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Vol. 13 | N.

03 | 2014 ISSN 2237-6291

EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO DO ESPÍRITO NA IDADE MÉDIA

Noeli Dutra Rossatto*

Resumo: Trata-se da abordagem das principais estratégias de leitura e de ensino que


vigoraram ao longo da Idade Média. Mais precisamente, busca-se entender a confluência
destes temas à luz de três modelos vigentes no medievo Ocidental, a saber: a leitura do
texto e da história feita por alguns autores da Escola Monástica do século XII; a leitura do
mundo ou da natureza realizada por alguns membros da Escola de Chartres no mesmo
século; e, por fim, a leitura do texto guiada por causas lógico-formais da escolástica do
século XIII.

Palavras-chave: Idade Média. Escola Monástica. Escolástica. Hermenêutica.

Education And Spiritual Formation In Middle Ages

Abstract: Deals with the approach of the main reading and teaching strategies that stood
during the Middle Ages. More accurately, searches to understand the confluence of these
themes in light of three in vigor models in the Western medieval, to know: the reading of
text and history made by some authors of the Monastic School of the XII century; the
reading of the world or nature made by select members of the Chartres School during the
same century; and lastly, the reading of text guided by scholastic logical and formal causes
in the XIII century.

Keywords: Middle Ages. Monastic School. Scholastics. Hermeneutics.

1 Viver sob o signo da Idade Média

Embora muitos ainda se reportem à Idade Média como Idade das Trevas, parece
certo que hoje já foi superada a visão do mundo medieval, forjada no renascimento, como
uma grande noite de mil anos iluminada pelas fogueiras da inquisição. Mesmo assim, é
comum ouvirmos o uso pejorativo do termo 'medieval', como sinônimo de obscuro,
atrasado, reacionário, dogmático ou antiquado.
*
Departamento de Filosofia, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM), RS, Brasil. E-mail: rossatto.dutra@gmail.com
Educação e formação do espírito na Idade Média
Noeli Dutra Rossatto

Também parece certo que vivemos ainda a ressaca do segundo milênio da era
cristã. Basta olhar nas bancas de revistas e nas livrarias. Os signos linguísticos estampados
delatam: novo milênio, nova era, apocalipse, fim dos tempos. Poder-se-ia perfeitamente
afirmar que são temas medievais. E mais, que dentre os produtos mais vendidos da
indústria cultural, encontramos palavras-chaves que remetem especificamente à visão de
mundo do medievo: cavaleiros templários, cátaros, gnosticismo, ocultismo, cabala, magia,
fortalezas, castelos, anjos, demônios, entre outros. Muitos prometem, não sem certo clima
de mistério, fazer surpreendentes revelações dos códigos mais secretos escondidos a sete
chaves durante toda a Idade Média.
Afinal, por que hoje a chamada 'Idade das Trevas' passa a brilhar e exercer tanta
atração e fascínio?
Não é certamente pelas influências provenientes da atual análise da conjuntura
mundial hegemônica que nos coloca amiúde frente a personagens - reais e virtuais - que
parecem ter saltado dos textos medievais para a tela da televisão. Também não deve ser
apenas pelo fato de ter ascendido à esfera pública uma atraente retórica fundamentalista,
antes confinada ao interior dos templos, das sacristias, das sinagogas e de algumas
mesquitas. Para muitos, vivemos uma vez mais o tempo das cruzadas. Palavras como
império do bem e do mal, Deus e diabo, Cristo e anticristo, Oriente e Ocidente, mundo
judeu-cristão e mundo muçulmano cada vez mais passaram a fazer parte do vocabulário
midiático cotidiano.
Há com certeza motivos mais profundos. E algo parece evidente: a volta ao
imaginário medieval faz parte do desencantamento com o modus vivendi da chamada
modernidade. Há algum tempo, vivíamos tranquilos sob o amparo e a tutela de conceitos
que nos pareciam tão claros e tão distintos. Também é sintomático que a volta ao simbólico
medieval não ocorre antes do decreto de uma série de finais: fim da história, fim do
homem, fim do comunismo, fim do liberalismo, fim do estado-nação, fim da religião, fim
da arte e de outros tantos metarrelatos modernos. Há pouco fazíamos profissão de fé
intelectual recitando piamente conceitos tais como 'luta de classes', 'progresso',
'consciência', 'ego' e outras tantas entidades metafísicas.
Afinal de contas, parece que a chamada crise do moderno, e o súbito mergulho em
um desconhecido mundo pós-moderno, nos fez saudosistas de um passado pré-moderno, e
mais especificamente medieval. Neste sentido, alguns estudiosos vão dizer que hoje
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vivemos sob o signo de uma nova Idade Média. Tal é o caso do medievalista escocês
Alasdair MacIntyre que, ao final de seu livro Depois da virtude (2001, p. 441), afirma que
não se pode perder de vista que, à diferença da Idade Média anterior, hoje os bárbaros do
norte não mais esperam do lado de lá das fronteiras, mas nos governam há muito tempo.
Não sei se o autor está se referindo apenas ao fato de que nós, os latinos, estamos prestes a
sair de um longo domínio dos bárbaros anglos e saxões durante toda a Era Moderna; ou se,
antes disso, pretende sugerir que ainda vivemos a barbárie no interior das fronteiras do
estado-nação moderno. Seja como for, a proposta que daí decorre é a de uma volta ao
modo de vida comunitário medieval. Prova disso é o que lemos na inusitada conclusão de
seu: “ o que importa agora neste estágio é a construção de formas locais de comunidade,
dentro das quais se possa sustentar a civilidade e a vida intelectual e moral, durante a nova
Idade Média que estamos vivendo” livro (MACINTYRE, 2001, p. 441).
Outros estudiosos, como é o caso do francês Michel Maffezoli (1995, p. 102-103),
de forma mais pontual, sugerem que a “ explosão da imagem” no mundo pós-moderno pode
ser comparada com a “ orgia simbólica” vivida ao longo da cultura medieval. E isso hoje -
adverte o autor -, como poderia parecer aos espíritos mais desavisados, não é a expressão
de uma decadência cultural, mas o retorno a uma prática espiritual mais completa e mais
concreta, capaz de viver e fazer comunidade.
E mais radicalmente, ante o decreto da morte de Deus (pelos fiéis, segundo
Nietzsche), do fim da metafísica e da cristandade, Gianni Vattimo, em seu recente Depois
da cristandade (2004)1 vem advogar em prol de uma condição pós-moderna de
fragmentação, livre dos entraves do cientificismo, da religião e do estado, e à luz da teoria
da Era do Espírito do abade medieval Joaquim de Fiore.
Ou ainda, como quer Giorgio Agamben, em O reino e a glória – Por uma
genealogia teológica da economia e do governo (2008, p. 14-15), o paradigma original das
democracias contemporâneas e do government by consent “ não está escrito no grego de
Tucídides, senão no árido latim dos tratados medievais e barrocos sobre o governo divino
do mundo.”
Os temas enunciados até aqui, por si só, já seriam suficientes para justificar um
estudo mais detido, provocador e estimulante. Porém, a tarefa que nos propomos no

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Ver especialmente o capítulo 2: “ Os ensinamentos de Gioacchino”
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momento não é a de justificar a releitura da Idade Média a partir dos possíveis paralelos
com as temáticas atuais. Isso até poderia ser produtivo. Mas não é o momento e o lugar
adequado para fazê-lo.
O tema que toca abordar é outro. É bem mais preciso, ainda que não menos
complexo. Trata-se da indicação de algumas das estratégias de leitura, de formação
espiritual e de ensino que vigoraram ao longo da Idade Média. Mais precisamente,
buscamos entender a confluência destes temas à luz de três modelos vigentes no medievo
Ocidental: aquele da leitura da história (ratio historiae), feito pela Escola Monástica do
século XII; o da leitura do mundo ou da natureza (ratio physica), levado a cabo, no mesmo
século, por alguns membros da Escola de Chartres; e um terceiro modelo, caracterizado
pela ratio per causas lógico-formais, produzido no interior do século XIII pela escolástica.
Não se pode falar destes três modelos, bem como da relação com as estratégias de
leitura, de formação e de ensino, sem antes situá-los com referência a uma data
emblemática que vai desencadear a crise e o surgimento de um novo espírito medieval: o
Ano Mil.

2 Depois do milênio

Certamente, o primeiro milênio da era cristã continua sendo uma data chave para
pensarmos a Idade Média Ocidental e muito tem intrigado aos historiadores de diversas
tendências. Foi objeto do clássico estudo Ano mil, de Henry Focillon, publicado em 1952.
A ele seguiram outros trabalhos não menos importantes e também já clássicos: The Porsuit
of the Millenium (1978), de Norman Cohn; O ano mil (1967) e Ano 1000 ano 2000 (1995),
ambos de Georges Duby; e A mutação do ano mil (1989), de Guy Bois.
Mas por que o Ano Mil é uma data chave?
Para o presente propósito, cabe apenas indicar que o período ao redor do primeiro
milênio cristão circunscreve um momento de crise. Não, porém, uma crise que tem a
dimensão dada inicialmente por alguns historiadores (Focillon, por exemplo), que
supervalorizaram os registros históricos que acentuavam tão somente os prodígios do
primeiro milênio cristão. Tal argumentação tomava por base o relato de alguns milagres sui
generis, como exemplo um burro ressuscitado, de sinais no céu (um eclipse, um cometa,
um combate de estrelas) e de algumas desordens biológicas ou sociais (nascimento de
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monstros, epidemias, fome). Para os medievais, tais seriam inegavelmente os sinais


visíveis do fim próximo (DUBY, 1996).

3 Um novo espírito

A crise, a nosso ver, está radicada na interpretação da história vigente no período


em torno do primeiro milênio com base nos métodos da chamada lectio historiae (leitura
da história) de base narrativa e perspectiva escatológica. Estes métodos de leitura da
história se apoiavam em uma visão apocalíptica de cunho imediatista e pessimista. É, sem
dúvida, discutível se a teoria agostiniana da história deu margem a esta interpretação
milenarista. Porém, parece certo que, ao dividir a história em sete idades (aetates) do
mundo, e situar o tipo-Cristo na passagem da quinta para a sexta idade, Agostinho deixa
preparado o terreno para que germine a espera dos mil anos: os mil anos que antecederiam
o final dos tempos, segundo ensinava o Apocalipse de João. O que havia para decidir era
apenas questão de data: seriam os mil anos do nascimento (1000) ou da morte de Cristo
(1033)? Porém, ninguém ousava duvidar que fossem mil anos.
Tendo em vista que, depois do primeiro milênio, nada de extraordinário ocorreu,
era natural que este modelo de interpretação da história entrasse em crise.
Os sinais do novo espírito logo poderão ser vistos pelos resultados das chamadas
quatro revoluções medievais que florescerão logo depois do milênio: a demográfica, a
urbana, a agrária e a comercial. Também estarão impregnados na construção de um novo
patrimônio cultural, que resulta no Renascimento Carolíngio do século XII. E o que mais
nos interessa aqui: o novo espírito que se impõe ao pensamento medieval traz consigo as
exigências de uma justificação racional do conhecimento. Doravante, o pensamento
filosófico e teológico deverá se justificar de acordo com critérios provenientes das novas
concepções de racionalidade.

4 O Livro da História

Uma das tentativas de reconstrução dos métodos de interpretação da história (lectio


historiae) se dá no interior da Escola Monástica do século XII.

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Vários são os autores ligados ao pensamento monástico que vão tentar repensar o
legado deixado pela leitura da história agostiniana de corte milenarista. Duas coisas eram
necessárias. Primeiro, repensar a divisão da história proposta por Agostinho. E, para que
isso fosse possível, em segundo lugar, reavaliar as antigas práticas metodológicas
empregadas para interpretar a história ao longo da tradicional lectio historiae. Um desses
autores, herdeiro da tradição monástica, que apresenta uma solução mais acabada a essa
problemática, é o abade calabrês Joaquim de Fiore (1135-1205).
A solução dada por Joaquim de Fiore passa pela adoção de um modelo de
interpretação da história que se articula com base na imagem da Trindade. A imagem de
um Primeiro Princípio (arché) uni-trinitário funcionará como um esquema ou proposição
primeira que serve para regular todos os postulados implicados nos métodos de leitura da
história (ROSSATTO, 2004a).
Em suas mãos a já desgastada prática alegórica, oriunda da Escola de Alexandria
(Didaskaleion, dos sécs. II e III d.C), será transformada. Perderá sua principal
característica centrada na forte oposição entre letra e espírito, corpo e alma, carnal e
espiritual. E, além disso, ficará limitada a não mais que cinco sentidos, contidos na letra da
escritura-história. Por sua vez, estes cinco sentidos serão buscados segundo o padrão dado
pelas cinco relações intratrinitárias, a saber: 1) o sentido histórico: da relação do Pai para
Filho; 2) o moral: do Filho para o Pai; 3) o tropológico: do Filho e do Pai para o Espírito;
4) o contemplativo: do Filho e do Espírito para o Pai; e, por fim, 5) o anagógico: do Pai, do
Filho e do Espírito para o mundo.
Do mesmo modo, o método tipológico-histórico, proveniente da Escola de
Antioquia (séc. IV), bastante utilizado pelos monges, será reestruturado com base no
modelo trinitário. Desta vez, serão os sete modos próprios de enunciar as três figuras da
Trindade que darão o padrão da interpretação. Os tipos ou significantes históricos serão
ajuizados segundo sete significados principais, a saber: 1) como Deus-Pai; 2) Deus-Filho;
3) Deus-Espírito; 4) Deus-Pai e Filho; 5) Deus-Pai e Espírito; 6) Deus-Filho e Espírito.
Mais importante, porém, será a proposta de uma nova estratégia de interpretação da
escritura-história: o método por concórdia. Esta estratégia metodológica, tomando como
pressuposto a ideia de que a história está dividida por três estados (status), tal qual a
imagem (imago) da Trindade, procura equivaler personagens (individuais ou coletivos) e
acontecimentos significativos do primeiro estado com outros do segundo e do terceiro.
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Assim, é possível dizer que os personagens do primeiro estado sejam equivalentes aos do
segundo, como por exemplo: Abraão significa o mesmo (idipsum significat) que Zacarias;
Sara o mesmo que Isabel; Isaac o mesmo que João Batista; o homem Jesus o mesmo que
Jacó; e os doze Patriarcas e o mesmo número de Apóstolos (Joaquim de Fiore, 1964a, f.
31c). E para cada um dos tipos do primeiro e segundo estados, haveria um correspondente
no terceiro. A regra geral da concordia é a seguinte: de cada dois (ou três) significantes,
resulta sempre um único significado (duo igitur significantia sunt unum significatum)
(JOAQUIM DE FIORE, 1964a, f. 7b-c). Com o auxílio deste método, o abade calabrês
acredita poder chegar ao âmago (substância ou essência) da história que,
consequentemente, possibilitaria a perfeita contemplação da própria imagem da Trindade
espelhada em todos os seus detalhes. É um projeto que, ao seu final, implicaria em nada
menos que conhecer a história tal como ela foi feita pelo Criador.
Tal proposta só é bem compreendida na medida em que se levar em conta duas
coisas mais. Para o abade de Fiore, diferentemente de Agostinho, a história continua com
seus tipos e anti-tipos significantes depois do evento-Cristo. E, além disso, depois da era
cristã, seguir-se-ia um novo estado, um estado espiritual em que se efetivariam outros tipos
e anti-tipos mais elevados que aqueles do primeiro e segundo estados.
O outro aspecto a ser levado em conta diz respeito não mais ao método, mas à nova
divisão da história proposta pelo abade. A história, segundo ele, continua a ser dividida em
conformidade com as tradicionais sete idades (aetates), tal como já havia referendado o
próprio Agostinho. Porém, no interior das sete idades, haveria uma simétrica divisão
formada por subconjuntos de três estados (status), cinco tempos (tempora) e vinte e uma
gerações (generatio). Não cabe aqui discorrer em detalhes a respeito da complexa relação
de proporção guardada pelos vários subconjuntos entre si. Limitamo-nos a uma palavra
conclusiva: para o abade, a Trindade se cria (ou gera) plenamente ao longo de toda a
história humana. E, na medida em que a história avança em direção ao seu final, cada vez
mais a humanidade se aproxima da perfeição. Assim, ele poderá dizer: o primeiro estado é
de servidão; o segundo, de obediência filial; e o terceiro, de liberdade total; o primeiro de
urtigas, o segundo de rosas, o terceiro de lírios; o primeiro de ervas, o segundo de espigas e
o terceiro de trigo (JOAQUIM DE FIORE, 1964a, f. 112a-b).

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5 Um dilema: ensinar literatura ou ciência?

É possível afirmar que a proposta de Joaquim de Fiore só foi possível no contexto


do século XII, em que Agostinho já era lido sem a velha oposição entre as duas cidades, a
terrena e a celeste. Os dois mundos haviam sido literalmente emendados com base no
platonismo herdado do Pseudo Dionísio Areopagita (s. IV) e de seu tradutor para o século
IX, João Escoto Erígena. É em Dionísio que se encontra o modo de justificar a hierarquia
terrena com base na celeste, e o modo de divinizar o princípio gregoriano da autoridade e
da desigualdade social. É esta a mesma lógica que, segundo alguns historiadores (DUBY,
1983), impregna o esquema das três ordens da societas medieval em que uns trabalham,
outros combatem e outros rezam.
De igual modo, concordia e similitudo, ordo e consensus são vocábulos que vão se
repetir exaustivamente nos registros dos séculos XII. A arte românica como um todo
confirma isso: ela não faz a mínima distinção entre os dois mundos, o divino e o humano, o
celeste e o profano. Representa-os normalmente misturados, entrelaçados. Em um mesmo
cenário, costumam aparecer personagens que indistintamente habitam a terra, o céu e o
inferno: Deus, diabos, anjos, dragões, serpentes e homens. Refletindo a solidariedade entre
a nobreza e o clero, a arte românica, ao mesmo tempo monástica e aristocrática, além de
em um primeiro plano desempenhar uma função catequética, terá a incumbência de
representar uma ordem de mundo.
A metáfora da ordem transita em todos os setores. E o seu contrário, a desordem,
será sinônimo do mal. A desordem, como bem assevera Georges Duby (1983, p. 169), “ é o
verme na fruta, a podridão.” E, como tal, deve ser extirpado a qualquer custo. A busca
exagerada da ordem estará refletida em uma das tendências estéticas da época: a chamada
estética sapiencial, que tem por base um versículo emblemático do Livro da Sabedoria
(Sab 11,12), o qual diz estar tudo disposto segundo a ordem, o número e a medida.
O mesmo traço mental está impresso não só na arte figurativa, mas também na
prática pedagógica baseada nas sete artes liberais, divididas entre o trivium e o quadrivium.
O primeiro se dedica ao estudo das palavras (voces), mediante as disciplinas da Lógica
(dialética), da Retórica e da Gramática. O segundo se dedica ao estudo das coisas (res), por
meio da Música, da Aritmética, da Geometria e da Astronomia. A ordem, o número e a
proporção alicerçam esta prática pedagógica. O número e a proporção compreendem todas
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as dimensões espaciais, tratadas pela Geometria e Aritmética, e todas as dimensões


temporais, pertinentes à Música e à Astronomia. Pode-se dizer mais precisamente: as duas
primeiras disciplinas, respectivamente, compreendem o número em relação ao espaço e ao
tempo fora do movimento; as segundas, respectivamente, o número em movimento em
relação ao tempo e ao espaço.
De acordo com este platonismo do Timeu, o mundo é um ser vivo, belo e bom,
porque está ordenado segundo a proporção numérica. O Demiurgo, segundo o Princípio de
Plenitude (LOVEJOY, 1993), é bom e, por isso, só poderia ter criado o melhor dos mundos
possíveis. A beleza significa, então, a ordem, a harmonia e a proporção. Daí provém uma
das disputas da época entre os “ literatos” (trivium) e os “ cientistas” (quadrivium) a respeito
da beleza poética (HAUSER, 1969). Perguntavam eles: ela advém dos elementos
qualitativos (Gramática, Lógica, Retórica) ou dos elementos quantitativos (Música,
Astronomia, Geometria, Aritmética)? De modo semelhante, hoje ainda persiste a pergunta
a propósito do método mais apropriado para investigar: será o qualitativo ou o
quantitativo?
A disputa entre as disciplinas do trivium e do quadrivium já indicava certa
fragmentação no sistema escolar das sete artes liberais. A cisão logo se mostrará mais
visível através dos procedimentos utilizados por outras escolas medievais: a Escola de
Chartres, dedicada ao estudo do quadrivium; e a chamada Escolástica, restrita basicamente
ao trivium.

6 O Livro da Natureza

Entre os problemas tratados pela Escola de Chartres, ganha relevância o de tentar


comprovar que a cosmologia do Timeu platônico, baseada nos quatro elementos, estava de
acordo com os seis dias da criação (hexaemeron), narrados no livro do Gênesis. O
problema que estava por detrás desta busca era o seguinte: o livro do Gênesis tem ou não
uma consistência 'científica'? O critério de verificação era dado pelos princípios físicos
contidos no Timeu, único livro do filósofo grego (e incompleto), que os medievais tiveram
acesso até o século XII. Os árabes, por sua vez, investigavam o mesmo problema com
relação ao Corão, e os judeus com respeito ao texto da Torá.

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Cristãos, muçulmanos e judeus, no entanto, estavam de acordo quanto a um aspecto


da cosmologia platônica. A ideia de que a alma descia (editus) da dimensão celeste e, neste
processo, ao entrar no mundo, incorporava literalmente os quatro elementos (terra, fogo,
água e ar). A via de retorno da alma (reditus) se dava definitivamente com a morte. Porém,
ainda na vida terrena, a alma poderia ascender mediante um processo pedagógico que
consistia no aprendizado de como se libertar dos elementos primordiais, elevando-se assim
à esfera divina. Neste sentido, conforme entendia o platonismo em geral, educar era
ensinar a morrer. Os outros modos da ascensão se davam pelas práticas que visavam o
enfraquecimento dos elementos corporais: a mortificação, os jejuns, a abstinência, as
penitências e os sacrifícios da carne.
Um aspecto da pesquisa em que se detém a Escola de Chartres, como já foi
salientado, é o da verificação da consistência entre a narratio da criação do mundo no
Livro do Gênesis e a física platônica do Timeu.
Foi aceito, de modo geral, que os quatro elementos primordiais estão presentes nos
seis dias da criação, agrupados segundo a tríplice distinção de natureza: a luminosa (fogo),
a transparente (ar, água) e a opaca (terra) (BOAVENTURA, 1983, p. 31). No primeiro dia,
a luz e as trevas (um elemento luminoso e um opaco) são separadas; no segundo, é criado o
céu estrelado ou firmamento no meio das águas (luminoso-transparente); no terceiro, as
águas são apartadas da terra (transparente-opaco); no quarto, o céu é ornado com luzes
(luminoso); no quinto, o ar se enche de aves e a água de peixes (transparente); no sexto,
finalmente a terra (opaco) será ornada por animais; e o homem e a mulher são criados. A
ordem entre os elementos é a seguinte de cima para baixo: fogo, como natureza luminosa;
ar e água, como naturezas transparentes; e a terra, como natureza opaca. O caminho de
volta pela educação ou a contemplação consiste na ultrapassagem dos elementos mais
baixos (terra e água) em direção aos elementos superiores (ar e fogo).
Os chartreanos, mais preocupados com uma abordagem Física, encontram um
problema na narrativa literal do texto do Gênese. Trata-se da passagem referente a criação
do segundo dia em que Deus diz: “ Faça-se um firmamento entre as águas e separe ele umas
das outras” (Gên. 1,6). Até então, para a vaga cosmologia medieval, não havia dúvida a
respeito de que pudesse existir uma região formada por águas no meio dos céus: aqua quae
super coelum sunt. Tanto Agostinho (s. V) quanto Pedro Abelardo (s. XI) concordavam
com a letra do texto bíblico. Os chartreanos não vão concordar. Segundo a física platônica
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não poderia haver uma região de água no meio dos céus, dado que a água era um elemento
mais pesado que o ar. Portanto, tal versículo bíblico contrariava os princípios da física
platônica (ROSSATTO, 2004b).
Como resolver o impasse? Mais que desafiar a autoritas bíblica, esses autores estão
convencidos de que seguem os princípios físicos que atestam uma ordem racional do
universo. Isto é: a natureza está ordenada de acordo com os princípios da física (ratio
physica) e esta, acima da autoridade bíblica, daria garantias de um conhecimento seguro.
A segunda coisa a mostrar é que a interpretação dos textos bíblicos já não se
assenta em um interesse de caráter estritamente histórico; tampouco segue os tradicionais
padrões estabelecidos pelas estratégias de interpretação tipológica e alegórica. A
orientação é a ciência física da época. Esta tendência certamente vai reverberar mais tarde
na nova ciência moderna.
A última vertente a ser apresentada é a escolástica. A influência agora não é mais
platônica, mas aristotélica.

7 As questões disputadas

Em linhas gerais, pode-se dizer que o método lógico-dedutivo da escolástica tem


como suporte as disciplinas do trivium. Porém, isso deve ser complementado por três
observações pontuais. Em termos de conteúdo, a escolástica não mais fará distinção entre
os problemas ligados ao tratamento das palavras e o das coisas. Isto significa dizer que já
não vale a distinção entre o trivium e o quadrivium. O sistema escolar não segue as sete
artes liberais.
Em termos metodológicos, há o pressuposto de que agora o que importa é a letra
(realismo) do texto bíblico, isto é, a exterioridade da palavra ganha relevância absoluta.
Dirá Tomás de Aquino, por exemplo, “ ... não há nada de necessário à fé, contido no
sentido espiritual, que ela (a Escritura) não explicite manifestamente, em outro lugar, no
sentido literal” (S. th., I, 1, 10). Quer dizer: só há um sentido aceito: o literal. Não há mais
uma pluralidade de sentidos como antes. Alias, a polissemia e o duplo sentido serão
tomados como uma patologia da linguagem, tal como hoje fazem os procedimentos de
análise linguística guiados pela semântica, a semiótica e a lógica em geral. A
multiplicidade do sentido tem de ser evitada: a linguagem figurada e o simbolismo em
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geral serão admitidos no máximo como figuras da retórica, que no melhor dos casos serve
para enfeitar o texto ou ainda para a facilitar a compreensão dos mais rudes. Também, a
leitura da história, antes totalizante, será reduzida a umas poucas e fragmentadas questões
disputadas (quaestiones disputatae). O fechamento da linguagem, fruto tanto dos
movimentos reformistas (solo littera), presentes também na ideologia do Estado moderno e
das ciências em geral, ainda hoje se reflete em nossos meios acadêmicos. A reação à
fragmentação da história será feita apenas com autores como Vico e Maquiavel, mais tarde
retomada por Hegel e Marx, e as correntes marxistas e positivistas que seguiram por esta
mesma senda.
A disputa (disputatio), por sua vez, é uma técnica que mostra uma efetiva mudança
em relação a tradicional lectio historiae. A base do ensino ainda se apoia na leitura (lectio)
do texto bíblico. Porém, a lectio agora indica apenas um procedimento que consiste na
leitura e comentário literal de um texto, feito por um magister universitário (professor),
mediante uma análise gramatical e uma exposição lógico-formal. O método escolástico,
além da lectio, será complementado por outros três momentos: a quaestio, a disputatio e a
determinatio ou respondeo.
Em suma, tal procedimento pedagógico funciona do seguinte modo. Parte-se de
uma questão a ser discutida (quaestio disputatae), por exemplo: “ se Deus existe” , “ se a
potência divina é absoluta” . Um grupo de estudantes busca argumentos de autoridade
(Bíblia, Padres da Igreja, Platão, Aristóteles) ou de razão, em defesa da tese de que Deus
não existe, por exemplo: porque o mal existe no mundo ou porque não há necessidade de
um princípio primeiro; e outro grupo reúne argumentos contrários, por exemplo, a escritura
diz: “ Eu sou aquele que sou” (Êx. 3,14). A disputa ocorre entre os argumentos contrários e
os favoráveis à questão indicada. Por fim, o magister faz as devidas considerações lógicas,
semânticas e gramaticais, esclarecendo conceitos, e ao cabo estabelece a solução
(respondeo).
Este também é um dos caminhos que certamente aflorará na educação moderna - e
talvez na atual -, em que cada vez mais se busca um método que possa apreender um
objeto (aqui um texto) da maneira mais controlada possível.
A beleza, por sua vez, já não estará mais vinculada à proporção das formas
geométricas como na arte românica. A busca da harmonia tem por endereço a essência das
coisas, o que, neste momento, significa sobretudo a volta ao naturalismo. É compreensível
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assim que o gótico venha a se caracterizar por um certo dualismo, em que a representação
do diretamente experimentável, individual e visível - e não mais do simbólico como no
românico -, contrasta com a necessidade de um universalismo. Daí o verticalismo e a
fragmentação de cenas no gótico. Há, por detrás disso, o princípio realista de que as ideias
não estão pairando mais sobre as coisas particulares (como no idealismo platônico), mas
residem nas próprias coisas. O universal é alcançado mediante o procedimento por
analogia o qual abstrai o que é comum (species inteligibilis) a muitos singulares, como em
Tomás de Aquino; ou abstrai as espécies (haecceitas) contidas nos próprios singulares
autônomos, como é o caso de João Duns Escoto, já no outono do medievo.
O mesmo verticalismo pode ser notado na concepção de que a natureza é formada
por uma grande cadeia de seres que tem como ponto de partida os seres mais
insignificantes, passa pelos humanos, e chega ao âmbito superior em que habitam os anjos,
os arcanjos, os querubins, os serafins e o próprio Deus. Aqui já se nota o reflexo da física
de Aristóteles, a qual se firma na ideia de que o espaço está contido nas coisas, servindo
para articular a idealização de um sistema do mundo naturalmente ordenado, heterogêneo e
hierarquizado.

Considerações finais

Parece evidente que a nova Idade Média que se busca não é a da escolástica. O
conceito de comunidade, posto em cena por MacIntyre, por exemplo, ao que tudo indica, é
aquele da tradição monástica ocidental inaugurada por São Bento, e não mais o do civitas
de Agostinho; ou ainda, o de societas, forjado por Tomás de Aquino com base no direito
romano.
É claro também que a orgia simbólica, da qual fala Mafezzoli, caracteriza o século
XII e a cultura pré-escolástica, e não as posteriores tendências iconoclastas, monossêmicas
e não pluralistas que se iniciaram a partir do século XIII e ganharam continuidade na
reforma (protestantismo) e contra-reforma (neoescolástica) religiosa, na nova ciência e no
moderno estado-nação.
E neste exato sentido, deve-se sugerir, por fim, que o uso que Gianni Vattimo faz
da expressão dopo la cristianità, pode, de igual modo e sem forçar o seu sentido inicial,
referendar outras expressões tais como, depois da ciência, depois do estado-nação, depois
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do indivíduo e depois da educação moderna, mas também – e sobretudo – depois do


cristianismo, em conformidade com o próprio Joaquim de Fiore.

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