Você está na página 1de 4

Sociologia Geral (41100)

Texto de apoio ao estudo do tema 2


Émile Durkheim (1858-1917), Da Divisão do Trabalho Social (1893)

O objectivo da obra A divisão do trabalho social é desenvolver uma abordagem


científica à moral, procurando compreender objectivamente, através de um método
assente na observação rigorosa, os factos morais como factos sociais, logo, relativos à
consciência colectiva dessa sociedade. Como a sociologia é distinta da filosofia, a
sociologia não procura formular uma moral ideal. A moral é um conjunto de normas de
conduta inerentemente sociais (estruturais) com características específicas que podem
ser estudadas cientificamente, i.e., podem ser observadas, descritas, classificadas. Ao
identificar as suas características, o estudo científico da moral permite identificar as leis
(sociais) que explicam os fenómenos da moral. Porém, o estudo científico da moral pode
– e, para Durkheim, deve – servir de base para uma reforma política da sociedade que
procure minimizar os problemas identificados pela ciência ao nível da coesão social.
A preocupação central de Durkheim é entender a relação entre indivíduo e
solidariedade social (i.e., o tipo de vínculo que liga os indivíduos uns aos outros, a forma
como os indivíduos se relacionam uns dos outros). Durkheim vai constatar que o grau de
complexidade da divisão social do trabalho condiciona o tipo de solidariedade
predominante em cada sociedade.
Dado isto, Durkheim vai comparar as sociedades modernas industriais suas
contemporâneas com outros modelos de organização da vida económica e social. Há dois
modelos centrais de organização económica.
(1) Sociedades Arcaicas/Primitivas: é um modelo societal com uma estrutura social
simples, tendo como grupo basilar a família. O centro da vida social, o que fornece e
sanciona as regras de condutas moral, é a religião. O peso da consciência colectiva sobre
a consciência individual é forte: há pouca individualização, os indivíduos são muito
semelhantes entre si, tal como o que estes fazem é semelhante. Há também pouca
especialização das actividades realizadas, o que contribui para o reduzido grau de
autonomia individual (de individualização).
(2) Sociedades Complexas/Modernas/Industriais: é um modelo societal
caracterizado por uma elevada especialização de funções, i.e., as funções
desempenhadas por cada indivíduo diferenciaram-se enormemente, resultando numa
divisão social do trabalho complexa. O novo centro da vida social é a economia. A

1
consequência disto é o individualismo crescente: cada indivíduo é mais autónomo, sente-
se mais liberto dos constrangimentos religiosos, tradicionais, etc. O individualismo
(desregulado) dá origem a problemas de coesão social.
Esta classificação dos modelos de organização económica é o ponto de partida de
Durkheim para entender como se transformou a solidariedade nas sociedades modernas
industriais devido à complexificação da divisão social do trabalho (i.e., devido às
crescentes especialização e diferenciação de funções).
Mas como estudar os tipos de solidariedade? Fiel ao método sociológico que
expôs, Durkheim considera que é necessário encontrar o indicador objectivo que permite
estudar cientificamente este facto social, ou seja, é preciso encontrar a expressão
empírica objectiva e quantificável da solidariedade. Para Durkheim, o indicador da
solidariedade é o direito. O direito é a instituição que visa salvaguardar a coesão social,
conferindo às regras de conduta (morais) uma forma estável. Ou seja, o direito é a
manifestação estável e concreta da solidariedade social, i.e., do modo como os indivíduos
se ligam uns aos outros. Logo, para entender a solidariedade, basta entender o direito.
Portanto, o direito é o indicador da solidariedade. Assim sendo, identificando os
diferentes tipos de direito, identificamos os diferentes tipos de solidariedade que lhes
correspondem. Há 2 grandes tipos de direito, indicadores de 2 grandes tipos de
solidariedade:
(1) No direito repressivo as sanções atingem o infractor privando-o de algo, da sua
honra, da sua liberdade, da sua vida (e.g., direito penal). É o tipo de direito central nas
sociedade arcaicas. É o indicador da solidariedade mecânica.
(2) No direito restitutivo as sanções visam um reequilíbrio, que restituirá a
conduta que se desviou à norma (e.g., direito civil, comercial, administrativo, etc.). É o
tipo de direito central nas sociedades modernas industriais. É o indicador da
solidariedade orgânica, aquela que tem origem na divisão social do trabalho.
(1) A solidariedade mecânica é uma solidariedade de semelhança. É o tipo de
solidariedade central das sociedade arcaicas, em que o peso da consciência colectiva
sobre a consciência individual é enorme, levando a uma reduzida individualização, logo,
levando a que os indivíduos tenham fortes similitudes entre si. Tanto os indivíduos
quanto as funções que estes desempenham são pouco diferenciadas. A consciência
colectiva domina, em grande medida, através do papel central desempenhado pela
religião, que fornece valores, crenças e regras de conduta comuns a todos os indivíduos.
Os indivíduos são meras extensões da consciência colectiva. A religião controla cada

2
indivíduo no mais íntimo de si, tornando todas as normas em obrigações absolutas cujo
incumprimento dá origem a sanções penais severas pois cada infracção é um ataque à
própria consciência colectiva, é um ataque àquilo que há de semelhante, de comum,
entre todos os elementos da sociedade.
(2) A solidariedade orgânica é bem diferente da anterior. É uma solidariedade
assente na diferença entre indivíduos, na diferenciação funcional que decorre da divisão
social do trabalho. É o tipo de solidariedade central das sociedades modernas industriais
onde a religião e a tradição enfraqueceram o seu controlo sobre a vida social e
individual, sendo substituídas pela economia como novo centro da vida social. A divisão
do trabalho crescentemente complexa, a diferenciação e especialização de actividades
(funções) que cada indivíduo desempenha, reduz (sem eliminar) o peso da consciência
colectiva sobre cada consciência individual, que ganha um espaço de liberdade relativa
face à colectividade, elevando-se a autonomia individual (i.e., o individualismo) a valor
cimeiro. A solidariedade provém, agora, da elevada inter-dependência funcional entre
todos os indivíduos. Ou seja, a especialização de funções, criando individualização,
aumenta também a inter-dependência entre os diversos elementos da sociedade (cada
um é menos auto-suficiente ao nível da produção dos recursos de que necessita para
viver), logo, indirectamente, torna cada um mais dependente da colectividade. Sendo
uma solidariedade assente na diferença, as infracções às regras de conduta já não são
consideradas como um atentado directo contra o que há de comum entre os indivíduos.
Estas infracções só afectam a sociedade em geral de modo indirecto, implicando
directamente apenas os infractores e os indivíduos ou instituições lesados. Deste modo,
a sanção é menos severa, não visando privar o infractor da sua honra, liberdade ou vida,
mas tão somente restabelecer o equilíbrio funcional que é quebrado quando uma das
partes não cumpre o seu papel (e.g., coimas, multas, etc., relativas ao direito
administrativo, comercial, etc.).
Nas sociedades modernas industriais, continua a existir, ainda que enfraquecida,
solidariedade mecânica. Apenas é menos relevante do que a solidariedade orgânica.
Contudo, a solidariedade orgânica é mais frágil do que a solidariedade mecânica,
dando origem a um duplo problema de integração e de regulação:
(1) A divisão do trabalho leva a uma individualização crescente, que reduz o
controlo directo da consciência colectiva sobre cada indivíduo, levando a que cada um
deixe de submeter (tanto quanto anteriormente) os seus interesses privados aos

3
interesses colectivos, o que aumenta o isolamento individual, o egoísmo e os conflitos
entre indivíduos. Portanto, há uma integração social insuficiente.
(2) A economia não regula os indivíduos tão bem quanto a religião os regulava, a
economia não fornece aos indivíduos um conjunto de normas de conduta moral tão forte
e estável quanto a religião fornecia. Ou seja, há um problema de regulação das funções
interdependentes que compõem a sociedade. Para Durkheim, a economia está num
estado de “anomia”, está desregrada, tem falta de normas, levando a que vigore a lei do
mais forte, o que contraria o interesse colectivo e gera isolamento e sofrimento
individual (e.g., empregado submete-se à maior força do patrão).
E como a economia é o novo centro da vida social, se ela está em situação de
anomia, então, toda a sociedade se encontra anómica. O que falta às sociedades
modernas industriais (mas que as sociedades arcaicas tinham) são instituições (jurídicas,
profissionais, etc.) fortes que sejam capazes de assegurar que a conduta dos indivíduos
favoreça a coesão social.

A leitura deste texto não substitui o estudo da bibliografia obrigatória desta unidade
curricular. Para proceder ao estudo deste ponto do programa desta unidade curricular,
deverá ler o texto disponibilizado na sala de aula virtual, cuja referência bibliográfica se
encontra de seguida.

Durkheim, Émile (2004), “A divisão do trabalho social”, “Solidariedade mecânica e


orgânica”, in Manuel Braga da Cruz (org.), Teorias Sociológicas. Os Fundadores e os
Clássicos. Vol 1. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 313-323, 325-343. Edição original
1893.

Este texto foi preparado por João Aldeia como apoio ao estudo dos/as estudantes do
ano lectivo 2021/2022 da unidade curricular Sociologia Geral (41100) da Universidade
Aberta. O autor não autoriza a sua utilização para outros fins.

Você também pode gostar