Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Abstract: Deals with the approach of the main reading and teaching strategies that stood
during the Middle Ages. More accurately, searches to understand the confluence of these
themes in light of three in vigor models in the Western medieval, to know: the reading of
text and history made by some authors of the Monastic School of the XII century; the
reading of the world or nature made by select members of the Chartres School during the
same century; and lastly, the reading of text guided by scholastic logical and formal causes
in the XIII century.
Embora muitos ainda se reportem à Idade Média como Idade das Trevas, parece
certo que hoje já foi superada a visão do mundo medieval, forjada no renascimento, como
uma grande noite de mil anos iluminada pelas fogueiras da inquisição. Mesmo assim, é
comum ouvirmos o uso pejorativo do termo 'medieval', como sinônimo de obscuro,
atrasado, reacionário, dogmático ou antiquado.
*
Departamento de Filosofia, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM), RS, Brasil. E-mail: rossatto.dutra@gmail.com
Educação e formação do espírito na Idade Média
Noeli Dutra Rossatto
Também parece certo que vivemos ainda a ressaca do segundo milênio da era
cristã. Basta olhar nas bancas de revistas e nas livrarias. Os signos linguísticos estampados
delatam: novo milênio, nova era, apocalipse, fim dos tempos. Poder-se-ia perfeitamente
afirmar que são temas medievais. E mais, que dentre os produtos mais vendidos da
indústria cultural, encontramos palavras-chaves que remetem especificamente à visão de
mundo do medievo: cavaleiros templários, cátaros, gnosticismo, ocultismo, cabala, magia,
fortalezas, castelos, anjos, demônios, entre outros. Muitos prometem, não sem certo clima
de mistério, fazer surpreendentes revelações dos códigos mais secretos escondidos a sete
chaves durante toda a Idade Média.
Afinal, por que hoje a chamada 'Idade das Trevas' passa a brilhar e exercer tanta
atração e fascínio?
Não é certamente pelas influências provenientes da atual análise da conjuntura
mundial hegemônica que nos coloca amiúde frente a personagens - reais e virtuais - que
parecem ter saltado dos textos medievais para a tela da televisão. Também não deve ser
apenas pelo fato de ter ascendido à esfera pública uma atraente retórica fundamentalista,
antes confinada ao interior dos templos, das sacristias, das sinagogas e de algumas
mesquitas. Para muitos, vivemos uma vez mais o tempo das cruzadas. Palavras como
império do bem e do mal, Deus e diabo, Cristo e anticristo, Oriente e Ocidente, mundo
judeu-cristão e mundo muçulmano cada vez mais passaram a fazer parte do vocabulário
midiático cotidiano.
Há com certeza motivos mais profundos. E algo parece evidente: a volta ao
imaginário medieval faz parte do desencantamento com o modus vivendi da chamada
modernidade. Há algum tempo, vivíamos tranquilos sob o amparo e a tutela de conceitos
que nos pareciam tão claros e tão distintos. Também é sintomático que a volta ao simbólico
medieval não ocorre antes do decreto de uma série de finais: fim da história, fim do
homem, fim do comunismo, fim do liberalismo, fim do estado-nação, fim da religião, fim
da arte e de outros tantos metarrelatos modernos. Há pouco fazíamos profissão de fé
intelectual recitando piamente conceitos tais como 'luta de classes', 'progresso',
'consciência', 'ego' e outras tantas entidades metafísicas.
Afinal de contas, parece que a chamada crise do moderno, e o súbito mergulho em
um desconhecido mundo pós-moderno, nos fez saudosistas de um passado pré-moderno, e
mais especificamente medieval. Neste sentido, alguns estudiosos vão dizer que hoje
2
Revista Litterarius – Faculdade Palotina | Vol.13 | N. 03 | 2014 – ISSN 2237-6291
Educação e formação do espírito na Idade Média
Noeli Dutra Rossatto
vivemos sob o signo de uma nova Idade Média. Tal é o caso do medievalista escocês
Alasdair MacIntyre que, ao final de seu livro Depois da virtude (2001, p. 441), afirma que
não se pode perder de vista que, à diferença da Idade Média anterior, hoje os bárbaros do
norte não mais esperam do lado de lá das fronteiras, mas nos governam há muito tempo.
Não sei se o autor está se referindo apenas ao fato de que nós, os latinos, estamos prestes a
sair de um longo domínio dos bárbaros anglos e saxões durante toda a Era Moderna; ou se,
antes disso, pretende sugerir que ainda vivemos a barbárie no interior das fronteiras do
estado-nação moderno. Seja como for, a proposta que daí decorre é a de uma volta ao
modo de vida comunitário medieval. Prova disso é o que lemos na inusitada conclusão de
seu: “ o que importa agora neste estágio é a construção de formas locais de comunidade,
dentro das quais se possa sustentar a civilidade e a vida intelectual e moral, durante a nova
Idade Média que estamos vivendo” livro (MACINTYRE, 2001, p. 441).
Outros estudiosos, como é o caso do francês Michel Maffezoli (1995, p. 102-103),
de forma mais pontual, sugerem que a “ explosão da imagem” no mundo pós-moderno pode
ser comparada com a “ orgia simbólica” vivida ao longo da cultura medieval. E isso hoje -
adverte o autor -, como poderia parecer aos espíritos mais desavisados, não é a expressão
de uma decadência cultural, mas o retorno a uma prática espiritual mais completa e mais
concreta, capaz de viver e fazer comunidade.
E mais radicalmente, ante o decreto da morte de Deus (pelos fiéis, segundo
Nietzsche), do fim da metafísica e da cristandade, Gianni Vattimo, em seu recente Depois
da cristandade (2004)1 vem advogar em prol de uma condição pós-moderna de
fragmentação, livre dos entraves do cientificismo, da religião e do estado, e à luz da teoria
da Era do Espírito do abade medieval Joaquim de Fiore.
Ou ainda, como quer Giorgio Agamben, em O reino e a glória – Por uma
genealogia teológica da economia e do governo (2008, p. 14-15), o paradigma original das
democracias contemporâneas e do government by consent “ não está escrito no grego de
Tucídides, senão no árido latim dos tratados medievais e barrocos sobre o governo divino
do mundo.”
Os temas enunciados até aqui, por si só, já seriam suficientes para justificar um
estudo mais detido, provocador e estimulante. Porém, a tarefa que nos propomos no
1
Ver especialmente o capítulo 2: “ Os ensinamentos de Gioacchino”
3
Revista Litterarius – Faculdade Palotina | Vol.13 | N. 03 | 2014 – ISSN 2237-6291
Educação e formação do espírito na Idade Média
Noeli Dutra Rossatto
momento não é a de justificar a releitura da Idade Média a partir dos possíveis paralelos
com as temáticas atuais. Isso até poderia ser produtivo. Mas não é o momento e o lugar
adequado para fazê-lo.
O tema que toca abordar é outro. É bem mais preciso, ainda que não menos
complexo. Trata-se da indicação de algumas das estratégias de leitura, de formação
espiritual e de ensino que vigoraram ao longo da Idade Média. Mais precisamente,
buscamos entender a confluência destes temas à luz de três modelos vigentes no medievo
Ocidental: aquele da leitura da história (ratio historiae), feito pela Escola Monástica do
século XII; o da leitura do mundo ou da natureza (ratio physica), levado a cabo, no mesmo
século, por alguns membros da Escola de Chartres; e um terceiro modelo, caracterizado
pela ratio per causas lógico-formais, produzido no interior do século XIII pela escolástica.
Não se pode falar destes três modelos, bem como da relação com as estratégias de
leitura, de formação e de ensino, sem antes situá-los com referência a uma data
emblemática que vai desencadear a crise e o surgimento de um novo espírito medieval: o
Ano Mil.
2 Depois do milênio
Certamente, o primeiro milênio da era cristã continua sendo uma data chave para
pensarmos a Idade Média Ocidental e muito tem intrigado aos historiadores de diversas
tendências. Foi objeto do clássico estudo Ano mil, de Henry Focillon, publicado em 1952.
A ele seguiram outros trabalhos não menos importantes e também já clássicos: The Porsuit
of the Millenium (1978), de Norman Cohn; O ano mil (1967) e Ano 1000 ano 2000 (1995),
ambos de Georges Duby; e A mutação do ano mil (1989), de Guy Bois.
Mas por que o Ano Mil é uma data chave?
Para o presente propósito, cabe apenas indicar que o período ao redor do primeiro
milênio cristão circunscreve um momento de crise. Não, porém, uma crise que tem a
dimensão dada inicialmente por alguns historiadores (Focillon, por exemplo), que
supervalorizaram os registros históricos que acentuavam tão somente os prodígios do
primeiro milênio cristão. Tal argumentação tomava por base o relato de alguns milagres sui
generis, como exemplo um burro ressuscitado, de sinais no céu (um eclipse, um cometa,
um combate de estrelas) e de algumas desordens biológicas ou sociais (nascimento de
4
Revista Litterarius – Faculdade Palotina | Vol.13 | N. 03 | 2014 – ISSN 2237-6291
Educação e formação do espírito na Idade Média
Noeli Dutra Rossatto
3 Um novo espírito
4 O Livro da História
5
Revista Litterarius – Faculdade Palotina | Vol.13 | N. 03 | 2014 – ISSN 2237-6291
Educação e formação do espírito na Idade Média
Noeli Dutra Rossatto
Vários são os autores ligados ao pensamento monástico que vão tentar repensar o
legado deixado pela leitura da história agostiniana de corte milenarista. Duas coisas eram
necessárias. Primeiro, repensar a divisão da história proposta por Agostinho. E, para que
isso fosse possível, em segundo lugar, reavaliar as antigas práticas metodológicas
empregadas para interpretar a história ao longo da tradicional lectio historiae. Um desses
autores, herdeiro da tradição monástica, que apresenta uma solução mais acabada a essa
problemática, é o abade calabrês Joaquim de Fiore (1135-1205).
A solução dada por Joaquim de Fiore passa pela adoção de um modelo de
interpretação da história que se articula com base na imagem da Trindade. A imagem de
um Primeiro Princípio (arché) uni-trinitário funcionará como um esquema ou proposição
primeira que serve para regular todos os postulados implicados nos métodos de leitura da
história (ROSSATTO, 2004a).
Em suas mãos a já desgastada prática alegórica, oriunda da Escola de Alexandria
(Didaskaleion, dos sécs. II e III d.C), será transformada. Perderá sua principal
característica centrada na forte oposição entre letra e espírito, corpo e alma, carnal e
espiritual. E, além disso, ficará limitada a não mais que cinco sentidos, contidos na letra da
escritura-história. Por sua vez, estes cinco sentidos serão buscados segundo o padrão dado
pelas cinco relações intratrinitárias, a saber: 1) o sentido histórico: da relação do Pai para
Filho; 2) o moral: do Filho para o Pai; 3) o tropológico: do Filho e do Pai para o Espírito;
4) o contemplativo: do Filho e do Espírito para o Pai; e, por fim, 5) o anagógico: do Pai, do
Filho e do Espírito para o mundo.
Do mesmo modo, o método tipológico-histórico, proveniente da Escola de
Antioquia (séc. IV), bastante utilizado pelos monges, será reestruturado com base no
modelo trinitário. Desta vez, serão os sete modos próprios de enunciar as três figuras da
Trindade que darão o padrão da interpretação. Os tipos ou significantes históricos serão
ajuizados segundo sete significados principais, a saber: 1) como Deus-Pai; 2) Deus-Filho;
3) Deus-Espírito; 4) Deus-Pai e Filho; 5) Deus-Pai e Espírito; 6) Deus-Filho e Espírito.
Mais importante, porém, será a proposta de uma nova estratégia de interpretação da
escritura-história: o método por concórdia. Esta estratégia metodológica, tomando como
pressuposto a ideia de que a história está dividida por três estados (status), tal qual a
imagem (imago) da Trindade, procura equivaler personagens (individuais ou coletivos) e
acontecimentos significativos do primeiro estado com outros do segundo e do terceiro.
6
Revista Litterarius – Faculdade Palotina | Vol.13 | N. 03 | 2014 – ISSN 2237-6291
Educação e formação do espírito na Idade Média
Noeli Dutra Rossatto
Assim, é possível dizer que os personagens do primeiro estado sejam equivalentes aos do
segundo, como por exemplo: Abraão significa o mesmo (idipsum significat) que Zacarias;
Sara o mesmo que Isabel; Isaac o mesmo que João Batista; o homem Jesus o mesmo que
Jacó; e os doze Patriarcas e o mesmo número de Apóstolos (Joaquim de Fiore, 1964a, f.
31c). E para cada um dos tipos do primeiro e segundo estados, haveria um correspondente
no terceiro. A regra geral da concordia é a seguinte: de cada dois (ou três) significantes,
resulta sempre um único significado (duo igitur significantia sunt unum significatum)
(JOAQUIM DE FIORE, 1964a, f. 7b-c). Com o auxílio deste método, o abade calabrês
acredita poder chegar ao âmago (substância ou essência) da história que,
consequentemente, possibilitaria a perfeita contemplação da própria imagem da Trindade
espelhada em todos os seus detalhes. É um projeto que, ao seu final, implicaria em nada
menos que conhecer a história tal como ela foi feita pelo Criador.
Tal proposta só é bem compreendida na medida em que se levar em conta duas
coisas mais. Para o abade de Fiore, diferentemente de Agostinho, a história continua com
seus tipos e anti-tipos significantes depois do evento-Cristo. E, além disso, depois da era
cristã, seguir-se-ia um novo estado, um estado espiritual em que se efetivariam outros tipos
e anti-tipos mais elevados que aqueles do primeiro e segundo estados.
O outro aspecto a ser levado em conta diz respeito não mais ao método, mas à nova
divisão da história proposta pelo abade. A história, segundo ele, continua a ser dividida em
conformidade com as tradicionais sete idades (aetates), tal como já havia referendado o
próprio Agostinho. Porém, no interior das sete idades, haveria uma simétrica divisão
formada por subconjuntos de três estados (status), cinco tempos (tempora) e vinte e uma
gerações (generatio). Não cabe aqui discorrer em detalhes a respeito da complexa relação
de proporção guardada pelos vários subconjuntos entre si. Limitamo-nos a uma palavra
conclusiva: para o abade, a Trindade se cria (ou gera) plenamente ao longo de toda a
história humana. E, na medida em que a história avança em direção ao seu final, cada vez
mais a humanidade se aproxima da perfeição. Assim, ele poderá dizer: o primeiro estado é
de servidão; o segundo, de obediência filial; e o terceiro, de liberdade total; o primeiro de
urtigas, o segundo de rosas, o terceiro de lírios; o primeiro de ervas, o segundo de espigas e
o terceiro de trigo (JOAQUIM DE FIORE, 1964a, f. 112a-b).
7
Revista Litterarius – Faculdade Palotina | Vol.13 | N. 03 | 2014 – ISSN 2237-6291
Educação e formação do espírito na Idade Média
Noeli Dutra Rossatto
6 O Livro da Natureza
9
Revista Litterarius – Faculdade Palotina | Vol.13 | N. 03 | 2014 – ISSN 2237-6291
Educação e formação do espírito na Idade Média
Noeli Dutra Rossatto
não poderia haver uma região de água no meio dos céus, dado que a água era um elemento
mais pesado que o ar. Portanto, tal versículo bíblico contrariava os princípios da física
platônica (ROSSATTO, 2004b).
Como resolver o impasse? Mais que desafiar a autoritas bíblica, esses autores estão
convencidos de que seguem os princípios físicos que atestam uma ordem racional do
universo. Isto é: a natureza está ordenada de acordo com os princípios da física (ratio
physica) e esta, acima da autoridade bíblica, daria garantias de um conhecimento seguro.
A segunda coisa a mostrar é que a interpretação dos textos bíblicos já não se
assenta em um interesse de caráter estritamente histórico; tampouco segue os tradicionais
padrões estabelecidos pelas estratégias de interpretação tipológica e alegórica. A
orientação é a ciência física da época. Esta tendência certamente vai reverberar mais tarde
na nova ciência moderna.
A última vertente a ser apresentada é a escolástica. A influência agora não é mais
platônica, mas aristotélica.
7 As questões disputadas
geral serão admitidos no máximo como figuras da retórica, que no melhor dos casos serve
para enfeitar o texto ou ainda para a facilitar a compreensão dos mais rudes. Também, a
leitura da história, antes totalizante, será reduzida a umas poucas e fragmentadas questões
disputadas (quaestiones disputatae). O fechamento da linguagem, fruto tanto dos
movimentos reformistas (solo littera), presentes também na ideologia do Estado moderno e
das ciências em geral, ainda hoje se reflete em nossos meios acadêmicos. A reação à
fragmentação da história será feita apenas com autores como Vico e Maquiavel, mais tarde
retomada por Hegel e Marx, e as correntes marxistas e positivistas que seguiram por esta
mesma senda.
A disputa (disputatio), por sua vez, é uma técnica que mostra uma efetiva mudança
em relação a tradicional lectio historiae. A base do ensino ainda se apoia na leitura (lectio)
do texto bíblico. Porém, a lectio agora indica apenas um procedimento que consiste na
leitura e comentário literal de um texto, feito por um magister universitário (professor),
mediante uma análise gramatical e uma exposição lógico-formal. O método escolástico,
além da lectio, será complementado por outros três momentos: a quaestio, a disputatio e a
determinatio ou respondeo.
Em suma, tal procedimento pedagógico funciona do seguinte modo. Parte-se de
uma questão a ser discutida (quaestio disputatae), por exemplo: “ se Deus existe” , “ se a
potência divina é absoluta” . Um grupo de estudantes busca argumentos de autoridade
(Bíblia, Padres da Igreja, Platão, Aristóteles) ou de razão, em defesa da tese de que Deus
não existe, por exemplo: porque o mal existe no mundo ou porque não há necessidade de
um princípio primeiro; e outro grupo reúne argumentos contrários, por exemplo, a escritura
diz: “ Eu sou aquele que sou” (Êx. 3,14). A disputa ocorre entre os argumentos contrários e
os favoráveis à questão indicada. Por fim, o magister faz as devidas considerações lógicas,
semânticas e gramaticais, esclarecendo conceitos, e ao cabo estabelece a solução
(respondeo).
Este também é um dos caminhos que certamente aflorará na educação moderna - e
talvez na atual -, em que cada vez mais se busca um método que possa apreender um
objeto (aqui um texto) da maneira mais controlada possível.
A beleza, por sua vez, já não estará mais vinculada à proporção das formas
geométricas como na arte românica. A busca da harmonia tem por endereço a essência das
coisas, o que, neste momento, significa sobretudo a volta ao naturalismo. É compreensível
12
Revista Litterarius – Faculdade Palotina | Vol.13 | N. 03 | 2014 – ISSN 2237-6291
Educação e formação do espírito na Idade Média
Noeli Dutra Rossatto
assim que o gótico venha a se caracterizar por um certo dualismo, em que a representação
do diretamente experimentável, individual e visível - e não mais do simbólico como no
românico -, contrasta com a necessidade de um universalismo. Daí o verticalismo e a
fragmentação de cenas no gótico. Há, por detrás disso, o princípio realista de que as ideias
não estão pairando mais sobre as coisas particulares (como no idealismo platônico), mas
residem nas próprias coisas. O universal é alcançado mediante o procedimento por
analogia o qual abstrai o que é comum (species inteligibilis) a muitos singulares, como em
Tomás de Aquino; ou abstrai as espécies (haecceitas) contidas nos próprios singulares
autônomos, como é o caso de João Duns Escoto, já no outono do medievo.
O mesmo verticalismo pode ser notado na concepção de que a natureza é formada
por uma grande cadeia de seres que tem como ponto de partida os seres mais
insignificantes, passa pelos humanos, e chega ao âmbito superior em que habitam os anjos,
os arcanjos, os querubins, os serafins e o próprio Deus. Aqui já se nota o reflexo da física
de Aristóteles, a qual se firma na ideia de que o espaço está contido nas coisas, servindo
para articular a idealização de um sistema do mundo naturalmente ordenado, heterogêneo e
hierarquizado.
Considerações finais
Parece evidente que a nova Idade Média que se busca não é a da escolástica. O
conceito de comunidade, posto em cena por MacIntyre, por exemplo, ao que tudo indica, é
aquele da tradição monástica ocidental inaugurada por São Bento, e não mais o do civitas
de Agostinho; ou ainda, o de societas, forjado por Tomás de Aquino com base no direito
romano.
É claro também que a orgia simbólica, da qual fala Mafezzoli, caracteriza o século
XII e a cultura pré-escolástica, e não as posteriores tendências iconoclastas, monossêmicas
e não pluralistas que se iniciaram a partir do século XIII e ganharam continuidade na
reforma (protestantismo) e contra-reforma (neoescolástica) religiosa, na nova ciência e no
moderno estado-nação.
E neste exato sentido, deve-se sugerir, por fim, que o uso que Gianni Vattimo faz
da expressão dopo la cristianità, pode, de igual modo e sem forçar o seu sentido inicial,
referendar outras expressões tais como, depois da ciência, depois do estado-nação, depois
13
Revista Litterarius – Faculdade Palotina | Vol.13 | N. 03 | 2014 – ISSN 2237-6291
Educação e formação do espírito na Idade Média
Noeli Dutra Rossatto
Referências
BOIS, G. La revolución del año mil. (Tit. Orig. La mutation de l’ an mil, 1989). Prefácio
de Georges Duby. Tradução de Castelhana de Gonzalo Pontón Gijón. Barcelona: Grijalbo
Mondadori, 1997, 206pp.
______. Año 1000, año 2000. La huella de nuestros miedos. Tradução de castelhana
Oscar Luis Molina. Santiago de Chile: Andrés Bello, 1995.
______. Los tres órdenes o lo imaginario del feudalismo. Barcelona: Argot, 1983.
______. San Bernardo y el arte cisterciense. El nascimento del gótico. Madrid: Taurus,
1986.
FOCILLON, H. El año mil. (Tit. Orig. L’ an mil, Paris, 1952), Madrid: Alianza Editorial,
1966.
14
Revista Litterarius – Faculdade Palotina | Vol.13 | N. 03 | 2014 – ISSN 2237-6291
Educação e formação do espírito na Idade Média
Noeli Dutra Rossatto
LOVEJOY, A. La gran cadena del ser. Historia de una idea. Barcelona: Icaria, 1993.
______. Filosofia e leitura medieval. Revista Educação. Filosofia e Ensino. Santa Maria,
v. 27, n. 02, 2002.
______. Natura naturans, natura naturata. O sistema do mundo medieval. Revista Ciência
e Ambiente. Filosofias da Natureza. Santa Maria, v. 18, p. 18-28, jan./jul. 2004b.
15
Revista Litterarius – Faculdade Palotina | Vol.13 | N. 03 | 2014 – ISSN 2237-6291