitos e suas implicações é que o
processo de reabilitação surge, como uma maneira de reeducar o paciente para que ele
tome consciência das suas capacidades remanescentes, o que implica também uma
mudança de sua autopercepção e uma busca de melhor aceitação por parte do paciente de
sua realidade.
Esses dois conceitos e sua dinâmica são de essencial importância ao nos
referirmos aos pacientes com lesão cerebral adquirida.
Com base nas informações oferecidas pelo Hospital Sarah – Salvador, pôde-se
constatar que a maior taxa de mortalidade em brasileiros de 15 a 24 anos é de morte
violenta. Em geral, esse tipo de morte consiste em eventos inesperados e súbitos, como
por exemplo: acidentes de trânsito, agressões por arma de fogo e acidentes por mergulho.
Quando o episódio não resulta em óbito, as vítimas não fatais demandam atenção dos
serviços de saúde, podendo apresentar graves danos físicos e psicológicos, dentre estes as
lesões cerebrais, que afetam uma série de capacidades do paciente, incluindo seu
desempenho cognitivo.
De acordo com Paula Gouveia et al (2001), os pacientes com lesão cerebral
adquirida eram pessoas saudáveis que levavam uma vida normal e que abruptamente
ficaram acometidos por uma ruptura no curso de suas vidas, com conseqüências, na
maioria dos casos, irreversíveis, tanto para o indivíduo quanto para a sua família.
Durante o período de tratamento, percebe-se, no que se refere às seqüelas
motoras, que o paciente se adapta com maior facilidade. No entanto, quanto às seqüelas
cognitivas, mais imprevisíveis e de evolução variável, torna-se difícil a percepção,
adaptação e aceitação destas, ou seja, há uma maior dificuldade de se lidar com a
incapacidade. Também se observa que a dificuldade de autopercepção e de introspecção
autocrítica pode gerar um excessivo apego aos objetivos considerados anteriormente à
aquisição da lesão cerebral, além de uma forte recusa a aderir ao tratamento.
Dessa forma, o foco da reabilitação deve englobar não somente as incapacidades do
paciente, mas também toda a dinâmica que o envolve. Ele deve levar em consideração
outros aspectos importantes da vida do indivíduo, como a auto-estima, as emoções, a
percepção de si, a adequação das expectativas de melhora e a reorganização dos planos de
vida individuais e familiares.
É importante ressaltar que, em geral, a visão que os pacientes têm de si é a visão
de quem eram antes da lesão. Assim sendo, o processo de reabilitação procura ser uma
ajuda ao paciente, para que este consiga reconstruir sua identidade, reconhecendo-se
como a mesma pessoa, mas com a vida muito diferente.
O processo de reabilitação deve conter quatro etapas: (1) triagem e avaliação
neurológica; (2) avaliação neuropsicológica, incluindo criação e apresentação do plano
reabilitação; (3) tratamento; e, por fim, (4) alta e acompanhamento. Todo o processo
deve ser feito com o apoio e acompanhamento da família (Gouveia e al., 2001).
Assim, a reabilitação tem como objetivo central melhorar a qualidade de vida dos
pacientes e dos familiares, fazendo com que as funções preservadas ou parcialmente
preservadas sejam melhor aproveitadas, ensinando o uso de estratégias compensatórias, a
aquisição de novas habilidades e a adaptação às perdas permanentes (Gouveia et al,
2001).
REABILITAÇÃO COGNITIVA

Segundo Otero e Scheitler (2001), entende-se por reabilitação cognitiva o


conjunto de procedimento e técnicas que tem por objetivo alcançar maiores rendimentos
intelectuais, uma maior adaptação familiar e social em sujeitos que sofrem ou sofreram
algum dano cerebral. Dessa forma, melhoraria a capacidade do paciente cérebro-lesado
em processar e usar a informação, de modo a viver com mais autonomia e satisfação.
O fundamento científico da reabilitação se baseia na plasticidade neuronal. Esta é
uma capacidade do cérebro de regeneração e adaptação da sua morfologia. Diante disso,
o paciente lesionado tem a possibilidade de criar novas estratégias que o auxiliem a viver
de forma mais satisfatória. A eficácia da reabilitação cognitiva deve ser avaliada levando-
se em conta as variações individuais, que envolvem fatores como diferenças na
organização cerebral, natureza, localização e magnitude da lesão, tempo, idade, saúde
geral e nível de funcionamento anterior à lesão (Capovilla, 1998).
Otero e Scheitler (2001) apresentam as técnicas e estratégias na reabilitação
cognitiva a partir de três níveis: (1) restauração: as funções cognitivas alteradas são
estimuladas e melhoradas pela ação direta sobre elas; (2) compensação: assumindo que
a função alterada não pode ser restaurada, tenta-se potencializar o emprego de
diferentes mecanismos alternativos ou de habilidades preservadas; e (3) substituição:
ensina-se ao paciente diferentes estratégias que o ajudem a minimizar os problemas
resultantes das disfunções cognitivas.
A partir dos três passos acima descritos, pode-se perceber que existe uma relação
com a Psicologia da Saúde, visto que, tanto a reabilitação quanto esta área da Psicologia
têm objetivos semelhantes no que diz respeito à promoção da saúde.
Segundo o modelo de organização cerebral de Luria (1980), em indivíduos
cérebro-lesados, pelo fato de as funções cognitivas encontrarem-se comprometidas, sua
recuperação pode ocorrer através de novas conexões, estabelecidas a partir de exercícios
de treino cognitivo, voltados especificamente aos processos básicos que se encontram
prejudicados. Dessa forma, o treinamento cognitivo direto produz a reorganização nos
vários níveis de integração cerebral, aumentando, com isso, a velocidade da recuperação.
Assim, a reabilitação cognitiva através do retreino de processos cognitivos diminui
distúrbios de atenção, linguagem, processamento visual, memória, raciocínio e resolução
de problemas, além de funções executivas.
É entendido, portanto, que a maior parte das aproximações reabilitadoras para
manejar os comprometimentos cognitivos geralmente tomam as seguintes formas:
modificações ambientais, treinamento e implementação de habilidades ou condutas
compensatórias e retreinamento das funções cognitivas específicas lesadas.
As modificações ambientais compreendem mudanças nos fatores externos sem
expectativas ou com expectativas mínimas de melhoras subjacentes das capacidades
globais intelectuais (Otero e Scheitler, 2001). Pode ocorrer, então, por parte do próprio
indivíduo, a simplificação de tarefas, a supressão da necessidade de fazer outras tarefas
ou simplesmente permitir fazê-las em maior tempo.
Já as aproximações compensatórias, segundo Otero e Scheitler (2001), têm como
objetivo treinar condutas ou habilidades compensatórias. O indivíduo pode, a partir dessa
estratégia, manter um registro independente através de um organizador de memória, ou
seja, ele pode usar uma agenda que o auxiliará a lembrar de suas atividades. Uma
compensação pode incluir uma nova conduta ou habilidade, e o indivíduo deve adaptar-se
a esta situação, mudando suas expectativas, selecionando novas tarefas e flexibilizando
seus critérios.
Por sua vez, as intervenções diretas nas áreas comprometidas usam procedimentos
que tendem a melhorar ou restaurar algumas habilidades ou capacidades cognitivas
subjacentes (Otero e Scheitler, 2001). A atenção, a memória e o funcionamento executivo
são as áreas mais favorecidas com esse tipo de estratégia.
O desenvolvimento do plano de reabilitação tem como primeiro passo principal a
avaliação do perfil de cada paciente e do impacto do mundo real sobre seus déficits
cognitivos. Após isso, devem ser estabelecidos os objetivos da reabilitação junto ao
paciente, levando em conta suas necessidades atuais e futuras. Este estabelecimento
mútuo de objetivos pode aumentar a motivação do paciente, resultando, assim, em uma
maior adesão ao processo de reabilitação. Além desses dois primeiros passos, outros
princípios incluem estimular o paciente a eleger terapias e trabalhar de forma
colaborativa com ele e sua família (Otero e Scheitler, 2001).
Os transtornos emocionais devem ser considerados pela equipe multidisciplinar
que realiza a reabilitação. O indivíduo cérebro-lesado geralmente apresenta alterações
emocionais, necessitando de ajuda para enfrentar as conseqüências do comprometimento
cognitivo adquirido. Ajustar as mudanças na própria habilidade pode ser muito difícil, e
por isso geralmente suscita medos, frustrações e sentimento de perda (Amiralian et al,
2000).
Nesse momento, o papel do psicólogo pode ter como objetivo proporcionar a
reflexão do indivíduo sobre sua nova condição existencial, fazendo-o pensar sobre as
conseqüências cognitivas e emocionais de sua nova situação, possibilitando, com isso, ao
psicólogo o enfrentamento das perdas sofridas.
A partir da psicoterapia, o indivíduo tem a oportunidade de aceitar melhor sua
nova condição, retomando planos futuros e recriando expectativas. O indivíduo passa a
perceber que ainda tem muitas perspectivas em sua vida, conscientizando-se que ela não
acabou e que possui muito potencial a ser descoberto e explorado, e isso ocorre
paralelamente a uma compreensão mais ampla sobre o processo de reabilitação.

CONCLUSÃO

Enfim, a partir do que foi relatado acima, no que concerne à reabilitação cognitiva
e sobre Psicologia da Saúde pode-se concluir que ambas possuem objetivos semelhantes,
como, por exemplo, melhorar a qualidade de vida dos pacientes e dos familiares. A
ênfase de ambos os campos é direcionada para a promoção da saúde.
Portanto, é de suma importância para a formação do psicólogo a discussão acerca
desta temática, a fim de que tal profissional esteja instrumentalizado e devidamente
preparado, para saber atuar de modo preventivo, enfocando a qualidade de vida e não
somente procurando resolver problemas.
No que diz respeito à reabilitação cognitiva, o psicólogo poderia contribuir
proporcionando ao indivíduo uma reflexão sobre sua nova condição de vida,
possibilitando-o pensar sobre as conseqüências cognitivas e emocionais de sua nova
situação. Dessa maneira, o psicólogo contribui para que o indivíduo crie estratégias de
adaptação às perdas sofridas.

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