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Tabela de Conteúdos
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Epílogo
Agradecimentos
aviso — bwc
Essa presente tradução é de autoria pelo grupo Bookworm’s
Cafe. Nosso grupo não possui fins lucrativos, sendo este um
trabalho voluntário e não remunerado. Traduzimos livros com
o objetivo de acessibilizar a leitura para aqueles que não sabem
ler em inglês.
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Aceitamos críticas e sugestões, contanto que estas sejam feitas
de forma construtiva e sem desrespeitar o trabalho da nossa
equipe.
1
SCARLETT
1
O clube de LARping (Live action role-playing) é um grupo formado por
pessoas interessadas em participar de simulações de jogos, incluindo
competições e combates, tudo de forma segura.
— Nome? — a garota exige, olhando para a prancheta.
O namorado dela se levanta e caminha em direção à porta,
tirando um maço de cigarros do bolso da bermuda de nylon.
— Carly — eu digo, minha voz lutando para cima no final
como se estivesse tentando se segurar em uma saliência. —
Carly Schiller.
— Bem-vinda à Gorman University, Carly Schiller — diz ela,
monótona e entediada como se estivesse lendo um roteiro. —
Eu sou Samantha, sua conselheira residente. Parece que você
está no segundo andar, com — Samantha gesticula para uma
garota que acabou de descer as escadas — Hadley!
A garota é linda, com a pele pálida e brilhante e o cabelo loiro
cor de milho preso em um rabo de cavalo baixo. De repente,
estou ciente de como meu rosto deve estar corado e brilhante,
como minhas roupas parecem pesadas de suor, enquanto seu
vestido de verão retrô — o mesmo tom de azul de seus olhos —
parece fresco e alegre, perfeito como seu delineador de olho de
gato. Aposto que meu próprio delineador preto está
manchado. Eu não deveria ter me incomodado com isso esta
manhã, mas eu queria parecer... eu não sei. Outra pessoa.
— Conheça sua nova colega de quarto — diz Samantha. —
Carly, esta é…
— Allison Hadley.
Allison estende a mão para eu apertar. Suas unhas são
brilhantes, pintadas de vermelho vivo, e há algo sofisticado,
quase grandioso, na maneira como ela se comporta. Isso me
lembra das atrizes dos filmes dos anos 1940 que minha mãe
adora. Allison diz o nome dela como se eu já devesse saber.
— Onde está o resto das suas coisas?— ela pergunta.
Eu olho impotente para minhas duas malas surradas, caídas
uma contra a outra no chão.
— Isso é tudo.
Allison inclina a cabeça, balançando o rabo de cavalo
perfeito.
— Você não trouxe um ventilador ou algo assim?
Eu balanço minha cabeça.
— Tudo bem — ela diz. — Eu tenho um punhado, e eu
coloquei todos eles no máximo desde esta manhã, então está
um pouco menos sufocante lá em cima. Aqui, deixe-me ajudá-
la com isso.
— Ah, não, você não precisa… — Eu começo, mas ela já está
levantando minha mala, carregando-a em direção às
escadas. Eu a alcanço, colocando a mochila no meu ombro.
O corrimão de madeira curvo é imponente, mas os degraus
são cobertos pelo mesmo carpete sujo da entrada, tiras de fita
adesiva coladas sobre remendos gastos nos degraus. No andar
de cima, a música está mais alta, batidas sincopadas vibrando
nas paredes.
Allison para no corredor, deixando a mala cair.
— Droga, garota. O que você trouxe aqui?
Eu estou esperando que eu já esteja com o rosto muito
vermelho para meu rubor registrar.
— Apenas... livros. Muitos livros. Desculpa. Eu posso-
— Está tudo bem, você está me poupando uma ida à
academia. — Ela continua pelo corredor, arrastando minha
mala atrás dela como se fosse um cachorro desobediente. — O
banheiro é ali — ela me diz, gesticulando com a ponta do
queixo. — E aqui somos nós.
A porta está entreaberta e Allison a abre totalmente com o
quadril. Ela já se mudou para a metade direita do quarto; a
cama é coberta por um edredom vermelho e preto e há uma
fileira de pôsteres de musicais da Broadway — Wicked: A
História Não Contada das Bruxas de Oz, Rent e O Fantasma
da Ópera — pendurados acima dele. Como ela prometeu, há
vários ventiladores, todos ligados no máximo: dois oscilando
lentamente entre as camas e um ventilador de caixa preso na
janela, soprando ar estagnado para fora pela hera.
— Se você não gosta desse lado — diz ela — podemos
trocar. Só escolhi o mesmo que lado que escolhi no ano
passado.
— Não, é... este lado está bom. — Eu coloco a mochila no
colchão nu. — Espere, você não é caloura?
— Estudante do segundo ano — diz ela, sentando-se de
pernas cruzadas em sua própria cama para que sua saia caia
sobre os joelhos. — Minha colega de quarto do ano passado foi
transferida para a Penn.
— Ei, Allie, você está pronta…
Um menino entra direto na sala como se ele também vivesse
aqui. Assim que ele me vê, no entanto, ele para,
repentinamente estranho.
— Ah, e aí — ele diz. — Desculpa. Você deve ser…
— Esta é minha nova colega de quarto, Carly. — Allison
gesticula entre nós com um giro dramático de pulso. — Carly,
este é o Wes.
Wes é franzino, com ombros estreitos e cabelos castanhos
que caem sobre a testa, roçando as pontas dos óculos de aro
metálico. Ele deve ser o namorado dela. Embora ela não o tenha
apresentado dessa forma, e ele não seja exatamente o tipo que
eu teria imaginado. Quer dizer, eu só a conheci há alguns
minutos, então eu realmente não a conheço, muito menos seu
gosto para garotos. Mas posso dizer, apenas olhando para Wes,
que ele é como eu: uma pessoa que desaparece no
fundo. Considerando que Allison... ela brilha como um
holofote apontado para ela.
— Prazer em conhecê-la, Carly — Wes diz, antes de voltar
sua atenção para Allison. — Você ainda quer…
— Sim! — Ela salta da cama. — Sim, desculpe, perdi a noção
do tempo, mas estou pronta!
Allison calça algumas sandálias e agarra um cordão com suas
chaves e a identificação de Gorman. Ela não olha para mim,
mas Wes sim, parando na porta para lançar um olhar de soslaio
na minha direção antes de seguir Allison para fora.
O ruído baixo dos ventiladores faz parecer que o quarto está
respirando. Meus pais estão provavelmente a apenas alguns
quilômetros de distância, indo para o oeste na Rota 422, mas
sinto que estou em um planeta separado, finalmente livre.
Eu posso ser feliz aqui. Eu sei que posso.
3
SCARLETT
— Não me mate.
Eu giro na minha cadeira. O Dr. Andrew Torres está parado
na soleira da sala de conferências, segurando sua caneca lascada
de insultos de Shakespeare com um sorriso culpado.
— Tomei o resto do café — diz ele.
Saúdo-o com a xícara de torrado escuro que peguei no
carrinho de café da biblioteca a caminho do trabalho.
— Eu tenho tudo sob controle.
Ele ri e desliza para o assento à minha direita.
— Você sempre tem.
Depois de me despedir do cadáver de Tyler, ainda tive tempo
para uma versão abreviada da minha rotina matinal. Chuveiro,
rímel, batom, cabelo modelado em ondas suaves. Mas eu tinha
que pegar o café da manhã em trânsito. Sempre morrendo de
fome depois de uma morte, mesmo aquelas que não exigem
esforço físico. Terminei meu muffin de cranberry antes mesmo
de atravessar o Oak Grove para Miller Hall.
Fui uma das primeiras a chegar para a reunião de equipe. O
resto do corpo docente está entrando agora, conversando entre
si, mas nenhum deles me reconhece. Drew é o único colega de
trabalho com quem tenho algo próximo a uma amizade, e isso
porque ele acha o resto do corpo docente de inglês quase tão
tedioso quanto eu.
— Como foi seu verão? — Drew pergunta, enquanto nós
dois viramos as páginas de nossos cadernos. Ele usa o mesmo
estilo de regra estreita desde que o conheço, comprando um
novo para comemorar o início de cada semestre. — Espero que
você não tenha passado o tempo todo trabalhando naquele
formulário de bolsa e evitando cuidadosamente a diversão.
— Não o tempo todo — eu digo. — Obrigado novamente
pela carta de recomendação.
Drew acena para mim.
— Seu trabalho fala por si. Se eles não escolherem você, eles
são idiotas.
Foi ele quem me contou sobre a bolsa da Women's Academy
em primeiro lugar. A academia é um arquivo privado, dedicado
a preservar o trabalho de escritoras menos
conhecidas. Recentemente, eles obtiveram uma coleção de
cartas até então desconhecidas de Viola Vance, a poetisa da
virada do século que tem sido o principal assunto de minha
pesquisa acadêmica nos últimos anos. Quem ganhar a bolsa
terá acesso exclusivo às cartas por doze meses, além de um
apartamento na esquina do arquivo em Londres.
E serei eu.
— Rafael e eu adoraríamos recebê-la para jantar no próximo
fim de semana — diz Drew. — Ele trouxe uma quantidade
verdadeiramente obscena de vinho de nossa viagem a Paris, e se
você não nos ajudar, seremos forçados a beber tudo nós
mesmos.
Eu sorrio.
— Não posso deixar que isso aconteça.
O marido de Drew, Rafael, é tão vivaz e extrovertido quanto
Drew é sério e erudito. Eles parecem uma combinação
estranha, mas de alguma forma funciona; eles estão casados há
mais de vinte anos.
— Se você quiser — diz Drew —, pode até trazer…
— Ai, Deus, vocês ouviram? — Nossa colega Sandra Kepler
desliza para o assento ao lado de Drew, seus longos brincos de
prata tilintando como sinos de vento. Eu coloco minha palma
sobre a página do meu caderno. Força do hábito; ainda não
escrevi nada além da data de hoje.
Drew dá um gole em seu café, me lançando um olhar. Sandra
pode ser igualmente teatral sobre tópicos que vão desde
devastadores cortes de fundos departamentais para
congestionamentos de papel da copiadora. Mas tenho um bom
palpite sobre o que pode estar chateando-a esta manhã.
— Ouviu o quê?— Drew diz.
Sandra abaixa a voz ainda mais.
— Tyler Elkin.
Eu franzo minha sobrancelha, como se estivesse tentando
localizar o nome. Pareceria mais suspeito se eu reconhecesse
imediatamente — eu só tinha Tyler em uma única aula de
palestra para cem alunos, e eu notoriamente não sigo os
esportes Gorman.
— O jogador de futebol? — Drew diz. — O que tem ele?
— Ele foi encontrado esta manhã...
Sandra se inclina em nossa direção, tão perto que posso sentir
o cheiro do café queimado da sala dos professores em seu hálito.
— Morto — ela diz. — Em sua casa de fraternidade.
Foi rápido — mesmo em uma cidade desse tamanho, onde a
fofoca viaja na velocidade da luz, achei que levaria mais algumas
horas para que a notícia circulasse.
Eu amplio meus olhos, segurando a minha boca em um
pequeno o de choque.
— Como ele…
— Eu não sei. A polícia ainda está lá, eu vi os carros no meu
caminho para o campus.
Uma das desvantagens de cometer assassinatos fora do
terreno da escola: a polícia é chamada imediatamente,
enquanto as evidências ainda estão frescas, em vez de a
segurança do campus se intrometer na cena do crime
primeiro. Mas eu já pesava esses riscos ao fazer meus
planos. Teria sido muito difícil Tyler ficar sozinho no
campus; ele sempre viajava com um grupo de outros jogadores
de futebol e parasitas.
A polícia não me preocupa muito de qualquer
maneira. Alguns dos oficiais do distrito de Gorman não são
totalmente ineptos, mas eles ainda têm apenas um treinamento
forense rudimentar e equipamentos de laboratório
ridiculamente desatualizados. E se uma morte é considerada
suicídio, uma queda aleatória, um acidente estranho, eles só
examinam o assunto o quanto precisam para preencher seus
relatórios burocráticos. Alguns dias, quase perco o desafio de
fugir do Departamento de Polícia de Chicago.
— No entanto, todo mundo está falando sobre essa
postagem que ele fez no Instagram. — Sandra estende seu
telefone para mostrar a Drew e a mim a foto do nascer do sol
no topo do feed de Tyler. Já tem alguns milhares de
comentários.
Para o benefício de Sandra e Drew, e de qualquer outra
pessoa que possa estar prestando atenção, eu pressiono minha
boca fechada novamente e organizo meu rosto em uma mistura
estudada de preocupação e consternação.
— Que coisa horrível — eu digo.
— Eu sei. — Sandra balança a cabeça. — Ele era tão jovem.
— Ainda mais jovem do que aquele menino no ano passado
— diz Drew. — O do curso de antropologia?
Sandra pressiona a mão no peito.
— É uma pena.
Vinte anos é jovem. Mas se Tyler tinha idade suficiente para
estuprar em grupo uma garota e tentar escapar impune, ele
tinha idade suficiente para pagar o preço. E quanto ao menino
no ano passado, ele escapou fácil, considerando o que fez com
sua pobre namorada. Ele bateu nela por meses a fio, mas depois
que eu o empurrei para dentro do rio da ponte de salto suicida
mais popular do condado, ele levou apenas alguns minutos
para se afogar.
Posso sentir a dureza sangrando em meus olhos novamente,
então olho para a mesa, esperando que pareça que estou
tomada pela emoção. Então nosso chefe entra na sala em uma
nuvem da colônia de Couro Inglês, e é hora de um tipo
diferente de dissimulação.
O Dr. Kinnear está mais de dez minutos atrasado, embora
tenha convocado a reunião. Ele sempre age como se estivesse
terrivelmente ocupado, correndo de um compromisso
importante para o outro, sem quase nenhuma chance de
recuperar o fôlego. Ele provavelmente demorou muito para se
masturbar no chuveiro.
Kinnear assume sua posição na cabeceira da mesa de
conferência, mas não se senta ainda, apoiando as mãos no
encosto alto da cadeira. Ele nos dá um sorriso cansado, com
uma pitada de tristeza enrugando seus olhos por trás dos óculos
de tartaruga. Ele deve ter praticado no espelho.
— Tenho certeza de que todos vocês já ouviram as trágicas
notícias a essa altura — diz ele.
Todos acenam sombriamente, inclusive eu. A assistente mais
jovem do departamento está chorando, enxugando os cantos
dos olhos com uma das toalhas de papel marrom do
banheiro. Kinnear leva um momento para dar um aperto
reconfortante no ombro dela. Há rumores de que eles
dormiram juntos após a última festa de Natal dos
professores. Pelo menos ela tem mais da metade de sua idade,
mesmo que apenas alguns anos.
O jovem sentado ao lado dela tira um lenço do bolso e o
oferece a ela. O Dr. Stright — ele é o favorito de Kinnear,
porque ele é basicamente uma versão mais jovem de
Kinnear. Eles até se parecem: cabelos ruivos, olhos azuis, óculos
pretensiosos e sorrisos afetuosos para todos, por favor, gostem de
mim. Agora que Kinnear está na casa dos quarenta, Stright tem
a duvidosa distinção de ser o único jovem e bonito professor do
departamento. Ele faz com que todos os seus alunos o chamem
pelo primeiro nome, como se ele fosse um deles. Um
estratagema patético, mas os alunos — especialmente as
meninas — parecem engoli-lo com uma colher.
— Não sei mais do que vocês agora, infelizmente — Kinnear
continua —, mas tenho certeza de que mais detalhes serão
tornados públicos assim que a polícia se sentir confortável em
compartilhá-los.
— Então, ainda não sabemos? — Sandra pergunta. — Como
ele…
— Pelo o que tudo indica — Kinnear diz. —, Sr. Elkin tirou
a própria vida.
Boa. Se eles forem competentes, a polícia logo deve
determinar que a estricnina que ele bebeu veio da caixa de
veneno de rato colocada bem em cima das prateleiras que
serviram como meu esconderijo esta manhã.
Nem precisei plantar o veneno. Eu o encontrei durante uma
das minhas vigias preparatórias da garagem, provavelmente
remanescente de alguma infestação de roedores anos
antes. Peguei o que precisava para drenar a bebida de Tyler e
coloquei a caixa de volta onde a encontrei. Perfeito para meus
propósitos: apoia a história de que o pobre Tyler, devastado
pela culpa, decidiu se livrar de sua miséria com a coisa mais
próxima à mão.
— Agora — Kinnear continua. — Por mais devastados que
eu saiba que todos nós estamos, ainda temos negócios a
tratar. As aulas começarão conforme programado na terça-
feira.
Há um murmúrio baixo de assentimento em torno da mesa,
e todos menos preparados do que eu — que é, como sempre, a
grande maioria dos meus colegas — preparam papéis e laptops
para a reunião.
Kinnear se senta, olhando diretamente para mim com um
sorriso.
— Scarlett?
Não o Dra. Clark. Isso nunca. Era um pouco menos
irritante quando éramos ambos apenas professores. Mas então
ele aceitou o seu caminho para o cargo de presidente interino
do departamento depois que o Dr. McElhaney se aposentou no
ano passado, e agora ele acha que pode me tratar como a porra
de sua secretária.
— Sim? — Digo, embora já saiba exatamente o que ele vai
dizer.
— Você se importaria de tomar notas de novo? Você é tão
boa nisso.
Eu me forço a devolver o sorriso e clico para abrir minha
caneta.
Pelos próximos quarenta minutos, Kinnear tagarela sobre
datas de semestre e planos de aula e a orientação de novos
alunos (quais, eu me pergunto, ele tentará foder este
ano?). Escrevo enquanto ele fala, preenchendo as linhas do
meu caderno com letras cursivas impecáveis. Escolhi meu
assento ao final da mesa com cuidado, para que ninguém
pudesse olhar por cima do meu ombro e ver o que estou
escrevendo, nem mesmo Drew.
Porque não estou apenas escrevendo notas de
reuniões. Estou anotando datas, horários, lugares e eventos
onde Kinnear menciona que estará. Fraquezas que posso
explorar, maneiras de pegá-lo sozinho, humilhá-lo, fazê-lo
sofrer, fazê-lo gritar.
Agora que Tyler está morto, é hora de voltar minha atenção
para o meu próximo alvo. E, para azar do Dr. Kinnear, ele subiu
para o topo da minha lista.
4
CARLY
3
A PALCI é uma organização sem fins lucrativos que incentiva a parceria entre
bibliotecas acadêmicas com o objetivo de colaboração e inovação entre elas.
seleção mesquinha do sistema de bibliotecas acadêmicas da
Pensilvânia por muito mais tempo. Eu poderei ir direto à fonte,
revisar os materiais primários. O arquivo da Women's
Academy tem caixas cheias de cartas reais entre Viola e suas
contemporâneas, com sua própria caligrafia.
É o suficiente para me fazer salivar — mas não é a única razão
pela qual estou tão ansiosa para ganhar a bolsa e passar um ano
em Londres. Preciso sair de Gorman, pelo menos por um
tempo.
Não que não haja homens merecedores o suficiente para
matar aqui. Esse é o problema: há muitos, mas para evitar atrair
atenção para mim mesmo em uma cidade tão pequena como
esta, eu tenho que sentar em minhas mãos por meses a fio,
esperar até que o tempo suficiente tenha se passado entre as
mortes. Observá-los continuamente machucando as pessoas
sem consequências, até a hora certa.
Quando eu estava na pós-graduação em Chicago,
provavelmente poderia ter matado um homem a cada duas
semanas e me safado. Londres é três vezes maior. Seria o terreno
de caça perfeito.
Jasper termina de endireitar os livros e olha para mim. O
cintilar do fogo torna seus olhos verdes mais escuros.
— Haverá mais alguma coisa esta noite, Dra. Clark?
Segurando seu olhar, eu empurro minha cadeira para trás da
mesa e separo minhas pernas. O cetim desliza para longe da
minha pele como água.
Cada vez que eu transo com Jasper, sinto uma pontada de
culpa pela minha hipocrisia. Mas não sou nada parecida com
Kinnear. Jasper é um homem adulto, menos de uma década
mais novo do que eu, não um adolescente de olhos arregalados
que não conhece nada melhor.
Além disso, quando nosso caso começou, ele nem trabalhava
para mim. Durante o primeiro ano de seu PhD, ele foi
assistente de Kinnear; depois que Kinnear assumiu a posição de
cadeira interina, Jasper foi repassado para outro professor — e
ele se certificou de que seria eu. Tive minhas dúvidas sobre o
acordo, mas ele se provou profissional e discreto até
agora. Além disso, este é o mais próximo de um relacionamento
que posso arriscar, devido ao meu segredo.
Quando terminamos, a pilha cuidadosa de livros de Jasper
caiu na mesa. Ele estende a mão para endireitar a pilha,
alinhando-a perfeitamente de novo, então pega meu robe do
chão e o entrega para mim.
— Vejo você amanhã de manhã — diz ele enquanto coloca a
camisa de volta.
— Amanhã é sábado.
As aulas que Jasper tutora para mim se encontram às
segundas, quartas e sextas-feiras, e muitas vezes nos vemos nas
noites de sexta-feira, mas raramente no final de semana. Não
tenho ideia do que ele faz quando não estamos juntos. Acho
que não é justo perguntar. Afinal, ele não sabe nada sobre
minhas atividades extracurriculares.
— A reunião. — Ele me olha de novo. — Você não checou
seu e-mail?
Eu amarro a faixa do robe.
— Você me distraiu.
— Desculpa. — Ele sorri e puxa o celular do bolso de trás,
mostrando-me o convite do calendário na tela.
Uma reunião de emergência com todos os funcionários,
sábado às 11h
— Aposto que é por causa daquela coisa toda com Tyler
Elkin. Eles só se importam quando é o rei dos atletas que se
mata. — Jasper zomba, penteando o cabelo no lugar com uma
passagem suave de seus longos dedos. — Se foi isso que
aconteceu.
Um punho frio de pavor aperta meu peito.
— A polícia disse...
— Ah, eu sei — ele diz. — Eu só acho difícil acreditar que
aquele cara iria se matar. Ele parecia um idiota egoísta demais
para mim.
Ele sorri para mim novamente, mostrando mais do que uma
sugestão de dentes perversos. Sempre o achei mais belo do que
bonito, mas é uma beleza dura. Ligeiramente selvagem.
Eu costumava suspeitar que Jasper poderia ser como eu. Às
vezes há uma frieza em seus olhos, um foco implacável que
reconheço. Mas depois de passar tanto tempo com ele, cheguei
à conclusão de que tudo se resume a palavras com ele —
comentários cruéis, humor ácido. Ele nunca poderia fazer as
coisas que eu faço. Ainda assim, ele me entende melhor do que
qualquer outro homem que conheci. Não posso mostrar tudo
a Jasper, mas pelo menos não tenho que fingir ser legal ou doce
ou complacente quando estou com ele. Ele está atraído pela
minha crueldade.
— Então, vejo você na reunião de equipe? — ele pergunta.
Eu aceno, batendo minhas unhas na pilha de livros da
biblioteca.
— Sim. Obrigada por sua ajuda, como sempre, Sr. Prior.
— O prazer é meu, Professora.
Ele se inclina para me beijar. Eu inclino minha cabeça na
hora certa, então seus lábios pegam apenas o canto dos meus. Já
faz um tempo desde que ele tentou isso; pelo menos ele não fez
outra tentativa de dormir.
Assim que ele sai, eu entro no meu e-mail para ler o convite
do calendário por conta própria. Mas existem poucos detalhes
além do que vi no telefone de Jasper. Todos os professores e
funcionários da Gorman devem comparecer.
Eu aperto a faixa do robe ainda mais, até que ele cava na
minha cintura. Tento retomar minha análise do pedido de
bolsa, mas minha mente está disparada. Mesmo a batida lenta
da música e o crepitar do fogo são estímulos demais agora. Eu
me levanto e desligo os dois, em seguida, ando de um lado para
o outro no tapete, tentando impor alguma ordem aos meus
pensamentos.
Mas não tenho informações suficientes para traçar um
plano. E eu não irei — não até a reunião de amanhã. Eu toco
meu dedo no canto da minha boca, o local onde Jasper me
beijou.
Eu odeio surpresas.
6
CARLY
4
A Associação de Estudos Literários, Críticos e Escritores (ALSCW) foi
organizada em 1994 buscando promover a excelência em crítica literária e
estudos garantindo que a literatura prosperasse em ambientes acadêmicos e
criativos. Incentivam a leitura e escrita de literatura e a crítica, bem como amplas
discussões entre aqueles comprometidos com a leitura e estudo de obras
literárias.
de mim, há uma quantidade infeliz de sobreposição em nossa
pesquisa.
O barista coloca nossos cafés no balcão. Mikayla pega os dois
e me entrega o meu.
— Tenho certeza de que você ouvirá algo em breve. —
Kinnear sorri com indulgência e me dá um aperto no braço. —
Eles entraram em contato hoje para agendar minha entrevista
por telefone.
— Sua entrevista por telefone? Para o quê?
— Para a associação, é claro.
A boca de Mikayla cai aberta.
— Para a bolsa da Women's Academy ?
— Está aberto a todos os acadêmicos da área — diz
Kinnear. — A curadora-chefe é uma velha amiga minha de
Cambridge, na verdade. Ela me encorajou a jogar meu chapéu
no ringue.
Não entendo. Por que ele iria querer isso? Há anos ele busca
o cargo de chefe de departamento e agora está quase em suas
mãos. Ir para Londres por doze meses quase certamente
interferiria nisso — ao passo que poderia fazer minha
carreira. Embora eu tenha certeza que aquele pequeno
bajulador do Stright ficaria mais do que feliz em manter seu
assento aquecido para ele. A ideia de Kinnear em Londres e
Stright como meu chefe, não importa o quão
temporariamente, é demais para suportar.
— Aparentemente, há coisas boas sobre Lorde Vance nessas
cartas também — Kinnear diz. — Você sabe, já que eles datam
dos primeiros anos de seu casamento com Viola.
A mais tênue das justificativas. A escrita de Viola já é tratada
como uma reflexão tardia na obra de seu marido mais famoso,
e há décadas foi ativamente suprimida por sua
propriedade. Seus poemas estão cheios de raiva e desejo, sem
remorso e agressivos mesmo para os padrões de hoje. Ela nunca
foi levada a sério como artista por seus próprios méritos, mas
meu trabalho pode mudar isso. Essas cartas equivaleriam a uma
nota de rodapé na pesquisa de Kinnear. Elas poderiam definir
o meu. E ele sabe muito bem disso.
Mikayla nos observa com cautela, como se ela estivesse com
medo de que estejamos prestes a brigar. Estou tentando manter
meu rosto composto, mas posso sentir a raiva explodindo em
meus olhos como fogos de artifício. Eu agarro o papelão
ondulado em torno da minha xícara de café para evitar esmagar
seus dentes.
Não posso deixar Kinnear me atingir assim. Não agora, não
quando estou tão perto. Além disso, o que importa se eles lhe
derem a bolsa, quando posso ter certeza de que ele não estará
por perto para aceitá-la?
12
CARLY
5
A expressão “get the memo” utilizada pela personagem é normalmente usada
para apontar para a surpreendente falta de consciência de alguém; é ouvir ou
tomar conhecimento de algo geralmente conhecido.
Allison faz isso por mim. A sensação das pontas dos dedos dela
na minha bochecha me tira do sério.
Eu a cutuco para que ela se vire. Para parar de me olhar
assim.
— Vamos, eu tenho que terminar isso. Você não quer
metade de uma cabeça azul, quer?
— Quer dizer, acho que eu arrasaria com isso.
Ela provavelmente arrasaria. Allison retoma sua posição na
cadeira, e eu pego o resto de seu cabelo, certificando-me de
cobrir qualquer loiro remanescente com gosma azul. Há
alguma nova energia vibrando entre nós, como faíscas
disparando pelos meus dedos cada vez que a toco. Ou talvez
estivesse lá o tempo todo, e só agora estou me permitindo sentir
isso.
— A propósito, sinto muito — diz Allison.
— Pelo quê? — Eu pergunto, embora possa pensar em várias
coisas.
— Por tudo. — Ela suspira e abaixa os ombros salpicados de
azul. — Ficar tão bêbada no fim de semana passado e dispensar
vocês quando deveríamos ir para Pittsburgh.
— Onde você estava, afinal?
— Na casa de Bash. Ele hospeda este jogo de pôquer semanal.
— Eu imaginei isso, mas ainda dói ouvi-la dizer isso.
— Então vocês estão...
Allison zomba.
— Não mesmo. Eu estou balançando minha bunda na cara
dele todas as noites, e ele mal sabe que eu existo.
Acho isso difícil de acreditar. Allison é muito difícil de
ignorar.
— Eu vou fazer ele me notar, no entanto. — ela diz. — Eu
tenho um plano: na festa de Halloween, eu vou… ai!
Eu levanto minhas mãos de sua cabeça. Eu estava aplicando
a última gota de tinta em seu couro cabeludo e devo ter puxado
muito forte em suas raízes.
— Desculpa. Eu... acabei.
Enquanto tiro minhas luvas, Allison vai se olhar no espelho,
virando-se para um lado e para outro para examinar meu
trabalho. A cor está começando a clarear à medida que se
desenvolve, tornando-se tão vibrante quanto a de
Clementine. Os olhos azuis de Allison saltam e sua pele pálida
brilha como o luar.
Ela inclina o queixo para cima e lambe os lábios, e eu tenho
um flash de nós duas na cama, sua boca roçando levemente a
minha. E se não foi um acidente?
— “Eu sou uma vadia vingativa” — Allison cita, sacudindo
o cabelo azul sobre os ombros.
Eu passo atrás dela e encontro seus olhos no espelho.
— “Verdade seja dita.”
23
SCARLETT
Amanhã é a noite.
Então esta noite eu me preparo: escolhendo a roupa perfeita,
depilando minhas pernas, modelando minhas unhas. Todas as
coisas que a maioria das mulheres faz para se preparar para um
encontro. Mas elas não sabem: matar um homem é muito mais
satisfatório do que transar com um homem.
Estou no banheiro escovando meu cabelo quando ouço um
barulho vindo do corredor. Parece o ranger de tábuas do
assoalho, mas, pelo que sei, estou sozinha em casa.
Com a escova de cabelo cerrada em meu punho, eu me
arrasto pelo corredor para investigar. O som parece vir do meu
escritório. A porta está entreaberta, como eu a deixei, e as luzes
lá dentro estão apagadas.
Eu me preparo para um corpo correndo para mim. Eu
poderia esmagar seu crânio. Eu poderia empurrá-lo escada
abaixo e quebrar sua espinha.
Eu empurro a porta mais aberta. Mais luz se derrama do
corredor — iluminando Jasper, de pé atrás da minha
mesa. Devo ter perdido o som dele abrindo a porta da frente,
subindo as escadas. Muitas vezes fico distraída assim, logo antes
de uma morte. Ocupada demais repassando todos os detalhes
do meu plano para perceber o que está acontecendo ao meu
redor.
Ele ergue os olhos quando entro, mas não parece nem um
pouco culpado.
— Aí está você.
Estou usando meu robe de cetim, sem nada por baixo. Eu me
sinto exposta de repente, embora Jasper tenha me visto
vestindo muito menos do que isso.
— O que você está fazendo? — Cruzo os braços sobre o
peito, ainda segurando a escova.
Ele levanta uma pasta vermelha.
— Leitura brilhante.
É o arquivo do caso de Richard Callaghan. O outro, sobre o
aluno de pós-graduação, fica ao lado. Eu tinha adivinhado qual
morte chamou a atenção de Mina: foi o pós-doutorado em
história do viciado em Adderall. O estuprador. Ao contrário de
Tyler Elkin, ele agia sozinho e a mulher era sua namorada. Ela
ficou com ele por meses depois, então, é claro, quando ela
finalmente reuniu coragem para prosseguir com as acusações
criminais contra ele, ninguém acreditou nela. Exceto eu.
Pego a pasta da mão de Jasper e coloco de volta na mesa.
— Não me lembro de ter convidado você esta noite.
Jasper corre a ponta do dedo sobre a costura do meu robe,
bem ao longo da minha espinha.
— Você quer que eu vá embora?
Eu não quero. Eu me odeio por isso, mas não quero que ele
vá.
Eu abaixei a escova também, virando-me para sentar contra
a mesa.
— Estou ocupada.
— Ah, é? — Ele se aproxima ainda mais. Ele estaria entre
minhas pernas se eu as abrisse para ele, mas eu não o faço. —
Fazendo o quê?
— Eu ia pintar meu cabelo.
Jasper me estuda na penumbra, escovando alguns fios de
volta sobre meus ombros. O vermelho ainda é vibrante, minha
cor natural aparecendo um pouco na raiz, mas quero estar no
meu melhor para amanhã. Quanto mais me parecer um sonho
molhado de Kinnear, mais satisfatório será me transformar em
seu pior pesadelo.
— Eu poderia ajudar — diz Jasper.
Eu zombo e o empurro, embora não possa me forçar a afastá-
lo completamente.
— Estou falando sério! Eu costumava descolorir o cabelo da
minha ex para ela.
Esta é a primeira vez que ele menciona um relacionamento
anterior comigo. Eu não sei nada sobre a vida de Jasper; é
melhor assim. Ele costumava me perguntar sobre meu passado
— onde eu cresci, antigos namorados, antigas namoradas —
mas depois que eu me recusei a responder a ele várias vezes, ele
desistiu.
Jasper torce um cacho em torno de seu polegar e dá um
puxão.
— Sou um homem de muitos talentos.
— Se você insiste. — Tenho uma caixa extra de tinta; se ele
conseguir estragar tudo, ainda terei tempo para consertar antes
de amanhã.
Ele me segue até o banheiro e fica de camiseta, dobrando
cuidadosamente a camisa oxford antes de colocá-la de lado.
Depois de colocar uma toalha sobre meus ombros, ele
começa a espalhar a tinta pelo meu cabelo. Eu o observo no
espelho: o olhar de intensa concentração em seu rosto, a forma
como os músculos de seu braço flexionam. Isso pode ser o mais
gentil que ele já foi comigo. Eu deixo meus olhos se fecharem,
concentrando-me na sensação de seus dedos no meu couro
cabeludo, os arrepios de prazer que se espalharam pelas minhas
costas.
— Então você está trabalhando com a força-tarefa agora?
— ele pergunta.
Meus olhos se abrem, os ombros enrijecendo. As mãos de
Jasper sacodem um pouco, e um jato de líquido vermelho
pousa no tecido branco que cobre seu torso.
— Aquele cara, o zelador. — Jasper se agacha para espalhar a
cor na minha nuca. — Ele era um voyeur ou algo assim, certo?
— Foi o que a polícia disse — eu digo a Jasper.
Ele balança a cabeça enquanto drena o resto do frasco de
tinta nas pontas do meu cabelo.
— Parece um desperdício. Todo esse tempo gasto olhando
para caras como ele e Elkin. Como se alguém realmente desse a
mínima por estarem mortos.
Ele coloca o tubo vazio na pia e massageia a tintura mais
profundamente em minhas raízes. Existem várias listras
vermelhas em sua camisa agora, e algumas manchas
pontilhando sua bochecha também. Suas mãos são tão fortes
que parece que ele poderia esmagar meu crânio. Eu me inclino
em seu toque, e ele pressiona com mais força.
Às vezes, desejo que Jasper seja como eu, que eu pudesse
compartilhar minha verdadeira natureza com ele. Tento não
pensar nisso, mas às vezes a fantasia ainda se insinua: como seria
mais fácil matar com a ajuda dele, suas mãos poderosas
segurando os homens enquanto eu acabo com eles. Sangue
espirrando na pele de Jasper como a tinta agora.
Mas eu não consigo. Posso gostar de transar com ele, mas não
posso confiar em ninguém a verdade sobre o que sou, não se
quiser sobreviver. Tenho muitos outros homens para matar.
Ficamos sentados em silêncio por um tempo, esperando que
a tinta se desenvolva. Meu robe mudou um pouco, expondo
meu decote, mas não me preocupo em me cobrir
novamente. Jasper continua me olhando no espelho, até que eu
finalmente me viro para encará-lo.
— Isso vai manchar. — Eu estendo a mão e ele se agacha para
me deixar esfregar as manchas coloridas em sua bochecha com
meu polegar. A cor só se espalha ainda mais.
Jasper coloca sua mão contra a minha, pressionando minha
palma em sua bochecha. O vermelho fica tão bonito contra sua
pele pálida; isso faz seus olhos brilharem mais. Mais
famintos. Ele beija a palma da minha mão e posso sentir seus
dentes em seus lábios.
Eu tiro sua camisa manchada, em seguida, deixo minha
toalha e roupão caírem no chão ao lado dele. Sem uma palavra,
Jasper liga o registro do chuveiro para mim, deixando a água em
seu nível mais quente. Eu entro na banheira com os pés para
começar a enxaguar a tintura, e segundos depois ele está lá
comigo, nu, suas mãos no meu cabelo novamente, o vermelho
escorrendo por seus dedos e girando em torno de nossos pés.
Ele inclina meu rosto e me beija profunda e
devoradoramente, suas mãos cavando em minha
mandíbula. Nossos corpos pressionados juntos, escorregadios
e quentes, e a tinta está correndo em meus olhos agora,
correndo em nossos lábios, está queimando, e eu posso sentir o
gosto, a mordida áspera dos produtos químicos se misturando
com o gosto limpo de hortelã na língua de Jasper.
Eu deveria parar. É demais, ele está perto demais, não consigo
respirar. Mas isso é o que posso me permitir. Não posso ter o
que realmente quero, mas posso ter isso.
Então eu envolvo minha perna em volta de Jasper para puxá-
lo ainda mais perto, e eu o deixo pressionar minhas costas
contra os azulejos, segurando a curva da minha cintura
enquanto ele empurra em mim. Nós transamos até que a água
esfrie, e o tempo todo eu fico imaginando que o vermelho
escorrendo sobre nós é sangue.
24
CARLY
Sinto como se Allison tivesse saído a uma hora, mas não pode
ter sido a tanto tempo. A pista de dança está de volta em pleno
andamento, e tudo está girando, todas as luzes e a música e os
corpos se contorcendo.
Eu pressiono minhas costas contra a parede para me
equilibrar. Um cara com uma fantasia de zumbi dança perto
demais de mim, a manga rasgada de sua camisa roçando meu
braço. Eu me encolho mais perto da parede e respiro fundo,
mas meu peito arfa como uma heroína de romance neste
espartilho estúpido.
Alguém me dá um tapinha no ombro e eu giro, mas é apenas
Wes. Ele salta para trás, fora do meu alcance. Ah, Deus, eu
quase bati nele, não foi? Eu forço minha mão para baixo ao
meu lado, ainda fechada em punho.
— Você está bem? — Ele olha em volta. — Onde está
Allison?
— Ela se foi. — É difícil pronunciar as palavras; minha
garganta parece mais apertada do que minha cintura.
— Você quer sair um minuto? — ele pergunta.
Na realidade, eu quero ir embora, mas não quero estragar a
noite de Wes mais do que provavelmente já fiz. E não posso sair
sem Allison.
Wes me oferece sua mão e eu o deixo me puxar para longe da
relativa segurança da parede e descer a escada. Ainda estamos
de mãos dadas enquanto saímos pela porta dos fundos. Apesar
do frio, o pátio está quase tão lotado quanto a pista de dança,
uma espessa névoa de fumaça pairando sobre todos os piratas e
gatos sensuais e esqueletos que brilham no escuro reunidos lá,
então Wes e eu continuamos caminhando em direção ao
matagal de carros estacionados ao acaso no terreno de cascalho
atrás da casa.
— Quem você deveria ser, afinal? — Eu pergunto. Agora
que estamos longe da festa, minha garganta parece menos como
se houvesse dedos em torno dela, mas minha voz soa
estranhamente distante, meus ouvidos ainda zumbindo por
causa da música.
— Ah, uh… eu sou Rivers Cuomo — Wes diz.
Eu pisco para ele.
— O vocalista do Weezer?
Não tenho ideia do que ele está falando. Esta noite toda
parece embaçada, embora eu esteja completamente sóbria.
— Aquela banda que ouvimos… — Wes empurra os óculos
de armação grossa mais para cima em seu nariz.
Eles são muito parecidos com os que Alex usa. Eles parecem
certos em Alex, mas em Wes eles são um pouco demais,
cobrindo seu rosto, então é difícil focar em suas feições.
— Esquece. De qualquer maneira, é uma fantasia bem
idiota. Aquilo não foi legal, você sabe — diz ele, baixando a voz,
embora estejamos longe o suficiente da casa para que ninguém
possa ouvir. — A maneira como Allison estava usando você
para chamar a atenção dele.
Meu peito queima de vergonha e algo mais, com a memória
do corpo de Allison pressionado tão perto, movendo-se contra
o meu, a música vibrando através de nós.
— Ah, não, isso não é…
— Acredite em mim, ela sempre foi assim. Ela nunca quer o
que está bem na sua frente. Ela quer o que não pode ter. — Ele
me olha nos olhos. — Você se acostuma depois de um tempo.
Ele está tão perto de mim agora, e estamos sozinhos
aqui. Bom, há um porta-malas Honda a alguns metros de
distância que está balançando ligeiramente,
não completamente sozinhos. Estamos quase no carro de Wes
agora. Está tão frio aqui fora. Podemos entrar e aumentar o
aquecimento. Falar um pouco mais, ou…
Eu engulo, o ar frio da noite queimando meus pulmões.
— Você e Allison alguma vez…
— Dormimos juntos? — Wes diz.
— Não — eu deixo escapar. — Eu só quis dizer, vocês
alguma vez... alguma coisa.
— Nós nos beijamos uma vez, quando tínhamos doze
anos. Gire a garrafa.
Ele ri. Tento rir também, mas o som fica preso na minha
garganta.
— Não estou tentando criticá-la — diz ele. — Quero dizer,
ela é minha melhor amiga. Mas também não quero que você se
machuque.
Eu estou tremendo mais fortemente agora, embora eu quase
não sinta mais o frio na minha pele. Wes coloca as mãos nos
meus ombros e começa a esfregar para cima e para baixo,
tentando me aquecer. Eventualmente, seu ritmo diminui e ele
não está mais me olhando nos olhos. Ele está olhando para
meus lábios, e me pergunto se aquele batom brilhante ainda
está lá ou se está desbotado, manchado, vermelho sangrando
nos cantos da minha boca.
Alguém no pátio solta um grito, ecoando na noite. Não sei
dizer se é uma comemoração ou um pedido de ajuda, mas
também não viro a cabeça para verificar. Estou congelada,
olhando para Wes — agora focando em seus lábios também, a
parte rachada no centro onde ele morde quando está pensando
durante a aula.
As mãos de Wes pressionam com mais força meus ombros,
puxando-me para dentro. Ele vai me beijar. Ai, meu Deus, ele
vai me beijar, e parte de mim quer, mas outra parte, mais forte,
quer ficar o mais longe possível dele.
— Me desculpe, eu… — eu digo, e Wes para de me puxar em
sua direção, mas ele não solta meus ombros. Então eu o afasto,
mais forte do que eu precisava, do que eu pretendia. Ele tropeça
para trás, pedras esmagando sob seus pés. — Eu não posso.
Já estou correndo, minhas botas chutando o cascalho para
ferir minhas canelas através das meias arrastão. Eu nem sei para
onde estou indo, até que eu me encontro de volta dentro da
casa. Os convidados da festa se espremem ao meu redor, e um
grito se forma na minha garganta, mas não o deixo
sair. Continuo abrindo caminho no meio da multidão até
chegar às escadas e depois subo, subo, subo.
Saio correndo pelo corredor escuro, tateando as paredes
revestidas de madeira, procurando um lugar, qualquer lugar
onde possa ficar sozinha. Finalmente encontro uma
maçaneta. Não gira, mas a porta não está bem trancada e se abre
quando eu a empurro.
As luzes já estão acesas lá dentro e fico cega por um segundo,
mas então pisco as estrelas em meus olhos e as vejo.
Allison e Bash.
Ele a está pressionando contra a pia. Uma mão em sua
camisa, a outra empurrou para baixo seu jeans aberto. Bash me
vê, mas Allison não, porque seus olhos estão fechados.
Ela está inconsciente.
29
SCARLETT
— Não.
Minha voz está tão baixa que Bash pode não ter me ouvido
por causa da música. Ainda estou no limiar do
banheiro. Congelada, indefesa. Mas não tão indefesa quanto
Allison. Sua cabeça pende sobre a pia, cabelos azuis se
acumulando na pia.
Eu dou um passo a frente.
— Não toque nela.
Bash ergue os olhos, mas não para o que está fazendo. Ele me
olha bem nos olhos e não para.
— Não toque nela, porra!
Estou gritando agora, apressado-me em sua direção. Por que
eu hesitei, por que a deixei sozinha com ele em primeiro
lugar? Eu deveria ter sabido melhor, deveria tê-la protegido.
Bash finalmente tira as mãos de Allison e, sem ele a
segurando, ela cai no chão. No caminho para baixo, ela derruba
a garrafa que está na beirada da pia, espalhando cacos de vidro
fumê no piso.
Ela não está apenas bêbada. Eu a vi bêbada, e isso é
diferente. Ele deve ter colocado algo em sua bebida. Ele fez isso
de propósito, ele a drogou, acolheu-a aqui e fechou a porta. Se
eu não tivesse entrado quando entrei...
Alguns dos festeiros estão se reunindo do lado de fora do
banheiro, atraídos pelos meus gritos. Mas nenhum deles fez
nada além de ficar boquiaberto conosco, meu rosto vermelho e
punhos cerrados e Allison desabou no chão e Bash recuou
contra a banheira, olhando para mim com aqueles olhos
preguiçosos e sonolentos como se ele estivesse entediado com a
cena.
Eu me abaixo ao lado de Allison e tento ajudá-la a se
levantar. Meus joelhos rangem no vidro quebrado, mas eu mal
sinto isso. A têmpora esquerda de Allison está sangrando um
pouco; ela deve ter batido contra o balcão. O vermelho escorre,
traçando a linha de sua bochecha. O moletom laranja dela
também está no chão. Bash deve ter arrancado antes que ela…
Não. Eu não posso pensar sobre isso. Tenho que me
concentrar em ajudá-la.
Eu sacudo o vidro do moletom, em seguida, enxugo o corte
de Allison com uma das mangas. Ela se mexe um pouco, as
pálpebras tremendo — não completamente inconsciente, mas
seriamente inconsciente. O que diabos ele deu a ela?
Ele ainda está ao nosso lado, perto o suficiente para que eu
possa sentir seu perfume almiscarado — ou talvez o cheiro
esteja em Allison.
Eu não posso me permitir olhar para ele. Se eu olhar para ele,
não sei o que vou fazer.
Finalmente, uma garota usando uma peruca preta angular e
uma camisa branca de botão grande se separa do aglomerado de
espectadores.
— O que está acontecendo?
Bash dá a ela um sorriso preguiçoso.
— Hadley ficou bêbada de novo.
A menina não ri, mas alguns dos outros alunos ao seu redor
riem. Principalmente os caras. Os tons baixos de suas risadas
zombeteiras vibram até meus ossos.
De repente, estou de pé, de frente para Bash. Seu sorriso
desaparece quando ele vê minha expressão. Ele dá um passo
para trás, seus calcanhares batendo na base da banheira.
Alguém se move atrás de mim, ao meu redor. Estou
vagamente ciente de que é Wes, abrindo caminho para o
banheiro, ajoelhando-se ao lado para Allison. Estou furiosa,
estou pegando fogo, um calor formigando explodindo sobre
minha pele. Mas uma estranha calma toma conta de mim
também — uma curiosidade, quase. Estou me perguntando se,
se eu empurrasse Bash de volta para o chuveiro, seria capaz de
ouvir o estalo de seu crânio contra o azulejo, ou se a música
sacudindo as paredes iria abafá-lo.
Allison solta um pequeno gemido, afastando a mão de Wes
do ferimento em sua cabeça, e tudo ao redor volta ao foco.
Eu me agacho ao lado de Wes.
— Ajude-me a tirá-la daqui.
— Você viu o que aconteceu? — ele pergunta. — Ela caiu,
ou…
Eu nem mesmo olho para ele, muito ocupada enrolando o
moletom manchado de sangue nos ombros de Allison,
apoiando meu braço em sua cintura.
— Pegue os braços dela.
— Você tem certeza que é…
— Você vai nos ajudar ou não? — Eu estalo.
Wes se encolhe um pouco, piscando para mim. Eu sei que
não deveria descontar nele — ele não é o inimigo aqui — mas
me senti bem, deixando um pouco de raiva irromper. Como
cuspir veneno.
Ele segura Allison como eu disse a ele, e juntos nós a
colocamos de pé, então, desajeitadamente, caminhamos em
direção à porta com os braços dela pendurados sobre nossos
ombros. Wes continua olhando para mim, mas eu continuo
olhando para frente, minha mandíbula cerrada. Eu quero sair
daqui. Eu nunca deveria ter vindo aqui em primeiro lugar —
exceto que não quero pensar sobre o que poderia ter
acontecido se eu não estivesse aqui.
A multidão se separa para nos deixar passar, mas há mais do
que algumas risadinhas, trocando olhares conhecedores. Eu os
odeio muito. Bash acima de tudo. Aquele olhar presunçoso em
seu rosto. Eu me pergunto quantas vezes ele fez isso antes.
Quando chegamos ao carro, Wes me deixa suportando todo
o peso de Allison por um segundo enquanto ele deixa o banco
de trás pronto. Assim que ele se afasta, ela se mexe no meu
ombro.
Seus olhos estão abertos.
— Ah, graças a Deus — eu digo. —Você está…
— Não diga a ele. — Sua voz é uma rouquidão vacilante,
quase inaudível.
— O quê?
Ela olha para Wes, inclinando-se na metade do caminho para
a porta traseira do carro para colocar um cobertor sobre os
assentos.
— Prometa-me. Me prometa que você não vai…
— Eu sinto muito. — As palavras saem em uma torrente,
fluindo como lágrimas. — Eu não deveria ter deixado você ir
sozinha com ele, eu deveria ter…
Allison está terrivelmente lúcida agora, seus olhos azuis
afiados como pingentes de gelo. Ela agarra meu ombro com
força suficiente para machucar.
— Me prometa.
Eu pisco para ela. Eu não entendo por que ela iria querer
manter isso em segredo de Wes. Ele é seu melhor amigo. Se ele
soubesse o que Bash fez com ela, se ele tivesse visto o que eu vi,
ele ficaria furioso. Ele iria querer sangue também.
Mas eu não quero incomodá-la mais, não depois do que ela
acabou de passar — o que ela ainda está passando —, então eu
assinto.
— Ok. Eu prometo.
Wes fecha a porta do carro e volta em círculos.
— Ei — ele diz para Allison. — Você está bem? Como você
está se sentindo?
— Estou bem. — Ela está caindo com mais força contra
mim, embora seu aperto no meu ombro permaneça firme.
— Devíamos levá-la ao hospital — digo.
— Eu disse que estou bem. — Mas ela não está; a lucidez de
alguns momentos atrás está desaparecendo, suas pálpebras
ficando pesadas novamente.
— Você bateu com a cabeça. Você pode ter uma concussão.
— Isso é o que menos me preocupa nessa situação, mas
obviamente não posso mencionar o verdadeiro motivo pelo
qual ela deveria consultar um médico sem quebrar minha
promessa.
— Eu só quero ir para casa — diz ela. — Dormir até isso ir
embora. Vamos lá…
— Nós poderíamos ficar de olho nela esta noite — Wes
sugere. — Ir ao médico pela manhã.
— Sim, minha cabeça mal dói. — Allison acena com a cabeça
vigorosamente como se para demonstrar.
— Não.
Não estou gritando como antes. A palavra sai baixa, mas há
uma ameaça por trás dela. Você não quer discutir comigo
agora. Nunca me ouvi soar assim. É como se a voz de outra
pessoa falasse através de mim.
Wes e Allison estão em silêncio. Os dois parecem um pouco
assustados comigo. Normalmente, eu tropeçava nas minhas
palavras, pedia desculpas, tentava ter certeza de que ninguém se
ofenderia. Mas agora eu não dou a mínima.
Eu começo a dirigir Allison em direção ao carro.
— Venha, vamos.
Wes hesita, preocupando as chaves entre os dedos.
— O quê? — Eu pergunto.
— Eu estou… — ele começa. — Bem, quero dizer, não
estou bêbado, mas acho que devo ter bebido demais para…
Pego as chaves de suas mãos com um suspiro exasperado.
— Ajude-me a colocá-la no banco.
Wes e eu desajeitadamente colocamos Allison no banco de
trás. Ela perdeu o peso de novo, os olhos fechados. Se ela
realmente estiver machucada ou em algum tipo de choque,
temos que levá-la ao médico. Estou preocupada por termos
esperado muito tempo. Quem sabe o que Bash deu a ela, que
outros efeitos isso poderia ter.
Wes desliza ao lado de Allison, manobrando a cabeça dela em
seu colo. Eu sento no banco do motorista e, enquanto ajusto o
espelho retrovisor, Wes e eu olhamos nos olhos, do jeito que
fizemos no caminho para a festa. Mas tudo está diferente agora.
Minhas mãos apertam o volante e gostaria que fosse a
garganta de Bash.
31
SCARLETT
Eu sei meu caminho pela floresta, mas é mais difícil navegar tão
tarde da noite, mesmo com um inferno crescente nas minhas
costas. O tapete já estava em chamas quando saí pela porta dos
fundos e, quando chego à linha das árvores, as cortinas também
travaram. Se eu tiver sorte, a casa inteira vai pegar fogo.
O pânico não começa a subir na minha garganta até que eu
esteja mais para dentro da floresta. Parece tão vivo quanto as
chamas que acabei de fugir, como se estivessem me
perseguindo, batendo em meus calcanhares. Quero correr todo
o caminho para casa, tão rápido que meus pulmões queimam,
mas me forço a tomar um caminho lento, metódico e indireto,
contornando os limites da cidade. Uma vez que estou em
segurança dentro de casa, vou direto para o meu escritório e
acendo a lareira a gás. Eu tiro a roupa para ficar usando nada
além de minhas luvas e lingerie e começo a colocar minhas
roupas nas chamas.
Enquanto espero todo o tecido grudar, tiro o diário da bolsa
para admirá-lo novamente à luz do fogo. Meu plano pode ter
dado errado esta noite, posso ter perdido o controle, mas ainda
posso recuperá-lo. Eu ainda posso me safar com isso. Ninguém
sabe que eu estive lá esta noite, e ninguém precisa...
Ouço um som lá embaixo. Eu congelo, segurando a lombada
do livro.
A porta da frente se fechando. Passos. E então a voz de
Jasper, chamando meu nome.
Droga.
— Scarlett?
Jasper está no meio da escada agora. Eu coloco o diário em
um lugar vazio na estante ao lado da lareira, em seguida, tiro
minhas luvas e as jogo nas chamas, pouco antes de Jasper abrir
a porta do escritório.
Eu me viro para encará-lo, inclinando meu corpo para
bloquear sua visão do fogo. Enquanto ele me encara, parada ali
de sutiã e calcinha com as chamas rugindo nas minhas costas, já
posso ver as perguntas se formando em seus lábios. Então, eu o
evito com uma das minhas.
— O que diabos você está fazendo aqui, Jasper?
— Eu estava preocupado com você. — Ele claramente não
dormiu. Os círculos sob seus olhos parecem cadavéricos, e suas
roupas geralmente elegantes estão uma bagunça, sua camisa
para fora da calça, seu colarinho torto.
— Preocupado? Por quê? — Não tenho ideia de que horas
são, quanto tempo estive na casa de Kinnear. A noite inteira é
um borrão; completamente diferente das minhas outras mortes
em que, mesmo anos depois, me lembro de cada detalhe com
perfeita clareza.
— Você não me respondeu. — Pelo que sei, ele tem me
enviado mensagens de texto incessantemente desde que ignorei
suas mensagens anteriores. — Eu estive…
— Eu estava com meu telefone desligado — eu digo. — Eu
estava trabalhando.
Jasper entra na sala.
— Onde?
— Aqui. Eu estava…
— Não. Você não estava aqui. Eu vim mais cedo e todas as
luzes estavam apagadas. — Ele está se aproximando de mim
agora. Aparecendo, tentando me intimidar. — Você está
mentindo.
Talvez eu devesse sentir medo dele, mas não há espaço para
medo com toda essa raiva correndo por mim. Eu matei um
homem esta noite. Eu poderia matar Jasper também. Eu
poderia empurrá-lo para o fogo, segurar suas belas maçãs do
rosto de vidro lapidado lá até que derretessem com o calor. Eu
poderia fazer qualquer coisa.
— Você não pode simplesmente vir aqui quando quiser.
— Onde você estava?
— Vou precisar de sua chave de volta, isso é…
— Diga-me onde você estava esta noite.
Ele se inclina, o cabelo caindo na testa. Penso em todas as
vezes que passei os dedos por ele e quero arrancá-lo pela raiz. Ele
está tão perto e não tenho para onde ir. O calor na parte de trás
das minhas pernas nuas é quase insuportável do jeito que está.
Mas ainda mais forte do que meu desejo de fugir é meu desejo
de puni-lo. Se ele soubesse o que eu realmente sou, do que sou
capaz, não me trataria assim. Ele estaria se encolhendo de medo.
— Diga-me — ele diz novamente, e tenta me agarrar pelos
ombros. Mas já estou atacando, empurrando com tanta força
contra seu peito que ele tropeça para trás. Ele olha para mim,
perplexo.
Então ele olha para o fogo.
Todas as outras evidências foram reduzidas a cinzas, mas os
dedos pretos das minhas luvas ainda são visíveis, curvando-se
para dentro enquanto queimam como se estivessem segurando
algo.
Antes que Jasper pudesse fazer mais perguntas, eu bato
minhas mãos nele ainda mais forte, empurrando-o até que ele
caia de volta contra a minha mesa, jogando livros e papéis no
chão. Finalmente, há algum medo em seus olhos. Mas ele me
quer também. Mais do que nunca.
Eu o agarro rudemente pelo queixo e forço minha boca na
dele. Ele agarra minha nuca e eu mordo seu lábio inferior até
sentir o gosto de sangue.
Jasper me puxa para o chão em frente ao fogo, e estou
rasgando sua camisa, passando minhas unhas em seu peito,
tirando mais sangue, cavando com mais força quando ele
geme. Ele rasga o fecho do meu sutiã, a parte inferior das
minhas costas, a carne das minhas coxas, e tudo que posso
pensar é: Sim, bom, quanto mais ele me marcar, melhor. Os
arranhões que Kinnear deixou em mim não serão nada
comparados ao dano que Jasper e eu estamos prestes a fazer um
ao outro.
Se eu não o machucar, vou matá-lo.
34
CARLY
Mina não pode me evitar para sempre. Mas ela tem feito um
ótimo trabalho nos últimos dias.
É domingo à noite quando finalmente a alcanço. Ela está em
seu escritório no segundo andar da Miller, trabalhando até mais
tarde do que eu. Seus olhos saltam da tela do laptop apenas o
tempo suficiente para ver que sou eu escurecendo sua porta, e
sua boca aperta. Ela parece exausta, sombras sob seus olhos,
novas linhas de preocupação gravadas entre suas sobrancelhas.
— Scarlett. — Ela digita mais algumas teclas. — Você
chegou tarde.
— Podemos conversar? — Eu quero saber se ela está
bem. Mas preciso saber sobre o que ela veio falar comigo com
aquela energia estranha e frenética brilhando em seus olhos. —
Sobre o outro dia, eu…
Eu paro — não estou mais olhando para Mina, mas para a
parede em frente à sua mesa. A teia de fotos no quadro branco
foi removida, as linhas do marcador apagadas em manchas
vermelhas fracas. Escrito em linha reta no meio do quadro,
agora há uma lista de nomes.
Richard Callaghan
Kevin pratt
Brandon Risman
Samuel Wexner
Tyler Elkin
— Com licença.
Uma garota com uma combinação suja e meia arrastão
rasgada passa por mim, puxando seu cabelo em rabos-de-cavalo
altos e tortos. Eles estão fazendo um ensaio geral para
o Cabaret esta noite, então o porão do Riffenburg Hall está
lotado de pessoas, a maioria delas vestindo pouco mais do que
roupas íntimas.
Dois caras magros em shorts listrados passam por mim em
seguida, já manchados com maquiagem branca pastosa do
cabelo até os quadris. Eu me pressiono contra a parede para
deixá-los passar. Então decido tentar ir na direção contrária, em
direção ao final do corredor com um pouco menos de gente, e
quase colido com Allison.
Ela também está fantasiada: short preto, espartilho e
botas. Parece muito com o que ela me fez usar na festa de
Halloween, exceto que o espartilho tem tiras finas para segurá-
lo no lugar e as botas vão até os joelhos.
— Oi! — Allison diz. — Você trouxe?
Eu levanto sua bolsa de maquiagem — uma mala de trem
vintage com fotos de estrelas clássicas decupadas em toda a
tampa.
— Obrigada! — Ela pega o estojo de mim, segurando-o
contra o estômago. — Não acredito que esqueci.
— Sem problemas — eu digo. Quando recebi sua mensagem
frenética me pedindo para trazer sua maquiagem para o teatro,
fiquei feliz com a desculpa para sair do nosso quarto por um
tempo. Passei o dia todo trabalhando na minha próxima
história para a aula de redação, ou tentando, pelo
menos. Tentei seguir o conselho de Alex e escrever sobre meus
sentimentos, mas tudo saiu uma bagunça, apenas um monte de
reclamações sobre como Bash era um idiota. Isso me fez sentir
pior, não melhor.
Falando no diabo. Bash aparece ao lado de Allison, sua mão
já apertando sua cintura.
— Sally, querida. — Seu traje consiste em shorts pretos de
cintura baixa e batom vermelho berrante manchando sua
boca. Ele parece um palhaço malicioso, finalmente tão grotesco
por fora quanto por dentro. — Você está pronta para isso?
Allison não o afasta. Ela nem mesmo estremece com os dedos
dele cavando em seu lado. Em vez disso, ela sorri e bate o
quadril contra o dele.
— Mas é claro, querido! — ela diz, colocando uma versão
ainda mais exagerada do sotaque britânico que ela faz para o
show.
Bash pisca para ela e se afasta. Eu olho para ele, mas por tudo
que ele se importa, eu posso muito bem fazer parte da porra da
parede de blocos de concreto. Eu me pergunto se ele ainda se
lembra de mim do Halloween.
— Eu deveria colocar minha maquiagem — diz Allison. —
Mas se você quiser…
— Você está bem? — Eu pergunto.
Ela inclina a cabeça, cabelo preto cortando sobre sua
mandíbula.
— O que você quer dizer?
— Ele simplesmente apareceu e agarrou você, como...
Allison aperta os lábios.
— Não é grande coisa.
— Sério? — Eu fico olhando para ela. — Depois do que ele…
Ela me agarra pelo braço e me arrasta pelo corredor. Eu
levantei minha voz mais do que pretendia, e agora todos estão
olhando nosso jeito — incluindo Wes, que acabou de sair de
um armário de suprimentos com uma bobina de cabos
enrolada no braço.
Wes sorri quando me vê, começando a se aproximar. Então
ele percebe a expressão de raiva no rosto de Allison, e ele para
no meio do caminho, deixando os cabos se soltarem.
— Você precisa se acalmar — diz Allison em um sussurro
áspero.
— M-me desculpe. — Eu me concentro no local onde seus
dedos cravam na minha manga, porque não consigo olhá-la nos
olhos.
— Eu não preciso disso agora. — Ela o solta, já se virando. —
Temos um show a fazer.
Ela segue em direção aos provadores. Bash se juntou a um
bando de dançarinos do lado de fora dos camarins e, quando
ela passa por ele, sua mão se agita, dando tapinhas na bunda
dela.
Eu quero jogá-lo de volta na parede, moer seu sangue nos
tijolos cinzentos. Mas Allison não reage de forma alguma. Nem
mesmo diminui o ritmo dela. Ela está claramente
acostumada. Ele deve fazer isso o tempo todo. Toda maldita
noite.
— Algo errado? — Wes me pergunta.
Ele nem mesmo viu. Bash apenas apalpou Allison bem na
frente de todos, e eu pareço ser a única pessoa que não está
totalmente alheia a isso. O que mais Wes perdeu durante todas
essas semanas de ensaio?
Muitas vezes, eu imaginei Allison e Bash no palco juntos:
sorrindo e piscando e deslizando as mãos sobre a pele um do
outro. Mas sempre foi coreografado, controlado. Uma
performance. Eu não imaginei isso — quão casualmente ele
coloca as mãos sobre ela, sua possessividade apavorante.
É claro que Bash se sente no direito de tocá-la como e quando
quiser. Ele escapou impune. Ele a drogou e agrediu e não
enfrentou uma única consequência. O que ele fez com ela pode
não se enquadrar na definição legal de estupro, mas tenho
certeza de que ele fez pior com outras garotas. Ele fará pior com
Allison se tiver a chance.
Eu imagino arrancando seus dedos de seu corpo, um por
um. Então imagino dobrá-los para trás até que se quebrem.
— Carly? — Wes diz. — Está tudo bem?
Os detalhes correm em minha mente tão rápido que me sinto
tonta: o osso saindo da pele de Bash, o vermelho raivoso de seu
sangue, a forma como seus gritos vibrariam através de mim.
— Eu tenho que ir. — Minha voz cai para o mesmo tom
gélido que assumi durante a reunião com a reitora.
Wes dá um passo para trás.
— O quê? Onde você está…
Mas eu já fui. Corro para fora do Riffenburg Hall e atravesso
o Oak Grove. Minha mesa de sempre na biblioteca já está
ocupada, mas não importa, porque não estou aqui para cuidar
de Allison desta vez. Eu deslizo em uma cadeira no canto e tiro
um caderno da minha mochila, meu coração batendo forte
quando eu viro para uma nova página.
Ele não tinha medo de mim, escrevo. Esse foi seu primeiro
erro.
49
SCARLETT
Bash não está na festa do elenco ainda, mas todo mundo parece
estar.
A sala de estar está tão abarrotada de corpos que não consigo
nem dizer onde montaram os alto-falantes que sacodem as
paredes com uma música rap ensurdecedora. Ninguém está
dançando, pelo menos, mas esse é o único aspecto da situação
que não é meu pesadelo literal.
Uma garota com cabelo ruivo frisado e sardas passa por nós,
segurando um copo vermelho em cada mão. Já a vi no teatro,
mas não consigo lembrar o nome dela.
— Você foi incrível esta noite, Allison! — ela grita por cima
da música.
Allison pressiona a mão no peito como se dissesse: Quem,
eu?
— Obrigada, querida!
Achei que as coisas seriam menos estranhas entre nós, uma
vez que ela estivesse fora do traje, de volta ao seu verdadeiro
eu. Mas ela não está no personagem ou fora dele agora, ela é
algo no meio. De alguma forma, é ainda pior.
— Você quer algo para beber? — ela pergunta.
Eu balanço minha cabeça.
— É que…
— Ah, certo. Você não bebe. — Seu tom deixa claro que ela
de fato não se esqueceu disso. Ela está sendo tão má esta
noite. Não só esta noite, houve uma maldade apodrecendo sob
todas as conversas que tivemos desde aquela manhã no telhado.
Allison dispara em direção à cozinha, sem nem mesmo olhar
para mim. Eu penso em segui-la, mas eu teria que empurrar a
parte mais densa da multidão, e já é ruim o suficiente onde
estou parada agora. Fico o mais imóvel possível, pressionando
as palmas das mãos nas pernas, tentando me encolher para não
tocar em ninguém, mas as pessoas continuam batendo em
mim. O cotovelo de um cara me atinge bem na espinha e eu
quero acertá-lo na mandíbula.
Eu não posso fazer isso. Eu vou gritar.
A porta da frente se abre, uma rajada de vento gélido e um
grupo de garotos do departamento de teatro entram. Bash está
à frente do grupo. O resto dos caras esfregou a maquiagem do
palco, mas Bash ainda tem a sombra do delineador ao redor dos
olhos. Em vez de deixá-lo afeminado, isso o faz parecer mais
rude, como se ele tivesse passado por uma briga e estivesse
ansioso por outra.
Bash examina a multidão, olhos fixos em cada garota
seminua por um segundo antes de seguir em frente. Seu olhar
passa direto por mim. Com meu moletom preto largo com
zíper até a garganta, eu nem mesmo registro em seu radar. Eu
me imagino arrastando-o de volta como uma carcaça, batendo
meu punho em seu rosto até que suas órbitas se quebrem.
— Veja, você está se divertindo. — Allison cutuca o meu
lado com o cotovelo. Ela voltou da cozinha carregando uma
xícara de algo marrom e com cheiro nocivo. — Eu sabia que
você tinha isso em você!
Meus pensamentos violentos se dissipam como fumaça.
— Huh?
Ela aponta para minha boca.
— Você está sorrindo.
Eu largo os cantos dos meus lábios para baixo novamente,
arquivando a fantasia para mais tarde. Talvez eu possa
transformar isso em uma nova história para Alex.
— Wes! — Allison chama.
Ele estava passando com a cabeça baixa, obviamente
tentando nos evitar, mas Allison o agarra pela manga.
— Vocês dois precisam se beijar e fazer as pazes — diz ela. —
Na verdade, eu recomendo essa ordem exata de eventos.
Ela dá um gole em sua xícara, depois se vira para ir embora
com um sorriso malicioso no rosto.
— Allison, espere. — Eu a alcanço, mas ela já deslizou para a
multidão. Ela não está indo na direção de Bash, pelo menos; ele
ainda está na porta da frente.
Wes e eu ficamos ali olhando um para o outro, e é tão
estranho que quero morrer. Pelo menos há algum espaço entre
nós, mas mesmo isso é arruinado quando alguém bate em mim
por trás, me empurrando no peito de Wes.
Eu me afasto dele o mais rápido que posso.
— Desculpe, eu…
—Tudo bem. — Wes sorri. — Eu vou pegar uma
cerveja. Você quer alguma coisa?
Aí está: ele estava apenas sendo educado até encontrar uma
desculpa para dar o fora de mim.
— Estou bem — digo.
— Ok. Volto logo.
Não, você não vai voltar. Mas enquanto Wes empurra a
multidão em direção à cozinha, ele continua lançando olhares
para mim, os traços de um sorriso enrugando seus olhos. Então,
talvez ele realmente não esteja com raiva de mim. Ele deveria
estar. Ele é muito mais legal comigo do que eu mereço. Com
Allison também.
Assim que ele está fora de vista, eu percebo que perdi Bash
no meio da multidão. Eu examino a sala e o encontro encostado
na escada, conversando com uma garota com cabelos negros
que caem na mandíbula.
Allison.
Meu coração bate na minha garganta enquanto eu começo a
tentar empurrar meu caminho em direção a eles.
Eu esbarro em alguém com mais força do que pretendia e a
cerveja escorre em minhas botas.
— Cuidado! — a garota que encontrei diz, e eu percebo que
é Allison. Ela está aqui, não com Bash. Ela está bem, ela está
segura.
A outra garota, entretanto... Bash a olha maliciosamente,
ajustando a alça de seu vestido. Ela dá um tapa na mão dele, mas
não sai. Ela está sorrindo para ele.
Allison toca meu braço e eu pulo.
— Ai, meu Deus, relaxe! Você realmente precisa de uma
bebida.
— D-desculpe, eu… — Eu estou tremendo, toda aquela
adrenalina acelerada gritando através dos meus músculos sem
ter para onde ir. — Eu não sabia para onde você tinha ido.
Ela me olha como se eu tivesse duas cabeças.
— Eu literalmente estava bem aqui.
A música aumenta ainda mais, e as pessoas começam a
empurrar os móveis para fora do caminho para ter espaço
suficiente para dançar — o que significa que há ainda menos
espaço para ficar em pé. Allison e eu recuamos, esbarrando
uma na outra e depois em Wes, que acabou de voltar da cozinha
com uma garrafa de Yuengling6.
— Você quer dançar? — ele me pergunta.
Eu balanço minha cabeça. Não me importo se Allison está
chateada comigo, vou ficar ao lado dela esta noite, não importa
o que aconteça. E ficarei de olho em Bash também. Ele está
com o braço em volta da cintura da garota de cabelos escuros
agora, e ela está se inclinando para ele, sorrindo, enquanto ele a
puxa para a pista de dança improvisada.
— Quem é essa garota? — Eu tenho que gritar a pergunta
duas vezes e apontar algumas coisas bem rudes para que Allison
me entenda acima da música.
— Anna Turner — Allison grita de volta. — Ela é uma
caloura. Ela mora em nosso dormitório.
6
É a marca de cerveja operante mais antiga dos Estados Unidos, popularizada
no estado da Pensilvânia.
Anna na verdade não se parece em nada com Allison, exceto
pelo comprimento e cor de seus cabelos. Nunca falamos além
do ocasional olá no corredor, mas eu a vi no dia da mudança: a
jovem se despedindo chorosa do pai ao lado da farsa de
despedida de minha própria família.
Bash vira Anna de modo que ele está pressionado contra suas
costas, o braço travado em seu estômago, e há uma pequena
gagueira no ritmo de sua dança, seu corpo enrijecendo. Ela não
está mais sorrindo.
— Deveríamos fazer algo — eu digo.
Allison franze a testa.
— O quê?
— Devíamos fazer alguma coisa — repito, mais alto desta
vez, presumindo que ela não pudesse me ouvir.
Mas ela apenas revira os olhos.
— Eles estão dançando, Carly. O que você quer que eu faça?
Os dedos de Bash estão cavando nos ossos do quadril de
Anna agora, seu nariz pressionando contra seu pescoço. Ela
está claramente desconfortável. Como Allison não consegue
ver isso?
— Você está falando sério? — Eu grito. — Ele
está apalpando ela, bem na frente de…
— Ai, meu Deus, acalme-se. — Allison drena o resto de sua
bebida. — Só porque você é reprimida pra caralho.
Eu olho para ela.
— Eu não sou reprimida.
Ela é a reprimida — reprimindo todos os seus sentimentos
sobre o que Bash fez com ela, fingindo que tudo está bem
quando não está. Sou a única pessoa que está tratando o que
aconteceu com ela com a gravidade que merece. Aquele
médico horrível, a reitora dos alunos — ambos a
dispensaram. Eu sou a única que está tentando protegê-la dele.
E quem vai proteger aquela pobre garota? Se ele tentar fazer
com ela o que fez com Allison — bem, não sei o que vou fazer
exatamente, mas não posso ficar parada e deixar isso acontecer.
— Ah, sério? — Allison diz. — Você não é reprimida?
Então ela pega meu rosto em suas mãos e me beija.
55
SCARLETT
Mina nem parece notar como estou abalada. Ela está andando
de um lado para o outro, tagarelando nomes, causas de
morte. Se eu já não estivesse tão intimamente familiarizada com
os casos que ela está se referindo, seria impossível acompanhar
o ritmo estonteante de suas palavras.
— É meio brilhante, na verdade — ela diz. — Diferentes
métodos de assassinato a cada vez, feitos sob medida para a
vítima. Mas ainda há um padrão, sempre há um padrão.
Mina tira o relatório das minhas mãos e começa a virar as
páginas ela mesma.
— Mikayla traçou todas as datas para mim, e há uma morte
como essa por ano há pelo menos sete anos. O primeiro foi esse
cara...
Ela apunhala a imagem no topo da página com o dedo
indicador. Um belo garoto loiro com dentes brancos e
descoloridos. Dylan…
— Dylan Hughes — ela diz —, ele drogava meninas em
festas e tirava fotos nuas delas enquanto estavam
desmaiadas. Mas ele era filho de um grande doador, então a
universidade o varreu para debaixo do tapete. Então ele acabou
engolindo um monte de pílulas e sufocando até a morte com
seu próprio vômito na noite anterior à formatura.
Eu ainda estava refinando minha técnica. Felizmente, a
polícia presumiu que os cortes casuais no braço de Dylan eram
marcas de hesitação, que ele considerou cortar os pulsos antes
de se voltar para as pílulas. Um trabalho um tanto apressado —
não é o meu melhor trabalho — mas aquele menino era
desprezível, e eu não podia deixá-lo partir para seu futuro
brilhante ganhando seis dígitos na corporação de seu pai. As
fotos que ele tirou provavelmente ainda estão flutuando nos
cantos mais escuros da Internet, mas pelo menos me certifiquei
de que ele não poderia vitimar mais nenhuma garota.
— Você contou à polícia sobre isso? — Eu pergunto.
— Ainda não. — Mina se joga no sofá, passando os dedos
pelos cabelos. Seus joelhos batem na mesa de centro,
derramando um pouco do chá restante. — Não sei, estou
parecendo maluca de novo? Isso parece loucura.
Sento-me ao lado dela e dou um tapinha no chá derramado
com um guardanapo. Mina está olhando para o além, as rodas
girando atrás de seus olhos, então pelo menos ela não vê como
minhas mãos estão tremendo. A polícia nem chegou perto de
ligar todos esses pontos. Tenho que admirar a meticulosidade
de Mina, mesmo que isso seja o meu fim.
— Eu sei que é um salto em relação aos dados — diz ela. —
Quer dizer, um assassino em série? Em Gorman, Pensilvânia?
Ela pode não ter capacidade de investigação para rastrear
tudo isso até mim, mas assim que contar aos detetives, eles não
levarão muito tempo. Eles já suspeitam que eu tenha matado
Kinnear, ou pelo menos ajudando Drew a fazer isso. O fato de
não ter notícias deles há dias só me deixa mais paranóica. Tenho
certeza de que eles estão me observando, construindo seu caso.
— Eu até me perguntei se a mesma pessoa poderia ter
assassinado Alexander também — diz ela —, mas aquela morte
foi tão descuidada comparada com as outras; a menos que o
assassino finalmente tenha estourado ou algo assim. Você acha
que isso é plausível?
Eu tenho que impedi-la, antes que ela vá para a polícia. Mas
como posso fazer isso sem machucá-la?
Sem matá-la?
— Todos aqueles homens no relatório — eu digo. — Você
disse que eles eram abusadores, estupradores.
Mina acena com a cabeça.
— Mas seu ex-marido... quero dizer, ele era um pouco idiota,
com certeza.
Mina dá uma risada melancólica em concordância.
— Ele realmente se encaixa na mesma categoria que os
outros?
Eu acredito que sim. Mas a verdade é que matei Kinnear por
motivos pessoais, porque o odiava e o queria fora do meu
caminho. Foi vingança tanto quanto justiça.
— Bom, você sabe tudo sobre ele e seus alunos — diz Mina.
Sempre me perguntei se fui a primeira aluna com quem
Alexander Kinnear cruzou a linha ou se já fazia parte de uma
longa série de garotas infelizes anos atrás. Foi um erro mirar
nele, não importa as coisas terríveis que ele fez. Eu vejo isso
agora. Eu estava muito perto, meus sentimentos em relação a
ele eram muito crus para serem controlados. E vou pagar por
isso.
— Todo o tempo em que estivemos casados — diz Mina —,
eu sabia que ele estava me traindo, todos os sinais estavam lá,
mas ele negaria, me diria que eu estava imaginando coisas, que
deveria consultar um terapeuta para o meu “ciúme
patológico”. — Sua voz falha um pouco, a raiva vazando pelas
rachaduras. — Ele fez eu me sentir louca.
Num impulso, pego sua mão. Mina está tão presa em suas
memórias de Kinnear, que no começo eu não acho que ela
percebeu o gesto. Mas então ela entrelaça seus dedos com mais
força nos meus.
— Você sabe o que é realmente fodido? — ela diz. — Eu
costumava desejar que ele me batesse.
Eu tive esse mesmo pensamento sobre meu pai. Seu abuso foi
totalmente emocional e psicológico; as únicas marcas que
deixou foram internas. Impossível de ver, fácil de negar.
— Alexander poderia mentir e trapacear e virar minha
própria mente contra mim, e todos ainda o achavam
tão charmoso. Mas se eu tivesse mostrado, até ido trabalhar com
um olho roxo apenas uma vez, tudo teria mudado. Eles teriam
que levar isso a sério.
Você pensaria assim. Mas não há garantia. Eu matei muitos
homens que bateram em suas parceiras de forma sangrenta e
não enfrentaram nenhum tipo de consequência antes de mim.
— Se realmente há alguém matando todos esses homens, eu
tenho que dizer… — Mina me olha bem nos olhos. — Quase o
admiro.
— Admirá-lo? — É o que sempre quis ouvir. Mas tenho
certeza de que ela se sentiria diferente se soubesse que estava
segurando a mão que cortou a garganta de seu ex-marido.
Mina aperta minha mão, puxando-a para o colo.
— Quem quer que seja, não está esperando, deixando os
homens escaparem dessa merda. Está fazendo algo a respeito.
Quero contar tudo a ela, sobre Kinnear e Dylan Hughes e
todos os outros homens que matei, sobre a garota tímida que
costumava ser e a maneira como ela se transformou em uma
arma. Quero olhá-la nos olhos e dizer: sou eu, sou eu, e fiz tudo
para proteger mulheres como nós. Eu fiz isso e faria de novo.
Mas não posso dizer nada disso a ela. Então eu engulo meus
segredos e a beijo em vez disso.
56
CARLY