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Para Emily

Tabela de Conteúdos
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Epílogo
Agradecimentos
aviso — bwc
Essa presente tradução é de autoria pelo grupo Bookworm’s
Cafe. Nosso grupo não possui fins lucrativos, sendo este um
trabalho voluntário e não remunerado. Traduzimos livros com
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de forma construtiva e sem desrespeitar o trabalho da nossa
equipe.
1
SCARLETT

Eu saberei que está funcionando quando ele começar a gritar.


Mas, por enquanto, espero. Entrei furtivamente na garagem
há uma hora, quando ainda estava escuro como breu lá
fora. Estou vestida para combinar com as sombras, um capuz
puxado para esconder meu cabelo vermelho vivo, rosto limpo
de maquiagem. Não há necessidade de ficar bonita para isso.
Não há nenhum veículo aqui, apenas alguns velhos
equipamentos de exercício pousados em pedaços de carpete,
suor rançoso e respingos de musgo pairando no ar. Estou
pressionada no canto canto ao fundo atrás de um conjunto de
prateleiras de metal empenadas. O suficiente para me esconder,
se eu ficar extremamente imóvel. Eu mantenho minha
respiração estável, focando meu olhar no vinil vermelho
descascado do banco de musculação, os pequenos cortes no
material como feridas abertas.
Passos batem na calçada e a porta lateral da garagem se
abre. Bem na hora. Um jovem entra, enxugando o suor da testa
com a bainha da camiseta.
Tyler Elkin. Atleta estrela e um dos piores alunos que já
ensinei em minha aula de Introdução à Literatura
Inglesa. Como zagueiro titular, ele levou o time de futebol da
Universidade Gorman até o campeonato da conferência na
temporada passada. Isso foi antes dos rumores começarem.
Ele tira os fones de ouvido e passa o polegar pela tela do
celular. A música começa a tocar em um pequeno alto-falante
instalado em uma caixa ao lado dos pesos, um garoto branco
aspirante a Punk Rocker gritando sobre uma garota que partiu
seu coração. Essa vadia, como ela ousa.
Isso deixa meus dentes no limite, mas não movo um
músculo. Não posso arriscar que Tyler me veja. Ainda não.
Cantando desafinadamente, Tyler vai até o mini frigorífico
amassado no canto e retira uma garrafa de vidro. Ele joga a
tampa no chão e dá um longo gole no líquido de dentro. É uma
bebida energética que ele mesmo prepara, com carvão ativado,
pimenta Caiena e vários ovos crus. O cheiro é horrível e tem um
gosto ainda pior. Eu mesma testei, depois de preparar um lote
com base nas instruções de seu Instagram. Em seguida,
acrescentei meu próprio ingrediente especial, misturado com o
resto do grão amargo do fundo.
Ele também fez um vídeo sobre sua “rotina matinal
incrível”. Ele começa o dia da mesma forma, mesmo nos fins de
semana: levanta às 5h, horas antes dos colegas da fraternidade,
para uma corrida rápida ao longo do caminho pelo rio, na
margem do campus. Ele sempre pausa para tirar uma foto de si
mesmo com o nascer do sol saturando o fundo. Então ele volta
aqui, para a garagem atrás da casa da fraternidade, para treinar
com pesos. Ele vai tomar metade de sua bebida energética
agora, a outra metade quando seu treino terminar, enquanto
ele legenda sua selfie ao nascer do sol com alguma mensagem
motivacional fútil. Levante e vá malhar. Faça do dia de hj sua
cadela.
Tyler toma outro gole e enxuga a boca. Ele tem lábios
carnudos e cílios longos, o que torna seu rosto quase feminino
sob certos ângulos. Ele poderia ser modelo, um daqueles
meninos Abercrombie bronzeados jogando uma bola para
frente e para trás em shorts madras combinando. Está claro em
suas redes sociais que ele considera seu plano reserva se toda a
coisa do futebol não der certo. Um menino como Tyler, ele
poderia ter qualquer garota que quisesse. Mas onde está a
diversão nisso? Deve ficar chato depois de um tempo. Não que
isso seja desculpa.
Tyler deita no banco de peso e começa a levantar e abaixar a
barra no ritmo da música. Até que seu ritmo diminua,
gagueje. Seus dedos se fecham com mais força ao redor da
barra. Em seguida, eles têm espasmos, e ele quase solta o peso,
deixando-o cair em seu rosto de catálogo perfeito.
Minha respiração fica presa. Isso arruinaria todo o meu
plano.
Ele mal consegue segurar a barra. Com as mãos trêmulas, a
coloca de volta no suporte e fecha os olhos por um segundo. Ele
se senta, balançando os pulsos, os braços. Mas agora suas pernas
estão com espasmos, os músculos da panturrilha e da coxa se
abrindo e fechando como punhos.
Tyler se levanta, tentando se afastar, rolando o pescoço,
estalando as vértebras. Eu me encolho ainda mais na
escuridão. Está quase na hora, mas ainda não.
— Porra — diz ele, passando a mão de volta pelo cabelo loiro
encharcado de suor. Ele pega a garrafa novamente, tomando
outro gole, o pomo de Adão balançando enquanto ele engole.
Ainda segurando sua bebida, Tyler se inclina contra o banco
de peso, tentando esticar as estranhas cãibras nas
pernas. Passam-se apenas alguns segundos antes que ele se
agarre e desmaie. A garrafa vai com ele, pousando além de sua
mão estendida. O vidro não quebra, mas o conteúdo restante
flui para o chão de concreto.
Isso é bom. Ele já teve mais do que o suficiente.
O corpo de Tyler não está mais sob seu controle. Ele está se
contraindo, contorcendo-se, arqueando a coluna, levantando
as costas do chão, de forma que ele está apoiado apenas na
cabeça e nos calcanhares. Ele finalmente solta um grito — do
fundo de sua garganta, gutural a princípio, depois mais agudo,
transformando-se em um soluço.
Se não fosse por sua música detestável, alguém poderia ouvi-
lo. Se ele gritar muito mais alto, eles podem de qualquer
maneira. Eu saio do meu esconderijo, mas ele está com tanta
dor que leva alguns segundos para juntar tudo — para me
reconhecer em primeiro lugar e depois se perguntar por que sua
professora de literatura está parada perto dele em sua própria
garagem às seis da manhã, sorrindo enquanto ele grita.
— Por favor — Tyler consegue engasgar. — Por favor, me
aju-
Outra convulsão se apodera dele. Logo ele não conseguirá
mais falar. Isso é o máximo que já ouvi da boca de Tyler
Elkin. Quando ele se incomodou em aparecer na minha aula,
ele grunhiu respostas de uma palavra, afundando em sua
cadeira com as pernas esparramadas no corredor como se ele
não desse a mínima para quanto espaço ele ocupava.
Eles nunca se importam, homens como ele. Bem, ele é mais
um menino, na verdade. A luz fluorescente do teto da garagem
enfatiza todos os traços ainda adolescentes de seu rosto: a
desculpa fofa para um bigode no lábio superior, o inchaço da
espinha no vinco entre o nariz e a bochecha.
Ele é um menino e nunca se tornará um homem. Porque em
mais alguns minutos, ele estará morto.
É arriscado para mim estar aqui. Eu sei disso. Eu poderia ter
deixado a bebida contaminada na geladeira para ele e fugido
enquanto ele ainda estava correndo. Mas a verdade é que gosto
demais disso para perder. É minha recompensa por todo o
trabalho árduo. Além disso, há mais uma etapa no meu plano.
Eu pego o telefone de Tyler e o seguro na frente de seu
rosto. A princípio, o dispositivo não o reconhece, suas feições
estão tão distorcidas de agonia. Espero que as convulsões
diminuam novamente, seu corpo desistindo da luta antes
mesmo dele. Depois de mais alguns segundos, a tela de
bloqueio pisca.
Abro o Instagram e recorto a última selfie de Tyler para que
apenas o nascer do sol no fundo fique no quadro, aplicando o
filtro que ele usa em todas as suas postagens. Para a legenda,
imito a gramática e ortografia assustadoras que ele emprega.
ultima corrida ultimo nascer do sol, desculpa por tudo
Tyler está deitado ofegante, encharcado de suor, piscando
para mim enquanto eu limpo metodicamente todos os
vestígios de minhas impressões digitais do dispositivo.
— Por que… — ele começa, mas sua garganta está muito
apertada para falar.
Eu coloco o telefone em sua mão trêmula e me inclino sobre
ele, meu corpo projetando na sua sombra.
— Megan Foster — eu digo.
Os olhos de Tyler se arregalam — e essa, essa é minha parte
favorita. O terror abjeto que toma conta de seus rostos. É assim
que sei que eles estão finalmente me vendo, percebendo o que
eu realmente sou.
Eu imagino o que Tyler poderia dizer, se ele ainda fosse capaz
de formar palavras. Não fui só eu — provavelmente seria por
onde ele começaria. Ele não foi o único que segurou Megan
naquele colchão imundo de fraternidade. Todos eles
conseguiram — Tyler e quatro de seus amigos mais próximos,
metade da equipe titular do time de futebol.
Eu não comecei. Quem sabe, pode até ser verdade. Talvez
Tyler fosse o segundo a jogar, ou o terceiro, ou o quarto, ou o
quinto. Talvez quando ele chegou lá ela desistiu de lutar, então
ele quase podia fingir que ela estava disposta. Ele não teve
hematomas e arranhões nos braços depois, como seu
companheiro de equipe Devin Caldwell tinha. Mas a polícia
também não fez absolutamente nada com Devin Caldwell. Eles
alegaram que não havia provas suficientes.
Para mim, o que Megan disse foi uma prova mais do que
suficiente. A verdadeira justiça teria sido trancar as portas da
casa da fraternidade e colocar fogo em todo o lugar, queimando
cada um daqueles meninos em suas camas. Talvez eu nem
precisasse molhar o local com querosene primeiro,
considerando que todas as superfícies estão pegajosas com o
álcool derramado. Mas não posso matar todos eles, a menos
que queira ser pega. Passei os últimos dezesseis anos
assassinando homens que merecem, e não estou prestes a ficar
desleixada agora.
Portanto, fiz o compromisso lógico: escolher um homem e
torná-lo um exemplo. Tyler foi a escolha certa. Não porque ele
seja o quarterback ou o macho alfa ou qualquer uma dessas
merdas machistas, mas porque, embora ele e seus quatro
companheiros de equipe tenham feito algo horrível naquela
noite, o pecado de Tyler foi o pior.
Foi o Instagram dele que me deu a dica, na verdade: foto após
foto de Tyler em festas, encostado nas paredes e nos batentes
das portas e troncos de árvore, segurando uma garrafa como a
que pousava no chão ao lado de seu futuro cadáver.
Tyler acredita que uma vida limpa significa um jogo mais
forte. Então, enquanto seus irmãos de fraternidade se perdiam
em cerveja e erva barata, Tyler se restringiu a bebericar suas
bebidas energéticas caseiras. Cinco meninos estupraram
Megan Foster, mas apenas um deles o fez enquanto estava
completamente sóbrio.
Olhando para trás, os sinais estavam lá desde a primeira
semana de aula — o jeito que Tyler sempre escolhia o assento
logo atrás de Megan, puxando sua mecha de cachos castanhos
para trás enquanto ela tentava ler. Dizendo a ela, mesmo
quando ela se encolheu para longe dele, Você seria tão bonita se
sorrisse.
Ele está convulsionando de novo, mas ficou em silêncio
agora, os olhos revirados em sua cabeça. Eu me agacho ao lado
dele, com cuidado para não tocar em mais nada. É só uma
questão de tempo. Nenhum hospital poderá ajudá-lo neste
momento, não com tanta estricnina em seu sistema.
Lá. Finalmente. O corpo de Tyler passa por mais um surto
de convulsões de aperto, e seus lábios se estendem para trás de
seus dentes, fixando seu rosto muito bonito em uma horrível
paródia de um sorriso.
Quem está sorrindo agora, filho da puta?
2
CARLY

Estive contando os dias durante todo o verão, mas agora que


estamos aqui, sinto que não consigo respirar.
O calor não está ajudando. Está escaldante lá fora e, durante
todo o trajeto de nossa pequena cidade natal no centro da
Pensilvânia até a Universidade Gorman, o ar-condicionado do
Nissan dos meus pais mal alcança o banco de trás. O suor
escorre pela minha espinha, acumulando no cós da minha calça
jeans.
Meu pai olha pelo espelho retrovisor, tentando chamar
minha atenção. Temos os mesmos olhos: azul esfumaçado com
sombras escuras embaixo. Essa é a única coisa que temos em
comum.
Eu evito seu olhar, olhando através dos vidros escuros do
carro enquanto ele dirige para a estrada pavimentada que faz a
curva em torno de Whitten Hall, minha nova casa. Eu esperava,
não sei, algo parecido com um dormitório. Mas Whitten parece
uma velha casa senhorial, com colunas na entrada e dedos de
hera rastejantes agarrados por todo o tijolo vermelho.
Minha mãe espera até que meu pai aperte o botão do pisca-
alerta e saia antes que ela se vire no banco para olhar para mim.
— Você quer que a gente entre com você? — A esperança
em sua voz é como uma faca no coração. — Ajudar você a
desempacotar?
Eu sinto o gosto de sangue e percebo que estou mordendo
meu lábio inferior novamente.
— Não, tudo bem.
Ela me levou para um jantar de despedida ontem — na hora
do almoço, quando ela sabia que meu pai estaria no
trabalho. Nada chique; acabamos dividindo alguns nuggets de
frango e um grande sorvete no Wendy's. O tempo todo, ela
piscou muito, como se estivesse tentando não chorar.
Ela está fazendo isso agora também, seus cílios tremulando,
os dedos emaranhados no colar de cruz de ouro em sua
garganta. Seu cabelo é escuro como o meu, mas liso em vez de
ondulado, e ela o usa com as mesmas mechas elegantes ao redor
do rosto que usava quando ela e meu pai se conheceram. Ele
acha que todas as mulheres devem manter o cabelo comprido
ou elas não são “femininas”. No primeiro ano do ensino médio,
cortei o meu na altura dos ombros com uma tesoura de
cozinha, e ele ficou uma semana sem falar comigo. Agora eu
uso ainda mais curto, roçando meu queixo.
O porta-malas se fecha, e minha mãe e eu pulamos, os
ombros enrijecendo.
Ela sai do carro primeiro. Eu respiro fundo antes de seguir,
removendo as costas dos meus braços do assento. Meu pai está
parado no meio-fio ao lado da minha bagagem, com as mãos na
cintura como se o tivéssemos feito esperar por horas em vez de
alguns minutos. Eu só tenho duas sacolas — uma mochila e
uma mala pesada — enquanto a maioria dos outros alunos que
chegam parecem ter uma van de mudança cheia de coisas,
engradados para leite feitos de plástico e sacolas da IKEA e
caixas de papelão etiquetadas com Sharpie.
Ao lado do carro à nossa frente, há uma pequena garota
negra parada na ponta dos pés para abraçar seu pai em
despedida, com lágrimas escorrendo pelo rosto. Ele também
está chorando, mas tentando esconder, cerrando os maxilares,
fechando os olhos com força. Não consigo imaginar eu me
sentindo assim. Não consigo imaginar nada além de alívio ao
me despedir de meu pai.
Eu o deixei me abraçar, entretanto, porque eu sei que será
pior se eu não deixar. É importante para ele que pareçamos ser
uma família feliz, mesmo que haja apenas estranhos por perto
para testemunhar a farsa. Ele ainda parece descontente — com
a rigidez em meus braços, talvez, ou a maneira como fiquei
tensa quando ele apertou os meus ombros.
Ele dá um passo para trás para ficar ao lado de minha mãe,
colocando a mão em seu quadril — o local onde ele sabe que
seu ciático dói mais.
— Ligue-nos assim que se instalar — ela diz, sorrindo ainda
mais para disfarçar seu estremecimento.
Eu a abraço também, pego minha bagagem e sigo em direção
à porta da frente. Minhas malas estão pesadas, mas me sinto tão
leve, quase tonta de alívio. Eu não vou me virar. Eu não vou
assistir eles irem embora.
Entrar no Whitten Hall é como entrar em uma fotografia de
cor sépia, tudo em um tom diferente de marrom. Em outra
vida, a entrada poderia ter sido uma sala de visitas
formal. Agora está lotada de sofás desleixados de várias épocas,
além de um quadro de avisos mostrando uma variedade caótica
de folhetos para corridas de fraternidades, esportes internos e
clubes de LARPing1. Uma música pop deste verão desce de um
dos quartos acima.
Bem na porta, uma garota vestindo uma camiseta regata
vermelha da Universidade Gorman e shorts jeans está sentada
em uma cadeira dobrável, uma prancheta equilibrada em seu
colo. Há um menino ao lado dela, agachado no carpete
bronzeado com um boné Steelers puxado para baixo sobre os
olhos. Ele toca suas coxas nuas, as pontas dos dedos roçando a
bainha rasgada de seu short.
Ai, meu Deus. Ele está agarrando ela. Eu deveria…
Mas então ela sorri e se abaixa sob a aba do chapéu para beijá-
lo. E continua beijando-o, como se eu nem estivesse aqui, como
se tivesse desbotado nas paredes bege.
Eu deixo minha mochila cair no chão. A garota se separa do
rosto do cara com um estalo de ventosa e finalmente olha para
mim, seus lábios torcidos em aborrecimento.
— Sim?
— Estou, hum… me mudando? — Eu deveria ter deixado
meus pais entrarem comigo. Não faço ideia do que estou
fazendo. Talvez eu esteja no lugar errado. Talvez eu não devesse
estar aqui.

1
O clube de LARping (Live action role-playing) é um grupo formado por
pessoas interessadas em participar de simulações de jogos, incluindo
competições e combates, tudo de forma segura.
— Nome? — a garota exige, olhando para a prancheta.
O namorado dela se levanta e caminha em direção à porta,
tirando um maço de cigarros do bolso da bermuda de nylon.
— Carly — eu digo, minha voz lutando para cima no final
como se estivesse tentando se segurar em uma saliência. —
Carly Schiller.
— Bem-vinda à Gorman University, Carly Schiller — diz ela,
monótona e entediada como se estivesse lendo um roteiro. —
Eu sou Samantha, sua conselheira residente. Parece que você
está no segundo andar, com — Samantha gesticula para uma
garota que acabou de descer as escadas — Hadley!
A garota é linda, com a pele pálida e brilhante e o cabelo loiro
cor de milho preso em um rabo de cavalo baixo. De repente,
estou ciente de como meu rosto deve estar corado e brilhante,
como minhas roupas parecem pesadas de suor, enquanto seu
vestido de verão retrô — o mesmo tom de azul de seus olhos —
parece fresco e alegre, perfeito como seu delineador de olho de
gato. Aposto que meu próprio delineador preto está
manchado. Eu não deveria ter me incomodado com isso esta
manhã, mas eu queria parecer... eu não sei. Outra pessoa.
— Conheça sua nova colega de quarto — diz Samantha. —
Carly, esta é…
— Allison Hadley.
Allison estende a mão para eu apertar. Suas unhas são
brilhantes, pintadas de vermelho vivo, e há algo sofisticado,
quase grandioso, na maneira como ela se comporta. Isso me
lembra das atrizes dos filmes dos anos 1940 que minha mãe
adora. Allison diz o nome dela como se eu já devesse saber.
— Onde está o resto das suas coisas?— ela pergunta.
Eu olho impotente para minhas duas malas surradas, caídas
uma contra a outra no chão.
— Isso é tudo.
Allison inclina a cabeça, balançando o rabo de cavalo
perfeito.
— Você não trouxe um ventilador ou algo assim?
Eu balanço minha cabeça.
— Tudo bem — ela diz. — Eu tenho um punhado, e eu
coloquei todos eles no máximo desde esta manhã, então está
um pouco menos sufocante lá em cima. Aqui, deixe-me ajudá-
la com isso.
— Ah, não, você não precisa… — Eu começo, mas ela já está
levantando minha mala, carregando-a em direção às
escadas. Eu a alcanço, colocando a mochila no meu ombro.
O corrimão de madeira curvo é imponente, mas os degraus
são cobertos pelo mesmo carpete sujo da entrada, tiras de fita
adesiva coladas sobre remendos gastos nos degraus. No andar
de cima, a música está mais alta, batidas sincopadas vibrando
nas paredes.
Allison para no corredor, deixando a mala cair.
— Droga, garota. O que você trouxe aqui?
Eu estou esperando que eu já esteja com o rosto muito
vermelho para meu rubor registrar.
— Apenas... livros. Muitos livros. Desculpa. Eu posso-
— Está tudo bem, você está me poupando uma ida à
academia. — Ela continua pelo corredor, arrastando minha
mala atrás dela como se fosse um cachorro desobediente. — O
banheiro é ali — ela me diz, gesticulando com a ponta do
queixo. — E aqui somos nós.
A porta está entreaberta e Allison a abre totalmente com o
quadril. Ela já se mudou para a metade direita do quarto; a
cama é coberta por um edredom vermelho e preto e há uma
fileira de pôsteres de musicais da Broadway — Wicked: A
História Não Contada das Bruxas de Oz, Rent e O Fantasma
da Ópera — pendurados acima dele. Como ela prometeu, há
vários ventiladores, todos ligados no máximo: dois oscilando
lentamente entre as camas e um ventilador de caixa preso na
janela, soprando ar estagnado para fora pela hera.
— Se você não gosta desse lado — diz ela — podemos
trocar. Só escolhi o mesmo que lado que escolhi no ano
passado.
— Não, é... este lado está bom. — Eu coloco a mochila no
colchão nu. — Espere, você não é caloura?
— Estudante do segundo ano — diz ela, sentando-se de
pernas cruzadas em sua própria cama para que sua saia caia
sobre os joelhos. — Minha colega de quarto do ano passado foi
transferida para a Penn.
— Ei, Allie, você está pronta…
Um menino entra direto na sala como se ele também vivesse
aqui. Assim que ele me vê, no entanto, ele para,
repentinamente estranho.
— Ah, e aí — ele diz. — Desculpa. Você deve ser…
— Esta é minha nova colega de quarto, Carly. — Allison
gesticula entre nós com um giro dramático de pulso. — Carly,
este é o Wes.
Wes é franzino, com ombros estreitos e cabelos castanhos
que caem sobre a testa, roçando as pontas dos óculos de aro
metálico. Ele deve ser o namorado dela. Embora ela não o tenha
apresentado dessa forma, e ele não seja exatamente o tipo que
eu teria imaginado. Quer dizer, eu só a conheci há alguns
minutos, então eu realmente não a conheço, muito menos seu
gosto para garotos. Mas posso dizer, apenas olhando para Wes,
que ele é como eu: uma pessoa que desaparece no
fundo. Considerando que Allison... ela brilha como um
holofote apontado para ela.
— Prazer em conhecê-la, Carly — Wes diz, antes de voltar
sua atenção para Allison. — Você ainda quer…
— Sim! — Ela salta da cama. — Sim, desculpe, perdi a noção
do tempo, mas estou pronta!
Allison calça algumas sandálias e agarra um cordão com suas
chaves e a identificação de Gorman. Ela não olha para mim,
mas Wes sim, parando na porta para lançar um olhar de soslaio
na minha direção antes de seguir Allison para fora.
O ruído baixo dos ventiladores faz parecer que o quarto está
respirando. Meus pais estão provavelmente a apenas alguns
quilômetros de distância, indo para o oeste na Rota 422, mas
sinto que estou em um planeta separado, finalmente livre.
Eu posso ser feliz aqui. Eu sei que posso.
3
SCARLETT

— Não me mate.
Eu giro na minha cadeira. O Dr. Andrew Torres está parado
na soleira da sala de conferências, segurando sua caneca lascada
de insultos de Shakespeare com um sorriso culpado.
— Tomei o resto do café — diz ele.
Saúdo-o com a xícara de torrado escuro que peguei no
carrinho de café da biblioteca a caminho do trabalho.
— Eu tenho tudo sob controle.
Ele ri e desliza para o assento à minha direita.
— Você sempre tem.
Depois de me despedir do cadáver de Tyler, ainda tive tempo
para uma versão abreviada da minha rotina matinal. Chuveiro,
rímel, batom, cabelo modelado em ondas suaves. Mas eu tinha
que pegar o café da manhã em trânsito. Sempre morrendo de
fome depois de uma morte, mesmo aquelas que não exigem
esforço físico. Terminei meu muffin de cranberry antes mesmo
de atravessar o Oak Grove para Miller Hall.
Fui uma das primeiras a chegar para a reunião de equipe. O
resto do corpo docente está entrando agora, conversando entre
si, mas nenhum deles me reconhece. Drew é o único colega de
trabalho com quem tenho algo próximo a uma amizade, e isso
porque ele acha o resto do corpo docente de inglês quase tão
tedioso quanto eu.
— Como foi seu verão? — Drew pergunta, enquanto nós
dois viramos as páginas de nossos cadernos. Ele usa o mesmo
estilo de regra estreita desde que o conheço, comprando um
novo para comemorar o início de cada semestre. — Espero que
você não tenha passado o tempo todo trabalhando naquele
formulário de bolsa e evitando cuidadosamente a diversão.
— Não o tempo todo — eu digo. — Obrigado novamente
pela carta de recomendação.
Drew acena para mim.
— Seu trabalho fala por si. Se eles não escolherem você, eles
são idiotas.
Foi ele quem me contou sobre a bolsa da Women's Academy
em primeiro lugar. A academia é um arquivo privado, dedicado
a preservar o trabalho de escritoras menos
conhecidas. Recentemente, eles obtiveram uma coleção de
cartas até então desconhecidas de Viola Vance, a poetisa da
virada do século que tem sido o principal assunto de minha
pesquisa acadêmica nos últimos anos. Quem ganhar a bolsa
terá acesso exclusivo às cartas por doze meses, além de um
apartamento na esquina do arquivo em Londres.
E serei eu.
— Rafael e eu adoraríamos recebê-la para jantar no próximo
fim de semana — diz Drew. — Ele trouxe uma quantidade
verdadeiramente obscena de vinho de nossa viagem a Paris, e se
você não nos ajudar, seremos forçados a beber tudo nós
mesmos.
Eu sorrio.
— Não posso deixar que isso aconteça.
O marido de Drew, Rafael, é tão vivaz e extrovertido quanto
Drew é sério e erudito. Eles parecem uma combinação
estranha, mas de alguma forma funciona; eles estão casados há
mais de vinte anos.
— Se você quiser — diz Drew —, pode até trazer…
— Ai, Deus, vocês ouviram? — Nossa colega Sandra Kepler
desliza para o assento ao lado de Drew, seus longos brincos de
prata tilintando como sinos de vento. Eu coloco minha palma
sobre a página do meu caderno. Força do hábito; ainda não
escrevi nada além da data de hoje.
Drew dá um gole em seu café, me lançando um olhar. Sandra
pode ser igualmente teatral sobre tópicos que vão desde
devastadores cortes de fundos departamentais para
congestionamentos de papel da copiadora. Mas tenho um bom
palpite sobre o que pode estar chateando-a esta manhã.
— Ouviu o quê?— Drew diz.
Sandra abaixa a voz ainda mais.
— Tyler Elkin.
Eu franzo minha sobrancelha, como se estivesse tentando
localizar o nome. Pareceria mais suspeito se eu reconhecesse
imediatamente — eu só tinha Tyler em uma única aula de
palestra para cem alunos, e eu notoriamente não sigo os
esportes Gorman.
— O jogador de futebol? — Drew diz. — O que tem ele?
— Ele foi encontrado esta manhã...
Sandra se inclina em nossa direção, tão perto que posso sentir
o cheiro do café queimado da sala dos professores em seu hálito.
— Morto — ela diz. — Em sua casa de fraternidade.
Foi rápido — mesmo em uma cidade desse tamanho, onde a
fofoca viaja na velocidade da luz, achei que levaria mais algumas
horas para que a notícia circulasse.
Eu amplio meus olhos, segurando a minha boca em um
pequeno o de choque.
— Como ele…
— Eu não sei. A polícia ainda está lá, eu vi os carros no meu
caminho para o campus.
Uma das desvantagens de cometer assassinatos fora do
terreno da escola: a polícia é chamada imediatamente,
enquanto as evidências ainda estão frescas, em vez de a
segurança do campus se intrometer na cena do crime
primeiro. Mas eu já pesava esses riscos ao fazer meus
planos. Teria sido muito difícil Tyler ficar sozinho no
campus; ele sempre viajava com um grupo de outros jogadores
de futebol e parasitas.
A polícia não me preocupa muito de qualquer
maneira. Alguns dos oficiais do distrito de Gorman não são
totalmente ineptos, mas eles ainda têm apenas um treinamento
forense rudimentar e equipamentos de laboratório
ridiculamente desatualizados. E se uma morte é considerada
suicídio, uma queda aleatória, um acidente estranho, eles só
examinam o assunto o quanto precisam para preencher seus
relatórios burocráticos. Alguns dias, quase perco o desafio de
fugir do Departamento de Polícia de Chicago.
— No entanto, todo mundo está falando sobre essa
postagem que ele fez no Instagram. — Sandra estende seu
telefone para mostrar a Drew e a mim a foto do nascer do sol
no topo do feed de Tyler. Já tem alguns milhares de
comentários.
Para o benefício de Sandra e Drew, e de qualquer outra
pessoa que possa estar prestando atenção, eu pressiono minha
boca fechada novamente e organizo meu rosto em uma mistura
estudada de preocupação e consternação.
— Que coisa horrível — eu digo.
— Eu sei. — Sandra balança a cabeça. — Ele era tão jovem.
— Ainda mais jovem do que aquele menino no ano passado
— diz Drew. — O do curso de antropologia?
Sandra pressiona a mão no peito.
— É uma pena.
Vinte anos é jovem. Mas se Tyler tinha idade suficiente para
estuprar em grupo uma garota e tentar escapar impune, ele
tinha idade suficiente para pagar o preço. E quanto ao menino
no ano passado, ele escapou fácil, considerando o que fez com
sua pobre namorada. Ele bateu nela por meses a fio, mas depois
que eu o empurrei para dentro do rio da ponte de salto suicida
mais popular do condado, ele levou apenas alguns minutos
para se afogar.
Posso sentir a dureza sangrando em meus olhos novamente,
então olho para a mesa, esperando que pareça que estou
tomada pela emoção. Então nosso chefe entra na sala em uma
nuvem da colônia de Couro Inglês, e é hora de um tipo
diferente de dissimulação.
O Dr. Kinnear está mais de dez minutos atrasado, embora
tenha convocado a reunião. Ele sempre age como se estivesse
terrivelmente ocupado, correndo de um compromisso
importante para o outro, sem quase nenhuma chance de
recuperar o fôlego. Ele provavelmente demorou muito para se
masturbar no chuveiro.
Kinnear assume sua posição na cabeceira da mesa de
conferência, mas não se senta ainda, apoiando as mãos no
encosto alto da cadeira. Ele nos dá um sorriso cansado, com
uma pitada de tristeza enrugando seus olhos por trás dos óculos
de tartaruga. Ele deve ter praticado no espelho.
— Tenho certeza de que todos vocês já ouviram as trágicas
notícias a essa altura — diz ele.
Todos acenam sombriamente, inclusive eu. A assistente mais
jovem do departamento está chorando, enxugando os cantos
dos olhos com uma das toalhas de papel marrom do
banheiro. Kinnear leva um momento para dar um aperto
reconfortante no ombro dela. Há rumores de que eles
dormiram juntos após a última festa de Natal dos
professores. Pelo menos ela tem mais da metade de sua idade,
mesmo que apenas alguns anos.
O jovem sentado ao lado dela tira um lenço do bolso e o
oferece a ela. O Dr. Stright — ele é o favorito de Kinnear,
porque ele é basicamente uma versão mais jovem de
Kinnear. Eles até se parecem: cabelos ruivos, olhos azuis, óculos
pretensiosos e sorrisos afetuosos para todos, por favor, gostem de
mim. Agora que Kinnear está na casa dos quarenta, Stright tem
a duvidosa distinção de ser o único jovem e bonito professor do
departamento. Ele faz com que todos os seus alunos o chamem
pelo primeiro nome, como se ele fosse um deles. Um
estratagema patético, mas os alunos — especialmente as
meninas — parecem engoli-lo com uma colher.
— Não sei mais do que vocês agora, infelizmente — Kinnear
continua —, mas tenho certeza de que mais detalhes serão
tornados públicos assim que a polícia se sentir confortável em
compartilhá-los.
— Então, ainda não sabemos? — Sandra pergunta. — Como
ele…
— Pelo o que tudo indica — Kinnear diz. —, Sr. Elkin tirou
a própria vida.
Boa. Se eles forem competentes, a polícia logo deve
determinar que a estricnina que ele bebeu veio da caixa de
veneno de rato colocada bem em cima das prateleiras que
serviram como meu esconderijo esta manhã.
Nem precisei plantar o veneno. Eu o encontrei durante uma
das minhas vigias preparatórias da garagem, provavelmente
remanescente de alguma infestação de roedores anos
antes. Peguei o que precisava para drenar a bebida de Tyler e
coloquei a caixa de volta onde a encontrei. Perfeito para meus
propósitos: apoia a história de que o pobre Tyler, devastado
pela culpa, decidiu se livrar de sua miséria com a coisa mais
próxima à mão.
— Agora — Kinnear continua. — Por mais devastados que
eu saiba que todos nós estamos, ainda temos negócios a
tratar. As aulas começarão conforme programado na terça-
feira.
Há um murmúrio baixo de assentimento em torno da mesa,
e todos menos preparados do que eu — que é, como sempre, a
grande maioria dos meus colegas — preparam papéis e laptops
para a reunião.
Kinnear se senta, olhando diretamente para mim com um
sorriso.
— Scarlett?
Não o Dra. Clark. Isso nunca. Era um pouco menos
irritante quando éramos ambos apenas professores. Mas então
ele aceitou o seu caminho para o cargo de presidente interino
do departamento depois que o Dr. McElhaney se aposentou no
ano passado, e agora ele acha que pode me tratar como a porra
de sua secretária.
— Sim? — Digo, embora já saiba exatamente o que ele vai
dizer.
— Você se importaria de tomar notas de novo? Você é tão
boa nisso.
Eu me forço a devolver o sorriso e clico para abrir minha
caneta.
Pelos próximos quarenta minutos, Kinnear tagarela sobre
datas de semestre e planos de aula e a orientação de novos
alunos (quais, eu me pergunto, ele tentará foder este
ano?). Escrevo enquanto ele fala, preenchendo as linhas do
meu caderno com letras cursivas impecáveis. Escolhi meu
assento ao final da mesa com cuidado, para que ninguém
pudesse olhar por cima do meu ombro e ver o que estou
escrevendo, nem mesmo Drew.
Porque não estou apenas escrevendo notas de
reuniões. Estou anotando datas, horários, lugares e eventos
onde Kinnear menciona que estará. Fraquezas que posso
explorar, maneiras de pegá-lo sozinho, humilhá-lo, fazê-lo
sofrer, fazê-lo gritar.
Agora que Tyler está morto, é hora de voltar minha atenção
para o meu próximo alvo. E, para azar do Dr. Kinnear, ele subiu
para o topo da minha lista.
4
CARLY

Eu me esgueiro pelo quarto escuro, tentando não fazer


nenhum som.
Minha primeira aula às segundas-feiras é cedo — bem, muito
cedo para Allison, de qualquer maneira, estou fazendo o
possível para não acordá-la. Mesmo dormindo, ela parece
glamourosa, seu cabelo espalhado artisticamente sobre o
travesseiro. Durmo com calças xadrez desbotadas e uma
camiseta enorme, mas Allison usa uma camisola de cetim para
dormir todas as noites.
Eu tiro meu pijama e o substituo por uma calça jeans o mais
rápido possível, em seguida, coloco meu sutiã sem tirar
totalmente minha camisa. Ainda me sinto estranha ao me vestir
com outra pessoa no quarto, mesmo que essa pessoa esteja
inconsciente. Nossos horários parecem ser totalmente opostos,
então Allison e eu mal nos falamos desde o dia da mudança. Eu
estou na cama por volta das dez, assim como em casa, enquanto
ela fica acordada até depois da meia-noite, estudando pelo
brilho suave das luzes de corda enroladas em sua cabeceira.
Enquanto estou fechando o zíper da minha mochila, Allison
muda de posição com um suspiro suave. Sua camisola desliza
para baixo para revelar o topo de seus seios e, de repente, parece
tão claro quanto meio-dia aqui. Desvio meus olhos, correndo
em direção à porta.
Só quando estou na metade do gramado, percebo que
esqueci de colocar meu moletom. Eu o tinha colocado na cama
e tudo mais: o meu favorito, o tecido preto desbotado para um
cinza escuro com muita roupa lavada, buracos irregulares nas
mangas por onde meus polegares aparecem.
Ainda é cedo o suficiente para voltar para buscá-lo. Mas não
quero incomodar Allison. Eu curvo meus ombros de forma
que as alças de minha mochila quase tocam minhas orelhas, me
abraçando enquanto continuo minha caminhada para o
coração do campus. Whitten — ou “Whit”, como todos
parecem chamá-lo — fica bem na orla de Gorman, perto da
floresta que faz fronteira com a propriedade da universidade. É
uma pequena caminhada para chegar à aula ou ao refeitório,
mas pelo menos é agradável e silencioso.
O campus está quase silencioso a esta hora da
manhã. Existem apenas alguns outros alunos em Oak Grove:
um grupo de meninos em trajes de corrida se espreguiçando
nos degraus da biblioteca e duas meninas compartilhando uma
xícara de café fumegante em um dos bancos vermelhos
atarracados ao longo do caminho. Tudo aqui parece ser
vermelho: a cor oficial da escola é carmesim, e a maioria dos
prédios é do mesmo tijolo vermelho de Whitten.
A aula desta manhã é a única na minha agenda que ainda não
participei: um seminário de redação de segunda-feira que não
atendeu na primeira semana do semestre por causa do Dia do
Trabalho. É no Miller Hall, o mesmo prédio de todas as minhas
outras aulas de inglês. Miller é um tijolo vermelho como o
resto, mas com um telhado inclinado de ardósia e charmosas
vidraças arqueadas. Já ouvi outros alunos reclamarem de como
é mofado em comparação com os novos prédios de construção
do campus, mas eu adoro isso. Parece uma velha escola, até as
carteiras de madeira com décadas de entalhes de ex-alunos.
Tenho que vagar pelos corredores um pouco antes de
encontrar o número certo da sala e, mesmo assim, não tenho
certeza se estou no lugar certo. Isso não parece uma sala de
aula. O espaço é minúsculo, tornado ainda menor pelas
estantes que revestem as paredes e a namoradeira marrom no
canto, e não há nem mesmo escrivaninhas, apenas um monte
de cadeiras dobráveis dispostas em um círculo
irregular. Algumas delas já estão ocupadas, porém, por uma
garota de cabelos escuros com óculos roxos e um corte pixie,
um cara alto em um suéter de cardigã argyle e…
Merda. Não apenas vi o namorado de Allison aqui, como vi
também que ele está sorrindo para mim. Assim que cometo o
erro de olhá-lo nos olhos, Wes afasta sua bolsa da cadeira ao
lado dele.
Finjo não notar seu gesto de boa vontade e, em vez disso,
sento-me mais longe dele (o que não é muito longe, de qualquer
maneira, nesta sala apertada). Agora estou superaquecendo,
suor acumulando-se entre minhas omoplatas enquanto mais
alunos preenchem o círculo. Não sei por que estou tão
apavorada; Wes parece ser um cara legal. E Allison não parece
ser do tipo que fica com ciúmes se outra garota fala com o
namorado, como meu pai faz quando minha mãe fala com
qualquer homem que não seja ele.
Como se alguém como Allison pudesse ter ciúme de alguém
como eu.
O som de pernas de móveis gritando contra o chão me chama
a atenção. Um jovem de cabelo louro-claro pega a última
cadeira vazia e vira-a de modo que as costas fiquem no círculo.
— Acho que já estamos todos aqui — diz ele —, então por
que não começamos?
Este é o professor? Ele mal parece mais velho do que nós. Ele
se senta montado na cadeira giratória e empurra seus óculos
retangulares pretos mais para cima do nariz.
— Ok! — ele diz. — Bom, bem-vindos, todos. Aqueles que
já assistiram às minhas aulas sabem que gosto de manter as
coisas casuais, então, por favor, me chame de Alex, nada
daquelas coisas de “Doutor” ou “Professor”. Alguns de nós já
se conhecem, mas vamos dar a volta no círculo e nos apresentar
de qualquer maneira.
Ele olha para Wes.
— Sr. Stewart, você quer nos dar o pontapé inicial?
— Certo. — Enquanto ele olha para cima para se dirigir à
classe, o olhar de Wes me pega novamente. — Eu sou Wes
Stewart, júnior, dupla especialização em inglês e
teatro. Originalmente de Indiana.
Isso significa que Allison também deve ser de Indiana. Eu
sabia que eles estudaram juntos porque Allison tem uma foto
de baile pregada acima de sua mesa, Wes de pé atrás dela com as
mãos na cintura de seu vestido de veludo com lantejoulas.
As apresentações continuam ao redor do círculo. Eu mal os
ouço; estou muito nervosa com a minha parte. Esfrego minhas
palmas suadas contra o jeans desbotado em minhas coxas, mas
não parece ajudar em nada. Quando finalmente chega a minha
vez, há uma pausa estranha que provavelmente dura apenas um
ou dois segundos, mas parece uma eternidade. Eu engulo e me
forço a falar.
— Eu sou, hum, Carly Schiller. Eu sou caloura. Também
estou cursando inglês.
— Você é caloura? — A garota de óculos roxos pergunta. Ela
olha para Alex, sua boca torcendo amargamente. — Achei que
fosse um seminário avançado.
— As amostras de escrita na candidatura da Srta. Schiller me
impressionaram muito — diz Alex. — Eu abri uma
exceção. Estamos muito felizes por ter você aqui, Carly.
Seu sorriso é tão sincero que acho que vou vomitar. Tento
sorrir de volta e murmurar algo que soe como obrigada, mas
mal consigo me ouvir por causa do rugido do sangue em meus
ouvidos.
Alex passa o resto do período repassando as estruturas do
curso — leituras obrigatórias, como as notas serão atribuídas, o
diário que devemos manter além de nossas tarefas semanais de
redação. Apesar de minhas notas detalhadas, minha cabeça está
girando. Talvez aquela garota esteja certa; eu não pertenço a
esse lugar.
Depois da aula, eu levo meu tempo empacotando minhas
coisas enquanto os outros alunos vão embora. Wes demora
mais, pendurado na porta, e por um segundo acho que ele está
esperando que eu o alcance para que possamos sair juntos. Mas
ele está apenas tirando os fones de ouvido de sua sacola de lona
surrada, desembaraçando o fio antes de conectá-los.
Espero até que Wes vá embora para abordar Alex.
— Professor…
Ele se vira e me atinge com aquele sorriso agressivamente
amigável novamente.
— “Alex” está bom — diz ele. — Posso ajudar em algo,
Carly?
— É só… — eu paro, torcendo a alça da minha mochila. —
Bem, eu deveria estar neste seminário? Eu não sabia que era
para veteranos.
Alex se senta na beira da mesa e entrelaça os dedos.
— Você quer estar aqui?
Ele não parece irritado, apenas curioso. Como se
ele me achasse curiosa. Eu não deveria ter tentado falar com
ele. Eu deveria ter apenas saído, ido direto para o registrador e
mudado para uma classe diferente. Idiota, tão idiota.
— Eu não tenho certeza... quero dizer, eu não quero que
seja…
— Porque você totalmente merece estar aqui — diz ele. —
Seu ensaio de candidatura foi um dos textos mais fortes que li
nos últimos anos.
Eu olho para a ponta dos meus tênis, minhas bochechas
ficam vermelhas.
— Que tal isso? — ele diz. — Vamos esperar algumas
semanas. Se você estiver tendo dificuldades com as atribuições
ou se tiver alguma dúvida, se precisar de alguma coisa, tenho
horário de expediente todas as quintas e sextas-feiras. Parece
bom?
— Ok — eu digo a ele, embora nada disso soe bem.
— Obrigada, Prof…
— Alex.
Ele se afasta da mesa e se levanta. A sala parece menor do que
nunca.
— Alex — eu digo. — O-obrigada.
Lágrimas já estão pinicando os cantos dos meus olhos
enquanto corro para o corredor. Eu não vou chorar, não aqui
onde as pessoas podem ver. Se eu voltasse para casa, eu iria para
o meu quarto, trancaria a porta e deixaria tudo isso vazar de
mim em particular. Mas, pelo que sei, se eu voltar para Whitten
agora, Allison estará lá, ainda dormindo. Ou pior, acordada e
me olhando com aqueles olhos brilhantes e muito azuis.
O Oak Grove está repleto de alunos agora, e a luz do sol
atravessa as árvores, tornando todo aquele vermelho
abrasador. Eu gostaria de poder desaparecer, mas tudo que
posso fazer é curvar meus ombros novamente e me esquivar no
fluxo do tráfego de pedestres. Se não posso ser feliz aqui, pelo
menos posso ser invisível. Afinal, qualquer coisa é melhor do
que voltar para casa.
5
SCARLETT

A música abafada vibrando em meu escritório é quase, mas não


totalmente, o suficiente para abafar as festanças de sexta-feira à
noite no alojamento estudantil na rua. Esse é o preço que pago
por morar tão perto do campus.
A casa em si não é nada especial: um pequeno Tudor2 com
piso inclinado e um telhado que vaza a cada primavera. Eu o
comprei quando assumi o cargo de professora em Gorman, e
este escritório foi o cômodo que me convenceu. É o maior
cômodo da casa, com estantes embutidas que revestem duas
paredes inteiras. Agora que é outubro, o tempo finalmente está
frio o suficiente para acender a lareira a gás instalada no canto
entre eles.
Assim que cheguei em casa depois da minha última aula,
troquei minhas roupas de trabalho e coloquei minha camisola
de cetim preta favorita e um robe combinando. Meus pés estão
descalços, meu cabelo caindo solto sobre meus ombros. O
brilho do fogo torna as ondas de cobre quase vermelhas.
Minha inscrição para o título de bolsa da Women's Academy
está quase concluída há semanas, mas estou revisando-a uma
última vez antes de enviar — ainda mais de um mês antes do
prazo. Tenho que ter certeza de que cada detalhe está
perfeito. Conseguir essa bolsa pode mudar tudo.
2
As casas em estilo Tudor possuem características arquitetônicas dos séculos XV
e XVI, período em que a Inglaterra foi comandada pela Dinastia Tudor.
Quando ouço a porta da frente se abrir, não me incomodo
em desviar o olhar da tela do laptop. Apenas uma pessoa além
de mim tem a chave desta casa, e eu estava esperando por ele.
Meu assistente de pós-graduação, Jasper, sobe dois degraus
de cada vez, mas para na soleira do escritório, batendo os nós
dos dedos na porta aberta. Eu o faço esperar até que eu alcance
o final de uma página antes de fechar o computador e sinalizá-
lo para entrar.
Ele tem que abaixar a cabeça para evitar bater no batente da
porta. A altura de Jasper é incomum até agora; de volta quando
esta casa foi construída, era praticamente inédita. Ele está
carregando uma pilha de livros da biblioteca na curva de seu
braço esguio.
— Esses cinco entraram. — Ele coloca os livros um por um
no canto da minha mesa, ajustando-os para que todas as
lombadas se alinhem. Uma mecha de cabelo castanho claro cai
sobre sua bochecha, enfatizando sua inclinação acentuada. —
Mas o volume de correspondência que você queria ainda está
em trânsito. Vou entrar em contato com a PALCI3 se não
chegar na próxima semana.
Eu esgotei os textos relevantes na biblioteca Gorman anos
atrás, então agora a maioria dos meus materiais de pesquisa
precisa ser enviada por empréstimo entre bibliotecas. Mesmo
assim, é difícil conseguir o que preciso. Mas se tudo correr
conforme o planejado, não terei que me contentar com a

3
A PALCI é uma organização sem fins lucrativos que incentiva a parceria entre
bibliotecas acadêmicas com o objetivo de colaboração e inovação entre elas.
seleção mesquinha do sistema de bibliotecas acadêmicas da
Pensilvânia por muito mais tempo. Eu poderei ir direto à fonte,
revisar os materiais primários. O arquivo da Women's
Academy tem caixas cheias de cartas reais entre Viola e suas
contemporâneas, com sua própria caligrafia.
É o suficiente para me fazer salivar — mas não é a única razão
pela qual estou tão ansiosa para ganhar a bolsa e passar um ano
em Londres. Preciso sair de Gorman, pelo menos por um
tempo.
Não que não haja homens merecedores o suficiente para
matar aqui. Esse é o problema: há muitos, mas para evitar atrair
atenção para mim mesmo em uma cidade tão pequena como
esta, eu tenho que sentar em minhas mãos por meses a fio,
esperar até que o tempo suficiente tenha se passado entre as
mortes. Observá-los continuamente machucando as pessoas
sem consequências, até a hora certa.
Quando eu estava na pós-graduação em Chicago,
provavelmente poderia ter matado um homem a cada duas
semanas e me safado. Londres é três vezes maior. Seria o terreno
de caça perfeito.
Jasper termina de endireitar os livros e olha para mim. O
cintilar do fogo torna seus olhos verdes mais escuros.
— Haverá mais alguma coisa esta noite, Dra. Clark?
Segurando seu olhar, eu empurro minha cadeira para trás da
mesa e separo minhas pernas. O cetim desliza para longe da
minha pele como água.
Cada vez que eu transo com Jasper, sinto uma pontada de
culpa pela minha hipocrisia. Mas não sou nada parecida com
Kinnear. Jasper é um homem adulto, menos de uma década
mais novo do que eu, não um adolescente de olhos arregalados
que não conhece nada melhor.
Além disso, quando nosso caso começou, ele nem trabalhava
para mim. Durante o primeiro ano de seu PhD, ele foi
assistente de Kinnear; depois que Kinnear assumiu a posição de
cadeira interina, Jasper foi repassado para outro professor — e
ele se certificou de que seria eu. Tive minhas dúvidas sobre o
acordo, mas ele se provou profissional e discreto até
agora. Além disso, este é o mais próximo de um relacionamento
que posso arriscar, devido ao meu segredo.
Quando terminamos, a pilha cuidadosa de livros de Jasper
caiu na mesa. Ele estende a mão para endireitar a pilha,
alinhando-a perfeitamente de novo, então pega meu robe do
chão e o entrega para mim.
— Vejo você amanhã de manhã — diz ele enquanto coloca a
camisa de volta.
— Amanhã é sábado.
As aulas que Jasper tutora para mim se encontram às
segundas, quartas e sextas-feiras, e muitas vezes nos vemos nas
noites de sexta-feira, mas raramente no final de semana. Não
tenho ideia do que ele faz quando não estamos juntos. Acho
que não é justo perguntar. Afinal, ele não sabe nada sobre
minhas atividades extracurriculares.
— A reunião. — Ele me olha de novo. — Você não checou
seu e-mail?
Eu amarro a faixa do robe.
— Você me distraiu.
— Desculpa. — Ele sorri e puxa o celular do bolso de trás,
mostrando-me o convite do calendário na tela.
Uma reunião de emergência com todos os funcionários,
sábado às 11h
— Aposto que é por causa daquela coisa toda com Tyler
Elkin. Eles só se importam quando é o rei dos atletas que se
mata. — Jasper zomba, penteando o cabelo no lugar com uma
passagem suave de seus longos dedos. — Se foi isso que
aconteceu.
Um punho frio de pavor aperta meu peito.
— A polícia disse...
— Ah, eu sei — ele diz. — Eu só acho difícil acreditar que
aquele cara iria se matar. Ele parecia um idiota egoísta demais
para mim.
Ele sorri para mim novamente, mostrando mais do que uma
sugestão de dentes perversos. Sempre o achei mais belo do que
bonito, mas é uma beleza dura. Ligeiramente selvagem.
Eu costumava suspeitar que Jasper poderia ser como eu. Às
vezes há uma frieza em seus olhos, um foco implacável que
reconheço. Mas depois de passar tanto tempo com ele, cheguei
à conclusão de que tudo se resume a palavras com ele —
comentários cruéis, humor ácido. Ele nunca poderia fazer as
coisas que eu faço. Ainda assim, ele me entende melhor do que
qualquer outro homem que conheci. Não posso mostrar tudo
a Jasper, mas pelo menos não tenho que fingir ser legal ou doce
ou complacente quando estou com ele. Ele está atraído pela
minha crueldade.
— Então, vejo você na reunião de equipe? — ele pergunta.
Eu aceno, batendo minhas unhas na pilha de livros da
biblioteca.
— Sim. Obrigada por sua ajuda, como sempre, Sr. Prior.
— O prazer é meu, Professora.
Ele se inclina para me beijar. Eu inclino minha cabeça na
hora certa, então seus lábios pegam apenas o canto dos meus. Já
faz um tempo desde que ele tentou isso; pelo menos ele não fez
outra tentativa de dormir.
Assim que ele sai, eu entro no meu e-mail para ler o convite
do calendário por conta própria. Mas existem poucos detalhes
além do que vi no telefone de Jasper. Todos os professores e
funcionários da Gorman devem comparecer.
Eu aperto a faixa do robe ainda mais, até que ele cava na
minha cintura. Tento retomar minha análise do pedido de
bolsa, mas minha mente está disparada. Mesmo a batida lenta
da música e o crepitar do fogo são estímulos demais agora. Eu
me levanto e desligo os dois, em seguida, ando de um lado para
o outro no tapete, tentando impor alguma ordem aos meus
pensamentos.
Mas não tenho informações suficientes para traçar um
plano. E eu não irei — não até a reunião de amanhã. Eu toco
meu dedo no canto da minha boca, o local onde Jasper me
beijou.
Eu odeio surpresas.
6
CARLY

— Você está fazendo amigos?


Já se passou um mês inteiro no semestre, e esta ainda é a
primeira pergunta da minha mãe quando ela me liga — o que
ela faz a cada dois dias, no mínimo. Esta manhã, ela parece
animada e sem pressa, então meu pai não deve estar em
casa. Embora ela também pareça um pouco cansada, uma
aspereza no fundo da garganta. Aposto que eles ficaram
acordados até tarde novamente, discutindo. Eu não vou
perguntar. Eu não vou.
— Eu tenho saído com algumas outras garotas do primeiro
ano no meu dormitório — eu digo a ela. Isso é tecnicamente
verdade, embora o único grande evento social de que participei
com eles foi uma vigília à luz de velas para algum aluno que
nunca conheci. Algumas das outras garotas choravam, embora
também pudessem não conhecer o cara, já que ele morreu antes
do início do semestre. Acho que posso entender por quê: é
estranho quando alguém da nossa idade morre. Isso me faz
sentir jovem e velha ao mesmo tempo.
— Isso é ótimo, querida. Eu sei como fazer amigos pode ser
difícil para você.
Eu me enterro nas cobertas, pressionando o telefone com
mais força no meu ouvido, como se isso pudesse de alguma
forma fechar os quilômetros entre nós. Um mês atrás, eu não
queria nada mais do que sair da casa dos meus pais e nunca mais
voltar, mas agora, ouvir a voz da minha mãe provoca pontadas
de saudade de casa tão agudas que são como agulhas se
retorcendo no meu estômago. Se ao menos meu pai se mudasse
novamente. Já perdi a conta de quantas vezes ele saiu. Na
primeira vez, minha mãe chorou por dias, mas eu fiquei muito
aliviada.
Eu chorei quando ele voltou.
— Então, como vão as aulas? — ela pergunta. — Você gosta
de seus professores?
Eu imediatamente penso em Alex — seu sorriso contagiante,
como ele ajusta os óculos enquanto fala, o foco intenso em seu
rosto quando ele ouve. Ele é o único professor que me deu
atenção, além de escrever Excelente Trabalho com esferográfica
azul no topo dos meus papéis. Tirar boas notas é fácil para
mim; tudo o mais é uma luta.
— Meus professores são bons — eu digo.
Ouço um leve rangido do outro lado da linha e a imagino
sentada em sua cadeira de balanço azul na sala do refúgio, um
pé enfiado debaixo dela, o outro empurrando ritmicamente
para fora do tapete florido. A sala não tem janelas, mas ela a
decorou com buquês artificiais e pinturas de paisagens
cênicas. É o único cômodo da casa em que meu pai raramente
põe os pés, então é o nosso favorito.
Ela está esperando que eu elabore, compartilhe mais sobre
quais professores eu gosto e por quê, mas as palavras ficam
presas na minha garganta. Eu quero ser convincente. Eu quero
que ela pense que eu estou feliz, tendo o melhor momento da
minha vida na faculdade. Definitivamente, não quero que ela
se preocupe comigo.
— E quanto a sua colega de quarto? Vocês duas estão se
dando bem?
Como se fosse uma deixa, Allison entra pela porta. Ela
acabou de sair do banho pós-treino, o vapor subindo de sua
pele.
— Sim, ela é… — Estou tentando o meu melhor para não
olhar, mas fica ainda mais difícil quando Allison puxa sua
toalha e se inclina para enrolar o cabelo nela. — Nós…
— Qual o problema, querida?
Eu arrasto meus olhos de volta para o edredom cinza
amassado no meu colo.
— Nada. Estou bem. Eu provavelmente deveria ir, no
entanto. Falo com você em breve?
— Ok. Seu pai e eu enviamos nosso amor!
— Amo você — murmuro, em seguida, encerro a ligação.
Allison está usando sutiã e calcinha agora, mas nada mais. Ela
folheia os vestidos enfiados em seu lado do armário. Ela tem
uma grande variedade deles, em todas as cores do arco-íris,
enquanto a minha metade do guarda-roupa é toda preta e cinza
com um ocasional verde oliva monótono.
— Era sua mãe? — ela pergunta.
— Uh, sim. — Eu passo o telefone para frente e para trás
entre minhas mãos, apenas para ter algo a fazer com elas.
Allison se vira com um sorriso, segurando um vestido de
malha listrado em diferentes tons de roxo.
— É tão legal que vocês sejam próximas. Ei, eu não acordei
você ontem à noite, não é?
— Não — digo a ela. — Eu tenho um sono muito profundo,
então...
Uma mentira completa. Mesmo quando criança, eu acordei
várias vezes por noite com meu coração batendo forte, meus
ombros tensos, assustada com o menor som. Quando ela
voltou ontem à noite, entre a meia-noite e o amanhecer, eu
apenas fingi estar dormindo, deitada muito quieta e mantendo
minha respiração baixa e estável. Não sei para onde ela vai
quando fica fora até tão tarde. Provavelmente para ver seu
namorado — embora ela não tenha trazido Wes aqui
novamente. Eu apenas o vejo — e evito falar com ele — todas
as semanas na aula de redação.
— Ok, bom — diz ela, deslizando o vestido pela
cabeça. Parecia folgado no cabide, mas o tecido gruda em seu
corpo. — Então o que você quer fazer hoje?
— Hum… — Eu começo, mas então fico brevemente
hipnotizada pela visão de seu cabelo molhado caindo sobre seus
ombros enquanto ela puxa a toalha. Isso é o máximo que ela já
falou comigo. — Provavelmente apenas lição de casa.
— O dia todo? — Seus olhos se arregalam com alarme
teatral. — Num sábado?
— Eu tenho que escrever uma história. Para este seminário
de redação que estou participando.
— Ah, com aquele professor jovem, certo?
Eu concordo. Allison suspira, pegando sua escova de cabelo
da cômoda.
— Ele é tão lindo — diz ela. — Como diabos você se
concentra na aula?
Mesmo que Alex seja jovem para um professor, ele é muito
velho para mim. As outras garotas do departamento de inglês
falam sobre ele como se ele fosse uma estrela de cinema, e todas
estão obcecadas em entrar no intensivo de ficção de honra no
próximo semestre. Estou apenas tentando sobreviver a esta
aula.
— Eu gostaria de tê-lo tido como meu requisito de formação
para calouros — diz Allison. — Em vez disso, fiquei presa a
uma professora… ela era tão má, meu Deus.
Ela ri, e eu me forço a rir também, mas a desconfiança se
apodera de mim. Não entendo por que ela está sendo tão
amigável de repente. Não que ela tenha sido pouco amigável
antes, mas ela praticamente me ignorou além de dizer boa
noite e tenha um bom dia se por acaso estivéssemos acordados
ao mesmo tempo.
Não sei fazer isso: fazer amigos, conversar com as meninas,
conversar com qualquer pessoa da minha idade mesmo. No
colégio, as crianças só reconheciam minha existência se
quisessem alguma coisa, como ajuda para estudar para a prova
final de inglês avançado.
Mas eu deveria pelo menos tentar. Allison está fazendo um
esforço, então eu também posso.
— Na verdade — eu digo. — Seu namorado está no
seminário de redação comigo.
A testa de Allison franze em confusão. Merda. Eu disse algo
errado.
— Meu namorado? — ela pergunta.
Talvez ela tenha mais de um, então preciso ser mais
específica. Talvez ela e Wes tenham um relacionamento aberto
e ela esteja dormindo com muitos outros caras. Ela é tão
sofisticada. Aposto que ela só está falando comigo porque
sente pena de mim.
— Sim — eu digo. — Wes?
Allison cai na gargalhada e eu quero morrer. Ela está tirando
sarro de mim. Eu sabia.
Ela cai na beirada da minha cama, caindo de costas no
colchão, o material com nervuras de seu vestido esticando-se
sobre a leve maciez de sua cintura.
— Ai, meu Deus, vou dizer a ele que você disse isso.
— Desculpa. — Meu rosto deve estar em chamas. — Eu...
quero dizer, eu pensei... eu não queria...
— Ah, não! — Allison se senta novamente e pega minhas
mãos. — Não, é só… Wes não é meu namorado. Ele é mais
parecido com meu irmão. Nós nos conhecemos desde
sempre. Além do mais…
Ela se inclina mais perto, a diversão ainda brilhando em seus
olhos.
— Estou meio que cansada de namorar garotos no
momento.
7
SCARLETT

A reunião da equipe de emergência é realizada no prédio do


teatro, Riffenburg Hall, uma vez que é o único lugar no
campus com assentos suficientes para acomodar todo o corpo
docente e funcionários. Bem, tirando o estádio de futebol, mas
acho que pode parecer um pouco desrespeitoso, dadas as
circunstâncias.
Mesmo que eu esteja quinze minutos adiantada, a maioria
dos assentos no auditório já está ocupada, o zumbido baixo de
vozes enchendo o espaço como um enxame de vespas. Vejo
uma única cadeira aberta perto da frente e começo a me mover
em direção a ela. Alguém me toca no cotovelo e eu giro, o rosto
já marcado por um olhar enfurecido.
É Jasper. Ele nem mesmo vacila com a expressão cruel no
meu rosto.
— Ei — ele diz. — Guardei um lugar para você.
Eu encolho meu cotovelo para fora de seu aperto. Já
conversamos sobre isso — ele agindo muito íntimo em público.
Ele aponta para a seção central, algumas fileiras atrás, onde
sua bolsa de couro e casaco houndstooth estão estendidos sobre
duas cadeiras adjacentes. Drew, Sandra, Stright e vários outros
membros do corpo docente de inglês estão na mesma fila,
embora Kinnear esteja estranhamente ausente.
Drew acena para mim, segurando um panfleto impresso em
papel verde berrante. Há um esperando no meu lugar também,
com o logotipo de mãos cruzadas do centro de aconselhamento
do campus e grandes letras maiúsculas
soletrando PREVENÇÃO DE SUICÍDIO: Um Esforço
Comunitário.
Então Jasper estava certo: isso é sobre Tyler Elkin. Talvez eu
não tenha me preocupado por nada. O que quer que mais este
encontro signifique, é uma indicação clara de que sua morte foi
aceita como suicídio, pública e oficialmente. O que significa
que ninguém estará procurando seu assassino.
Kinnear aparece, mas não na platéia com o resto de nós. Ele
entra no palco, vestindo um de seus aparentemente
intermináveis cachecóis enrolados em seu pescoço de uma
forma que ele provavelmente considera libertino. Deixei minha
mente vagar novamente para uma das minhas fantasias
favoritas: puxar a seda com tanta força em volta do pescoço que
seus olhos estouram como espinhas.
Eu não estrangulo alguém há anos. Eu guardo certos
métodos para quando for pessoal, o que raramente é hoje em
dia. A maioria das minhas vítimas são como Tyler: homens
com quem tenho apenas ligações mais tênues. Assassinar
alguém do meu círculo social ou profissional exige muito mais
cuidado, precaução. Finesse. Eu queria matar Kinnear há anos,
mas me forcei a segurar: pela oportunidade certa, pelo
momento perfeito. Se eu conseguir a bolsa, porém, estarei
deixando Gorman em alguns meses, então o tempo está se
esgotando.
Uma mulher se junta a Kinnear no palco, assumindo uma
posição a alguns metros de distância dele. Ela é linda, usando
uma saia lápis de corte impecável e uma blusa de cetim do
mesmo tom de vermelho de seu batom. Dra. Samina Pierce,
chefe do departamento de psicologia.
Eu já vi Samina pelo campus — ela é impossível de não ser
notada —, mas é raro encontrá-la na mesma sala que Kinnear,
apesar dos departamentos de psicologia e inglês estarem
sediados em Miller Hall. Rumores dizem que ela e Kinnear
costumavam ser casados — embora esteja além de mim
entender o que uma mulher como ela pudesse ver nele.
Kinnear toca no microfone. A multidão fica em silêncio.
— O Reitor Whitmyre envia suas desculpas — Kinnear
começa. — Ele queria estar aqui com vocês hoje para discutir
essa importante iniciativa do novo campus. Mas espero ser um
substituto capaz.
Eu acho que toda a sua puxação de saco está realmente
valendo a pena. Não deve demorar muito até que sua
presidência provisória se torne permanente. Essa posição
deveria pertencer a Drew. Ele é mais qualificado do que
Kinnear em todas as medidas imagináveis e tem anos de
superioridade. Mas Drew se recusa a se envolver em jogos
políticos e sabotagens mesquinhas que são a especialidade de
Kinnear.
No ano passado, eu tinha tudo em ordem para minha
aplicação de mandato — até Kinnear ocupar meu lugar no
comitê que eu precisava para completar meu requisito de
serviço, então quase não me preocupei em aparecer para as
reuniões. Enquanto isso, o Dr. Stright, apesar de ter sido
contratado três semestres mais tarde do que eu, navegou pelo
processo de estabilidade, graças à recomendação veemente de
Kinnear. Homens como eles são os que realmente escapam
impunes de um assassinato.
— Como todos vocês sabem — Kinnear diz —, Gorman
perdeu um aluno recentemente. Tyler Elkin estava entre os
nossos melhores e mais brilhantes, e foi tirado de nós muito
cedo.
Jasper se inclina para sussurrar em meu ouvido.
— Bem, talvez não seja o nosso mais brilhante...
Drew olha para nós. Eu me movo na minha cadeira,
cruzando minhas pernas para colocar algum espaço adicional
entre mim e Jasper, e finjo dar ao discurso de Kinnear minha
atenção extasiada.
—... A prevenção começa com cada um de nós, mas não
podemos fazer isso sozinhos. Por isso, a Gorman University
está estabelecendo sua primeira força-tarefa de prevenção ao
suicídio.
Murmúrios se espalham pela multidão. Os últimos anos
testemunharam uma onda de suicídios — nem todos por
minha causa — e a liderança da escola sempre fez o possível para
varrê-los para debaixo do tapete antes que a rica rede de ex-
alunos de Gorman chegasse. É a mesma abordagem de que não
há nada para ver aqui que eles tomam com relatórios de abuso
sexual de estudantes. Sua obsessão em proteger a reputação da
universidade permitiu que muitos crimes (inclusive o meu)
ficassem impunes, enquanto o governo continua acenando
com as mãos, fingindo que está tudo bem.
Até agora, aparentemente.
— Tenho o prazer de anunciar que a força-tarefa será
chefiada pela Dra. Samina Pierce. — Kinnear gesticula para
ela. — Dra. Pierce, você gostaria de dizer algumas palavras?
Kinnear não sai do caminho rápido o suficiente, e a manga
de Samina roça na dele enquanto ela toma seu lugar atrás do
microfone. Eu poderia jurar que a vi estremecer quando eles se
tocaram, mas ela recupera seu equilíbrio profissional
rapidamente.
— Obrigada, Dr. Kinnear — ela diz. Ela ainda fala com um
traço de seu sotaque britânico nativo. — E obrigado a todos
por dedicarem seu tempo para se juntar a nós em um sábado.
A agenda que ela descreve para a força-tarefa parece bastante
normal: aumento da equipe no centro de aconselhamento,
novos protocolos de treinamento de prevenção de suicídio para
a linha direta do centro de crise existente no campus,
workshops para professores e funcionários para ajudá-los a
identificar e chegar aos alunos que podem estar lutando contra
a depressão ou outros transtornos mentais.
— Por último — diz ela —, estaremos realizando uma
investigação abrangente de todas as mortes por suicídio
ocorridas no campus Gorman na última década.
Meu peito aperta. Uma investigação abrangente...
Apenas uma fração das minhas mortes seria incluída nas
estatísticas de suicídio do campus. Outros, eu me saí bem fora
do terreno da escola, ou fiz parecer mais mortes acidentais do
que autoinfligidas. Overdoses, acidentes de carro, até mesmo
uma eletrocução para um alvo especial.
— Já comecei a montar uma equipe interdepartamental para
realizar análises práticas e conduzir entrevistas com professores
e alunos selecionados — continua Pierce. — Também
estaremos construindo um banco de dados para mapear as
semelhanças nas mortes e identificar os fatores de risco pessoais
ou ambientais que podemos ser capazes de mitigar.
Sempre faço de tudo para evitar criar padrões ou deixar
bandeiras vermelhas no campo forense, mas meu cúmplice
mais útil é a negligência da aplicação da lei.
Samina Pierce, no entanto, parece tudo menos negligente.
Ela se afasta do microfone, claramente com a intenção de
encerrar a reunião. Mas Kinnear aproveita a oportunidade para
assumir novamente.
— Se alguém tiver alguma dúvida ou preocupação, ficaria
feliz em ficar por aqui e conversar… A menos que você tenha
um lugar para estar, Mina?
Ela franze os lábios, mas acena, aquiescendo. A maior parte
do público se dirige para a saída, mas algumas pessoas,
incluindo Drew e Sandra, se aproximam do palco.
Jasper joga sua cópia do folheto de prevenção de suicídio no
chão, em seguida, veste o casaco.
— Quer tomar um café? — ele pergunta. — Discutir os
planos de aula da próxima semana?
Os planos de aula da próxima semana estão bloqueados há
meses. Ele nem mesmo está tentando ser sutil.
— Outra hora — eu digo, e então vou em direção aos degraus
do palco.
Samina Pierce é ainda mais bonita de perto, seu cabelo escuro
e pele oliva brilhante, apesar da iluminação forte. Uma
pequena multidão se reuniu agora, mas Sandra e Kinnear estão
falando mais, algo sobre escrever poesia como uma modalidade
terapêutica para estudantes suicidas. Assim que subo no palco,
os olhos de Samina vão direto para mim.
Drew recuou para me incluir no círculo.
— Dra. Pierce, você conhece…
— Dra. Scarlett Clark — ela diz, estendendo a mão para eu
apertar. Seu aperto é mais firme do que eu esperava, mas sua
pele é suave como uma pétala de rosa. — Sim, claro.
Ela é claramente alguém a quem devo manter uma vigilância
muito próxima. Mas uma força-tarefa não é a polícia. Eles não
estão procurando por um culpado, apenas por padrões de
dados, e os dados podem ser manipulados.
Exatamente como as pessoas.
8
CARLY

Eu fico na biblioteca até escurecer. Assim, quando eu voltar


para o nosso quarto, Allison já deve ter ido embora, fazendo o
que quer que os estudantes universitários normais façam no
sábado à noite.
Em vez disso, chego e a encontro sentada de pernas cruzadas
na minha cama.
— Oi — ela diz. Sua própria cama está vazia. Talvez ela esteja
lavando roupa?
Eu paro, deixando as alças da minha mochila deslizarem
pelos meus braços.
— Oi.
Ela está vestida da forma mais casual do que eu já a vi, com
leggings e um moletom da Gorman com o decote que cai sobre
os ombros, mas ela está usando sua maquiagem dramática
usual: batom vermelho, movimentos felinos perfeitos de
delineador. Ela se inclina para trás em suas mãos, deixando seus
pés balançarem para fora da minha cama.
— O que você quer fazer hoje à noite?
Abro a boca para responder, mas ela coloca a palma da mão
para cima antes que eu diga uma palavra.
— Ler não é uma resposta aceitável. — Ela salta, oferecendo-
me a mão como se fosse um cavalheiro ajudando uma senhora
a descer de uma carruagem. — Vamos, eu quero te mostrar
uma coisa.
Uma voz desagradável sussurra no fundo da minha mente: É
um truque. Ela está zombando de você. Mas Allison não parece
uma pessoa má. Ela também não parece legal, ela parece...
confiante, eu acho. Talvez eu também fosse assim, se me
parecesse com ela.
Eu pego sua mão, e ela sorri mais amplamente, entrelaçando
nossos dedos enquanto ela me leva para fora do nosso quarto e
em direção à janela no final do corredor. Ela puxa a vidraça até
que ela se levanta, com um guincho tão alto que faz meus
dentes rangerem.
— Vamos lá — diz ela novamente. Em seguida, ela pula o
peitoril, tentando me puxar junto com ela, para a escada de
incêndio em ziguezague aparafusada ao lado do prédio.
Eu congelo, puxando seu braço.
— Temos permissão para...
— Você parece o Wes — diz Allison com uma piscadela. —
Está tudo bem, eu venho aqui o tempo todo. — Ela sobe alguns
degraus, o metal preto rangendo ameaçadoramente sob seu
peso, então para e olha para mim novamente. — Só não diga a
Samantha.
Nossa conselheira principal nos ignora em favor de seu
namorado intermitente, mas eu não quero provocá-la. Mas
também não quero que Allison pense que sou uma garotinha
assustada, então respiro fundo e pulo a janela atrás dela.
Quando chegamos ao telhado, meus nós dos dedos estão
pálidos e latejando de tanto segurar o corrimão, mas depois da
escada de incêndio instável, a extensão plana parece segura. É
claro e surpreendentemente quente aqui, tudo lançado em um
brilho branco suave das cordas de luzes enroladas ao redor da
chaminé de tijolos em ruínas — o mesmo tipo que Allison fez
ao lado de sua cama.
— Já que você nunca quer sair — diz Allison —, resolvi
trazer a festa até você.
Seu laptop está a poucos metros de distância na base da
chaminé, todos os cobertores e travesseiros de sua cama
espalhados na frente dele. Também há tigelas com salgadinhos
— pipoca, mini Oreos, cubinhos de queijo cheddar — e quatro
embalagens de Orangina.
Ela planejou tudo isso. Para mim.
Mas por quê? Certamente ela já tem amigos mais do que
suficientes e coisas muito melhores para fazer em uma noite de
sábado.
— Senta. — Ela pega minha mão novamente, me levando em
direção ao ninho de cobertor. — Você pode escolher o filme.
Eu não entendo nada disso. Mas seria rude recusar quando
ela teve tanto trabalho. Sento-me em um dos travesseiros e
Allison se estica ao meu lado de bruços. Enquanto eu examino
sua extensa coleção de filmes, ela chuta os pés preguiçosamente
no ar, jogando pedaços de pipoca na boca um por um. Seu
cabelo desliza sobre os ombros, as pontas roçando meu joelho.
Meu olho capta um título: Brilho Eterno de uma Mente sem
Lembranças. Nunca o vi, mas conheço o poema de Alexander
Pope de onde o título deve vir. Brilho eterno de uma mente sem
lembranças! Cada prece é aceita, e cada desejo realizado.
— Ah, eu sou tão obcecada por esse! — Allison diz. — Não
é brilhante?
— Eu nunca vi esse — eu admito.
Ela se senta.
— O quê? Ok, precisamos consertar isso imediatamente.
Allison começa o filme, ajustando a tela do laptop para que
ambas possamos vê-lo, depois se reclina contra os travesseiros
empilhados. Tento acompanhar a ação — um homem
caminhando em uma praia coberta de neve antes de embarcar
em um trem, uma mulher com cabelo azul brilhante
conversando com ele — mas estou muito distraída com a
proximidade de Allison. Ela continua pegando as tigelas e
passando para mim, se acomodando ainda mais perto do que
estava antes.
— Eu quero me fantasiar de Clementine para o Halloween
— diz Allison. — O que você acha, eu poderia arrasar com o
azul?
Ela passa os dedos pelos cabelos, deixando os longos fios
loiros se espalharem sobre os travesseiros. Eu a imagino com
cabelos iguais aos da mulher do filme, do jeito que realçaria a
cor do céu da tarde em seus olhos e a cremosidade de sua pele.
— Sim — eu digo. — Você ficaria…
— Ah, espere, esta é a minha frase favorita!
Ela se senta novamente, batendo na tigela de
pipoca. Enquanto a atriz na tela fala, Allison combina suas
palavras — o mesmo ritmo, dicção, tudo. Isso envia um
pequeno arrepio estranho na minha espinha.
— “Eu sou uma vadia vingativa, verdade seja dita.”
Ela me lança um olhar astuto, e eu quero desviar meus olhos,
recuar para dentro de mim, mas desta vez não o faço. Eu a olho
bem nos olhos e sorrio de volta.
— Obrigada por fazer tudo isso — eu digo.
— O prazer é meu. — Ela torce a tampa de uma garrafa de
Orangina, toma um gole e me oferece. Seu batom mancha o
vidro. — Eu deveria estar agradecendo a você. Você está me
ajudando a manter minha mente longe da audição que acabei
de fazer.
Pego a garrafa, mas não bebo.
— Audição? Para o quê?
— Para Cabaret. O departamento de teatro fará isso ainda
este semestre.
— Para qual papel você fez o teste? — Eu pergunto, embora
sua resposta não signifique nada para mim. Já ouvi falar
do Cabaret, mas não sei muito sobre ele; acho que tem algo a
ver com os nazistas?
— Sally Bowles — diz Allison. — Eu quero muito. Eu
pratiquei minha peça de audição durante todo o verão. — Ela
joga os braços para trás sobre os travesseiros com um gemido
dramático. — Mas temo ter estragado tudo. Se eu tiver que
assistir alguma outra garota interpretá-la enquanto eu danço no
fundo... Eu realmente mataria por esta parte. Eu acabaria com
uma vida.
Não tenho certeza de como responder a isso.
— Quando você descobrirá?
— Segunda-feira. Vai ser um longo fim de semana. — Ela se
vira para olhar para mim, apoiando a cabeça na mão. — Você
já se sentiu tão ansiosa que sente como se o seu estômago
estivesse tentando comer a si mesmo?
Eu concordo. Sim. Todos os dias.
— Aposto que você foi incrível — digo a ela. — Aposto que
você vai conseguir.
O vento aumenta, chicoteando meu cabelo no
rosto. Estendo a mão para alisá-lo, mas Allison me vence,
colocando-o atrás da minha orelha.
— Você é um amor — ela diz.
Essa é a última coisa que sou. Mas ela não precisa saber disso.
Allison vira de costas novamente, e eu também me estico,
minhas pernas em paralelo as dela. Passamos o resto do filme
dessa forma, as mãos esbarrando enquanto alcançamos as
tigelas de lanche ao mesmo tempo. Ela continua apontando os
momentos favoritos do filme, pequenas observações que eu
nunca teria percebido.
Até o momento os créditos, Allison dorme, a cabeça
pendendo contra o meu ombro. A tela muda de volta para a
imagem de capa do filme com Clementine e Joel deitado no
lago congelado, o cabelo de Clem espalhado no gelo como uma
passada de chama.
Eu penso sobre como desligar o computador, ir para a
cama. Mas eu não quero acordar Allison. Então eu fico ali, no
brilho azul da tela, e ouvindo sua respiração. É calmante no
começo — eu me sinto quente e contente,
verdadeiramente feliz de uma maneira que não fui em anos.
Mas não demora muito para que o pânico se instale
novamente. Minha garganta aperta, meu coração lateja com a
suspeita de que a felicidade deve ser um truque, uma armadilha,
um tapete prestes a ser puxado debaixo de mim, e a qualquer
segundo vou cair.
9
SCARLETT

Samina Pierce não perde tempo.


Poucas horas depois de eu me apresentar na reunião do
corpo docente de emergência, ela estendeu a mão para marcar
uma consulta para o dia seguinte para que pudéssemos falar
mais sobre a minha oferta para auxiliar a força-tarefa. Quando
eu cheguei em seu escritório na noite de domingo, ela já havia
transformado o espaço em um centro de comando. Os registros
da universidade estão empilhados em pilhas ordenadas e
codificadas por cores em sua mesa, e o quadro branco na parede
está coberto com uma elaborada teia de fotos e documentos.
Ela me conduz para dentro e pergunta se eu gostaria de um
pouco de chá.
— Receio que só tenha cafeína — diz ela.
— Não, obrigada. Eu ficaria acordada a noite toda.
— Acho que me tornei imune. — Ela sorri. — Eu poderia
beber um pote inteiro à meia-noite e ainda dormir como um
bebê!
Samina parece tão equilibrada e bem descansada agora, no
final do que deve ter sido um dia agitado, como foi logo no
sábado de manhã. Tudo nela, de seu cabelo brilhoso aos
sapatos de couro lustrosos, parece totalmente glamouroso
demais para este espaço de escritório apertado e sujo —
glamourosa demais para Gorman em geral, honestamente.
— Volto já — diz ela. — Sinta-se a vontade.
Assim que ela sai, eu passo mais perto do quadro, estudando
os anos de suicídios no campus que ela está conectando com
linhas vermelhas de marcador de apagar a seco. Não foram
todos causados por mim, é claro. Mas os que foram se destacam
para mim como se estivessem iluminados com
holofotes. Lembro-me de cada homem que matei, em detalhes
vívidos. Seus nomes, seus crimes. Suas últimas palavras, se eu
permiti ter.
Este é o tipo de exibição horrível que filmes e programas de
televisão parecem pensar que todo assassino em série tem em
seu porão. Eu nunca seria tola o suficiente para expor meus
crimes. Eu não mantenho registros ou troféus. Mas há algo
estranhamente satisfatório em ver tudo assim, já que outra
pessoa o fez.
— Professora Clark?
Minha aluna favorita, Mikayla Atwell, está parada na porta,
me observando. Sem perceber, toquei uma das linhas do
quadro, manchando de caneta vermelha as pontas dos dedos.
— Srta. Atwell. — Eu limpo meus dedos manchados na
minha saia preta. — O que você está fazendo aqui?
Mikayla dá de ombros, reequilibrando a pilha de pastas de
arquivo que está carregando.
— A força-tarefa precisava de voluntários que conhecessem
SQL.
Aprender a programar é uma das inúmeras atividades
extracurriculares de Mikayla. Ela está no segundo ano na
Gorman e já está fazendo meu curso mais avançado de
Shakespeare. Na primeira aula, os veteranos a subestimaram,
presumindo que ela era tão inocente quanto seus grandes olhos
castanhos e a auréola de cabelo natural a faziam parecer. Então
ela discutiu tão ferozmente sobre o agenciamento sexual de
Julieta que alguns dos veteranos pareciam querer se esconder
debaixo de suas mesas.
— É uma honra trabalhar com a Dra. Pierce — diz
Mikayla. — Ela é brilhante.
— Eu sou mesmo?
Samina reapareceu, uma sobrancelha escura arqueada com
diversão enquanto mergulha um saquinho de chá de jasmim
em sua xícara fumegante. As bochechas de Mikayla coram um
pouco e ela se ocupa distribuindo as pastas entre as várias pilhas
da mesa de Samina.
— Você pode ir para casa à noite, Srta. Atwell — diz
Samina. — Obrigado por todo o seu trabalho árduo hoje.
Eu sorrio para Mikayla em seu caminho para a porta.
— Vejo você na aula.
Samina fecha a porta e se senta atrás da mesa. Há um lenço
de cashmere pendurado nas costas da cadeira, cobrindo a malha
preta utilitária.
— Ela está fazendo uma de suas aulas? — Samina pergunta.
Eu concordo.
— Eu também sou a orientadora acadêmica dela. Em seu
primeiro ano, ela foi designada para Uhler, mas…
— Ele é um idiota — Samina diz, colocando a xícara de chá
em um pires combinando. Eu não poderia concordar mais,
embora não dissesse isso em voz alta para um colega, exceto
talvez Drew. — Estou feliz que ela tenha alguém competente
cuidando dela. Inteligente como uma raposa, não é?
— Ela é. — Sento-me na cadeira de madeira delgada em
frente à mesa, cruzando as pernas. — Obrigada por reservar um
tempo para se encontrar comigo tão rapidamente, Samina.
— Me chame de Mina, por favor. — A cordialidade de suas
palavras não combina com a franqueza perturbadora em seus
olhos. — Fiquei muito contente por você ter se oferecido para
ajudar em nosso trabalho, porque iria entrar em contato com
você de qualquer maneira.
— Ah, sério? — Eu coloco minhas mãos no meu joelho. —
Por quê?
— Tyler Elkin. — Ela puxa um caderno para o círculo de luz
da lâmpada no centro de sua mesa. — Ele era seu aluno
também, certo? Introdução à Literatura Inglesa, na primavera
passada?
Tento dar uma olhada no que mais está escrito na página do
caderno, mas a caligrafia dela é muito pequena para ler à
distância, ainda mais precisa do que a minha.
— Sim, está certo.
Samina pega a xícara de chá novamente e se acomoda.
— O que você achou dele?
Não posso deixar de sentir que estou sendo psicanalisada. Ela
nunca foi psicóloga — de acordo com seu currículo, ela foi
direto de um programa de doutorado em Penn para lecionar
em Gorman ao lado de seu então marido, Kinnear — mas ela
teria sido boa nisso. Ela gira o saquinho de chá
meditativamente na água quente.
Eu me inclino para trás na minha cadeira também.
— Ele não era o melhor aluno de forma alguma. Mas ele era...
— Um idiota. Um estuprador. A porra de um monstro que
merecia exatamente o que eu... — Bem, ele era tão jovem.
Por um momento dolorosamente longo, Samina não diz
nada. Então ela se inclina para frente, apoiando os cotovelos na
mesa.
— Você pode parar de me enganar.
Minha boca fica seca e todo o meu corpo enrijece. Ela não
pode saber o que eu sou, o que fiz, mas tudo o que ela vê
quando olha para mim, é mais do que eu quero que ela veja.
— Tyler era um péssimo aluno. — Ela segura meu olhar por
mais um momento, antes de perfurar a tensão com uma risada
curta. — Todos os seus professores o odiavam, quer queiram
admitir ou não.
Também quero rir, mas temo que o som sairia
áspero. Enlouquecido. Ainda assim, uma pequena parte da
tensão escoa para fora dos meus ombros.
— Você conversou com os outros professores dele? — Eu
pergunto.
— Ainda estou trabalhando na lista. — Ela bate a caneta
contra o selo Gorman no topo da página do caderno. — Mas
até agora todos disseram coisas semelhantes: Tyler era um
preguiçoso, raramente aparecia para a aula ou completava suas
tarefas. Não aceitava bem as críticas ou consequências.
Isso certamente combinava com a minha experiência. Tyler
acreditava que poderia fazer o que quisesse e sairia ileso. Toda
a sua vida ensinou-lhe que ele era especial, que as consequências
não se aplicavam, que ele iria passar com cores de voo, mesmo
que ele entregasse suas provas do meio de semestre com o prazo
de duas semanas de atraso. Mesmo em seus momentos finais,
duvido que ele tenha aprendido a lição. Mas eu não queria
matá-lo para lhe ensinar uma lição; eu o matei para cortá-lo
para fora deste mundo como um tumor. E eu faria isso de novo.
— Ouça. — Samina fecha o caderno. — Eu não me importo
com Tyler Elkin mais do que estou supondo que você se
preocupa. Provavelmente Gorman seja um lugar melhor sem
ele, embora eu suponha que os fãs do time de futebol possam
discordar.
Eu sei que deveria pelo menos tentar parecer chocada. Mas é
como se ela estivesse lendo meus pensamentos em voz alta.
— Mas, ao mesmo tempo — Samina continua —, eu o acho
fascinante.
— E por que isto? — Embora eu gastar uma enorme
quantidade de meu tempo pensando sobre eles, não há nada
fascinante sobre meninos como Tyler Elkin. Eles são chatos,
tão comuns como ratos e igualmente nojentos.
— Ele é diferente. Na maioria dos outros suicídios no
campus, a pessoa tinha um histórico documentado de doença
mental ou abuso de substâncias ou ambos. Mas Tyler... — ela
para de falar, batendo as unhas na capa vermelha do
caderno. — Ele não se encaixa no padrão.
Ela não fez uma pergunta, mas está me olhando como se
esperasse uma resposta.
— Bom — eu digo. — Acho que isso mostra que você nunca
pode dizer como alguém é apenas olhando para ele.
— Suponho que você esteja certa — ela diz. — Mas a
maneira como ele morreu é estranha também. Homens jovens
e atléticos como Tyler costumam escolher um método de
suicídio mais violento e repentino. Tiro auto-infligido, esse
tipo de coisa.
Ela está correta, estatisticamente falando. Mas eu não uso
armas. Eu tentei simular um suicídio por arma de fogo uma vez
em Chicago, e foi mais difícil do que eu esperava para obter o
ângulo certo. Que acabou sendo a minha única morte a atrair a
atenção do FBI. A morte foi finalmente denominada como
uma matança relacionada a gangues, mas eu decidi não arriscar
novamente. Há tantas maneiras menos desarrumadas para
matar um homem.
— Tyler soou terrivelmente culpado em seu post final no
Instagram — eu digo. — Talvez o sofrimento era o ponto.
Samina encontra meus olhos novamente — um olhar
intenso e pesado, carregado como uma arma — e tudo o que
posso pensar é: Como uma mulher como esta aguentou Kinnear
por um segundo?
Talvez ela tenha mudado desde que se casaram. Talvez
suportá-lo tenha sido a única coisa que a mudou.
Essa investigação, abrangente ou não, não precisa mudar
nada para mim. Quem sabe, trabalhar com Samina poderia até
ser útil para meus planos para Kinnear.
Se alguém tem motivos para odiar o homem ainda mais do
que eu, é sua ex-mulher.
10
CARLY

— Não consigo olhar.


Allison se vira para mim. Estamos do lado de fora da sala do
departamento de teatro, que eles chamam de sala verde, embora
seja apenas um monte de móveis marrons mofados. A lista do
elenco de Cabaret foi grudada ao lado da porta alguns minutos
atrás, e já atraiu um enxame de alunos, como moscas em frutas
podres.
Ela agarra minha mão.
— Você faria isso por mim?
Minha respiração fica presa. Eu deveria estar a caminho da
minha aula de poesia da tarde agora, mas Allison me implorou
para vir para a inauguração da lista do elenco. Ela tem estado
uma pilha de nervos o dia todo. Ela mudou de roupa cerca de
seis vezes esta manhã, e na hora do almoço, depois de dizer que
estava nervosa demais para comer qualquer coisa, ela começou
a devorar a maior parte dos Doritos Cool Ranch de Wes. Ele
também está aqui, do outro lado dela, mas sou eu que ela quer
com ela no momento da verdade.
Parece que somos amigas há muito mais do que um dia e
meio. Depois da noite de cinema no telhado, ela me arrastou
para um brunch com Wes e um bando de seus amigos de
teatro. Alguém contrabandeou uma bandeja cheia de donuts
para fora do refeitório, e nós deitamos na grama em Oak Grove
e nos empanturramos até as formigas entrarem neles.
Mesmo quando estávamos com todos os amigos de Allison,
de alguma forma ainda parecia que éramos apenas nós duas. E
não apenas porque Allison foi a única que realmente falou
comigo. Ela continuou me tocando também, brincando com
meu cabelo, traçando seus dedos sobre meu pulso como se
estivesse tentando desenhar algo.
Ela segura meu pulso novamente e crava os dentes no lábio
inferior.
— Por favor?
— Claro — eu digo. — Eu vou procurar.
A multidão inicial em torno da lista de elenco começou a
diminuir, mas ainda tenho que empurrar um amontoado de
corpos para chegar perto o suficiente para ler as letras
minúsculas. Algumas das pessoas pelas quais passamos
parecem positivamente extasiadas; outros estão fazendo um
trabalho ruim em esconder as lágrimas que transbordam de
seus olhos. Não entendo muito bem por que eles se importam
tanto — mas se Allison se importa, eu também me importo.
Allison desliza a mão para baixo para apertar a minha. Ela
está com a cabeça baixa e os olhos fechados, esperando que eu
lhe conte seu destino.
Dou um aperto reconfortante em sua mão. Então eu olho
para a lista.
O nome dela está bem no topo.
— Allison Hadley — leio. — “Sally Bowles.”
Allison tensiona, apertando minha mão com tanta força que
quase dói.
— Você está falando sério? Não brinque comigo.
— Ela não está brincando — Wes diz por cima do meu
ombro, mastigando outro saco de batatas fritas. Eu nem tinha
percebido que ele nos seguia. — Olha.
Ele aponta para a lista. Allison abre os olhos e lê por si
mesma.
— Ai, meu Deus. — Ela grita e bate palmas. — Ai,
meu Deus!
Ela está pulando para cima e para baixo agora, puxando meu
braço — coisa que realmente machuca, mas eu não quero
diminuir sua animação reclamando.
— Parabéns! — Eu digo.
Ela joga os braços em volta do meu pescoço e me beija na
bochecha. Demoro um segundo para abraçá-la de volta, e então
ela já está me soltando, voltando-se para Wes para fazer
exatamente a mesma coisa. Quando ela agarra outra garota que
está passando — uma ruiva baixinha vestindo uma camiseta do
musical A Lojinha dos Horrores — e dá um beijo comemorativo
nela também, minha empolgação começa a se esvair.
Wes dá um pequeno soco amigável no ombro de Allison.
— Você vai ser ótima, Allie.
Eu sei um pouco mais sobre o show, já que Allison está
falando muito sobre ele, mas ela ainda me perde quando
começa a tagarelar sobre números de dança que mal pode
esperar para fazer, quem está interpretando os outros
personagens e qual elenco dos remakes da Broadway é
melhor. Fico em silêncio e a observo, a efervescência de seus
gestos, e de repente percebo que minhas bochechas estão
doloridas. Eu estive sorrindo como uma idiota,
testemunhando como ela está feliz.
Um menino alto com cabelos escuros passeia pelo corredor
e, assim que ela o vê, toda a postura de Allison muda, ficando
mais alta, ombros para trás de forma que o peito se projeta.
— Oi, Bash. — Há uma doçura melosa em sua voz que
nunca ouvi antes. Isso faz meu estômago revirar.
— Oi — diz o menino. Ele claramente não tem certeza do
nome de Allison para usá-lo.
— Parabéns! — Allison aponta para o nome dele abaixo do
dela na lista do elenco. Sebastian Waller, o Emcee.
Ele sorri — meio sem expressão, no entanto. Apenas sendo
educado. Ou talvez seus olhos estejam sempre vazios assim,
distantes e meio adormecidos. Allison sorri de volta,
inclinando a cabeça de maneira sensual, colocando uma mecha
de cabelo atrás da orelha. Wes nem o olha, muito ocupado
vasculhando os restos no fundo de seu pacote de Doritos.
Assim que Bash sai do alcance de voz, Allison suspira
dramaticamente.
— Ele não é lindo pra caralho?
Ele é bonito, eu acho. Mas magro, todo em ângulos agudos,
e seu cabelo é muito longo, os cachos caindo descuidadamente
sobre sua testa. Tudo nele parece afetado, desde a maneira
galopante com que anda até o cordão de couro enrolado em seu
pulso e os jeans artisticamente rasgados que parecem apertados
o suficiente para cortar sua circulação.
Wes balança a cabeça, esmagando o saco vazio em seu
punho.
— Eu nunca vou entender o que todos vocês veem naquele
cara.
Allison alegremente empurra os óculos de Wes mais alto em
seu nariz.
— Você precisa verificar sua visão, baby.
Wes joga o saco na lata de lixo mais próxima, depois limpa os
óculos onde Allison os borrou. Não sei dizer se ele está bravo
ou não. Estou me sentindo idiota. Claro que Allison teria uma
queda por um cara assim. É claro.
Eu olho para ela com o que espero ser um sorriso
provocador.
— Eu pensei que você tinha dito que não estava mais
pegando garotos.
Allison e Wes estão em silêncio. Merda, eu fui longe
demais? Eu estava tentando fazer uma piada. Mas talvez fosse
um segredo entre nós, e agora quebrei a confiança dela e...
— Eu não estou. — Allison se inclina, bem próximo ao meu
ouvido, deixando cair sua voz em um registro mais sensual. —
Mas Bash é um homem. Este vai ser o meu ano, eu sei disso.
— Seu ano para quê? — Eu pergunto.
Wes está balançando a cabeça novamente, exasperado. Ele
deve ter escutado isso antes.
— O ano em que ele finalmente vai me notar — diz
Allison. — De jeito nenhum ele pode continuar me ignorando
quando estamos dançando juntos em nossas roupas íntimas. —
Como nunca vi Cabaret, a imagem que passa pela minha
cabeça agora é a de Allison no palco com a calcinha que usa
todos os dias: calcinha de algodão preta e sutiã de renda
transparente o suficiente para mostrar os mamilos. Eu abaixo
minha cabeça, esperando que a mecha ondulada do meu cabelo
esconda meu rubor.
Mas não há como se esconder de Allison. Ela ri e puxa meu
cabelo para trás.
— Você fica tão fofa quando está escandalizada.
Pego minha mochila do chão, ignorando a sensação de calor
que se espalha pelo meu peito.
— Eu deveria ir para a aula.
— Ou... — Um sorriso malicioso se espalha pelo rosto de
Allison. — Nós poderíamos matar aula e ir para o rio.
— Eu não deveria. — Já estou atrasada em minhas aulas
depois de passar a maior parte do fim de semana com Allison.
— Vamos, está um dia lindo! — Ela puxa a alça da minha
mochila, as pontas dos dedos roçando a pele nua do meu
decote. — Quem sabe quantos destes ainda nos sobram antes
do inverno?
Eu nunca cabulei aula antes na minha vida. Mas já estou
aprendendo que é basicamente impossível dizer não a Allison.
— Ok — eu digo. — Só desta vez.
Allison grita de alegria. Por um segundo, acho que ela vai me
abraçar de novo, mas ela apenas bate palmas, um sorriso
malicioso iluminando seu rosto.
— Tenho uma hora até a encenação — diz Wes —, então eu
poderia...
— Não. — Allison passa o braço pelo meu. — Apenas
meninas.
Saímos do prédio do teatro ainda com os braços ligados,
batendo uma na outra enquanto caminhamos. Bash está
esparramado na escada de pedra em frente, fumando um
cigarro. Ele olha para cima por um segundo, seus olhos
passando por mim como se eu fosse outra árvore em Oak
Grove. Uma pequena onda de raiva se enrosca em meu peito,
mas tento ignorar, concentrando-me na sensação do cotovelo
de Allison curvado ao redor do meu.
Minha escola estava cheia de caras como Bash.
Eles sempre olham através de garotas como eu.
Mas eu os vejo.
11
SCARLETT

— É claro que ele mereceu — diz Mikayla.


A sala de aula é destinada a um público muito maior, então
os doze alunos matriculados em minha aula avançada de
Shakespeare tendem a se espalhar pela sala, usando cadeiras
extras para segurar suas mochilas ou servir como apoio para os
pés. Como de costume, Mikayla é a única sentada na frente
perto de Jasper e eu.
Ryan Cutler, um veterano que sempre se senta na última fila,
balança a cabeça em desacordo. Ele está usando a mesma
camiseta furada de Game of Thrones que vestiu na aula da
última sexta-feira.
— Eu só acho que está confuso — diz Ryan. — Eles
enganaram Ângelo para dormir com outra mulher.
— Comparado com o que ele ia fazer com Isabella? —
Mikayla lhe deu um sorriso desafiador, uma sobrancelha
levantada. Sua aparência angelical torna a expressão ainda mais
inquietante. — Isso não é nada, e você sabe disso. Ele era…
— Sim, mas — Ryan a interrompe — o que eles fizeram com
ele não foi uma agressão sexual ou algo assim? Quer dizer,
tecnicamente?
A garota atrás de Mikayla se mexe em sua cadeira. Ashleigh
Lawrence, terceiro ano. Pelos papéis que ela entrega, posso
dizer que ela é inteligente, mas fazê-la falar em classe é quase
impossível, especialmente com personalidades fortes como
Mikayla e Ryan na sala. Ashleigh abre a boca, depois a fecha de
novo, mordendo o lábio inferior.
— Srta. Lawrence — eu digo. — Você tem algo a
acrescentar?
— N-não. — Ela torce a trança nervosamente em torno dos
dedos, o anel de diamante em sua mão esquerda brilhando na
luz fluorescente. — Quer dizer, não realmente.
Mikayla fica mais do que feliz em dar a última palavra.
— Ângelo não teve escrúpulos em coagir Isabella a dormir
com ele. Então, eu digo que ele recebeu exatamente o que
estava vindo para ele.
Jasper sorri para ela.
— Bem, já que você é uma entusiasta da vingança, Srta.
Atwell, tenho certeza que gostará da tarefa da próxima semana.
Ele começa a distribuir apostilas, explicando os requisitos
para nosso próximo módulo em Othello. Mikayla já leu; ela está
em Titus Andronicus, que não cobriremos por semanas. Eu sei
que não deveria deixá-la dominar a discussão tanto quanto faz,
mas é difícil não ter favoritos quando ela está tão à frente da
maioria de seus colegas de classe.
Assim que Jasper e eu dispensamos a classe, Mikayla se
aproxima de mim.
— Você tem tempo para se encontrar agora, Professora
Clark?
Não estamos nem na metade do semestre e Mikayla já está
agitada para travar sua carga horária de primavera. Eu tenho
que perseguir a maioria dos meus outros aconselhados — ou
enviar Jasper atrás deles. Não sei se é sua classificação severa ou
sua altura ou aquele olhar perturbador dele, mas os alunos
parecem muito mais assustados com ele do que comigo. Se eles
soubessem.
— Claro — eu digo. — Embora seja muito bom lá fora para
ficar enfiado no meu escritório. Café?
Mikayla acena com a cabeça ansiosamente, seguindo-me
para o corredor. Jasper passa por nós, seus longos passos nos
ultrapassando. Ele não olha para mim, mas seus dedos roçam
meu quadril. Eu fico tensa, olhando para ele. Mikayla não
parece notar, mas outra pessoa pode ter notado.
Mikayla e eu passamos pelo escritório do Dr. Stright no
momento em que ele conduz Ashleigh Lawrence para
dentro. Ashleigh está em seu seminário de redação de honra e
já é uma escritora melhor do que ele jamais será. Sinceramente,
espero que ela continue escrevendo, mesmo que prossiga com
seu plano — na minha opinião, imprudente — de se casar com
seu namorado do colégio no próximo verão.
Stright fecha a porta atrás de Ashleigh, a mão pairando perto
de sua coluna e os músculos da minha mandíbula se
contraem. Ele não é tão descarado quanto Kinnear ainda, mas
é apenas uma questão de tempo. Em alguns aspectos, ele já é
pior do que seu mentor. Pelo menos Kinnear não tem uma
esposa em casa esperando por ele enquanto ele brinca com seus
alunos.
— Você ainda está planejando se inscrever no seminário de
honra de Stright? — Eu pergunto a Mikayla quando saímos de
Miller para Oak Grove. Hoje o clima é praticamente de verão,
e os alunos estão aproveitando ao máximo: estendidos na grama
com suas jaquetas como mantas de piquenique, usando a
pretensão de estudar como desculpa para se aquecer sob o céu
azul claro.
— Eu gostaria — diz Mikayla. — Se você acha que eu
consigo entrar.
Ela definitivamente pode entrar — pelos méritos de seu
talento para escrever, é claro, mas também porque Stright
escolhe a dedo os alunos do seminário a cada semestre, e eles são
quase todas mulheres bonitas.
— Ficaria mais do que feliz em lhe dar uma recomendação
pessoal — digo a ela. — Mas eu tenho que te avisar…
— Sobre o Professor Stright? — ela diz. — Não se preocupe,
eu sei tudo sobre ele. Ainda quero tentar o seminário, no
entanto.
Detesto elogiar qualquer coisa que Stright faça, mas tenho
que admitir que seu seminário parece ser valioso. Um de seus
alunos no ano passado entrou no Workshop de Escritores de
Iowa. Outros acabaram fazendo estágios em revistas literárias,
editoras, no New Yorker. Não quero que Mikayla perca
oportunidades só porque Stright é um canalha.
Mas se ele a tocar, vou matá-lo, porra.
— Eu estava planejando fazer sua aula de poesia vitoriana
também — diz Mikayla. — Mas se você conseguir aquela bolsa
em Londres, acho que o Dr. Kinnear vai ensiná-la?
— Ou Dr. Torres. — Drew já está revisando meu plano de
estudos, só para garantir. — Você deveria considerar o curso de
teoria de gênero dele também. Ele só oferece na primavera.
— Você acha que ele assumiria como meu orientador
também? — Mikayla pergunta. — Quero dizer, se você sair.
— Tenho certeza que ele ficaria feliz. Mas ainda estarei
disponível por e-mail se você precisar de alguma coisa.
Ela sorri.
— Bom. Eu realmente sentirei sua falta, no entanto.
Nossa caminhada até a cidade nos leva além do aglomerado
de dormitórios situados nos limites do campus. Mikayla acena
para uma estudante saindo de Whitten Hall — uma garota que
eu nunca vi antes, com cabelo castanho crespo, vestindo uma
flanela e um conjunto de jeans puído que seria estiloso se eu
tivesse a idade dela.
— Você está em Whitten este ano? — Eu pergunto.
— Sim — diz Mikayla. — É o único lugar onde eu poderia
conseguir um quarto individual no segundo ano.
Whitten é um dos dormitórios mais antigos e degradados do
campus e, portanto, não é a escolha favorita da maioria dos
alunos. Mas sempre achei que tinha um certo charme, com suas
colunas brancas e janelas de chumbo, a hera cobrindo a
fachada. À luz da tarde, as folhas sobrepostas brilham como as
escamas de uma cobra.
Com tantos alunos do lado de fora aproveitando o sol, a
cafeteria na pequena desculpa de centro da cidade de Gorman
está quase deserta. Mikayla e eu estamos discutindo opções
para sua exigência de literatura global enquanto esperamos por
nossas bebidas — café puro para mim, um chai latte de
caramelo para ela — quando um homem entra pela porta e
caminha até nós.
Eu olho para cima, já irritada, e meu aborrecimento só
aumenta quando vejo quem é.
— Boa tarde, senhoras! — Kinnear diz. — O que vocês estão
fazendo? — Então, sem esperar que nenhum de nós
respondesse, ele me diz: — Achei que você estaria trancada em
seu escritório, trabalhando arduamente naquele formulário de
bolsa. A propósito, minha oferta para revisar seus materiais
ainda está de pé.
— Eu já enviei, na verdade — eu digo. — Mas obrigada.
Como se eu fosse cometer esse erro novamente. Dois anos
atrás, Kinnear leu um artigo meu sobre os rumores de
bissexualidade de Viola Vance, deu algumas notas insultuosas
sobre a estrutura do meu argumento e passou a apresentar uma
versão trivializada da mesma tese em uma palestra que deu na
conferência ALSCW4no semestre seguinte. Kinnear é
especialista em literatura vitoriana, incluindo o trabalho do
proeminente marido romancista de Viola, Lorde Douglas
Vance. Mesmo quando Kinnear não está roubando totalmente

4
A Associação de Estudos Literários, Críticos e Escritores (ALSCW) foi
organizada em 1994 buscando promover a excelência em crítica literária e
estudos garantindo que a literatura prosperasse em ambientes acadêmicos e
criativos. Incentivam a leitura e escrita de literatura e a crítica, bem como amplas
discussões entre aqueles comprometidos com a leitura e estudo de obras
literárias.
de mim, há uma quantidade infeliz de sobreposição em nossa
pesquisa.
O barista coloca nossos cafés no balcão. Mikayla pega os dois
e me entrega o meu.
— Tenho certeza de que você ouvirá algo em breve. —
Kinnear sorri com indulgência e me dá um aperto no braço. —
Eles entraram em contato hoje para agendar minha entrevista
por telefone.
— Sua entrevista por telefone? Para o quê?
— Para a associação, é claro.
A boca de Mikayla cai aberta.
— Para a bolsa da Women's Academy ?
— Está aberto a todos os acadêmicos da área — diz
Kinnear. — A curadora-chefe é uma velha amiga minha de
Cambridge, na verdade. Ela me encorajou a jogar meu chapéu
no ringue.
Não entendo. Por que ele iria querer isso? Há anos ele busca
o cargo de chefe de departamento e agora está quase em suas
mãos. Ir para Londres por doze meses quase certamente
interferiria nisso — ao passo que poderia fazer minha
carreira. Embora eu tenha certeza que aquele pequeno
bajulador do Stright ficaria mais do que feliz em manter seu
assento aquecido para ele. A ideia de Kinnear em Londres e
Stright como meu chefe, não importa o quão
temporariamente, é demais para suportar.
— Aparentemente, há coisas boas sobre Lorde Vance nessas
cartas também — Kinnear diz. — Você sabe, já que eles datam
dos primeiros anos de seu casamento com Viola.
A mais tênue das justificativas. A escrita de Viola já é tratada
como uma reflexão tardia na obra de seu marido mais famoso,
e há décadas foi ativamente suprimida por sua
propriedade. Seus poemas estão cheios de raiva e desejo, sem
remorso e agressivos mesmo para os padrões de hoje. Ela nunca
foi levada a sério como artista por seus próprios méritos, mas
meu trabalho pode mudar isso. Essas cartas equivaleriam a uma
nota de rodapé na pesquisa de Kinnear. Elas poderiam definir
o meu. E ele sabe muito bem disso.
Mikayla nos observa com cautela, como se ela estivesse com
medo de que estejamos prestes a brigar. Estou tentando manter
meu rosto composto, mas posso sentir a raiva explodindo em
meus olhos como fogos de artifício. Eu agarro o papelão
ondulado em torno da minha xícara de café para evitar esmagar
seus dentes.
Não posso deixar Kinnear me atingir assim. Não agora, não
quando estou tão perto. Além disso, o que importa se eles lhe
derem a bolsa, quando posso ter certeza de que ele não estará
por perto para aceitá-la?
12
CARLY

— “Eu sempre vou te amar” — diz Wes. — “Só não da maneira


que você deseja.”
Estou tentando prestar atenção enquanto ele lê seu último
conto na aula, mas estou muito nervosa sabendo que a minha
vez de ler é a próxima. Eu aperto o canto grampeado da minha
tarefa e uma das páginas corta a ponta do meu dedo.
Para minha sorte, a história de Wes é longa. É sobrescrito e
sentimental também — um relato meloso de um garoto tímido
que passa anos em um amor não correspondido com uma
garota peculiar e problemática de sua cidade natal. Mas Alex
parece adorar, e uma das garotas sentadas à nossa frente tem
lágrimas reais brilhando em seus olhos. Eu coloco o corte de
papel na minha boca, sugando um pouco da picada para longe.
Wes finalmente termina de ler e Alex coloca a mão sobre o
coração.
— Lindo, Sr. Stewart. Muito obrigado por compartilhar isso
conosco.
Agora Alex olha para mim. Eu me mexo
desconfortavelmente em meu assento.
— Srta. Schiller — diz ele — Acredito que você... — Ele se
interrompe, olhando para o relógio. — Na verdade, estamos
com pouco tempo. Então, vamos terminar aí, e começaremos
com a história de Carly na próxima semana.
Faço uma anotação mental de que na próxima segunda-feira
seria um ótimo momento para abandonar a aula com Allison
novamente. Estou ficando mais confortável com a parte da
escrita com o passar do semestre, mas acho que nunca vou ficar
bem em ler em voz alta na frente das pessoas. Se Alex não fosse
tão legal, eu juraria que ele estava fazendo isso para nos torturar.
Wes espera na porta, curvado no casaco esporte de veludo
cotelê que usa todos os dias desde que o tempo começou a ficar
mais frio. Seus olhos são naturalmente estreitos, como se ele
estivesse sorrindo o tempo todo, mesmo quando não está, mas
agora há rugas mais profundas nos cantos, apenas visíveis por
trás dos óculos e o cabelo desgrenhado caindo sobre suas
têmporas.
— Salva pelo gongo — ele diz enquanto avançamos para o
corredor.
— O quê?
— Eu poderia dizer que você estava com medo. De ler sua
história.
— Sim, é… — Eu olho para os dedos arranhados dos meus
Doc Martens. Allison os encontrou para mim no sábado
passado, na venda de caridade, no shopping center Gorman
Walmart. As botas eram grandes demais para ela, mas cabiam
perfeitamente em mim. — Bem, deve ser mais fácil para
você. Já que você é formado em teatro.
Wes ri.
— Não, eu também odeio totalmente. Há uma razão para eu
ficar nos bastidores.
Ele segura a porta para mim quando saímos de Miller Hall
para Oak Grove. O outono já se consolidou completamente
agora, transformando as árvores em uma profusão de
vermelhos brilhantes e ferrugens.
Um cara musculoso em uma jaqueta quase esbarrou em nós,
e Wes se aproximou de mim para ficar fora do seu
caminho. Fico surpresa de repente com o pensamento de que
as pessoas podem nos ver juntos e assumir que somos um
casal. Assim que o caminho está claro o suficiente, eu me afasto
para ficar a alguns centímetros dele. É estupido; eu não sei por
que me importo.
De repente, minha visão escurece.
Alguém está atrás de mim, cobrindo meus olhos. Seus
cotovelos cravados em meus ombros. Meu pulso começa a
bater forte e eu me esforço para o lado para sair de seu
controle. Estou tremendo, minha respiração saindo em
suspiros trêmulos, quando me viro para ver quem é.
Allison. Quem mais.
Ela ainda está rindo, seus olhos brilham com uma alegria
cruel. Mas assim que ela vê a expressão em meu rosto, ela para.
— Ah, meu Deus, eu realmente te assustei! — Ela me puxa
para um abraço, acariciando meu cabelo. — Eu sinto muito!
Eu me inclino e seus braços me apertam. Minha frequência
cardíaca começa a diminuir.
— Tudo bem.
— O que vocês dois nerds estão fazendo? — ela pergunta
enquanto se afasta. Ela está usando uma roupa de nossa
excursão ao brechó também: um blazer quadriculado
masculino sobre jeans e uma blusa preta que mostra uma faixa
da barriga.
— Acabamos de sair da aula de redação — diz Wes. — Nós…
— Quer almoçar? — Allison está perguntando a mim, não a
ele. Sua mão ainda está no meu cabelo, brincando com as
pontas.
Eu concordo. Ainda não é meio-dia, mas meu estômago está
roncando, os nervos em frangalhos dando lugar a pontadas de
fome.
Durante o primeiro mês do ano letivo, eu só comi no
refeitório principal, que serve principalmente pizza em
temperatura ambiente e cereais matinais para o café da
manhã. Allison foi quem me contou sobre o Trocino, o
refeitório do outro lado do campus que parece uma praça de
alimentação de shopping center, com opções de bagels a
hambúrgueres e fritos na hora.
Nós nos dispersamos assim que empurramos as grandes
portas de vidro, Wes optando por seu calzone de salsicha e
queijo de costume, enquanto Allison segue direto para a
lanchonete. Eu vagueio por alguns minutos, pesando minhas
opções antes de decidir sobre a caçarola especial do dia. Allison
está certa de que a comida é muito melhor aqui, mas acho o
número de opções opressor, e eles estão sempre berrando
algumas transmissões do Top 40 agressivamente animadas pelo
sistema de som.
Com o almoço na mão, saí em busca de Allison e Wes. Eu os
vejo em uma das grandes mesas no centro do espaço, cercados
por um grupo de amigos do departamento de teatro. Embora
já tenha conhecido alguns deles antes, não consigo me lembrar
de seus nomes. Todos eles parecem ter alguma característica
distinta e memorável, no entanto: a garota com o cabelo
descolorido e piercing no nariz, ou o cara com as orelhas
calibradas e tatuagem no crânio.
Não há nada distinto assim em mim. Meu cabelo é de um
castanho chato em algum lugar entre cacheado e liso, não sou
particularmente magra ou voluptuosa, não tenho nenhuma
tatuagem ou piercing além das orelhas. Ao lado deles, sinto-me
incrivelmente simples, então não é de admirar que seus olhos
passem por cima de mim. Se Allison e eu não tivéssemos sido
colocadas juntas pela autoridade habitacional do campus, eu
seria igualmente invisível para ela.
Todos os lugares da mesa estão ocupados. Devo sentar em
outro lugar? Cada vez mais alunos chegam depois das aulas da
manhã, e logo todas as mesas estarão ocupadas. Meu estômago
se revira, ansiedade superando a fome. Tento chamar a atenção
de Allison, mas ela está muito ocupada rindo do que quer que
o garoto ao lado dela acabou de dizer.
É Bash Waller. Seu cabelo escuro está preso sob um boné de
tricô hoje, Henley preto desabotoado parcialmente em seu
esterno, e ele está recostado na cadeira tão longe que parece que
as pernas vão quebrar. Allison está contorcida em direção a ele,
ignorando sua comida tão completamente quanto ela está me
ignorando.
— Carly.
Wes está na minha frente, apontando para o lugar oposto ao
calzone meio comido.
— Aqui, sente-se — diz ele. — Vou puxar outra cadeira.
— Obrigada — eu murmuro, afundando no assento de
plástico vermelho quente. Não sei o que estava pensando,
pegando a caçarola. Parece nojento para mim agora, como
camadas de carne enrugada.
Wes empurra uma cadeira extra para a abertura estreita ao
meu lado e volta a comer seu almoço, seu joelho batendo contra
o meu por baixo a mesa enquanto ele mastiga. Allison joga o
cabelo para trás e passa os dedos no antebraço de Bash. A garota
do outro lado — aquela com o piercing no nariz — revira os
olhos, mas ela está observando os dois tão atentamente quanto
o resto de nós. Eles são as estrelas do show.
Bash parece entediado, no entanto. Esta é claramente uma
ocorrência diária em seu mundo: garotas o bajulando,
flertando descaradamente. Ele vai se aquecer em sua atenção
como uma cobra tomando sol em uma rocha, mas ele
claramente não dá a mínima para ela.
Ele já terminou sua comida, deixando uma mancha de
ketchup e uma pequena pilha de ossos de frango para trás, mas
ele alcança o prato de Allison, pegando uma batata frita sem
perguntar.
— Ei, esses são meus — ela diz, mas ela ainda está sorrindo,
sua voz cheia de açúcar.
Enquanto ele mastiga, seus olhos vagam sobre ela, parando
em sua cintura. Não consigo ver seu estômago de onde estou
sentado, mas não perco o pequeno suspiro que ela dá enquanto
suga. Meu punho aperta meu garfo.
— Você vai se apresentar seminua na frente de um bando de
estranhos em breve — Bash diz, já pegando outra batata
frita. — Melhor parar de comer isso.
Que idiota. Eu olho para Wes para ver se ele está tão enojado
quanto eu, mas ele mal está prestando atenção, pegando alguns
pedaços perdidos de crosta de calzone ainda em seu prato.
Allison pega Bash pelo pulso e leva a mão dele em direção à
boca.
— Você é quem tem que mostrar sua bunda nua no palco —
ela diz, então morde a ponta da batata frita que ele está
segurando.
Ele observa seus lábios enquanto ela mastiga, sua garganta
enquanto ela engole.
Eu enfio meu garfo no topo da caçarola. Definitivamente,
não estou mais com fome.
13
SCARLETT

Minha coisa favorita sobre homens como Kinnear: eles são


previsíveis pra caralho.
Todas as sextas-feiras à noite, ele vai buscar uma bebida (ou
várias) no Gorman Tap — o único bar da cidade que atende
mais ao corpo docente do que aos alunos turbulentos. Ele
sempre se senta na mesma mesa: bem na janela, então nem
preciso entrar para espioná-lo. Com o pôr do sol, sou outra
sombra na entrada do beco do outro lado da rua.
Aumentei minha vigilância nos últimos dias, seguindo dois
quarteirões atrás dele em sua caminhada do campus para casa,
seguindo seu carro até o supermercado orgânico na próxima
cidade. Assistindo das árvores atrás de sua casa enquanto sua
última conquista de graduação tropeçava descendo os degraus
de trás esta manhã, os lábios dela ainda vermelhos e inchados, a
jaqueta abotoada incorretamente.
Ele a trouxe a este lugar algumas noites atrás também,
embora ela quase certamente fosse muito jovem para estar em
um bar. Ele se sentou na janela da frente como sempre, nem
mesmo tentou esconder o que estava fazendo. Esta noite,
porém, ele está bebendo seu caro vinho tinto
sozinho. Ajustando seu romance de Joyce para que a capa fique
visível para qualquer pessoa que puder passar pela janela. Não
tenho certeza se o vi virar uma página ainda; é um adereço,
parte de sua atuação como Professor Titular Erudito.
Kinnear realmente não quer a bolsa. Ele simplesmente não
quer que eu a tenha. A Women’s Academy finalmente me
contatou para marcar uma entrevista por telefone, mas posso
facilmente imaginar Kinnear derramando veneno nos ouvidos
do comitê de seleção durante sua própria ligação, enquadrando
seu trabalho como superior ao meu, minando minhas
realizações. É o que ele tem feito desde o dia em que fui
contratada na Gorman.
A Universidade Gorman não foi minha primeira escolha,
mas posições de estabilidade são difíceis de conseguir, mesmo
para alguém com meu histórico acadêmico estelar. Trabalhei
muito para me preparar para aquela entrevista, levando em
consideração cada detalhe da minha roupa: um blazer e uma
saia lápis que eu tinha feito sob medida com precisão. Isso me
fez sentir formidável, capaz — o tipo de mulher que trabalhei
tanto para me tornar durante meus anos de pós-graduação.
Mas a maneira como Kinnear olhou para mim enquanto eu
tomava meu assento na sala de entrevista imediatamente
perfurou minha confiança. Mais tarde, ouvi-o comentando
sobre minhas “pernas fantásticas” com um de seus colegas mais
velhos, e desanimei completamente. Aceitei o emprego, mas
nunca mais usei aquela roupa.
Eu deveria ter matado ele anos atrás. Ele me segurou, me fez
tropeçar, me ferrou de várias maneiras. Nunca saberei com
certeza onde poderia estar hoje sem sua interferência maliciosa
em minha carreira, mas sei que a bolsa será minha. Em janeiro,
estarei em Londres fazendo pesquisas para definir minha
carreira e Kinnear estará apodrecendo em seu caixão.
Este assassinato será mais arriscado do que a maioria,
especialmente com a força-tarefa farejando. Eu sempre estudo
minhas vítimas completamente — eu tenho que conhecê-las,
por dentro e por fora, para saber a melhor forma de matá-
las. Mas não posso esperar muito mais, e não apenas por causa
da bolsa acadêmica.
Eu preciso matar novamente. O desejo parece vir mais forte
e mais rápido a cada vez agora, o desejo crescendo em mim
como um grito. Tyler mal controlou isso por um mês.
Na janela, Kinnear fecha seu livro e engole o resto de seu
vinho. Por um segundo eu me imagino deslizando para dentro,
me aproximando sorrateiramente dele. Quebrando a taça de
vinho e arrastando os restos irregulares da haste em sua
garganta. Se eu pudesse matá-lo de uma forma tão satisfatória.
Enfio as mãos enluvadas nos bolsos, curvo os ombros de
modo que meu lenço preto cubra meu queixo. É mais ou
menos nessa hora que ele geralmente sai do bar. Até agora,
sozinho ou acompanhado, ele sempre voltou direto para sua
monstruosidade moderna de uma casa a algumas ruas de
distância, mas tenho que ter certeza de que o padrão se
mantém. Qualquer minuto agora…
— Scarlett!
Meus ombros encolhem ainda mais, porque aquela voz
pertence à última pessoa que eu quero encontrar agora.
Samina Pierce.
14
CARLY

— Talvez eu tenha errado a hora — eu digo.


Eu olho furtivamente para Wes, encostado na porta do carro
ao meu lado. Ele está batendo em um ritmo nervoso no metal
amassado, e as vibrações sobem pela minha espinha.
— Não, ela disse seis e quinze. — Ele pega o telefone
novamente. — Encontrei-a depois de sua última aula e ela disse:
“Vejo você às seis e quinze”.
Isso foi ideia de Allison em primeiro lugar, passar a noite de
sexta-feira em Pittsburgh. Ela queria dar uma olhada naquele
brechó em Shadyside, comer em algum novo restaurante
etíope, talvez tentar conseguir ingressos para estudantes no
Teatro Público de Pittsburgh. Ela tem falado sobre isso a
semana toda (“Tenho que sair desta cidade, preciso de um
pouco de cultura!”).
Mas agora ela não está em lugar nenhum.
— Você poderia tentar ligar para ela novamente — eu sugiro.
Os músculos da mandíbula de Wes saltam. Não sei dizer se
ele está furioso com Allison ou preocupado com ela. Talvez
ambos. Ela geralmente está pelo menos dez minutos atrasada
para tudo, entrando correndo em uma onda de desculpas, mas
não aparecer não é típico dela. Pelo menos, pelo que eu sei. Eu
tenho que continuar me lembrando de que não nos
conhecemos há muito tempo.
— Sim. Ok. — Wes pega seu telefone novamente, mas antes
que ele possa discar o número dela, a tela se ilumina com uma
mensagem. Seu rosto cai.
— O quê? — Eu me inclino mais perto para olhar. Quando
ele segura o telefone para me mostrar a mensagem, nossos
ombros se tocam.
Desculpe, não posso ir hoje à noite, talvez na próxima semana?

Wes suspira e coloca o telefone de volta no bolso da calça


jeans. Eu sinto uma onda de aborrecimento tão repentina e
quente que é como chamas chamuscando minha pele. Mas isso
não é justo. Talvez ela tenha um bom motivo para cancelar.
Ou talvez ela tenha recebido uma oferta melhor daquele
idiota nojento do Bash. Ele é praticamente tudo sobre o que
Allison fala agora — isso e Cabaret. Mas isso também é sobre
ele, eu acho.
Eu empurro o carro e começo a me afastar antes que Wes
possa ver como estou chateada.
— Nós ainda podemos ir — Wes grita atrás de mim.
Eu paro e me viro para olhar para ele, meus Doc Martens
rangendo no cascalho do estacionamento.
— Quero dizer, se você quiser. — Ele parece evasivo, mas não
posso dizer se ele realmente não se importa ou se está apenas se
esforçando para sair desse jeito.
Já está escurecendo. Demorará uma hora para chegar a
Pittsburgh, pelo menos. E o que Wes e eu ainda vamos falar
sem Allison? Ela geralmente fala 90% do tempo.
Mas, se não formos para Pittsburgh, não tenho nada a fazer
além de voltar para o meu quarto e ficar sentada sozinha a noite
toda, estudando e esperando Allison voltar. E ela pode não
voltar — ou pior, ela pode voltar com Bash. A maneira como
ele olhou para ela no refeitório outro dia, é óbvio que eles vão
começar a ficar juntos em breve, se é que ainda não o ficaram.
— Ok — eu digo.
— Sim? — Wes diz, apertando os olhos contra o brilho dos
holofotes no estacionamento.
— Se você não se importa em dirigir até lá.
— Não é tão longe. Além disso, senti falta de estar atrás do
volante. Allison e eu costumávamos dirigir por toda Indiana
quando estávamos no ensino médio. — Ele passa a mão no teto
do carro como se fosse um animal de estimação, em vez de um
vulto enferrujado que é provavelmente mais velho do que
nós. — Uma vez nós dirigimos até Chicago. Seus pais estavam
tão bravos. Você dirige?
Eu balanço minha cabeça. Tirei minha carteira quando tinha
dezesseis anos, como todo mundo na minha classe, mas minha
cidade natal é tão pequena que você pode andar em quase todos
os lugares, e dirigir me enche de medo de revirar o estômago. É
muita responsabilidade. Tão fácil tirar uma vida ou acabar com
a sua própria.
— Vamos — Wes diz, destrancando as portas. — O copiloto
escolhe as melodias.
Eu me sento no banco do passageiro, escovando algumas
embalagens de sanduíche Sheetz no chão, e escolho um álbum
ao acaso. A guitarra punk-pop enche o carro, alta o suficiente
para sacudir as janelas. Wes bate os dedos contra o volante no
ritmo da batida enquanto sai do estacionamento. Quando
entramos na estrada municipal que sai da cidade, ele começa a
cantar baixinho — algo sobre estar "tão cansado de fazer
sexo". Meu rosto fica vermelho.
— Ótima escolha — diz ele. — Este é meu disco favorito do
Weezer.
— Eu nunca tinha ouvido isso antes — eu admito.
Wes olha para mim.
— Sério?
Eu mordo meu lábio e aceno. Agora que estamos no carro,
saindo de Gorman, estou começando a perceber que estou
completamente sozinha com ele. Nunca estive sozinha com
um cara antes. Todos os avisos do meu pai passam pela minha
cabeça — os meninos só querem uma coisa — mas não consigo
imaginar Wes sendo qualquer tipo de ameaça. Ele mal está
acima da minha altura, muito mais magro do que eu. São caras
como Bash sobre os quais meu pai pretendia me avisar, não
caras como Wes.
— Então, que tipo de música você gosta? — Wes pergunta.
— Eu realmente não… — Eu olho para os meus dedos
torcidos no meu colo. — Quer dizer, eu leio principalmente.
Ler foi minha fuga mais confiável na infância, a única
maneira de escapar de meu pai enquanto ainda estava presa no
mesmo espaço com ele. É por isso que estou me formando em
inglês.
— Vou te dizer uma coisa — Wes diz. — Vou fazer uma
playlist para você.
— Ah, você não precisa…
— Apenas alguns dos meus favoritos, e você pode me dizer
se gostar de algum deles.
Ninguém nunca me fez algo assim antes. Ninguém nunca
me fez absolutamente nada.
— Isso seria incrível. — Eu sorrio para ele, mas ele está
olhando para a estrada, seu perfil brilhando em vermelho nas
luzes do painel.
No resto da viagem para Pittsburgh, ficamos em silêncio —
exceto quando a música acaba e Wes recomenda outro álbum
para tocar em seguida. Gosto ainda mais desse: uma cantora
solo com uma voz gutural e temperamental. Ela ainda está
cantando quando chegamos ao rio Allegheny. Eu me curvo em
meu assento para que eu possa assistir as vigas da ponte amarelo
brilhante borrarem enquanto cruzamos para a cidade.
Chegamos tarde demais para ir ao brechó e não conseguimos
encontrar o restaurante etíope que Allison queria
experimentar, então acabamos em um restaurante italiano,
com toalhas de mesa brancas, velas cônicas e música suave de
piano tocando.
No segundo em que nos sentamos, começo a entrar em
pânico. Este é totalmente o tipo de lugar que você iria para um
encontro. Mas não estamos em um encontro, obviamente.
— Você quer pedir alguns palitos de pão? — Wes pergunta.
— Claro — eu digo, olhando ao redor do restaurante apenas
para não ter que olhar diretamente para ele. A maioria dos
outros comensais são casais algumas décadas mais velhos que
nós, usando blazers e vestidos de bainha, bebendo martinis. Eu
me sinto estupidamente mal vestida com meu suéter folgado e
jeans, e Wes está ainda mais deslocado com sua camiseta de Star
Wars e jaqueta de veludo cotelê amarrotada.
A algumas mesas de distância, há outra pessoa da nossa idade,
mas ela está vestida com muito mais estilo do que nós, com um
mini vestido azul e salto agulha combinando. A luz das velas
captura os destaques em seus longos cabelos loiros, fazendo-os
brilhar como fios de jóias.
Ela é tão deslumbrante que levo um segundo para notar sua
companhia. Ele tem pelo menos o dobro da idade dela, cabelos
grisalhos e rugas profundas nos cantos dos olhos. Olhos azuis
esfumados com sombras escuras.
Ai, meu Deus, é meu pai.
15
SCARLETT

Eu me forço a sorrir e soltar meus ombros.


— Samina. Como você está?
— Eu te disse, me chame de Mina. — Ela estremece,
batendo os pés na calçada. Ela está carregando uma sacola
reutilizável cheia de comida do mercado da rua. Um pedaço de
pão francês e o gargalo de uma garrafa de vinho espreitam por
cima. — O que você está fazendo parada aqui no frio?
A pesada porta de madeira do bar se abre. Um pequeno
grupo de alunos de pós-graduação emerge. Não Kinnear. Ele
ainda está à mesa, bebericando a escória de seu vinho.
Mina segue meu olhar, com a testa franzida. Eu rapidamente
concentro minha atenção nela.
— Ah, eu estava apenas dando uma caminhada. Eu amo esse
clima, na verdade.
Essa, pelo menos, é a verdade: o outono sempre foi minha
estação favorita, desde que eu era jovem. Toda aquela morte e
decadência abrindo caminho para algo novo.
— Eu não — diz Mina. — Dê-me uma praia ensolarada e
uma margarita qualquer dia.
A porta da frente do bar se abre novamente. Desta vez, forço
meus olhos a permanecerem em Mina.
— Estou tão feliz por ter encontrado você — diz ela. — Eu
estava planejando passar no seu escritório amanhã cedo.
— Oh?
Ela se aconchega mais perto de mim, a manga de seu casaco
cinza de lã roçando meu braço.
— O nome Richard Callaghan te diz alguma coisa?
Eu franzo a testa, inclinando minha cabeça. Ganhando
tempo para mim.
— Você provavelmente o reconheceria se eu lhe mostrasse
uma foto — ela continua. — Garoto grande, corte estilo
exército. Ele era um zelador; limpou a biblioteca por quase uma
década.
Eu dou outra olhada no bar. A mesa de Kinnear está
vazia. Ele ainda não saiu, mas logo sairá.
Ele não pode nem mesmo nos ver. Está escuro, estamos do
outro lado da rua. Ele provavelmente está distraído, um pouco
bêbado. Ele não me notou nenhuma das outras vezes que o
segui.
Claro, agora que estou ao lado de sua ex-esposa, Kinnear
descobre minha localização no segundo que sai do bar.
Kinnear sorri e acena, e Mina sorri de volta, e agora ele está
saindo do meio-fio para falar conosco. Caramba.
Mas, em vez de atravessar a rua, ele bate no relógio com um
sorriso afetado de desculpas e parte na direção oposta. Ele não
está caminhando em direção a sua casa ou campus — uma
grande quebra no padrão. Claro, não tenho como segui-lo
agora.
Mina observa as costas de Kinnear até que ele vire em outra
rua e desapareça de vista.
— Você sabe, nós nos divorciamos quatro vezes desde que
éramos casados, e a esposa do reitor ainda me chama de
“Sra. Kinnear”, que nunca foi meu nome, a propósito. — Ela
suspira, sua respiração saindo em uma lufada de vapor
branco. — E você? Já foi casada?
Eu nego com a minha cabeça.
— Bom para você. — Os lábios de Mina se curvaram em um
sorriso malicioso, seus olhos brilhando sob as lâmpadas da
rua. Com ela me olhando assim, eu quase não sinto mais
frio. — Mas assim, se eu nunca o tivesse conhecido, eu não
estaria aqui em Gorman, então.
— Por que vocês se separaram? — Eu pergunto.
— Homens como ele não querem um relacionamento, eles
querem um fã-clube. Quanto mais membros, melhor. — Mina
ri, jogando essa afirmação como uma piada, mas sua voz é
muito quebradiça de amargura. — Mas, ei, todos nós fazemos
coisas estúpidas quando somos jovens, certo?
Tento me obrigar a sorrir em resposta, mas minha boca não
coopera. Toda a força do frio se instala de volta em meus ossos.
Mina está me estudando de novo, do jeito que ela fazia em
seu escritório.
— Você já jantou?
— Não. — Eu sei o que ela vai dizer a seguir, e algo dentro de
mim que eu nem sabia que estava aberto, fechou, e fechou bem
de novo. — É melhor eu ir para casa. Muita avaliação a fazer.
— Outra hora, então. — Se ela está insultada ou desapontada
com a minha rejeição, ela esconde bem. — Vou pedir a Mikayla
para trazer o arquivo sobre Callaghan. Avise-me se alguma
coisa mexer com sua memória.
Como se eu pudesse esquecê-lo. Callaghan não era um
estuprador ou abusador comum como a maioria das minhas
vítimas. Ele era um voyeur — e ele escapou impune por anos,
se masturbando enquanto espiava pelos olhos mágicos que
havia cavado em todos os banheiros femininos da biblioteca do
campus.
A escada que o joguei abaixo era usada tão raramente que
demorou dias para alguém encontrar o cadáver. Eles tiveram
que fechar a biblioteca por uma semana para arejar o cheiro —
e para fechar todos os olhos mágicos, que a nova zeladora
descobriu no primeiro dia de trabalho.
— Claro — eu digo. — Tenha uma boa noite.
Enquanto Mina se afasta, o mesmo pânico que senti em seu
escritório agarra meu peito novamente. Ela não sabe. Ela não
pode. Tudo que ela descobriu é que algumas das mortes no
campus não combinam com as outras. Ela não suspeita que
haja um crime envolvido e, mesmo que suspeitasse, certamente
não teria nenhum motivo para culpar-me.
Mas ela ainda está mais perto do que qualquer outra pessoa
jamais esteve de descobrir a verdade.
Depois que Mina vai embora, considero tentar rastrear
Kinnear novamente. Não sei para onde ele estava indo, mas
Gorman é pequena; resta apenas um limite de cidade na direção
em que ele caminhou. Estou instável agora, no
entanto. Distraída. Melhor ir para casa e me aquecer, então
retomar minha vigilância amanhã.
A porta do bar se abre novamente e duas pessoas saem. A
altura de Jasper e a pele pálida o tornam inconfundível, mesmo
— não, especialmente — no escuro. Eu não posso dizer quem é
a pequena figura ao lado dele, no entanto. Eles estão indo
embora, do outro lado da rua, a mão de Jasper pressionando
suas costas para impeli-la a seguir em frente. Eles não me viram.
Mas então Jasper se vira — uma torção casual de seu pescoço,
sutil o suficiente para que sua companheira não veja — e me
olha bem nos olhos.
Ele sabia que eu estava lá o tempo todo.
16
CARLY

Estou na metade do quarteirão antes de perceber que fugi do


restaurante, deixando Wes para trás.
Meu pai. Tocando aquela mulher. Essa garota. Ela é um
pouco mais velha do que eu. É nojento.
— Carly! — Wes chama atrás de mim, correndo para me
alcançar. — O que está errado? O que aconteceu?
Meu pai é um bastardo traidor. Eu gostaria que ele estivesse
morto.
Abro a boca, mas as palavras não saem. Minhas bochechas
queimam. Acho que estou chorando, mas tudo parece tão
remoto, irreal.
Ah, Deus, e se ele me viu também? Eu não acho que ele viu,
mas e se ele me notou quando eu estava correndo para fora? Ele
poderia vir aqui e me confrontar. A qualquer segundo agora,
ele pode…
Wes coloca o braço em volta de mim e estou muito abalada
para afastá-lo. Mas uma vez que ele está me tocando, é
surpreendentemente reconfortante. Meu tremor começa a
diminuir.
— Podemos apenas... ir? — Eu digo, seu calor irradiando ao
longo do lado do meu corpo. — Eu quero ir.
— Claro. — Wes tira sua jaqueta e a enrola em volta dos
meus ombros, embora eu já esteja usando uma. — Claro, nós
iremos.
No caminho de volta, estamos tão silenciosos quanto no
caminho para cá, mas agora o ar no carro está pesado, uma
nuvem de tempestade prestes a estourar. A alguns quilômetros
de Gorman, Wes para em um posto Sheetz para abastecer e
depois entra na loja para comprar alguns lanches, já que
acabamos não jantando.
Eu não estou com fome. Só consigo pensar em meu pai — a
maneira como ele olhou para aquela mulher,
o afeto real brilhando em seus olhos. Eu sabia. Eu sabia que ele
era um traidor. As horas tardias no trabalho, as frequentes
viagens noturnas, seu ciúme insano se mamãe ao
menos olhasse para outra pessoa. Tentei dizer a ela. Tantas
vezes tentei dizer a ela, e ela se recusou a acreditar em mim. Mas
eu sabia disso, porra.
Wes volta para o carro, arrepios marcando seus braços abaixo
das mangas enrugadas de sua camiseta. Ele tira um sanduíche
do saco plástico que está carregando e o desembrulha, mas não
dá uma mordida.
Ficamos sentados lá por alguns minutos, a música vibrante
dos alto-falantes do posto de gasolina zumbindo na superfície
do carro, antes de Wes quebrar o silêncio.
— Você não precisa me dizer o que aconteceu se não quiser
— diz ele, ainda olhando para frente, a placa vermelha do
Sheetz refletindo nas lentes de seus óculos. — Mas…
— Eu vi meu pai.
Wes olha para mim, sem entender. Ele provavelmente tem
um pai que o ama. Se o encontrasse inesperadamente em um
bistrô italiano, ele sorriria, o abraçaria e puxaria uma cadeira.
— Ele estava com… — Eu olho pelo para-brisa, para a luz
fluorescente do posto de gasolina. — Alguma mulher.
— Então você acha que ele está traindo sua mãe? — Wes diz.
— Eu sei que ele está — eu rebato.
Wes recua e eu paro, olhando para as minhas mãos. Tenho
torcido um dos botões da jaqueta de Wes com tanta força que
o fio está começando a se desgastar. Eu o deixo cair,
pressionando minhas palmas nas minhas coxas para imobilizá-
las.
Eu me pergunto como ele a conheceu. Na seguradora onde
ele trabalha, talvez — ela pode até ser sua secretária, aquele
velho clichê. Ou eles se conheceram em um bar, ou online, ou
na maldita mercearia. Não importa. Não importa como ele a
conheceu, se ele está apaixonado por ela ou se ela é apenas uma
das muitas mulheres com quem está namorando. O
importante é que agora tenho certeza. Tenho provas inegáveis
do tipo de homem que ele é. Minha mãe tem que acreditar em
mim agora.
— Eu já suspeitava há um tempo — eu digo. — Mas eu não
tinha certeza. Não até esta noite.
Wes exala, longo e alto, e abaixa seu sanduíche, ainda
intocado.
— Uau. Sinto muito, isso é...
— Eu odeio ele — eu digo, e as palavras doem no caminho,
mas é tão bom dizê-las, tão satisfatório, como descascar uma
crosta.
Wes fica quieto, então eu continuo. Conto a ele sobre os
jogos mentais de meu pai, seus silêncios armados, a maneira
como ele controla como minha mãe usa o cabelo, como ela se
veste, o que ela faz para o jantar. Como sempre que ela empurra
de volta, não importa o quão pequena seja sua rebelião, ele diz
que ela não seria nada sem ele, indefesa, destituída,
sozinha. Como toda vez, ela acredita nele e o aceita de volta e
me diz que eu deveria mostrar um pouco de respeito ao meu
pai, ele fez muito por nós, ele nos ama mesmo. Ela jura.
Assim que paro de falar, meu peito se inflama de
vergonha. Wes está olhando para mim agora, olhos arregalados,
e eu gostaria de poder desaparecer. O que eu estava pensando,
contando tudo isso para Wes? Eu não deveria ter dito nada. Eu
gostaria de poder rebobinar a noite inteira e me afastar dele no
estacionamento, em vez de entrar em seu carro em primeiro
lugar.
Em seguida, ele alcança o câmbio e agarra minha mão.
— Você é incrível — diz ele.
Eu pisco para ele.
— O quê?
— Você já passou por tanta coisa, crescendo com um pai
assim, eu nem posso imaginar. — Ele aperta minha mão com
mais força. — E você acabou se tornando uma fodona.
— O quê? — Isso não é uma palavra que eu nunca usaria
para me descrever. Allison, ela é fodona. Eu sou tímida,
estranha, ansiosa. A garota que todo mundo esquece.
— Sim. — Ele sorri. — Mesmo. A maneira como você
parecia quando se levantou da mesa...
Eu me encolho, encolhendo-me contra o meu assento. Deus,
devo ter parecido totalmente desequilibrada, histérica. Como
uma garotinha tendo um ataque de raiva. Eu odeio que meu
pai tenha esse efeito sobre mim. Eu gostaria de ter mantido a
calma, de ter marchado imediatamente e dito a ele o que penso
dele, ao invés de fugir.
— Parecia que você queria queimar tudo até o chão — diz
Wes.
Isso não é piedade aos seus olhos, ou julgamento. Em vez
disso, é algo como... maravilha. Talvez admiração, até. Está tão
longe do que esperava, não sei como responder.
O ar no carro parece carregado agora, e quase acho que Wes
vai me beijar. Mas ele não quer. E isso me faz gostar dele ainda
mais.
No resto da viagem até Gorman, nossas mãos permanecem
entrelaçadas.
17
SCARLETT

Dessa vez, eu quero que Kinnear saiba que estou chegando.


Eu me visto para a ocasião, mas não muito — apenas um
batom um pouco mais ousado, saltos altos que fazem um som
de clique no chão de linóleo enquanto eu atravesso o corredor
em direção ao seu escritório.
Depois da minha conversa com Mina, decidi que era hora de
fazer algo que detesto: usar minhas artimanhas femininas para
me aproximar de um alvo. Recorri a isso com Callaghan
também; atraí-lo para a escada teria sido impossível de outra
forma, já que ele era muito maior do que eu. Com Kinnear, é
apenas um expediente. Por mais que eu odeie admitir, ele é um
homem inteligente, e eu preciso que ele seja estúpido, pensando
com algo além de seu cérebro.
Na terceira quarta-feira de cada mês, sua secretária sai para
arrumar o cabelo, deixando sua mesa vaga na antessala de seu
escritório por várias horas à tarde. Mas a porta de Kinnear
permanece aberta. Essa é uma de suas políticas como chefe de
departamento: Minha porta está sempre aberta. Sua porta está
sempre aberta e estou sempre observando.
A cabeça de Kinnear levanta quando eu me aproximo, mas
bato os nós dos dedos no batente da porta de qualquer maneira.
— Scarlett. — Ele está surpreso… E por que não deveria? Esta
é a primeira vez que paro em seu escritório por minha própria
vontade, pelo menos até onde ele sabe.
Eu sorrio o mais docemente que consigo.
— Posso entrar?
Ele faz um gesto para que eu sente na poltrona de couro em
frente a ele. O escritório de Kinnear é o único no prédio que
não parece uma cela de prisão glorificada. Suas estantes são de
madeira escura, e não de metal cinza, e ele tem uma parede de
galeria com fotos históricas da universidade, penduradas em
molduras com bordas douradas artisticamente
incompatíveis. A ampla janela panorâmica atrás de sua mesa dá
para Oak Grove, os alunos correndo pelos caminhos como
formigas.
— Como foi sua entrevista por telefone? — Eu pergunto.
Ele já parece desarmado com a falta de vinagre no meu
tom. Eu cruzo minhas pernas para que minha saia lápis suba
um pouco, e seu olhar vai direto para minha coxa como se
houvesse anzóis em suas pupilas. Ele percebeu há muito tempo
que eu era a última pessoa na terra que se dignaria a dormir com
ele, mas isso nunca o impediu de olhar.
— Ah, bem, bem. É sempre um prazer conversar com
Judith. Não importa quantos anos se passaram desde que nos
vimos, quando começamos a conversar, é como se o tempo não
tivesse passado!
Ele ri e eu me forço a sorrir em resposta.
— Na verdade — ele diz —, eu tive uma segunda ligação com
ela e um dos principais doadores do arquivo ontem. Eles
mencionaram que logo conversariam com você também.
— Semana que vem. — Antes de eu matar você.
— Bem, não fique nervosa — diz ele. — Tenho certeza de
que você se sairá bem. Mesmo se você não conseguir, é uma
ótima prática.
Estou me preparando para esta entrevista há meses,
compilando notas meticulosas sobre como pretendo passar
meu tempo no arquivo e quais recursos específicos utilizarei,
além de uma proposta capítulo por capítulo para o livro que
pretendo escrever com base em minhas descobertas. Vou me
sair muito mais do que bem.
Isso é mais difícil do que pensei que seria — e eu sabia que
seria difícil. Mas eu cheguei até aqui. É melhor ir até o fim.
— Na verdade, esperava que você pudesse me dar alguns
conselhos.
Kinnear se senta um pouco mais reto.
— Oh?
— Você é muito mais... experiente nesse tipo de coisa. — Eu
me inclino para frente e ele também. Agora estou imaginando
um gancho perfurando a carne de sua bochecha, puxando-o
para dentro. — E seu artigo sobre desempenho de gênero na
correspondência inicial de Lorde Vance com Viola foi
extremamente útil para mim enquanto eu preparava meus
materiais de inscrição.
— Obrigado — ele diz. — Não sabia que você tinha lido.
Eu me inclino ainda mais perto.
— Eu li todas as suas publicações.
Essa parte é verdade — eu tenho que conhecer meu inimigo,
e na academia isso significa estudar o que eles estudam. Não
tenho certeza do que é mais nauseante: o estilo pretensioso de
escrever de Kinnear, ou a maneira como ele descaradamente
regurgita minhas ideias e as de nossos colegas. Drew é muito
bom para questioná-lo, mas a última publicação de Kinnear
levantou, quase literalmente, uma lição da unidade de pesquisa
de Drew sobre o Movimento Estético. O homem é um sem
vergonha.
— A maneira como você justapôs as cartas dela com as do
marido — eu digo. — Você deve ter levado séculos para
descobrir todas as semelhanças na língua.
Acontece que eu sei que foi Jasper quem fez isso. Ele puxou
várias noites debruçadas sobre aqueles textos de volta quando
era o assistente de Kinnear, então Kinnear poderia cumprir seu
prazo — e, é claro, reivindicar todo o crédito.
— Demorou um pouco. Mas vale a pena, não vale? Para
contribuir com o discurso sobre um tesouro literário que de
outra forma poderia ser esquecido.
Kinnear está usando sua voz professoral agora, para melhor
explicar minha própria especialidade acadêmica para
mim. Mina estava certa; tudo o que ele quer é um fã-clube.
— A coleção anotada de correspondência de Caspar foi
inestimável para mim — ele continua. — Inclui várias cartas de
Lady Vance que outros deixam de fora. E os insights no
prefácio; bem, tenho certeza que você sabe.
Típico, ele escolhe chamá-la de “Lady Vance” —
substituindo seu nome por seu título de casamento. Sua
pesquisa fará o mesmo, fará com que as palavras de Viola, sua
vida, vire tudo sobre seu marido. Kinnear fala sobre Douglas
Vance como se ele fosse um santo literário em vez de um idiota
narcisista que deixou uma faixa de destruição emocional onde
quer que fosse e minou as aspirações artísticas de sua esposa em
todas as oportunidades. Eu suponho que não é de se admirar
que Kinnear seja um grande fã.
— Eu não li, infelizmente. — O livro a que ele se refere é um
dos muitos que não consegui obter por meio de empréstimo
entre bibliotecas. No arquivo da Women’s Academy, porém,
eles têm três cópias, incluindo uma com notas manuscritas do
estudioso que compilou a coleção.
— Mesmo? Ah, você deveria! Você dificilmente pode se
considerar um aficionada de Vance sem lê-lo; isso mudará toda
a sua perspectiva sobre o trabalho dela. Tenho uma cópia na
minha coleção pessoal.
Claro que ele tem, porra.
— Eu emprestaria para você — diz ele. — Mas não quero
perder isso de vista; é uma primeira edição, muito valiosa.
— Eu entendo.
Era exatamente onde eu esperava que essa conversa
chegasse. E eu nem mesmo tenho que fingir empolgação com a
ideia de finalmente conseguir ver a invejável biblioteca
doméstica de Kinnear. É a única coisa atraente nele.
— Talvez eu possa dar uma olhada nisso algum dia? — Eu
digo. — Sob sua supervisão, é claro.
Agora eu sorrio para ele, da maneira que sei que faz meus
olhos brilharem. Durante meus anos de pós-graduação menos
cautelosos em Chicago, usei esse visual para atrair homens de
bares e casas noturnas para becos, parques públicos escuros, ou
mesmo meu quarto no Hyde Park. Eu não matei todos eles,
mas poderia.
— Certamente — Kinnear diz. — Embora esta semana seja
um pouco ocupada para mim, estou me preparando para... Na
verdade, tenho uma ideia! Por que você não vem à minha festa
de boas-vindas no sábado?
Eu não posso parecer muito ansiosa. Tenho que ter certeza
de que ele pensa que tudo isso foi ideia dele.
— Eu não gostaria de incomodar.
— Não seja boba, eu adoraria receber você. Eu já teria lhe
enviado um convite, mas sei como você odeia festas.
Kinnear costumava me convidar para todos os tipos de
funções de departamento e jantares quando eu era uma nova
contratada, mas depois que recusei convites suficientes — e ele
percebeu que não iria me levar para a cama — ele parou. Sorte
para nós dois: muitos daqueles eventos insuportáveis e eu teria
perdido minha calma e o matado há muito tempo.
— Bem, obrigada, isso foi esclarecedor. — Eu aliso minha
saia enquanto me levanto. Os olhos de Kinnear seguem o
movimento, traçando a forma de meus quadris. — Mas não
quero ocupar sua tarde inteira.
Eu permaneço na porta e travo os olhos com ele, finalmente
deixando um pouco do ódio que sinto por ele se infiltrar no
meu olhar. Mas ele não vai ver. Eles nunca veem o assassinato
em meus olhos.
Eu saio correndo do escritório de Kinnear antes que eu
realmente perca meu controle e corro direto contra Jasper. Ele
está parado suspeitosamente perto da porta, como se estivesse
aqui ouvindo nossa conversa.
Ele pega meu braço para me firmar.
— Ei. Você está bonita hoje.
Eu o afasto, alisando minha manga, onde seu aperto a
enrugou.
— Obrigada.
Ele espia dentro do escritório de Kinnear, então olha para
mim.
— Confraternizando com o inimigo?
— Estávamos discutindo sobre a associação.
— Ah, sim? — Jasper diz, acompanhando o meu ritmo
enquanto vou para o meu escritório do outro lado do
corredor. — Sabe, tenho muitos amigos em Londres. Então, se
você quiser, talvez eu possa...
Eu viro minha cabeça apenas o suficiente para fulminá-lo
— Não.
Tenho tentado não pensar no que vi na outra noite — ele
com aquela garota, sua mão espalmada contra as costas dela —
mas não consigo tirar a imagem da minha mente.
Estamos na porta do meu escritório agora, e Jasper está
obviamente planejando me seguir para dentro. Eu paro na
soleira e me viro para encará-lo.
— Eu vi você — eu digo.
Os lábios de Jasper se curvaram em um sorriso.
— Eu também vi você.
Ele está gostando muito disso. Quase parece que ele estava
esperando que eu tocasse no assunto.
— Certamente você não está com ciúmes — diz ele. —
Porque eu poderia tirar minhas próprias conclusões sobre o
que você estava fazendo lá com nosso líder destemido. Ou na
outra noite, espreitando no escuro com sua ex-mulher.
Então ele me viu falando com Samina. Não o notei entrando
no bar com seu par (ou quem quer que fosse), então eles devem
ter estado lá o tempo todo que eu estava assistindo Kinnear.
— Que bom para você… — Jasper enfia uma mecha de
cabelo atrás da minha orelha, seus dedos demorando no meu
queixo. — Eu não sou do tipo ciumento.
Eu afasto sua mão, toda a raiva que reprimi durante meu
encontro com Kinnear ameaçando jorrar de mim como
lava. Jasper se eleva sobre mim, ocupando toda a porta.
— Vejo você na aula amanhã, Sr. Prior. — Meus dentes
mordem as palavras com força suficiente para quebrar
ossos. Fúria pisca nos olhos de Jasper também, quando fecho a
porta na cara dele. Certamente ele não achava que eram
preliminares.
Ele está ficando muito descarado. Terei que lidar com ele em
breve. Só espero que seja pelo caminho mais fácil do que o
difícil.
18
CARLY

Sete minutos depois das três.


Viro para o outro lado e puxo o edredom em volta das
orelhas, tentando bloquear a luz do relógio digital de
Allison. Eu continuo acordando, a cada hora. Às vezes com
mais frequência. Verificando se ela já voltou da festa.
É uma festa em casa para o fim de semana de Boas-vindas de
Gorman, o que parece ser uma desculpa gigantesca para ficar
bêbado e colocar fogo nas coisas. Ela me convidou para ir. Wes
me convidou também — mais de uma vez. Mas, desde
Pittsburgh, a ansiedade zumbiu ao meu redor como um
enxame de abelhas cada vez mais furioso. Quando chegou a
hora de me preparar para a festa, fugi para a biblioteca, sem
contar a Allison ou Wes.
Eu me viro novamente, fechando meus olhos com força até
que faíscas explodam atrás das minhas pálpebras. Ainda não
contei à minha mãe o que vi. Eu deveria ter feito isso
imediatamente, mas não consegui me obrigar a atender o
telefone. Também tenho evitado suas ligações, deixando que
parem no correio de voz e respondendo com mensagens vagas
e apressadas. O segredo parece estar me corroendo.
Estou apavorada com o que vai acontecer quando eu contar
a ela. Mas estou mais apavorada de que nada vá acontecer, de
que ela me ignore e prossiga normalmente.
A porta do quarto se abre com força, como se tivesse levado
um chute, a maçaneta batendo na parede e ricocheteando. Eu
me endireito, agarrando as cobertas.
Há um homem parado na porta.
Meus dedos se fecham em punhos. Ele está entrando no
quarto. Ele está vindo para…
Mas então meus olhos se ajustam e a silhueta encolhe, e vejo
que não é um intruso. É apenas Wes. Bem, não só ele — há mais
alguém com ele, caído ao seu lado.
Allison. Ele está sustentando o peso dela com o braço
enfiado sob seus ombros.
Eu pulo da cama, deixando os lençóis amontoados no chão.
— O que diabos é…
Wes acende a luz do teto. Agora que o quarto está iluminado,
me sinto exposta, envergonhada — meu pijama não é
particularmente revelador, mas não estou usando sutiã.
Ele nem mesmo está olhando para mim, no entanto. Ele está
com o braço apoiado no batente da porta e a cabeça de Allison
está apoiada em seu ombro.
Eu cruzo meus braços sobre meu peito.
— O que há de errado com ela?
— Tequila demais. Pelo menos acho que foi tequila. — Seus
olhos também estão um pouco turvos, mas ele está tonto, no
máximo. Allison parece quase inconsciente.
Eu nunca a vi assim. Quer dizer, eu nunca fui a uma festa
com ela antes, mas nas vezes que saímos com seus amigos de
teatro, Allison não bebeu mais do que um ou dois drinques,
mesmo quando outras pessoas estavam enchendo a cara.
— Por que você a deixou beber tanto? — Eu pergunto.
— Eu nem estava com ela. Eu estava jogando beer pong em
outra sala.
Wes começa a tentar arrastar Allison em direção à cama. Ela
geme um pouco e enterra a cabeça mais profundamente em sua
jaqueta.
— Ela estava com Bash. É a casa dele.
Ele finalmente consegue colocar Allison em sua cama. Ela cai
imediatamente, enterrando a cabeça no travesseiro. Ela está
usando um minivestido, com um moletom que eu vi Wes
vestindo na aula, o zíper fechado sobre a roupa. Sua saia está
enrolada o suficiente para mostrar o acabamento de renda preta
de sua calcinha.
Wes estende a mão para consertar a bainha de Allison, mas
eu o antecipo, empurrando-o para fora do caminho com meu
quadril para que eu possa puxar sua saia de volta no
lugar. Enquanto estou nisso, pego as pernas de Allison e as
movo para que ela se estique na cama.
— Eles estavam dançando, e então… Desceram uns shots, eu
acho. — Ele dá um passo para trás, passando os dedos pelos
cabelos. Está ainda mais bagunçado do que o normal e pegajoso
de suor. — Eu deveria ter prestado mais atenção, não a vejo
assim desde...
Antes que ele possa terminar esse pensamento, nossa
conselheira residente, Samantha, força a passagem pela porta.
19
SCARLETT

— Para de falar sobre homens brancos mortos. É uma festa!


Rafael tira o livro das mãos de Drew e o substitui por um
copo de cabernet. Drew franze os lábios, fingindo estar
irritado, mas como sempre seus olhos irradiam puro afeto
quando olha para o marido.
— Literalmente ninguém precisa de tanto Proust — Drew
resmunga sobre a borda de sua taça de vinho.
— Precisamos de mais álcool — diz Rafael, já se dirigindo ao
aparador que Kinnear usa como barra. — Scarlett, você quer
alguma coisa?
Eu balanço minha cabeça, sorrindo apesar de mim mesma. A
presença deles está tornando a festa de Boas-vindas de Kinnear
quase tolerável. Nós estávamos nos escondendo na sala de estar,
admirando as estantes personalizadas de estilo advogado de
Kinnear — e zombando de seus conteúdos pretensiosos.
Rafael se serve de uma nova taça de vinho e examina os restos
do banquete na mesa de jantar. Os outros convidados estão do
lado de fora, reunidos ao redor do fogo. A fogueira do baile de
boas-vindas no quintal de Kinnear é ainda mais elaborada do
que a oficial da universidade na noite anterior ao grande
jogo. O incêndio atinge quase a altura das árvores na borda de
sua propriedade, e uma efígie de um leão queima no centro,
amarrado a um poste como uma bruxa acusada.
Rafael volta carregando um minúsculo prato com uma pilha
alta de petiscos de trufas negras e queijos sofisticados. Ele o
oferece a Drew, que pega um pouco de Brie assado e o coloca
distraidamente na boca. Ele deve ter deixado Rafael escolher
sua roupa para esta noite: um suéter de cashmere do mesmo
marrom chocolate de seus olhos e uma calça jeans
escura. Ainda simples em comparação com a mistura de
padrões de nível de especialista de Rafael, mas uma grande
melhoria em relação ao seu uniforme de professor de jaquetas
de tweed e camisas de botão amarrotadas.
— Então, Scarlett — diz Rafael. — Onde está seu namorado
esta noite?
Drew lhe dá um chute suave no tornozelo.
— Hora e lugar, baby. Hora e lugar.
Eles são as únicas pessoas que eu contei sobre mim e
Jasper. Posso dizer que Drew não aprova totalmente, mas ele
tem sido discreto — mantendo o relacionamento e suas
opiniões sobre ele para si mesmo. Ele e Rafael têm uma
diferença de idade comparável entre eles, embora tenham se
conhecido em circunstâncias menos eticamente duvidosas:
Drew estava fazendo pós-doutorado em Columbia e Rafael
trabalhava em um restaurante filipino a poucos quarteirões do
campus.
Mesmo que Jasper tenha sido perfeitamente profissional
desde a nossa pequena briga, eu tinha algumas preocupações
que ele pudesse me causar problemas na festa esta noite. Mas
cheguei elegantemente atrasada e, no momento em que entrei,
Jasper já estava se despedindo. Ele odeia misturar-se quase
tanto quanto eu.
— Eu não te culpo, o menino é lindo. — Rafael dá um gole
no vinho. — Embora eu estivesse com um pouco de medo que
ele fosse me matar durante o sono.
Eu ri.
— É por isso que eu nunca o deixei passar a noite. Se vocês
me derem licença só um momento...
Por mais que eu goste de passar tempo com eles — e eles são
os únicos homens no mundo que eu diria isso — não é por isso
que estou aqui. Com um rápido olhar para trás para ter certeza
de que Drew e Rafael não estão me observando, eu deslizo pelo
corredor escuro em direção à suíte master.
Eu tenho uma ideia sólida do layout graças a minha vigilância
anterior, mas esta é minha única oportunidade de inspecionar
a casa de Kinnear por dentro antes de finalizar meu plano.
Sua casa é a única moderna do bairro, toda de vidro, concreto
e ângulos ásperos. É quase tão abrasiva e ostentosa quanto
Kinnear, se projetando como uma lâmina de faca serrilhada em
meio às cabanas da virada do século e artesãos cuidadosamente
mantidos — incluindo a casa de Drew e Rafael, uma rua
depois.
A cama king-size de Kinnear está cheia de casacos, mas o
quarto em si é relativamente simples: uma cabeceira
minimalista feita de ripas de madeira, uma mesa de cabeceira
segurando uma pilha de romances, uma cômoda moderna e
elegante de meados do século na parede oposta. Eu espio no
closet, então me enfio no banheiro principal para olhar os
diversos medicamentos e produtos de higiene pessoal que estão
no balcão.
De volta ao quarto, espio através das cortinas de linho de
ardósia para o quintal. O calor da fogueira é palpável até
mesmo através da vidraça. Kinnear está parado ao lado da pira,
as faíscas saindo das chamas fazendo os tons ruivos de seu
cabelo brilharem. Ele está vestido da cabeça aos pés com uma
parafernália carmesim dos Tubarões da Gorman, como se
estivesse tentando adicionar o Mascote Escolar ao seu
currículo.
O Dr. Stright está ao lado dele, vestindo um moletom da
Gorman que o faz parecer ainda mais com um estudante do
que normalmente, e eles estão cercados por jogadores de
futebol. Daqui, não posso saber o que eles estão dizendo, mas
tenho certeza que é uma variação de Aquele foi um ótimo jogo
que jogamos hoje, não foi? Kinnear e Stright sempre falam sobre
as vitórias da Gorman no futebol com um senso de
propriedade, como se eles fossem para o campo e demitissem o
quarterback sozinhos.
Stright gargalha e dá um tapinha nas costas do menino ao
lado dele. Devin Caldwell, com os arranhões nos braços que a
polícia rapidamente descartou. Só espero que a morte de Tyler
tenha assustado Devin e seus colegas de equipe em manter suas
mãos longe de garotas relutantes por um tempo. Sei que não vai
durar — se é que fez alguma diferença. Não posso matá-los
agora — não tão cedo depois de Tyler, ou com Kinnear
finalmente no topo da minha lista, e certamente não enquanto
Samina Pierce está examinando cada morte no campus. Mas
isso não significa que eles estão fora do gancho para sempre.
Meus dedos agarram a cortina. Eu me forço a soltá-la,
alisando o tecido.
A hora de Stright também chegará. A menos que a morte
repentina de seu mentor o assuste a uma moralidade recém-
descoberta. Improvável. Se homens assim pudessem aprender
o erro de seus caminhos, eu não teria que dar uma lição para
tantos deles.
Eu escorrego de volta para o corredor sombreado, indo em
direção ao brilho da sala de estar. Então, algo bloqueia a luz —
outra pessoa entrando no corredor. Caminhando na minha
direção.
A luz do teto acende e estou cara a cara com Mina.
— Ei! — ela diz. — O que você está fazendo aqui?
Não sei se estou mais surpresa que Kinnear a convidou ou
que ela realmente apareceu. Ela deve ter acabado de chegar. Ela
ainda está usando o casaco abotoado, o mesmo de tweed que
estava usando quando me encontrou do lado de fora do
bar. Sem cores da equipe Gorman à vista.
— Só estou procurando o banheiro. — A mentira sai sem
problemas; eu preparei com antecedência, junto com várias
outras explicações de backup no caso de ser pega me
esgueirando pelo espaço privado de Kinnear.
Ela gesticula com confiança para o corredor.
— Ah, é bem ali.
— Você viveu… — eu começo a perguntar. — Quero dizer,
quando você e Kinnear eram…
— Sim. — Mina olha com desgosto para a luminária
industrial pendurada acima de nós. — Ele comprou este lugar
logo depois que nos casamos. Não é horrível?
Mesmo sob esta luz forte, ela parece deslumbrante, seus
cachos castanhos-escuros brilhando, lábios manchados de
vermelho-cereja. Antes que eu possa me conter, estou
imaginando-a em minha própria casa bem iluminada, os pés
descalços enrolados debaixo dela no sofá de couro gasto, uma
xícara de chá nas mãos. Na minha cama, os cachos espalhados
sobre o travesseiro, a pele parecendo polida contra os lençóis
brancos lisos.
— Eu estava saindo. — Preciso de ar fresco, mesmo que
esteja pesado com a fumaça da fogueira. — Você fez….
Ela levanta uma sobrancelha.
— Achei que você estava procurando o banheiro.
— Ah, eu… — Merda. Não consigo manter meus
pensamentos, e minhas mentiras, diretamente ao redor dela. —
Estou bem por enquanto. O que eu preciso é de uma bebida.
Felizmente, Mina não aponta a contradição clara nessa
declaração; ela apenas me segue pela porta dos fundos para o
deck multinível de Kinnear. Meu casaco ainda está lá dentro,
empilhado na cama com os outros, mas com o fogo rugindo,
não parece uma noite de outubro. Alguém jogou alguns
pedaços novos de madeira, e as chamas aumentaram em direção
ao céu negro.
Mina balança a cabeça.
— Nunca vou entender que botar fogo na merda seja uma
forma de celebração.
Palavrões soam tão bonitos naquele sotaque refinado dela.
— Eles não têm férias baseadas na fogueira de onde você é?
Mina sorri.
— De fato. Fogos de artifício também estão
envolvidos. Parece que Londres está sitiada.
— Você sente falta? — Eu pergunto.
— Do que, do Dia de Guy Fawkes?
— Não, eu quis dizer...
— As vezes. Penso em voltar, depois de... — Ela fica em
silêncio, deixando-me preencher as lacunas. — Mas eu planejei
minha carreira em torno daquele idiota por tempo suficiente,
de jeito nenhum eu desistiria de uma posição de estabilidade
apenas para me afastar dele.
Ela tira duas garrafas de cerveja importada do refrigerador na
beira do deck e me entrega uma, depois torce a tampa dela e dá
um longo gole. Nós duas estamos olhando na direção de
Kinnear agora. Os jogadores de futebol mudaram, mas ele
ainda está encolhido perto de Stright. Eles são tão parecidos
que poderiam se passar por pai e filho.
Uma garota de saia curta se inclina sobre o refrigerador para
pescar uma lata de refrigerante na lama, e os dois homens nem
tentam disfarçar seus olhares de lobo para suas pernas. Quando
ela se endireita, vejo que é minha aluna Ashleigh Lawrence, o
cabelo dourado que ela normalmente trança nas costas
amarrado em um rabo de cavalo alto.
— Você teve a chance de olhar aquele arquivo que eu te
enviei? — Mina pergunta. — Sobre Richard Callaghan?
— Sim, eu li. — Não havia nada lá que eu já não soubesse,
incluindo o fato de que, antes de vir para Gorman, Callaghan
trabalhava em uma pista de gelo em Scranton e foi demitido
diante de reclamações semelhantes sobre suas perversões. —
Parece que a culpa pode ter sido demais para ele. O mesmo que
Tyler Elkin.
— Talvez — diz Mina. — Mas tem algo sobre isso que está
grudando na minha cabeça, sabe? Não faz sentido.
Meu corpo fica totalmente frio, apesar do calor das chamas.
— O que você quer dizer?
— Ainda não tenho certeza — diz Mina. — É apenas um
instinto, eu suponho. Há outro caso também, de alguns anos
atrás. Não estava nos dados originais de suicídio, na
verdade. Um estudante de graduação que…
— Boa noite, senhoras.
Nunca pensei que ficaria tão feliz em ouvir a voz presunçosa
de Kinnear.
Ele passa a mão pelo quintal como um nobre exibindo suas
terras ancestrais.
— Como estão aproveitando a festa?
— É um espetáculo e tanto — diz Mina. Ela acena em
direção ao leão em chamas. — Onde você conseguiu essa coisa?
— Stright me ajudou a configurá-lo. — Kinnear acena com
a cabeça em direção a ele.
Stright passou de cobiçar Ashleigh para conversar com
ela. Só consigo ouvir trechos da conversa deles — apenas os
nomes de vários poetas beat e a frase "mudar sua vida".
Kinnear inicia uma explicação prolixa sobre o artesão de
Pittsburgh que construiu o mascote de nossa equipe rival de
acordo com suas especificações exatas. Eu o desligo, em vez
disso, dedico minha energia mental para descobrir a qual
estudante de pós-graduação morto Mina poderia estar se
referindo. Talvez o pós-doutorado em história que teve um
ataque cardíaco na sala de livros raros depois que eu adulterei
seu Adderall? Embora houvesse também o estudante de teatro
cujo enforcamento encenei. Um tinha sido um estuprador
como Tyler; o outro abusou emocionalmente de sua namorada
até que ela mesma tentou o suicídio. Como Callaghan, os dois
entenderam exatamente o que estava para acontecer.
Stright ainda está submetendo a pobre Ashleigh Lawrence a
seu discurso de Kerouac. Ela nem está tentando dizer uma
palavra, apenas balançando a cabeça enquanto ele fala, o rabo
de cavalo balançando, um sorriso educado estampado nos
lábios. Seu olhar continua voando sobre o ombro de Stright em
direção às árvores sombreadas, como se ela preferisse fugir para
o desconhecido do que falar com ele.
Ele está claramente tomando algumas cervejas, balançando
um pouco sobre os pés, e ele usa isso como uma desculpa para
continuar avançando em seu espaço pessoal. O lado da garrafa
de cerveja dele roça em seu pulso, e ela se esquiva dele, puxando
as mangas para baixo. Ninguém mais parece notar o quão
desconfortável ela está — nem mesmo Mina, que está
apresentando sua própria atuação de interesse educado
enquanto Kinnear aponta os pontos mais delicados do
esqueleto de arame do leão.
Stright se inclina ainda mais perto, espalhando a mão em seu
ombro. Eu não posso mais ficar quieta.
— Dr. Stright.
Ele olha para mim e eu sorrio como uma lâmina de barbear
enterrada em uma maçã do amor.
— Onde está sua esposa esta noite?
20
CARLY

Samantha vê Allison desmaiada na cama e faz uma careta.


— Deixe-me adivinhar. Alguém se divertiu um pouco
demais esta noite.
— Ela parece realmente fora do ar — eu digo. — Talvez
devêssemos levá-la ao hospital, ou-
Samantha revira os olhos e empurra Wes e eu. Ela parece
mais irritada por nós perturbarmos seu sono de beleza do que
preocupada com Allison. Ao contrário de mim, ela não tem
vergonha por Wes vê-la de pijama.
— Ela só precisa dormir. — Samantha se inclina sobre
Allison e dá um tapa de leve na bochecha dela. — Não é
verdade, Hadley?
Allison se contorce um pouco, mas mantém os olhos
fechados. Samantha bate nela novamente, desta vez com mais
força.
Que diabos? Ela tem permissão para nos bater?
— Olhe para mim — Samantha ordena.
Allison abre os olhos, mas os aperta contra a luz. Sua pele
parece ligeiramente verde e há um brilho de suor em todo o seu
corpo. Com outro revirar de olhos exasperado, Samantha vai
até a mesa de Allison, despeja o conteúdo de sua lata de lixo na
outra que combina embaixo da minha mesa e traz a lata vazia
para perto da cama de Allison.
Bem a tempo de Allison se inclinar para o lado do colchão e
vomitar. Samantha suspira e prende o cabelo de Allison em um
rabo de cavalo com o punho, como se ela já tivesse feito isso
uma centena de vezes. Pelo que eu sei, ela fez.
Allison vomita novamente e Samantha puxa o cabelo com
mais força.
Wes pressiona os nós dos dedos nos dentes como se estivesse
tentando não vomitar.
— Ela está bem?
— Pergunte a ela de novo pela manhã — diz Samantha,
lançando-lhe um olhar feroz.
Allison deita-se no colchão, enxugando a boca com as costas
da mão. Eu olho para a lata de lixo respingada de vômito.
— Não deveríamos limpar isso, ou…
— Deixe que ela faça isso sozinha quando ficar sóbria — diz
Samantha. — Você pode querer dormir na sala comunal esta
noite, Schiller.
Eu balanço minha cabeça.
— De jeito nenhum, eu deveria ficar com ela. Ela pode
engasgar com seu próprio vômito, ou...
Samantha dá de ombros.
— Como quiser.
Wes chega mais perto de mim — embora ele tenha ficado
bem perto o tempo todo, parado bem por cima do meu
ombro.
— Eu posso ficar também. Você não deveria ter que...
— Escuta, eu sei que você não acha que vou deixar um aluno
passar a noite nesta residência só para mulheres. — Samantha
levanta as sobrancelhas para Wes. — Acha?
Ela é uma hipócrita do caralho. Seu próprio namorado
provavelmente está dormindo em sua cama de solteiro no final
do corredor agora.
— Beleza. — Wes se volta para mim. — Eu volto logo de
manhã, ok?
Eu mordo meu lábio.
— OK.
— Boa noite, Wesley. — Samantha está sorrindo, mas seu
tom diz saia daqui, porra alto e claro.
Wes sai, com mais um olhar culpado de volta para a forma
caída de Allison na cama. Samantha o segue, mas ela para na
porta. Eu acho que por um segundo ela vai me dar algum
adendo de uma conselheira sábia. Mas, em vez disso, ela diz:
— É melhor você não me acordar, a menos que ela esteja
morrendo.
Eu aceno, tentando evitar que a raiva fervendo sob minha
pele aparecesse no meu rosto. Este é o trabalho de Samantha —
ela deve cuidar de nós.
Eu deveria ter ido à festa. Isso não teria acontecido se eu
estivesse lá. Allison estaria saindo comigo, não com Bash. Eu
posso ver isso tão claro como se eu realmente tivesse estado
presente: ele despejando dose após dose em sua garganta,
dançando pressionado contra ela, colocando as mãos por toda
parte…
Eu não estava lá por Allison na festa, mas posso estar aqui
para ela agora.
Primeiro, limpo sua lata de lixo, deixando a minha em seu
lugar, caso ela tenha que vomitar novamente enquanto eu
estiver fora. Eu trago algumas toalhas úmidas do banheiro e
movo minha cadeira para perto da cama dela para que eu possa
cuidar dela. Não consigo dormir até ter certeza de que ela está
bem.
Allison vomita mais duas vezes. Eu fico ao lado dela,
colocando toalhas novas sobre sua testa e nuca, até que o
amanhecer espreite pela janela. Ela superou o pior de tudo,
dormiu de verdade, então vou lavar a lata de lixo
novamente. Eu me sinto nojenta, o cheiro de enjôo agarrando-
se à minha pele, mas estou tão exausta que tenho certeza de que
adormeceria em pé se tentasse tomar banho.
Vou voltar para a cama um pouco primeiro, depois me
esfrego quantas vezes forem necessárias para tirar o
cheiro. Antes de deitar, puxo as cobertas de Allison até o
queixo, verificando se ela ainda está respirando e tudo
mais. Estou prestes a desabar na minha cama quando ela se
mexe.
— Ei. — Seus olhos estão brilhantes e atordoados, mas estão
focados em mim. — Onde você vai?
Eu olho para minha cama amarrotada, então de volta para
ela.
— Eu só estava…
— Vem cá. — Allison desliza para trás para ficar mais perto
da parede, deixando um lugar grande o suficiente para mim.
Eu hesito. Ela ainda está bêbada.
Mas a maneira como ela está olhando para mim... faz minhas
pernas ficarem bambas. E de repente estou sentada na beira da
cama de Allison.
Ela levanta o edredom — me convidando para entrar.
Eu me estico ao lado dela, meu coração batendo tão forte que
tenho medo de que ele vibre na estrutura da cama. Mas Allison
não parece notar. Ela passa o braço pela minha cintura,
aconchegando-se a mim. Nossas pernas nuas se entrelaçam sob
as cobertas, e a batida do meu pulso se move mais baixo.
Estamos cara a cara agora, compartilhando o travesseiro.
— Obrigada por cuidar de mim — sussurra Allison, e
conforme seus lábios se movem, eles roçam os meus.
Não é bem um beijo; pode ter sido um acidente. Mesmo que
seu hálito esteja azedo de álcool e vômito, tudo o que posso
fazer é me impedir de puxá-la para um de verdade.
21
SCARLETT

O sorriso excessivamente amigável de Stright permanece no


lugar, mas posso ver a irritação rabiscada em seu rosto.
— O quê? — ele diz.
— Sua esposa — eu repito. — Ela não pôde vir?
— Ela, uh... — Stright coça a nuca. — Ela estava com dor de
cabeça.
Meu sorriso fica mais nítido.
— Eu aposto que estava.
Ashleigh Lawrence já está se afastando dele, seus lábios
rosados e brilhantes franzidos. Mina está pressionando os
lábios também, mas no caso dela é uma tentativa infrutífera de
esconder sua diversão com o desconforto de Stright.
Stright alcança o cotovelo de Ashleigh.
— Ei, espere um…
Mas ela já se foi, correndo em direção a um grupo de foliões
mais próximos da sua idade que estão brincando de ferraduras
na beira do gramado. Drew e Rafael também estão vagando
para fora, e Drew lança um olhar preocupado entre Stright e
eu.
Stright está ainda mais bêbado do que eu pensava, seus olhos
vazios e turvos — tentando reviver seus dias de glória na
faculdade de várias maneiras. Eu mantenho seu olhar vítreo,
sem piscar, até que ele desvia o olhar e esvazia o resto de sua
cerveja.
— Rafael e eu estávamos saindo — Drew diz a ele. — Por
que você não nos deixa levá-lo para casa?
Ele toca o braço de Stright, mas Stright dá de ombros,
tropeçando na direção que Ashleigh se dirigiu. Eu agarro sua
manga, com muito mais força do que Drew.
— Deixe-me ir — diz Stright, tentando se livrar do meu
aperto.
Eu cavo minhas unhas em torno de seu cotovelo.
— Você não quer fazer isso.
— Cuide da merda da sua vida.
Stright puxa o braço, perdendo o controle da cerveja no
processo. A garrafa cai contra as toras da fogueira, se
espatifando em cacos verdes brilhantes.
Mina lança um olhar para Kinnear, como se estivesse
esperando que ele intervenha; afinal, é a festa dele. Mas ele
parece alheio à tensão, tomando um gole de sua bebida como
se nada estivesse errado.
Stright se vira para mim, carrancudo. Ele está longe de ser tão
bonito sem aquele sorriso vencedor estampado em seu rosto.
— Vadia — ele murmura, baixo o suficiente para que
Kinnear possa fingir que não ouviu.
— Ei — Mina se intromete. — Já chega.
Ela enfia o braço em volta dos meus ombros e eu a deixo me
puxar com força contra o seu lado e me afastar dos
homens. Uma vez que estamos longe o suficiente para que eu
mal possa sentir o calor da fogueira, Mina para. Em vez de me
soltar, porém, ela me puxa ainda mais perto. Mesmo com a
fumaça no ar, posso sentir o cheiro de seu perfume. Flores, é
assim que ela cheira. Jasmin e algo mais doce.
— Você está bem? Sinto muito por aquele idiota. Bem, por
aqueles dois. — Ela lança uma carranca de volta na direção de
seu ex-marido.
Isso adiciona combustível ao fogo da minha raiva, ouvi-la se
desculpar por eles. Mina começa a esfregar círculos
reconfortantes nas minhas costas com a palma da mão, e eu
quero gritar. Stright está permitindo que Drew e Rafael o
levem embora agora, e está levando cada pedaço da minha força
de vontade para não correr atrás deles, pegar um daqueles cacos
de garrafa e colocar a ponta dentada na garganta de Stright.
— Você quer sair daqui? — Mina pergunta. — Vamos
buscar algo decente para beber?
Eu quero dizer sim. Eu realmente quero.
Mas eu não consigo. Não consigo me aproximar de
ninguém. Muito menos a mulher que está mais perto do que
ela sabe de descobrir quem eu realmente sou.
— Eu deveria… — eu me afasto. — Ir para casa. Cair na
cama.
— Ok, claro — diz Mina. — Vou levar você…
— Não. — Com a aspereza em meu tom, ela recua como se
eu tivesse dado um tapa nela. Tento de novo, tento deixar
minha voz mais suave, mas o limite ainda está lá. — Quero
dizer, obrigada... mas você não precisa. Não é longe.
— Tudo bem. Tenha uma boa noite, Scarlett. — Sua voz é
rígida e formal, assim como sua postura quando ela gira sobre
os calcanhares e se afasta; não de volta para a fogueira, mas ao
redor da casa, deixando a festa por completo.
Eu deveria ir para casa, como disse a ela que iria. Mas também
não posso fazer isso.
Meus preparativos estão completos. Eu tenho tudo que
preciso. Eu só preciso terminar de preparar a armadilha e deixar
Kinnear entrar imediatamente. Na próxima semana, ele estará
morto.
Espero até que a multidão ao redor do fogo diminua, até que
ele fique sozinho, vendo as chamas queimarem com uma das
mãos no bolso e a outra sufocando o gargalo de uma garrafa de
cerveja nova. A efígie do leão nada mais é do que cinzas, embora
a vara para a qual foi amarrada ainda se sobressaia do centro da
pira.
Quando Kinnear me vê chegando, ele sorri e acena para que
eu me junte a ele perto dos restos fumegantes.
— Para onde você foi? — ele pergunta.
— Ah, eu estava lá. — Gesticulo vagamente em direção à
parte mais escura do quintal. Há algumas pessoas em cadeiras
de Adirondack brancas, amontoadas para se aquecer, mas a
maioria dos outros convidados se retirou para a casa.
— Não é tão ruim, não é? — Kinnear diz. Ele está totalmente
embriagado agora; olhando para mim, seus olhos não
conseguem focar. — Socializar com as pessoas.
— Obrigado novamente por me convidar. — Eu sorrio,
tentando parecer agradável, amigável, o incidente com Stright
totalmente esquecido.
Ele toma outro gole de cerveja.
— Eu não sabia que você era tão amiga de Mina.
— Ah, nós somos… — Eu não tenho certeza do que somos,
mas não somos amigas. Especialmente agora que rejeitei sua
abertura mais uma vez. — Estou ajudando-a na investigação de
suicídios no campus.
Kinnear aponta a garrafa para mim.
— Certifique-se de adicionar isso ao seu arquivo de
mandato. Não é chamativo, mas eles gostam desse tipo de
serviço comunitário abnegado. Como está indo até agora?
— Parece que Mina tem tudo sob controle — eu digo. — Ela
é muito capaz.
— Sim, ela certamente é.
Ele nem mesmo tenta esconder o desprezo em sua voz. Eu
levanto minhas sobrancelhas para ele, levando-o a
continuar. Ele dá uma risada amarga e toma outro gole da
garrafa.
— Eu só quero dizer… ela está muito focada em sua
carreira. Ela fará o que for preciso para progredir.
E você não faria?
— Você deveria apenas… tomar cuidado, isso é tudo. — diz
ele. — Mina não se preocupa com relacionamentos, a menos
que ela possa tirar algo deles. Uma vez que alguém perde sua
utilidade...
Quão ousado da parte dele assumir que algum dia foi “útil”
para Mina. Ele está falando muito mais sobre si mesmo agora
do que sobre sua ex-mulher. Na verdade, seu aviso aumenta
meu respeito por ela.
— Ah, quase esqueci! — ele exclama. — Você queria ver
aquele livro.
Ele se vira em direção à casa. Eu agarro seu braço para detê-
lo.
— Há tantas pessoas aqui agora — eu digo. —Vai ser muito
perturbador.
— Vou pegá-lo da prateleira e podemos ir para algum lugar
tranquilo.
O único lugar tranquilo em toda a casa é seu
quarto. Conveniente.
— Isso não seria muito profissional, seria? — Eu digo. —
Alguém pode nos ver saindo juntos sozinhos.
— As pessoas estão nos vendo juntos agora. — Ele olha ao
redor para provar seu ponto, mas os poucos convidados
restantes no pátio estão todos pelo menos meio bêbados e
envolvidos em suas próprias conversas. Não prestando atenção
em nós.
Eu solto seu braço e me aproximo ainda mais.
— Isso é diferente, e você sabe disso.
Kinnear olha nos meus olhos, um sorriso de satisfação
puxando os cantos de seus lábios. Com as chamas morrendo
iluminando seu rosto, até eu tenho que admitir que o homem
é irritantemente bonito. Tenho certeza de que estou atraente
agora também — a luz do fogo contra meu cabelo acobreado,
minhas bochechas coradas com a mistura de calor e frio ao
redor do fogo.
— E se eu vier outra noite? — Eu ofereço.
— Ok. — ele diz. — Amanhã?
— Eu estou ocupada amanhã, eu sinto muito. E no próximo
fim de semana?
Isso não pode parecer muito calculado; ele tem que
pensar que está me seduzindo. Eu finjo pensar por um
momento, então faço meu rosto se iluminar como se eu tivesse
uma ideia brilhante.
— O que você vai fazer no Halloween? — Eu pergunto.
— Não sei — diz ele. — Provavelmente me esconder lá
dentro com todas as cortinas fechadas para evitar os pedidos de
gostosuras ou travessuras.
Isso é exatamente o que eu esperava que ele dissesse. Eu tinha
planos de contingência para cobrir as janelas, mas será muito
mais fácil se ele mesmo cuidar de tudo antes de eu chegar.
Eu mantenho seu olhar por mais alguns segundos, dando-lhe
tempo para imaginar: como ficarei sem roupa, espalhada em
sua cama. O fogo diminuiu para quase nada agora, mas ainda
há faíscas em seus olhos.
— Perfeito — eu digo. — Apenas me diga quando vir.
— Que tal às nove? A menos que seja tarde demais.
— Não é tão tarde. Eu te vejo então.
Eu toco seu braço novamente — apenas por um segundo
desta vez, cravando minhas unhas apenas o suficiente para ele
sentir através da trama grossa de seu suéter Gorman
Sharks. Enquanto me afasto, posso senti-lo me observando,
seguindo o balanço calculado de meus quadris.
Eu conto alguns passos antes de voltar para ele.
— Mais uma coisa.
Kinnear sorri.
— Qualquer coisa.
Eu volto para o lado dele para poder sussurrar em seu
ouvido.
— Prometa que não vai contar a ninguém. Eu não gostaria
de começar nenhum boato, ou…
— Claro. — Kinnear aperta meu braço, como eu fiz com o
dele. Da mesma forma que ele me tocou inúmeras vezes, após
reuniões de equipe, no corredor, quando o encontrei no
café. Como se ele estivesse me acalmando e me colocando no
meu lugar ao mesmo tempo. — Será nosso segredo.
Eu não acredito nele. Se ele realmente conseguisse dormir
comigo, ele se gabaria para Stright imediatamente, e todos os
outros no departamento de inglês ficariam sabendo em 48
horas.
Ainda bem que ele estará morto antes de ter a chance de falar
algo.
22
CARLY

— Eu nunca fiz isso antes.


— É fácil — diz Allison. — Comece pelo topo, espalhe tudo.
Quando ela me pediu para ajudá-la a pintar o cabelo para o
Halloween, pareceu fácil. Mas agora que temos sacos de lixo
espalhados por cada superfície manchada no banheiro branco,
e Allison está sentada na minha frente usando uma blusa fina
que me distrai, estou pensando duas vezes.
— E se eu estragar tudo?
Ela se vira para sorrir para mim. A bolsa estendida sobre a
cadeira da escrivaninha que arrastamos até aqui se enruga atrás
de suas omoplatas.
— Então, rasparei minha cabeça e me vestirei de Dr. Evil para
o Halloween.
Isso não deixa exatamente minha mente à vontade.
Allison ri.
— Vai ficar tudo bem. Só não coloque nos meus olhos.
Começo a misturar a tinta, verificando as instruções da
embalagem várias vezes para ter certeza de que estou fazendo
certo. Allison tem seu laptop apoiado na pia, algum álbum do
elenco da Broadway tocando nos alto-falantes.
Tudo parece ter voltado ao normal entre nós. No domingo
passado, acordei sozinha em sua cama, o quarto ainda fedendo
a azedo. Quando Allison entrou alguns minutos depois,
carregando uma sacola de papel e duas xícaras gigantes de café,
ela não parecia nem um pouco com ressaca; ela estava
praticamente animada. Mas ela manteve seus óculos escuros —
lentes grandes e retrôs com bolinhas nas armações.
— Minha cabeça está me matando! — ela anunciou, depois
que eu perguntei como ela estava se sentindo. — Wes está
vindo para me dizer o que diabos eu fiz ontem à noite.
Então ela riu, brilhante e arejada como se toda aquela
situação fosse uma brincadeira de programa de comédia. Ela
claramente não se lembrava de me convidar para a cama dela,
ou de quão perto chegamos de nos beijar. Portanto, também
não vou tocar no assunto, embora seja tudo em que consigo
pensar. Uma distração bem-vinda de me preocupar com meu
pai e sua amante. Ainda não falei com minha mãe. Este é o
tempo mais longo que passamos sem nos falar.
Respiro fundo e aplico a tinta na primeira mecha de cabelo
de Allison. Parece muito escuro, quase marinho, mas a caixa
mostra um azul vibrante como da atriz em Brilho Eterno de
Uma Mente Sem Lembranças.
— Então… — Allison vira a cabeça novamente. Minha mão
escorrega, e eu mancho um pouco de azul em sua têmpora.
— Fica parada!
— Desculpa. — Ela se acomoda na posição. — Você
definitivamente vai para a festa, certo?
— Sim, eu disse que ia. — Eu continuo trabalhando a tinta
em todo o comprimento de seu cabelo, tão concentrada como
se estivesse desarmando uma bomba. — Por quê?
— Wes estava me perguntando. Ele fala sobre você o tempo
todo, você sabe.
Eu enrijeço. Eu sei que eles saem às vezes sem mim. Mas
agora estou imaginando ela rindo com ele sobre o nosso quase
beijo, fazendo uma piada gigante com a coisa toda. Allison com
a mão no ombro de Wes para que ela pudesse recuperar o
fôlego, ofegante, “Dá para acreditar? Como se eu quisesse beijar
alguém como ela.”
— Ele é um cara realmente ótimo. — diz ela.
— Sim, hum, ele parece... legal. —Legal para dizer o
mínimo. Wes é como um cavalheiro antiquado de um romance
de Jane Austen.
— Fomos ao baile de formatura juntos, você sabia? — diz
ela. — Meu último ano. Wes nem deveria ser meu par; ele já
estava na faculdade. Eu estava saindo com esse cara, Justin, mas
ele me largou uma semana antes do baile, então Wes dirigiu
para casa no fim de semana para me levar.
Não namorei no colégio, nem fui a nenhum baile da escola
— nem mesmo com um grupo de amigas, todas dançando em
círculo de costas para os meninos. Fiquei em casa e li Crime e
Castigo no meu quarto e tentei não me permitir imaginar como
seria balançar contra alguém enquanto uma música lenta
tocava.
— Por que o cara terminou com você? — Eu pergunto.
— Eu disse a ele que era bi.
Quase deixo cair o frasco de tinta. Portanto, não tenho
imaginado coisas. Allison gosta de garotas, o que significa que
ainda há uma chance de ela...
— Wes já sabia. — ela continua. — Ele foi a primeira pessoa
para quem eu contei. Mas então Justin... ele disse a todos. — Ela
ri, mas a dor é evidente em sua voz. — Você pode imaginar o
quão bom isso foi em nossa cidade de merda.
Allison pega uma das mechas de cabelo que eu já terminei e
segura a ponta contra a luz, ficando azul em todas as pontas dos
dedos.
— Wes é o único que não me deu merda nenhuma por
isso. Bem, ele e sua mãe. Você sabe que eu até morei com eles
por alguns meses?
Eu neguei com a minha cabeça.
— Sim, meus pais e eu tínhamos algumas... diferenças de
opinião. Meu pai é um pastor metodista, então...
Estou furiosa com meu pai e ficaria perfeitamente feliz de
nunca mais falar com ele, mas pelo menos ele não é pastor. Eu
nem consigo imaginar.
Ficamos em silêncio por alguns segundos. O álbum do
elenco acabou, então o único som no banheiro é a nossa
respiração. De repente eu me torno muito ciente de que estou
passando minhas mãos pelo cabelo de Allison por dez minutos
seguidos.
Não pretendo dizer isso, apenas transborda.
— Eu também sou bi. — É a primeira vez que me chamo
assim. A primeira vez que rotulei minha sexualidade em voz
alta.
— Não me entenda mal… — Allison se vira de novo. Meus
dedos ainda estavam enterrados em seu cabelo, mas agora eu o
solto e os fios úmidos batem contra as costas da cadeira coberta
de plástico. — Mas eu já sabia.
Ela me olha nos olhos, um sorrisinho malicioso curvando
seus lábios. Meu coração está batendo forte. Parte de mim se
sente tão aliviada por finalmente contar a verdade a alguém,
mas outra parte deseja poder arrancar esse segredo do ar entre
nós e enfiá-lo de volta na minha garganta.
— S-sério?
— Todas as garotas mais fofas são bi, você não recebeu o
memorando5?
Ela pisca para mim e acho que todo o meu corpo está
corando. Como se meus dedos do pé fossem provavelmente de
um vermelho brilhante. Allison joga a cabeça para trás e ri — e
antes que eu perceba, estou rindo junto com ela, meus ombros
tremendo silenciosamente no início, depois dando lugar a risos
reais.
Logo meus olhos estão lacrimejando, mas não posso enxugá-
los porque ainda estou com as luvas cobertas de tinta, então

5
A expressão “get the memo” utilizada pela personagem é normalmente usada
para apontar para a surpreendente falta de consciência de alguém; é ouvir ou
tomar conhecimento de algo geralmente conhecido.
Allison faz isso por mim. A sensação das pontas dos dedos dela
na minha bochecha me tira do sério.
Eu a cutuco para que ela se vire. Para parar de me olhar
assim.
— Vamos, eu tenho que terminar isso. Você não quer
metade de uma cabeça azul, quer?
— Quer dizer, acho que eu arrasaria com isso.
Ela provavelmente arrasaria. Allison retoma sua posição na
cadeira, e eu pego o resto de seu cabelo, certificando-me de
cobrir qualquer loiro remanescente com gosma azul. Há
alguma nova energia vibrando entre nós, como faíscas
disparando pelos meus dedos cada vez que a toco. Ou talvez
estivesse lá o tempo todo, e só agora estou me permitindo sentir
isso.
— A propósito, sinto muito — diz Allison.
— Pelo quê? — Eu pergunto, embora possa pensar em várias
coisas.
— Por tudo. — Ela suspira e abaixa os ombros salpicados de
azul. — Ficar tão bêbada no fim de semana passado e dispensar
vocês quando deveríamos ir para Pittsburgh.
— Onde você estava, afinal?
— Na casa de Bash. Ele hospeda este jogo de pôquer semanal.
— Eu imaginei isso, mas ainda dói ouvi-la dizer isso.
— Então vocês estão...
Allison zomba.
— Não mesmo. Eu estou balançando minha bunda na cara
dele todas as noites, e ele mal sabe que eu existo.
Acho isso difícil de acreditar. Allison é muito difícil de
ignorar.
— Eu vou fazer ele me notar, no entanto. — ela diz. — Eu
tenho um plano: na festa de Halloween, eu vou… ai!
Eu levanto minhas mãos de sua cabeça. Eu estava aplicando
a última gota de tinta em seu couro cabeludo e devo ter puxado
muito forte em suas raízes.
— Desculpa. Eu... acabei.
Enquanto tiro minhas luvas, Allison vai se olhar no espelho,
virando-se para um lado e para outro para examinar meu
trabalho. A cor está começando a clarear à medida que se
desenvolve, tornando-se tão vibrante quanto a de
Clementine. Os olhos azuis de Allison saltam e sua pele pálida
brilha como o luar.
Ela inclina o queixo para cima e lambe os lábios, e eu tenho
um flash de nós duas na cama, sua boca roçando levemente a
minha. E se não foi um acidente?
— “Eu sou uma vadia vingativa” — Allison cita, sacudindo
o cabelo azul sobre os ombros.
Eu passo atrás dela e encontro seus olhos no espelho.
— “Verdade seja dita.”
23
SCARLETT

Amanhã é a noite.
Então esta noite eu me preparo: escolhendo a roupa perfeita,
depilando minhas pernas, modelando minhas unhas. Todas as
coisas que a maioria das mulheres faz para se preparar para um
encontro. Mas elas não sabem: matar um homem é muito mais
satisfatório do que transar com um homem.
Estou no banheiro escovando meu cabelo quando ouço um
barulho vindo do corredor. Parece o ranger de tábuas do
assoalho, mas, pelo que sei, estou sozinha em casa.
Com a escova de cabelo cerrada em meu punho, eu me
arrasto pelo corredor para investigar. O som parece vir do meu
escritório. A porta está entreaberta, como eu a deixei, e as luzes
lá dentro estão apagadas.
Eu me preparo para um corpo correndo para mim. Eu
poderia esmagar seu crânio. Eu poderia empurrá-lo escada
abaixo e quebrar sua espinha.
Eu empurro a porta mais aberta. Mais luz se derrama do
corredor — iluminando Jasper, de pé atrás da minha
mesa. Devo ter perdido o som dele abrindo a porta da frente,
subindo as escadas. Muitas vezes fico distraída assim, logo antes
de uma morte. Ocupada demais repassando todos os detalhes
do meu plano para perceber o que está acontecendo ao meu
redor.
Ele ergue os olhos quando entro, mas não parece nem um
pouco culpado.
— Aí está você.
Estou usando meu robe de cetim, sem nada por baixo. Eu me
sinto exposta de repente, embora Jasper tenha me visto
vestindo muito menos do que isso.
— O que você está fazendo? — Cruzo os braços sobre o
peito, ainda segurando a escova.
Ele levanta uma pasta vermelha.
— Leitura brilhante.
É o arquivo do caso de Richard Callaghan. O outro, sobre o
aluno de pós-graduação, fica ao lado. Eu tinha adivinhado qual
morte chamou a atenção de Mina: foi o pós-doutorado em
história do viciado em Adderall. O estuprador. Ao contrário de
Tyler Elkin, ele agia sozinho e a mulher era sua namorada. Ela
ficou com ele por meses depois, então, é claro, quando ela
finalmente reuniu coragem para prosseguir com as acusações
criminais contra ele, ninguém acreditou nela. Exceto eu.
Pego a pasta da mão de Jasper e coloco de volta na mesa.
— Não me lembro de ter convidado você esta noite.
Jasper corre a ponta do dedo sobre a costura do meu robe,
bem ao longo da minha espinha.
— Você quer que eu vá embora?
Eu não quero. Eu me odeio por isso, mas não quero que ele
vá.
Eu abaixei a escova também, virando-me para sentar contra
a mesa.
— Estou ocupada.
— Ah, é? — Ele se aproxima ainda mais. Ele estaria entre
minhas pernas se eu as abrisse para ele, mas eu não o faço. —
Fazendo o quê?
— Eu ia pintar meu cabelo.
Jasper me estuda na penumbra, escovando alguns fios de
volta sobre meus ombros. O vermelho ainda é vibrante, minha
cor natural aparecendo um pouco na raiz, mas quero estar no
meu melhor para amanhã. Quanto mais me parecer um sonho
molhado de Kinnear, mais satisfatório será me transformar em
seu pior pesadelo.
— Eu poderia ajudar — diz Jasper.
Eu zombo e o empurro, embora não possa me forçar a afastá-
lo completamente.
— Estou falando sério! Eu costumava descolorir o cabelo da
minha ex para ela.
Esta é a primeira vez que ele menciona um relacionamento
anterior comigo. Eu não sei nada sobre a vida de Jasper; é
melhor assim. Ele costumava me perguntar sobre meu passado
— onde eu cresci, antigos namorados, antigas namoradas —
mas depois que eu me recusei a responder a ele várias vezes, ele
desistiu.
Jasper torce um cacho em torno de seu polegar e dá um
puxão.
— Sou um homem de muitos talentos.
— Se você insiste. — Tenho uma caixa extra de tinta; se ele
conseguir estragar tudo, ainda terei tempo para consertar antes
de amanhã.
Ele me segue até o banheiro e fica de camiseta, dobrando
cuidadosamente a camisa oxford antes de colocá-la de lado.
Depois de colocar uma toalha sobre meus ombros, ele
começa a espalhar a tinta pelo meu cabelo. Eu o observo no
espelho: o olhar de intensa concentração em seu rosto, a forma
como os músculos de seu braço flexionam. Isso pode ser o mais
gentil que ele já foi comigo. Eu deixo meus olhos se fecharem,
concentrando-me na sensação de seus dedos no meu couro
cabeludo, os arrepios de prazer que se espalharam pelas minhas
costas.
— Então você está trabalhando com a força-tarefa agora?
— ele pergunta.
Meus olhos se abrem, os ombros enrijecendo. As mãos de
Jasper sacodem um pouco, e um jato de líquido vermelho
pousa no tecido branco que cobre seu torso.
— Aquele cara, o zelador. — Jasper se agacha para espalhar a
cor na minha nuca. — Ele era um voyeur ou algo assim, certo?
— Foi o que a polícia disse — eu digo a Jasper.
Ele balança a cabeça enquanto drena o resto do frasco de
tinta nas pontas do meu cabelo.
— Parece um desperdício. Todo esse tempo gasto olhando
para caras como ele e Elkin. Como se alguém realmente desse a
mínima por estarem mortos.
Ele coloca o tubo vazio na pia e massageia a tintura mais
profundamente em minhas raízes. Existem várias listras
vermelhas em sua camisa agora, e algumas manchas
pontilhando sua bochecha também. Suas mãos são tão fortes
que parece que ele poderia esmagar meu crânio. Eu me inclino
em seu toque, e ele pressiona com mais força.
Às vezes, desejo que Jasper seja como eu, que eu pudesse
compartilhar minha verdadeira natureza com ele. Tento não
pensar nisso, mas às vezes a fantasia ainda se insinua: como seria
mais fácil matar com a ajuda dele, suas mãos poderosas
segurando os homens enquanto eu acabo com eles. Sangue
espirrando na pele de Jasper como a tinta agora.
Mas eu não consigo. Posso gostar de transar com ele, mas não
posso confiar em ninguém a verdade sobre o que sou, não se
quiser sobreviver. Tenho muitos outros homens para matar.
Ficamos sentados em silêncio por um tempo, esperando que
a tinta se desenvolva. Meu robe mudou um pouco, expondo
meu decote, mas não me preocupo em me cobrir
novamente. Jasper continua me olhando no espelho, até que eu
finalmente me viro para encará-lo.
— Isso vai manchar. — Eu estendo a mão e ele se agacha para
me deixar esfregar as manchas coloridas em sua bochecha com
meu polegar. A cor só se espalha ainda mais.
Jasper coloca sua mão contra a minha, pressionando minha
palma em sua bochecha. O vermelho fica tão bonito contra sua
pele pálida; isso faz seus olhos brilharem mais. Mais
famintos. Ele beija a palma da minha mão e posso sentir seus
dentes em seus lábios.
Eu tiro sua camisa manchada, em seguida, deixo minha
toalha e roupão caírem no chão ao lado dele. Sem uma palavra,
Jasper liga o registro do chuveiro para mim, deixando a água em
seu nível mais quente. Eu entro na banheira com os pés para
começar a enxaguar a tintura, e segundos depois ele está lá
comigo, nu, suas mãos no meu cabelo novamente, o vermelho
escorrendo por seus dedos e girando em torno de nossos pés.
Ele inclina meu rosto e me beija profunda e
devoradoramente, suas mãos cavando em minha
mandíbula. Nossos corpos pressionados juntos, escorregadios
e quentes, e a tinta está correndo em meus olhos agora,
correndo em nossos lábios, está queimando, e eu posso sentir o
gosto, a mordida áspera dos produtos químicos se misturando
com o gosto limpo de hortelã na língua de Jasper.
Eu deveria parar. É demais, ele está perto demais, não consigo
respirar. Mas isso é o que posso me permitir. Não posso ter o
que realmente quero, mas posso ter isso.
Então eu envolvo minha perna em volta de Jasper para puxá-
lo ainda mais perto, e eu o deixo pressionar minhas costas
contra os azulejos, segurando a curva da minha cintura
enquanto ele empurra em mim. Nós transamos até que a água
esfrie, e o tempo todo eu fico imaginando que o vermelho
escorrendo sobre nós é sangue.
24
CARLY

— Venha, vista-se. Wes estará aqui a qualquer minuto.


Allison passa por mim, jogando seu cabelo azul para trás para
que caia no capuz de seu moletom laranja largo. A cor já parece
desbotada, mas isso deixa seu traje ainda mais autêntico. Ela até
tem polainas listradas de azul como a que Clementine usa no
filme.
— Estou vestida — digo.
Allison me dá uma olhada duvidosa. Ok, admito que minha
roupa não é tão diferente do que eu costumo vestir: um suéter
preto, jeans preto, meus Doc Martens. Mas coloquei muito
mais delineador do que o normal, além de alguns brincos que
comprei na seção de Halloween do Walmart.
— É Halloween — diz Allison.
— Meus brincos são de aranhas. — Eu coloco meu cabelo
para trás e inclino minha cabeça para que a prata barata capture
a luz.
Allison não se deixa influenciar.
— Isso não é uma fantasia. Como você foi no ano passado?
— Eu não me vesti no ano passado. — Minha mãe e eu
ficamos em casa, com a luz da varanda apagada. Meu pai teve
que trabalhar até tarde e não queria que abríssemos a porta para
estranhos sem ele lá.
— Mais uma razão para fazer isso este ano! — Ela agarra meu
braço, me levando em direção ao armário. — Vou encontrar
algo para você vestir.
— Tudo bem, você não…
Mas Allison já está tirando as coisas dos cabides e jogando na
minha cama. A maioria das roupas que ela está escolhendo
parecem muito pequenas, tipo, pequenas até mesmo para ela, o
que significa que elas vão ser obscenas em mim.
Já estou arrependida de ter ido a esta festa, e ainda nem
chegamos lá. Eu só concordei com isso em primeiro lugar
porque quero ficar de olho em Allison.
Ela se afasta do armário e pega os itens espalhados na
cama. Algumas peças de roupa escorrem para o chão e ela as
deixa onde caem.
— Aqui. — Ela estende um punhado de tecido preto
brilhante para mim. — Experimente isso.
Eu balanço minha cabeça.
— Eu realmente prefiro…
— Apenas experimente. Você pode mudar de volta se odiar.
Eu solto um suspiro.
— Tudo bem.
Allison observa enquanto eu tiro meu suéter, tiro minhas
botas, desabotoou meu jeans. Desdobro as roupas que ela me
deu: meia-calça arrastão com um rasgo no joelho e shorts de
cetim preto que são pouco mais que cuecas.
Enquanto puxo o short por cima da meia arrastão, fico
dolorosamente ciente de como o tecido corta a maciez do meu
estômago. O último item é uma espécie de espartilho, com
ossatura subindo pelas laterais. Eu começo a tentar enrolá-lo
em volta do meu torso, alcançando os laços nas costas.
— Ah, você não precisa de um sutiã com isso. — Allison abre
meu sutiã com um movimento rápido.
A sensação das pontas dos dedos dela atinge minha espinha
como um choque estático, e eu congelo, segurando o espartilho
contra meu peito para manter as xícaras cor de carne no lugar.
— Vamos, vou te ajudar com os laços.
Meu coração está batendo forte e Allison está olhando para
mim com expectativa, como se isso não fosse grande coisa e ela
não tivesse ideia de por que estou aqui congelada assim. Eu
forço meus braços a se moverem o suficiente para deslizar as
alças do sutiã e deixá-lo cair no chão.
Eu pressiono o espartilho de volta sobre meu peito o mais
rápido que posso, mas tenho certeza de que Allison viu
tudo. Ela se aproxima atrás de mim e começa a tecer os laços
nos dois lados do espartilho, prendendo-o. A desossa parece
manter meus seios pesados no lugar, pelo menos enquanto
estou parada assim. Não tenho certeza do que acontecerá se eu
tentar andar ou sentar — ou, Deus me livre, dançar.
Acho que ela acabou, mas então ela dá um grande puxão nos
cadarços, quase me puxando de volta para ela. Meu decote se
espalha sobre o top tomara que caia e me sinto ridícula. Eu me
sinto nua. Não posso sair em público assim; já é ruim o
suficiente que Allison esteja vendo isso.
Ela amarra os laços e dá um passo para trás para admirar seu
trabalho. Certamente, uma vez que ela tirar a foto completa, ela
vai perceber como eu estou horrível e me deixará mudar de
volta para minhas roupas normais.
Seus olhos se arregalam.
— Uau.
Eu puxo desconfortavelmente o espartilho, tentando cobri-
lo mais do meu peito, mas ele apenas faz o golpe desossar na
carne debaixo dos meus braços.
— O quê?
— Você está gostosa — ela diz.
Eu coro.
— Não, eu não... quero dizer, você não...
— Veja por si mesma. — Allison me conduz até o espelho
montado acima da cômoda. Já estou me encolhendo de
ansiedade, antes mesmo de erguer os olhos para olhar no vidro.
Mas assim que vejo meu reflexo, paro de respirar.
Eu não estou nem um pouco horrível. O espartilho puxa
minha cintura estreita, enfatizando meus seios e quadris,
transformando meu corpo em uma ampulheta perfeita. Meu
olhar traça cada curva — todas as partes de mim mesma que eu
geralmente encubro, me curvo para esconder. Eu nunca me vi
assim antes.
— Viu, eu te disse. — Allison se inclina para sussurrar em
meu ouvido. — Todas as mais fofas garotas são bi.
Eu coro de novo, a cor se espalhando pela extensão pálida da
pele acima do espartilho. Mas agora tudo que posso ver no
espelho é a mão de Allison descansando na minha cintura, bem
onde o espartilho mais aperta, a boca de Allison tão perto da
minha orelha que seus lábios quase a tocam.
— Ei, senhoras, vocês estão prontas para…
Afastamo-nos do espelho para ver Wes entrando na sala. Ele
para quando nos vê. Não: quando ele me vê. Seus olhos quase
saltam das órbitas.
Allison tira a mão da minha cintura.
— Jesus, você não bate? Nós poderíamos estar nuas.
— Desculpa. — Wes estremece um pouco com a aspereza em
sua voz. Eu me pergunto se ele está imaginando nós duas nuas
agora, se a imagem em sua cabeça se parece com a minha. —
Você está pronta para ir?
Ele está falando com Allison, mas seus olhos ainda estão em
mim. Meus ombros caem em sua postura normal, mas não há
como me esconder nesta roupa.
Eu não tenho ideia de qual é a fantasia de Wes. Ele trocou
seus óculos normais por um par de óculos falsos com armação
preta grossa, e o resto de sua fantasia é apenas um casaco de lã
vermelho sobre uma camisa xadrez e gravata.
— Sim, estamos prontas. — Allison se volta para o espelho
por um segundo e afofa o cabelo, o azul caindo em cascata
sobre os ombros. Ela lança um olhar provocador para Wes. —
Apenas certifique-se de limpar a poça de baba antes de irmos.
Agora é Wes que está corando. Ele olha para o chão, mas
apenas por um segundo antes de seus olhos me encontrarem
novamente.
Minha jaqueta cobre meu peito, mas minhas pernas ainda
parecem expostas no short minúsculo e nas meias arrastão
rasgadas. Eu escorrego de volta para meus Docs, meio que
esperando que Allison enfie alguns saltos altos ou algo em mim
em vez disso, mas ela me deixa calçar as botas sem fazer
comentários.
Estamos indo para a porta quando Allison parar.
— Espera! Mais uma coisa.
Ela volta para a cômoda e pega um batom, depois pega meu
queixo em sua mão e começa a passar a cor em meus
lábios. Estou chocada demais para impedi-la.
— Abra um pouco a boca — diz ela.
Eu deixei meus lábios se separarem ligeiramente. Minha
garganta está seca e meu coração está martelando
novamente. Não sei do que estou mais ciente: os dedos de
Allison no meu rosto, ou o calor da respiração de Allison — ou
o olhar fixo de Wes em nós duas.
Allison tira uma pequena mancha de cor com a unha do
polegar, volta a colocar o batom e o joga na direção da cama.
— Perfeito! Vamos lá.
Ela empurra Wes e eu para fora da porta, e eu não tenho a
chance de espiar meu reflexo novamente até chegarmos ao
carro de Wes. Estou surpresa com o que vejo olhando de volta
das janelas escuras e salpicadas de sujeira. Meus lábios estão
vermelhos como uma maçã madura, e isso muda todo o meu
rosto. Pareço uma pessoa completamente diferente — alguém
ousada, sexy, confiante.
Não tenho certeza de quem devo ser, mas definitivamente
não me pareço comigo esta noite. E não é esse o objetivo do
Halloween?
25
SCARLETT

Halloween. A noite pela qual estou esperando.


A noite em que Kinnear morre.
Estou tão ansiosa para chegar à casa dele que estou
praticamente vibrando, mas me forço a repassar todo o plano
novamente. Eu estive antecipando essa morte por tanto tempo,
e eu quero que seja perfeito.
Enquanto estou conectando meu celular ao carregador para
ter certeza de que ficará ligado a noite toda — em casa, sentada
no balcão da cozinha, então parece que estive aqui o tempo
todo — a tela se ilumina com uma mensagem.
Feliz Dia das Bruxas.

Jasper. O telefone vibra novamente, batendo no granito.


O que você vai fazer hoje à noite?

Quase pego o celular para responder que estou em casa,


trabalhando, muito ocupada para falar com ele, mas
conhecendo-o, ele pode vir e verificar. Eu realmente preciso
pegar sua chave de volta — ou trocar as fechaduras. Embora
Jasper saiba como invadir; eu assisti ele quebrar a fechadura de
Sandra no escritório uma vez, quando ela deixou suas chaves
em casa, com nada além de um toque rápido de um cartão de
crédito na porta. Tenho que terminar com ele, mas tenho
medo do que ele fará — e ainda mais medo do que posso fazer
com ele em resposta.
Ele ainda está digitando, aos trancos e barrancos, o ícone de
bolha aparecendo e desaparecendo. Eu ligo a configuração de
Não Perturbe e desligo a tela, examinando meu reflexo por um
momento no vidro escuro — a emoção, a sede de sangue
queimando em meus olhos.
Jasper nunca pode saber quem eu realmente sou. Mas esta
noite vou apresentar Kinnear à verdadeira Scarlett Clark.
Eu me forço a tomar uma rota lenta e indireta para a casa de
Kinnear, serpenteando meu caminho pelos arredores da cidade
ao invés de cortar o coração do campus. Mesmo aqui, há
muitos estudantes perambulando pelas ruas em vários estados,
vestidos com roupas normais. Eles mal me notam, porém —
ocupados demais conversando entre si, tomando goles em
segredo de garrafas de bebida mal disfarçadas, tentando manter
suas fantasias frágeis seguras enquanto o vento gira em torno
deles.
Eu também estou fantasiada: vestida como uma mulher que
poderia realmente considerar foder Kinnear. O corte de renda
preta aparece no decote profundo do meu vestido, e meu
batom brilhante pega os tons de cobre frescos do meu
cabelo. Amarrei com um coque apertado, como sempre faço
quando mato, para evitar que deixe fios no local.
Duas garotas caminham pela calçada em minha direção,
aconchegadas juntas contra o frio. Uma delas — a mais bonita
— tem cabelo azul chocante que balança com a brisa como
uma chama. Peruca real ou de loja de Halloween, não sei dizer.
Conforme eu desço por uma rua diferente para evitá-los, um
arrepio me percorre, embora eu esteja vestida muito mais
apropriadamente para o clima do que aquelas garotas. Enfio as
mãos enluvadas nos bolsos e aumento o ritmo, pressionando o
cotovelo na bolsa para que não batesse muito no meu lado. Há
uma garrafa de uísque ali — um presente especial para Kinnear.
Eu o fiz prometer de novo, quando acidentalmente o
encontrei de propósito depois de sua última aula da semana:
guardar nosso segredinho esta noite, para que nossos colegas
não comecem a falar sobre nós. Ele concordou, é claro,
acenando para mim com uma felicidade escolar que me fez
querer abandonar meu plano e acabar com ele ali mesmo,
deixar sua vida pingar no linóleo para que todos vissem.
Viro para outra esquina e estou na vizinhança dele. Apenas
professores e administradores de alto nível podem se dar ao
luxo de viver nesta parte da cidade, e as gostosuras e travessuras
acabaram horas atrás, então aqui é tranquilo. A maioria das
casas está escura ou iluminada apenas pela luz bruxuleante de
uma tela de televisão. Contorno a rua de Drew e Rafael
totalmente, embora os dois gostem de ir para a cama tão cedo,
provavelmente já estão na cama.
A casa de Kinnear parece um bloco de concreto, cortinas
cinza fechadas sobre todas as janelas para escondê-lo das
crianças fantasiadas que passaram no início desta noite.
Perfeito.
Meus sapatos de salto de borracha mal fazem barulho contra
a calçada de Kinnear, mas ele ainda abre a porta antes que eu
possa levantar minha mão para tocar a campainha.
— Scarlett! — Ele sorri, quase tão ansioso quanto eu. — Por
favor, entre.
26
CARLY

Dirigindo para a festa, Wes continua roubando olhares no


espelho retrovisor. No começo tento fingir que não
percebo. Mas então me encontro gostando um pouco,
quase querendo seus olhos em mim.
Ele está tocando um álbum de Fiona Apple diferente daquele
que ouvimos em nossa viagem para Pittsburgh. Essa música
estava na mixagem que ele fez para mim, então eu sei todas as
letras. Eu murmuro junto com as palavras — eu fui uma garota
má, má — e seu olhar vai direto para meus lábios pintados de
vermelho, as mãos segurando o volante como se ele tivesse
medo de sair da estrada. Allison está totalmente alheia,
tagarelando sobre as fofocas do departamento de teatro no
banco do passageiro.
Então é essa a sensação de chamar a atenção de um
menino. Sempre parece mágica quando vejo garotas como
Allison flertando. Mas é tão simples.
A festa de Halloween é em uma casa fora do campus, onde
vivem vários garotos veteranos do departamento de teatro —
incluindo Bash. O prédio pulsa com música como se estivesse
vivo, o som vibrando pelas portas do carro antes mesmo de Wes
estacionar no terreno de cascalho nos fundos.
Enquanto subimos os degraus frágeis para a varanda da
frente, Allison passa o braço em volta de mim. Sou grata pelo
calor; o ar frio da noite me faz sentir ainda mais nua. Wes segue
alguns passos atrás de nós, mas quando chegamos à porta, ele se
posiciona para mantê-la aberta.
Por dentro, somos atingidos por uma onda de calor - corpos,
suor e vários tipos diferentes de fumaça. A dança deve estar
acontecendo no nível superior. Parece que o teto pode cair a
qualquer momento com todos aqueles pés batendo nas tábuas
do piso, estrondando como um trovão.
Está tão alto. Eu vejo os lábios de Allison se movendo
enquanto ela cumprimenta suas amigas — uma garota usando
um vestido preto brilhante e chifres de diabo, um cara em um
terno de Homem-Aranha com a máscara levantada para que ele
possa tomar sua cerveja — mas eu não posso ouvi-la, não
consigo ouvir nada. Até a música está começando a soar
distante agora, a cacofonia combinando em um zumbido que
tudo consome.
Allison e Wes se aprofundam na multidão, mas estou
congelada, meus pés enraizados no chão pegajoso, minha
garganta fechando rapidamente como se alguém estivesse a
apertando. Allison nem percebe que não estou mais ao lado
dela — ela está dizendo oi para uma garota usando um vestido
de noiva dos anos 80 com sangue falso espalhado na frente, seu
cabelo bagunçado em um susto eletrocutado — mas Wes olha
para trás. Procurando por mim.
Ele para e me oferece sua mão. Eu pego.
A pressão de seu aperto acalma meu pulso acelerado. Nós
alcançamos Allison novamente, e um garoto com cabelo
castanho espetado e um bigode postiço colado no rosto
marcado — eu já o vi no departamento de teatro antes, mas não
sei o nome dele — oferece a todos nós garrafas de
cerveja. Allison e Wes os pegam. Eu balanço minha cabeça.
— Não, obrigada.
O menino bate a garrafa no meu braço, o vidro suado
deixando uma mancha fria de umidade na minha pele.
— Vamos lá, é uma festa.
Allison o encara.
— Ela não bebe.
— Por que não? — Ele olha para mim, olhando para baixo
na minha blusa. — Não pode ser contra a sua religião, vestida
assim.
— Cai fora, Kyle — Allison diz. — Ela disse não.
Kyle cambaleia para trás, tentando desaparecer na multidão
para fugir do olhar de Allison.
— Obrigada. — eu digo.
— Ele só quer embebedar todas as garotas bonitas, porque é
a única maneira de ele transar. — Allison estreita os olhos,
então inclina a cabeça para trás e bebe a garrafa de cerveja que
ele deu a ela em alguns longos goles. — Vamos dançar!
Eu fico tensa, segurando a mão de Wes com mais força. Seus
dedos acidentalmente roçam minha coxa, tocando minha pele
através da meia arrastão, e ele estremece como se tivesse levado
um choque.
— Não sou muito de dança — digo.
— Eu não acredito nisso. Com esses quadris?
Allison me agarra e aperta. Eu coro, e por alguma razão, meus
olhos vão direto para Wes. Ele não responde, mas quando
Allison me empurra em direção à escada, ele nos segue.
O segundo andar tem paredes inclinadas, como um
sótão. Todos os móveis foram empurrados para um lado e, no
meio do espaço, um grupo de pessoas está — bom, acho que
está dançando, mas parece que estão se esfregando enquanto o
remix techno de uma música pop toca em grandes alto-falantes
instalados nos cantos.
Antes que eu perceba o que está acontecendo, estou no meio
da sala, e Allison está pressionada contra mim. Não consigo ver
para onde Wes foi. Há uma bola de discoteca amassada
pendurada nas vigas, lançando uma luz estranha e irregular que
distorce tudo.
Allison abriu o zíper de seu moletom, revelando um top
preto apertado por baixo, já subindo para mostrar uma fatia de
seu estômago. Ela coloca as mãos na minha cintura e me puxa
para perto de modo que nossos quadris se chocam.
Tento manter o ritmo com a música e os giros muito mais
confiantes de Allison, mas me sinto totalmente ridícula. Como
se todos estivessem me olhando, pensando em como sou
estranha e patética. Como se eles pudessem de alguma forma
sentir o calor crescendo entre minhas pernas enquanto Allison
se esfregava contra mim, movendo-se com a batida.
Allison balança a cabeça, jogando seu cabelo azul em um
amplo arco, e eu quase tropeço nos meus próprios pés. Eu me
agarro a ela para me manter firme, e minhas mãos acabam tão
baixas que estou praticamente segurando sua bunda. Eu
começo a me desculpar, levanto minhas mãos, mas Allison
parece despreocupada. Ela faz um movimento em forma de
oito com os quadris, sorrindo, seus dentes brilhando tão azuis
quanto seu cabelo na luz estranha. Posso me sentir ridícula,
mas Allison não se envergonha. Ela não se importa se o mundo
inteiro nos vê.
Incluindo Wes. Meus olhos se adaptaram à luz estilhaçada
agora, e eu o encontro no canto perto da escada, bebendo sua
cerveja e nos observando dançar. Allison lança um olhar por
cima do ombro e, a princípio, acho que ela está tentando fazer
com que ele se junte a nós. Eu me permiti imaginar por um
segundo: Allison pressionada contra a minha frente, Wes
moldado ao longo das minhas costas, suas mãos emaranhadas
em meus quadris.
Mas Allison não está olhando para Wes. Ela está olhando
além dele.
Bash. Ele tem o cabelo penteado para trás e está todo vestido
de preto, além do que parece ser um delineador manchado ao
redor dos olhos. Isso faz com que suas maçãs do rosto pareçam
vazias, vampíricas. Talvez seja isso que ele deveria ser, mas não
é exatamente uma fantasia.
Assim que seus olhos encontraram os de Allison, ela me
agarra com mais força, esfregando-se contra mim com tanta
força que quase chega a doer. Eu enrijeço. É só isso? Sou apenas
um acessório conveniente para tentar chamar a atenção dele?
Bom, está funcionando. Quando a música muda para uma
mais lenta, a multidão da pista de dança se dispersa um pouco,
as pessoas saindo para buscar bebidas ou um pouco de ar fresco,
e Bash se aproxima de nós.
Allison se vira para encará-lo, seu braço ainda em volta da
minha cintura.
— Oi, Bash.
Eu quero empurrá-la para longe de mim. Eu quero empurrá-
la com tanta força que ela bata no chão.
— Oi. — Ele olha Allison de cima a baixo. Ele claramente
não sabe o que a fantasia dela deveria ser, mas ele também não
perguntou.
Eu olho para Wes novamente. Ele derruba o resto de sua
cerveja e se dirige para as escadas sem nos dar uma segunda
olhada.
— Foi tão incrível da parte de vocês nos receberem esta noite.
— Allison se move em direção a Bash, me puxando junto com
ela. Com a mão livre, ela ri e toca seu ombro; a pele logo abaixo
da manga enrolada de sua camiseta. — Lembra daquela noite,
algumas semanas atrás, quando…
— Quem é sua amiga?— Bash pergunta.
— Oh. — Allison olha para mim e depois volta para
Bash. Ele está me olhando como se ela nem estivesse lá. — Esta
é minha colega de quarto, Carly. Carly, este é...
— Você também estuda teatro? Acho que não te vi por aí.
Ele me viu por aí, muitas vezes. Ele simplesmente não me
notou quando eu não estava seminua.
— Não — eu digo. — Eu estou…
— Ela estuda inglês. Eu a arrastei totalmente, ela odeia festas.
— Allison sorri para mim, mas há algo maldoso por trás
disso. Como se fosse minha culpa, esse idiota está cobiçando
meus seios.
Outra música rápida começa, e as pessoas começam a voltar
para a pista de dança. Eu realmente não quero mais dançar —
não quero dançar em primeiro lugar —, mas pelo menos isso
pode puxar a atenção de Allison para longe de Bash.
Ele usa a desculpa de todos os corpos pressionando ao nosso
redor para ficar ainda mais perto de mim.
— Você está se divertindo esta noite, no entanto. Não está?
Bash sorri e a luz da bola de discoteca rachada cintila em seus
incisivos brancos. Meu batimento cardíaco dispara em
pânico. Ele está tão perto agora que posso sentir o cheiro de seu
suor. Tudo o que posso pensar, além de correr para fora e
nunca olhar para trás, é esmagar meu punho em seus dentes
perfeitos.
Allison tira a mão da minha cintura e fica entre mim e
Bash. Estou tão aliviada, mas minha mandíbula ainda está
cerrada de tensão. Ela vai me defender. Ela vai dizer a ele para
recuar, da mesma forma que fez com aquele cara Kyle.
Mas em vez disso, ela sorri e passa o braço pelo cotovelo de
Bash.
— Então, como esta é a sua casa — diz ela —, aposto que
você sabe onde eles guardam as coisas boas.
Ele finalmente afasta os olhos de mim. Eu juro que posso
sentir uma mancha oleosa onde seus olhos passaram pela minha
pele.
— Claro — diz ele. —Venha comigo.
Bash começa a conduzi-la.
Eu a alcanço.
— Espere, Allison, eu…
Mas eles já se foram.
27
SCARLETT

Kinnear me conduz para dentro de sua casa, a mão pairando


possessivamente sobre minhas costas. As luzes estão
diminuídas e o espaço cheira a carne, uma mistura de carvão e
temperos vindo da cozinha. A música clássica suave é
transmitida pelos alto-falantes sem fio instalados em cada canto
da sala.
— Posso pegar seu casaco?
— Está tudo bem. — Quero mantê-lo à vista, e também
evitar a chance de fibras serem transferidas para os outros itens
em seu armário.
Em vez disso, coloco o casaco nas costas de uma das cadeiras
de jantar. Velas cônicas brancas queimam de cada lado de uma
tábua de madeira polida, e há uma pilha de guardanapos de
pano dobrados com precisão na cabeceira da mesa, mas ele
ainda não colocou os talheres de mesa. Essa é uma coisa a
menos com a qual terei que lidar mais tarde. Não posso deixar
nenhum sinal de que Kinnear teve um convidado esta noite.
Kinnear parece relaxado, seguro de si, as mangas de seu suéter
de cashmere preto puxadas casualmente até os cotovelos. Sem
óculos esta noite, então seus olhos azuis brilham à luz das
velas. Ele acha que este é apenas mais um encontro para ele,
outra sedução fácil. Eu me pergunto se ele faz para todas as suas
conquistas a mesma refeição, toca a mesma música, sussurra os
mesmos clichês em seus ouvidos.
— Deixe-me pegar uma bebida para você — ele diz. — Qual
é o seu veneno?
Tiro a garrafa de uísque da bolsa e a seguro contra a luz.
Kinnear sorri.
— Você já pensou em tudo, não é?
Na verdade, sim.
Eu entrego a ele o uísque. Ainda estou usando minhas luvas
de algodão pretas e mantive minhas mãos cobertas toda vez que
tocava a garrafa, então apenas as impressões digitais de Kinnear
apareceriam no vidro âmbar.
Ele vai até o aparador e nos serve porções generosas. Eu
removo as luvas e as coloco nos bolsos para depois. Escolhi este
vestido especificamente pelos bolsos generosos nos quadris —
e o decote em V profundo.
— Gelo? — Kinnear pergunta.
— Não, obrigada. — Eu penduro a bolsa nas costas da
cadeira ao lado do meu casaco, em seguida, vou em direção às
estantes de livros. Estou feliz com as frentes de vidro sobre as
prateleiras, porque meus dedos nus coçam para deslizar sobre
as lombadas douradas. Quando Kinnear passeia atrás de mim,
segurando minha bebida, eu aceno. — Vou beber com o jantar.
Ele coloca o copo na mesa e toma outro gole de seu próprio
uísque.
— Você sabe, eu visitei esta destilaria quando estava
morando no exterior.
— Mesmo? — Eu digo. Ele está parado bem ao meu lado
agora, muito mais perto do que o necessário, e leva o uísque ao
nariz, inalando o cheiro. — É tão bom quanto você se lembra?
Kinnear dá outro gole. Eu sei que deveria sorrir para ele, o
tipo de olhar vago e extasiado que o fará pensar que estou
desesperada para ir para a cama com ele, então vejo os músculos
de sua garganta se moverem e penso em como, daqui a pouco,
esse pescoço ficará roxo e inchado. Meus lábios se curvam para
cima.
— O gosto é ainda mais magnífico quando vindo
diretamente do barril — diz ele. — Você sabe que eles só usam
árvores cultivadas em um bosque específico nas Terras Altas da
Escócia para fazer os barris?
— Eu não sabia. Que fascinante.
Na verdade, eu já estava bem ciente desse detalhe, porque
Kinnear contou exatamente a mesma história para o reitor de
admissões em um evento de ex-alunos no ano passado. É por
isso que comprei este tipo específico de uísque: para que ele se
divirta sobre os sabores e a história e não controle o quanto está
consumindo. Ele já está quase no fundo de seu primeiro copo.
— Eles devem ter mudado algo, entretanto. Estou
detectando uma nota de... — Ele bebe novamente,
considerando. — Pimenta preta, é isso. É bom. Adiciona um
toque de amargura.
Eu dou uma olhada no relógio na parede. Cerca de vinte
minutos até que a droga que misturei ao uísque comece a fazer
efeito. Não é isso que vai matá-lo, mas deve deixá-lo sonolento,
flexível. Mais fácil de dominar.
É uma dose tripla do mesmo sonífero líquido que vi em seu
banheiro durante a festa de Boas-vindas. No caso improvável
de que a polícia faça um exame toxicológico após sua morte, vai
parecer que ele tomou muito, por acidente ou de propósito.
— O jantar está quase pronto — Kinnear diz. — Eu fiz meu
famoso prato.
— Ah, achei que você fosse me mostrar aquele livro
primeiro. — Eu olho para as prateleiras, semicerrando os olhos
como se não conseguisse encontrar o título, embora eu o tenha
visto do outro lado da sala. As cartas coletadas de Lorde Douglas
Vance, escrita em ouro estampada em um pano azul claro. Está
no topo de uma estante cheia até a borda de livros sobre
escritores vitorianos — todos homens, é claro.
A maioria dos volumes é tão primitiva que fica claro que
Kinnear nunca os leu. Ele quer que as pessoas os admirem e
que, por extensão, o admirem. Um homem como Kinnear não
merece uma biblioteca como esta. Talvez sua família o doe para
a universidade após sua morte prematura.
Ele desliza a porta de vidro para longe, deliberadamente
escovando meu ombro enquanto pega o livro. Outro volume,
colocado bem ao lado dele na prateleira, chama minha
atenção. É menor que os outros, compacto o suficiente para
caber no bolso, e não há título ou autor impresso na lombada
vermelha. Além do mais, parece que alguém realmente leu, as
bordas desbotadas e desgastadas pelo manuseio.
Eu aponto para o livro.
— O que é isso?
— Ah, aquilo. Apenas uma coisinha que comprei em uma
livraria rara em Londres, anos atrás. — Ele deixa as cartas de
Vance na estante e pega o livrinho, abrindo a capa para que eu
possa ver a inscrição manuscrita.

O Diário de Viola Emily Vance

Minha mão dispara para tocar a página amarelada, mas me


contenho bem a tempo.
— Isso é…
— Real? — Ele sorri. — Sim. Não tenho ideia de como
acabou naquela loja em ruínas, em vez de na propriedade de
Vance.
Ele nunca mencionou este diário, nunca o citou em nenhum
de seus jornais. Todo esse tempo, todo esse maldito tempo, ele
teve uma fonte primária única que seria inestimável para minha
pesquisa, e ele a deixou na prateleira, enterrada entre os livros
de todos os idiotas pretensiosos da época.
— Claro, é principalmente juvenília — diz ele. — Pequenos
poemas e coisas assim que ela escreveu quando se casou. Mas
você pode dar uma olhada se quiser.
Ele me entrega o diário, segurando-o pelo canto como se
fosse um pedaço de lixo, como se não significasse nada. Eu
quero arrancá-lo de suas mãos e embalá-lo contra o meu
peito. Mas não posso tocar em nada, não sem minhas luvas.
— Eu não quero danificá-lo. — Tento parecer deferente,
recatada. Qualquer coisa, menos cheia de raiva assassina.
Kinnear engole tudo. Qualquer indício de impotência é
percebida e os homens se entregam para bancar o herói. Ele leva
o livro até a mesa de jantar e o coloca ao lado da pilha de
guardanapos. Então ele puxa uma cadeira para mim. Sento-me
com a coluna rígida e Kinnear se inclina sobre mim, os braços
me enjaulando, para virar as páginas delicadas cobertas pelos
rabiscos inconfundíveis de Viola Vance.
— Este não é nem um pouco ruim. — Ele lê um pequeno
fragmento de poema, seu hálito encharcado de uísque
farfalhando meu cabelo. Nas últimas palavras, ele gagueja um
pouco, embora continue falando como se nada estivesse
errado.
A droga já está funcionando.
— É maravilhoso — eu digo. Realmente é, apesar de sua
mutilação.
— Sabe — Kinnear diz —, se eu acabar ganhando a bolsa da
Women’s Academy, isso não significa necessariamente que
você não pode acessar o arquivo.
Eu viro minha cabeça para olhar para ele. Ele está tão perto
que provavelmente pensa que estamos muito longe de nos
beijar. Se ele soubesse o que eu realmente queria fazer com ele.
— Você poderia vir para Londres. — Ele coloca a mão no
meu ombro, pressionando a ponta do polegar no osso. — Passe
algum tempo comigo, e eu posso providenciar para que você
obtenha acesso de convidado.
Debaixo da mesa, enfio os dedos nas coxas. Como ele
ousa. Como ele se atreve, porra. Ele acha que vai conseguir a
bolsa — a bolsa que eu mereço, a bolsa que deveria ser minha
em primeiro lugar, que seria minha se ele não fosse “amigo de
Cambridge” do maldito curador — e ele vai me dar o favor de
me ajudar com meu trabalho se eu voar através do Atlântico
para chupar seu pau.
Ele me dá nojo. Estou tão cansada de fingir que não.
Mas não por muito mais tempo.
— Isso seria incrível. — Eu me forço a sustentar seu olhar e,
por um segundo, acho que ele realmente vai tentar me
beijar. Não posso permitir isso, obviamente; muitas variáveis
forenses, sem mencionar meu próprio reflexo de vômito. Seus
olhos parecem menos focados a cada segundo. Acho que
esperei o suficiente.
— Eu sei que deveríamos jantar, mas… — Eu me movo em
meu assento, então sua mão cai do meu ombro, mas ele tem
uma visão clara do decote saindo do meu vestido. Mesmo com
seu olhar vidrado, Kinnear não perde isso. — Não estou com
muita fome.
28
CARLY

Sinto como se Allison tivesse saído a uma hora, mas não pode
ter sido a tanto tempo. A pista de dança está de volta em pleno
andamento, e tudo está girando, todas as luzes e a música e os
corpos se contorcendo.
Eu pressiono minhas costas contra a parede para me
equilibrar. Um cara com uma fantasia de zumbi dança perto
demais de mim, a manga rasgada de sua camisa roçando meu
braço. Eu me encolho mais perto da parede e respiro fundo,
mas meu peito arfa como uma heroína de romance neste
espartilho estúpido.
Alguém me dá um tapinha no ombro e eu giro, mas é apenas
Wes. Ele salta para trás, fora do meu alcance. Ah, Deus, eu
quase bati nele, não foi? Eu forço minha mão para baixo ao
meu lado, ainda fechada em punho.
— Você está bem? — Ele olha em volta. — Onde está
Allison?
— Ela se foi. — É difícil pronunciar as palavras; minha
garganta parece mais apertada do que minha cintura.
— Você quer sair um minuto? — ele pergunta.
Na realidade, eu quero ir embora, mas não quero estragar a
noite de Wes mais do que provavelmente já fiz. E não posso sair
sem Allison.
Wes me oferece sua mão e eu o deixo me puxar para longe da
relativa segurança da parede e descer a escada. Ainda estamos
de mãos dadas enquanto saímos pela porta dos fundos. Apesar
do frio, o pátio está quase tão lotado quanto a pista de dança,
uma espessa névoa de fumaça pairando sobre todos os piratas e
gatos sensuais e esqueletos que brilham no escuro reunidos lá,
então Wes e eu continuamos caminhando em direção ao
matagal de carros estacionados ao acaso no terreno de cascalho
atrás da casa.
— Quem você deveria ser, afinal? — Eu pergunto. Agora
que estamos longe da festa, minha garganta parece menos como
se houvesse dedos em torno dela, mas minha voz soa
estranhamente distante, meus ouvidos ainda zumbindo por
causa da música.
— Ah, uh… eu sou Rivers Cuomo — Wes diz.
Eu pisco para ele.
— O vocalista do Weezer?
Não tenho ideia do que ele está falando. Esta noite toda
parece embaçada, embora eu esteja completamente sóbria.
— Aquela banda que ouvimos… — Wes empurra os óculos
de armação grossa mais para cima em seu nariz.
Eles são muito parecidos com os que Alex usa. Eles parecem
certos em Alex, mas em Wes eles são um pouco demais,
cobrindo seu rosto, então é difícil focar em suas feições.
— Esquece. De qualquer maneira, é uma fantasia bem
idiota. Aquilo não foi legal, você sabe — diz ele, baixando a voz,
embora estejamos longe o suficiente da casa para que ninguém
possa ouvir. — A maneira como Allison estava usando você
para chamar a atenção dele.
Meu peito queima de vergonha e algo mais, com a memória
do corpo de Allison pressionado tão perto, movendo-se contra
o meu, a música vibrando através de nós.
— Ah, não, isso não é…
— Acredite em mim, ela sempre foi assim. Ela nunca quer o
que está bem na sua frente. Ela quer o que não pode ter. — Ele
me olha nos olhos. — Você se acostuma depois de um tempo.
Ele está tão perto de mim agora, e estamos sozinhos
aqui. Bom, há um porta-malas Honda a alguns metros de
distância que está balançando ligeiramente,
não completamente sozinhos. Estamos quase no carro de Wes
agora. Está tão frio aqui fora. Podemos entrar e aumentar o
aquecimento. Falar um pouco mais, ou…
Eu engulo, o ar frio da noite queimando meus pulmões.
— Você e Allison alguma vez…
— Dormimos juntos? — Wes diz.
— Não — eu deixo escapar. — Eu só quis dizer, vocês
alguma vez... alguma coisa.
— Nós nos beijamos uma vez, quando tínhamos doze
anos. Gire a garrafa.
Ele ri. Tento rir também, mas o som fica preso na minha
garganta.
— Não estou tentando criticá-la — diz ele. — Quero dizer,
ela é minha melhor amiga. Mas também não quero que você se
machuque.
Eu estou tremendo mais fortemente agora, embora eu quase
não sinta mais o frio na minha pele. Wes coloca as mãos nos
meus ombros e começa a esfregar para cima e para baixo,
tentando me aquecer. Eventualmente, seu ritmo diminui e ele
não está mais me olhando nos olhos. Ele está olhando para
meus lábios, e me pergunto se aquele batom brilhante ainda
está lá ou se está desbotado, manchado, vermelho sangrando
nos cantos da minha boca.
Alguém no pátio solta um grito, ecoando na noite. Não sei
dizer se é uma comemoração ou um pedido de ajuda, mas
também não viro a cabeça para verificar. Estou congelada,
olhando para Wes — agora focando em seus lábios também, a
parte rachada no centro onde ele morde quando está pensando
durante a aula.
As mãos de Wes pressionam com mais força meus ombros,
puxando-me para dentro. Ele vai me beijar. Ai, meu Deus, ele
vai me beijar, e parte de mim quer, mas outra parte, mais forte,
quer ficar o mais longe possível dele.
— Me desculpe, eu… — eu digo, e Wes para de me puxar em
sua direção, mas ele não solta meus ombros. Então eu o afasto,
mais forte do que eu precisava, do que eu pretendia. Ele tropeça
para trás, pedras esmagando sob seus pés. — Eu não posso.
Já estou correndo, minhas botas chutando o cascalho para
ferir minhas canelas através das meias arrastão. Eu nem sei para
onde estou indo, até que eu me encontro de volta dentro da
casa. Os convidados da festa se espremem ao meu redor, e um
grito se forma na minha garganta, mas não o deixo
sair. Continuo abrindo caminho no meio da multidão até
chegar às escadas e depois subo, subo, subo.
Saio correndo pelo corredor escuro, tateando as paredes
revestidas de madeira, procurando um lugar, qualquer lugar
onde possa ficar sozinha. Finalmente encontro uma
maçaneta. Não gira, mas a porta não está bem trancada e se abre
quando eu a empurro.
As luzes já estão acesas lá dentro e fico cega por um segundo,
mas então pisco as estrelas em meus olhos e as vejo.
Allison e Bash.
Ele a está pressionando contra a pia. Uma mão em sua
camisa, a outra empurrou para baixo seu jeans aberto. Bash me
vê, mas Allison não, porque seus olhos estão fechados.
Ela está inconsciente.
29
SCARLETT

Eu deixo Kinnear me levar pelo corredor, fingindo que não sei


o caminho para seu quarto.
Quando cruzamos a soleira, Kinnear tropeça para frente e
agarra minha cintura para se equilibrar. As drogas já se
apossaram totalmente agora, mas ele acha que está bêbado.
— Acho que não consigo aguentar meu uísque como antes!
— Ele ri, mas não me solta.
Eu rio também, mas se ele não estivesse tão fora de si, ele seria
capaz de ouvir a nota de falsidade. Não estou mais me
preocupando em esconder a frieza em meus olhos; estou
estudando ele como o inseto que ele é. Mas ele está totalmente
alheio. Para ele, está tendo uma ótima noite: agradavelmente
embriagado, prestes a ter sorte.
Kinnear me aperta com mais força e dá outro passo instável
para frente, me empurrando contra a parede do quarto. Suas
mãos estão se movendo mais alto agora, segurando meus
seios. Eu esperava poder manobrá-lo em posição sem deixá-lo
me tocar, mas posso tolerar por mais alguns segundos para levá-
lo onde eu o quero.
— Sabe, eu sempre pensei… — Suas palavras tropeçam nelas
mesmas. — Desde o primeiro dia em que te conheci, mas você
me segurou, não foi?
Kinnear agarra minha coxa, as pontas dos dedos deslizando
sob a bainha da minha saia. Este vestido é novo em folha,
escolhido especialmente para esta noite — igual a lingerie de
renda preta por baixo dele. Ele nunca vai chegar longe o
suficiente para ver, é claro, mas faz eu me sentir
poderosa. Blindada.
Eu mantenho minhas mãos para baixo ao meu lado, mas eu
arqueio minhas costas, deixando-o pensar que estou excitada
pela maneira como ele me prendeu contra a parede,
apunhalando sua desculpa esfarrapada para uma ereção em
meu quadril. Quando ele se move para me beijar, eu viro meu
rosto. Tenho que fazer isso três vezes antes que ele finalmente
recue, tropeçando um pouco como se fosse cair para trás.
Ele olha para mim, perplexo, os olhos desfocados.
— O que é que…
— Tire as calças e deite-se na cama. — No começo, ele apenas
fica boquiaberto comigo, e temo ter exagerado. Ele gosta de
mulheres que o bajulam, não das que mandam nele. Para que
esta próxima parte do meu plano funcione, porém, preciso que
ele faça o que eu digo.
Mas um segundo depois, seu rosto se ilumina com um
sorriso vacilante e suas mãos vão para a fivela do cinto.
— Sim, Professora.
Kinnear dá alguns passos hesitantes antes de conseguir tirar
totalmente as pernas da calça. Quando ele chega à cama, ele cai
mais sobre ela do que se deita. Mas não importa: ele está
exatamente onde eu o quero agora.
Uma vez que ele está esparramado no colchão, encostado nas
ripas de madeira da cabeceira da cama, ele me lança o que tenho
certeza que ele pensa ser um sorriso sedutor.
— Você não vai se juntar a mim?
Eu fico onde estou, de braços cruzados.
— Feche seus olhos.
— Mas eu quero te ver. — Ele faz um pequeno círculo
sugestivo com os quadris, esfregando o nada. — Deus, você é
linda.
Eu corro meus dedos ao longo do decote do meu vestido.
— Feche-os.
Ele me dá um sorriso de merda que me faz querer arrancar
seus dentes com um alicate e enfiá-los no seu esôfago, mas ele
faz o que eu mandei. Espero alguns segundos para ter certeza
de que ele vai ficar parado antes de tirar as luvas dos meus
bolsos.
Kinnear se mexe na cama — começando a ficar inquieto,
mesmo através da névoa da droga. Ele levanta uma pálpebra
enquanto eu coloco a segunda luva.
— Sem espiar — eu digo, movendo-me para o armário para
puxar dois lenços do cabide dentro da porta. Eu pego o cinto
de Kinnear do chão também e subo na cama, montando nele.
Kinnear mantém os olhos fechados como eu disse a ele, mas
ele tateia até conseguir pegar um punhado da minha bunda. Eu
agarro seu braço, pressionando-o de volta contra a cabeceira da
cama. Ele abre os olhos bem a tempo de me ver enrolando um
dos lenços em seu pulso.
— O que você está fazendo?
Eu puxo o nó com mais força.
— Não me diga que você nunca fez isso antes.
— Claro que sim — diz ele, embora claramente não
tenha. — Eu só…
Já estou amarrando seu outro pulso. Ele começa a se
contorcer um pouco, mas não está em pânico.
Ainda.
— Achei que era isso que você queria. — Eu me esfrego
contra ele, prendendo-o na cama enquanto termino de amarrar
seus pulsos nas ripas da cabeceira da cama. — Desde o primeiro
dia em que você me conheceu.
Kinnear pisca para mim, como se seu cérebro estivesse o
protegendo, demorando um segundo para acompanhar o que
está acontecendo. Ele finalmente nota as luvas.
— Por que você está usando isso?
Sento-me contra sua pélvis e sorrio para ele — impiedosa,
predatória. Meu verdadeiro sorriso. Aquele que guardo para
esses momentos finais. Eu espero até que o medo em seus olhos
comece a turvar como nuvens de tempestade, então dou um
passo para trás e dou um tapa na bochecha dele. Forte o
suficiente para pinicar, mas não para deixar marca.
— Que porra você está… — Ele finalmente luta de volta,
tentando me jogar para fora da cama, mas com os braços
amarrados e as drogas em sua corrente sanguínea, ele não é forte
o suficiente.
Eu me inclino sobre ele, segurando seus pulsos no lugar com
minhas mãos também. Ele está amarrado com segurança, mas
não posso arriscar marcas óbvias de ligadura em seus
membros. Assim que ele estiver morto, vou desamarrá-lo e
colocar os lenços de volta onde os encontrei, para sustentar a
história de que ele fez isso a si mesmo. Posso ver a manchete
agora: Estimado erudito de literatura encontrado morto em sua
cama, uma tentativa de asfixia auto-erótica que deu
terrivelmente errado.
Eu ia usar um lenço para estrangulá-lo também, mas seu
cinto estava bem ali, enrolado no chão como uma cobra
venenosa, e parecia perfeito demais. Isso vai doer muito mais e,
acima de tudo, quero que ele sofra. Eu coloco o couro em volta
de seu pescoço.
Ele está empurrando contra mim agora, uma terrível paródia
do que ele pensou que íamos fazer em sua cama esta noite. Eu
puxo o cinto com mais força, e ele fica tão atordoado de terror
que fica imóvel.
Kinnear nunca olhou para mim assim — realmente olhou
para mim. Em todos os anos que o conheço, o contato visual
sempre foi uma breve parada no caminho para cobiçar meus
seios, minha bunda. Reduzindo-me em partes. Esse medo
selvagem é a coisa mais próxima de respeito que ele já me pagou.
Muito pouco, muito tarde.
Eu não posso acabar com ele até que eu veja o amanhecer da
realização em seus olhos. Até ter certeza de que ele sabe
exatamente quem eu sou e por que estou fazendo isso com
ele. Eu aperto o cinto sob seu queixo, inclinando sua cabeça
para que ele possa ver melhor meu rosto.
— Você se lembra de mim agora, Alex?
30
CARLY

— Não.
Minha voz está tão baixa que Bash pode não ter me ouvido
por causa da música. Ainda estou no limiar do
banheiro. Congelada, indefesa. Mas não tão indefesa quanto
Allison. Sua cabeça pende sobre a pia, cabelos azuis se
acumulando na pia.
Eu dou um passo a frente.
— Não toque nela.
Bash ergue os olhos, mas não para o que está fazendo. Ele me
olha bem nos olhos e não para.
— Não toque nela, porra!
Estou gritando agora, apressado-me em sua direção. Por que
eu hesitei, por que a deixei sozinha com ele em primeiro
lugar? Eu deveria ter sabido melhor, deveria tê-la protegido.
Bash finalmente tira as mãos de Allison e, sem ele a
segurando, ela cai no chão. No caminho para baixo, ela derruba
a garrafa que está na beirada da pia, espalhando cacos de vidro
fumê no piso.
Ela não está apenas bêbada. Eu a vi bêbada, e isso é
diferente. Ele deve ter colocado algo em sua bebida. Ele fez isso
de propósito, ele a drogou, acolheu-a aqui e fechou a porta. Se
eu não tivesse entrado quando entrei...
Alguns dos festeiros estão se reunindo do lado de fora do
banheiro, atraídos pelos meus gritos. Mas nenhum deles fez
nada além de ficar boquiaberto conosco, meu rosto vermelho e
punhos cerrados e Allison desabou no chão e Bash recuou
contra a banheira, olhando para mim com aqueles olhos
preguiçosos e sonolentos como se ele estivesse entediado com a
cena.
Eu me abaixo ao lado de Allison e tento ajudá-la a se
levantar. Meus joelhos rangem no vidro quebrado, mas eu mal
sinto isso. A têmpora esquerda de Allison está sangrando um
pouco; ela deve ter batido contra o balcão. O vermelho escorre,
traçando a linha de sua bochecha. O moletom laranja dela
também está no chão. Bash deve ter arrancado antes que ela…
Não. Eu não posso pensar sobre isso. Tenho que me
concentrar em ajudá-la.
Eu sacudo o vidro do moletom, em seguida, enxugo o corte
de Allison com uma das mangas. Ela se mexe um pouco, as
pálpebras tremendo — não completamente inconsciente, mas
seriamente inconsciente. O que diabos ele deu a ela?
Ele ainda está ao nosso lado, perto o suficiente para que eu
possa sentir seu perfume almiscarado — ou talvez o cheiro
esteja em Allison.
Eu não posso me permitir olhar para ele. Se eu olhar para ele,
não sei o que vou fazer.
Finalmente, uma garota usando uma peruca preta angular e
uma camisa branca de botão grande se separa do aglomerado de
espectadores.
— O que está acontecendo?
Bash dá a ela um sorriso preguiçoso.
— Hadley ficou bêbada de novo.
A menina não ri, mas alguns dos outros alunos ao seu redor
riem. Principalmente os caras. Os tons baixos de suas risadas
zombeteiras vibram até meus ossos.
De repente, estou de pé, de frente para Bash. Seu sorriso
desaparece quando ele vê minha expressão. Ele dá um passo
para trás, seus calcanhares batendo na base da banheira.
Alguém se move atrás de mim, ao meu redor. Estou
vagamente ciente de que é Wes, abrindo caminho para o
banheiro, ajoelhando-se ao lado para Allison. Estou furiosa,
estou pegando fogo, um calor formigando explodindo sobre
minha pele. Mas uma estranha calma toma conta de mim
também — uma curiosidade, quase. Estou me perguntando se,
se eu empurrasse Bash de volta para o chuveiro, seria capaz de
ouvir o estalo de seu crânio contra o azulejo, ou se a música
sacudindo as paredes iria abafá-lo.
Allison solta um pequeno gemido, afastando a mão de Wes
do ferimento em sua cabeça, e tudo ao redor volta ao foco.
Eu me agacho ao lado de Wes.
— Ajude-me a tirá-la daqui.
— Você viu o que aconteceu? — ele pergunta. — Ela caiu,
ou…
Eu nem mesmo olho para ele, muito ocupada enrolando o
moletom manchado de sangue nos ombros de Allison,
apoiando meu braço em sua cintura.
— Pegue os braços dela.
— Você tem certeza que é…
— Você vai nos ajudar ou não? — Eu estalo.
Wes se encolhe um pouco, piscando para mim. Eu sei que
não deveria descontar nele — ele não é o inimigo aqui — mas
me senti bem, deixando um pouco de raiva irromper. Como
cuspir veneno.
Ele segura Allison como eu disse a ele, e juntos nós a
colocamos de pé, então, desajeitadamente, caminhamos em
direção à porta com os braços dela pendurados sobre nossos
ombros. Wes continua olhando para mim, mas eu continuo
olhando para frente, minha mandíbula cerrada. Eu quero sair
daqui. Eu nunca deveria ter vindo aqui em primeiro lugar —
exceto que não quero pensar sobre o que poderia ter
acontecido se eu não estivesse aqui.
A multidão se separa para nos deixar passar, mas há mais do
que algumas risadinhas, trocando olhares conhecedores. Eu os
odeio muito. Bash acima de tudo. Aquele olhar presunçoso em
seu rosto. Eu me pergunto quantas vezes ele fez isso antes.
Quando chegamos ao carro, Wes me deixa suportando todo
o peso de Allison por um segundo enquanto ele deixa o banco
de trás pronto. Assim que ele se afasta, ela se mexe no meu
ombro.
Seus olhos estão abertos.
— Ah, graças a Deus — eu digo. —Você está…
— Não diga a ele. — Sua voz é uma rouquidão vacilante,
quase inaudível.
— O quê?
Ela olha para Wes, inclinando-se na metade do caminho para
a porta traseira do carro para colocar um cobertor sobre os
assentos.
— Prometa-me. Me prometa que você não vai…
— Eu sinto muito. — As palavras saem em uma torrente,
fluindo como lágrimas. — Eu não deveria ter deixado você ir
sozinha com ele, eu deveria ter…
Allison está terrivelmente lúcida agora, seus olhos azuis
afiados como pingentes de gelo. Ela agarra meu ombro com
força suficiente para machucar.
— Me prometa.
Eu pisco para ela. Eu não entendo por que ela iria querer
manter isso em segredo de Wes. Ele é seu melhor amigo. Se ele
soubesse o que Bash fez com ela, se ele tivesse visto o que eu vi,
ele ficaria furioso. Ele iria querer sangue também.
Mas eu não quero incomodá-la mais, não depois do que ela
acabou de passar — o que ela ainda está passando —, então eu
assinto.
— Ok. Eu prometo.
Wes fecha a porta do carro e volta em círculos.
— Ei — ele diz para Allison. — Você está bem? Como você
está se sentindo?
— Estou bem. — Ela está caindo com mais força contra
mim, embora seu aperto no meu ombro permaneça firme.
— Devíamos levá-la ao hospital — digo.
— Eu disse que estou bem. — Mas ela não está; a lucidez de
alguns momentos atrás está desaparecendo, suas pálpebras
ficando pesadas novamente.
— Você bateu com a cabeça. Você pode ter uma concussão.
— Isso é o que menos me preocupa nessa situação, mas
obviamente não posso mencionar o verdadeiro motivo pelo
qual ela deveria consultar um médico sem quebrar minha
promessa.
— Eu só quero ir para casa — diz ela. — Dormir até isso ir
embora. Vamos lá…
— Nós poderíamos ficar de olho nela esta noite — Wes
sugere. — Ir ao médico pela manhã.
— Sim, minha cabeça mal dói. — Allison acena com a cabeça
vigorosamente como se para demonstrar.
— Não.
Não estou gritando como antes. A palavra sai baixa, mas há
uma ameaça por trás dela. Você não quer discutir comigo
agora. Nunca me ouvi soar assim. É como se a voz de outra
pessoa falasse através de mim.
Wes e Allison estão em silêncio. Os dois parecem um pouco
assustados comigo. Normalmente, eu tropeçava nas minhas
palavras, pedia desculpas, tentava ter certeza de que ninguém se
ofenderia. Mas agora eu não dou a mínima.
Eu começo a dirigir Allison em direção ao carro.
— Venha, vamos.
Wes hesita, preocupando as chaves entre os dedos.
— O quê? — Eu pergunto.
— Eu estou… — ele começa. — Bem, quero dizer, não
estou bêbado, mas acho que devo ter bebido demais para…
Pego as chaves de suas mãos com um suspiro exasperado.
— Ajude-me a colocá-la no banco.
Wes e eu desajeitadamente colocamos Allison no banco de
trás. Ela perdeu o peso de novo, os olhos fechados. Se ela
realmente estiver machucada ou em algum tipo de choque,
temos que levá-la ao médico. Estou preocupada por termos
esperado muito tempo. Quem sabe o que Bash deu a ela, que
outros efeitos isso poderia ter.
Wes desliza ao lado de Allison, manobrando a cabeça dela em
seu colo. Eu sento no banco do motorista e, enquanto ajusto o
espelho retrovisor, Wes e eu olhamos nos olhos, do jeito que
fizemos no caminho para a festa. Mas tudo está diferente agora.
Minhas mãos apertam o volante e gostaria que fosse a
garganta de Bash.
31
SCARLETT

— Você nem se lembra do meu nome, lembra?


A boca de Alexander Kinnear se abre, vermelha e úmida
como uma ferida, mas ele não fala.
— Você se lembra do que fez comigo, no entanto. — Eu
pressiono com mais força, esmagando meus joelhos em suas
costelas. — Ou talvez você também não consiga se lembrar
disso, eu era uma de muitas, insignificante demais para...
— Carly.
Ele solta em um suspiro. Eu sorrio e enrolo a ponta do cinto
com mais força em volta dos nós dos meus dedos.
— M-mas espere — ele diz. — Você, você…
Seus olhos percorreram meu rosto, meu corpo. Ele está
vendo agora: a garota estranha que eu costumava ser, com o
cabelo castanho frisado e os membros muito magros, ainda
selada com o sobrenome do meu pai em vez do que eu dei a
mim mesma.
No primeiro semestre em que trabalhei aqui, passei todos os
dias doente de pavor, esperando alguém juntar as peças — me
reconhecer como Carly Schiller, embora eu tenha mudado
quase tudo em mim desde que deixei Gorman no meio do meu
primeiro ano.
No entanto, não fazia sentido contar toda a história para
Kinnear. Ele estará morto em alguns minutos.
— Olha — ele diz, se contorcendo. — Eu estava passando
por um momento muito difícil naquela época.
Também estou ansiosa por essa parte: suas tentativas
patéticas de se justificar. Como se houvesse algo que ele
pudesse dizer para me impedir neste momento.
— Fiz muitas coisas das quais me arrependo. Mas foi há
muito tempo, e…
Eu puxo o cinto com força até que Kinnear faz um som
estalado e começa a se debater em pânico — mas apenas por
alguns segundos. Tenho que ter cuidado para não sufocá-lo
desse ângulo. Algumas marcas estão bem; vai parecer que ele
estava testando a pressão, chegando mais perto.
— Por favor. — Kinnear engole o ar, tremendo todo. —
Não, você não quer fazer isso.
Boa. Eu estava esperando que ele implorasse.
— Eu sei que você está com raiva de mim — diz ele. — Mas
você não é uma assassina.
Eu não posso evitar: eu rio, jogando minha cabeça para trás.
— Eu venho matando homens como você há anos.
As pupilas de Kinnear estão enormes por causa da
medicação, o azul quase eclipsado pelo preto. É notável que ele
esteja acordado; deve ser graças a todos os hormônios do
estresse correndo em suas veias. Mas estou feliz que ele ainda
esteja um pouco lúcido, então posso apreciar a expressão em
seu rosto enquanto ele absorve esse conhecimento.
— Você é apenas o próximo idiota da minha lista, Alex.
Ele aperta os olhos. Posso praticamente ver as engrenagens
girando em sua mente confusa pelas drogas.
— Aquele menino — ele diz. — Quando você era uma
estudante. O menino que morreu...
Agora isso eu não esperava que ele descobrisse. Já que o que
aconteceu foi considerado um acidente, nem mesmo está nos
dados de suicídio do campus. Minha primeira morte foi
fácil. Isso me fez perceber o que eu poderia fazer. O que eu era
realmente capaz de fazer.
— Aquele menino mereceu. — Eu me inclino sobre o rosto
de Kinnear, perto o suficiente para beijá-lo. — Mas não tanto
quanto você.
Eu deveria matá-lo e acabar com isso. A parte difícil já
acabou; agora tudo o que resta é colocar o cinto sobre a
cabeceira da cama. Espere ele lutar, convulsionar e ficar
quieto. Tudo acabará em minutos.
Mas depois de todos aqueles anos odiando-o, todos os meus
meses de preparação, quero saborear isso um pouco mais: a
rejeição lasciva se esvaindo de seus olhos, substituída por um
medo de torcer o estômago. Não sou mais um objeto ou
obstáculo para ele. Eu sou sua maldita ruína.
— Isso é… é um absurdo — diz ele. — Você não pode...
Deixe Alexander Kinnear tentar soar autoritário quando ele
está inclinado e amarrado e a um segundo de morrer.
— Você realmente acha que é uma boa ideia me dizer o que
posso e o que não posso fazer?
Seus olhos brilham, a raiva queimando o medo.
— Você era uma adulta, você…
— Eu era sua aluna.
— Você acha que pode me julgar por continuar com os
alunos. Não pense que não sei sobre você e Jasper Prior.
Eu puxo o cinto. Kinnear parece mais alerta a cada segundo,
embora não haja nenhuma maneira de a droga ter passado
ainda. Eu não deveria ter me incomodado em drogá-lo —
colocá-lo nesta cama teria sido quase tão fácil sem isso. Não
suporto a ideia de que qualquer um de seus sofrimentos possa
ser atenuado. Eu quero que ele sinta tudo, a cada momento.
Kinnear se contorce embaixo de mim. Ele vai desmaiar a
qualquer segundo agora, então eu tenho que aproveitar isso —
os sons desesperados e animalescos que ele está fazendo, a saliva
salpicando sua boca, a forma como sua pele está ficando da cor
de uma fruta machucada.
Eu estou esperando há tanto tempo.
Então minha visão escurece e a dor explode do lado do
meu crânio. A mão de Kinnear agarra meu quadril. Sua mão
— como está livre? Eu amarrei o nó com muito cuidado, eu —
Ele me empurra com toda a força que lhe resta e eu caio do
lado da cama. Enquanto estou caindo, vejo a lacuna na
cabeceira da cama. Ele conseguiu arrancar uma das ripas e agora
está desafivelando o cinto do pescoço e tirando a outra mão das
minhas restrições.
Não. Não. Este não é o plano. Isso não está acontecendo.
Ele tenta correr para a porta, mas eu o agarro pelo tornozelo
e o levo para baixo, arranhando meu caminho para cima em seu
corpo até que estou montada nele novamente. A ripa quebrada
está no chão ao nosso lado. Eu a pressiono em sua garganta,
jogando todo o meu peso contra ele, ignorando as faíscas de dor
em minha palma enquanto as pontas dentadas picam minha
pele, mesmo através das luvas.
Tudo que tenho a fazer é deixá-lo inconsciente para que eu
possa puxá-lo de volta para a cama, prendê-lo de volta no lugar
e terminar o trabalho lá. O estrago na cabeceira da cama não se
encaixa na narrativa, mas posso levar a peça quebrada comigo,
enterrá-la na floresta, queimá-la. Eu ainda posso fazer isso
funcionar.
Eu tenho que fazer isso funcionar.
Mas Kinnear está ganhando força, a adrenalina expulsando a
droga de seu sistema. Ele se empurra contra mim, cravando as
unhas na minha saia. Em seguida, ele coloca as mãos em volta
das minhas e bate para cima. A madeira lascada raspa sob meu
queixo, rangendo meus dentes, e estou no chão novamente e
ele se foi, arrastando-se para ficar de pé, lutando em direção à
porta.
Estou bem atrás dele, e quando ele tropeça um pouco, com
o ombro batendo na parede do lado de fora da sala de jantar, eu
encurto a distância, agarrando a parte de trás de seu suéter,
esticando a caxemira. Ele me sacode e cambaleia para a sala de
jantar, pegando algo na mesa.
Seu celular. Eu me atiro nele, arrancando o telefone de suas
mãos. Quando atinge o chão, a tela se estilhaça. Kinnear me
encara, ofegante. Vasos sanguíneos quebrados formam uma
teia de aranha ao redor de seus olhos azuis, e a luz bruxuleante
das velas traz à tona todas as marcas que deixei nele: os círculos
vermelhos em volta do pescoço e nos pulsos, os arranhões no
rosto. Qualquer um que olhar para ele, mesmo os idiotas
absolutos do Departamento de Polícia de Gorman, saberá que
ele foi atacado esta noite.
Ele arruinou meu plano. Ele estragou tudo.
Não posso deixá-lo sair desta casa. Mas ele não tenta
fugir. Ele nem está mais olhando para mim; seu olhar está
voltado para baixo, boquiaberto de horror com algo ao meu
lado direito.
Minha mão.
— Scarlett…
Eu nem percebi que tinha pegado alguma coisa, mas agora eu
sinto lá: o peso do cabo, o aço frio encharcando minhas
luvas. A faca da placa de escultura no centro da mesa.
Kinnear tenta agarrar desajeitadamente a arma, e eu ataco a
ponta na direção de seu estômago. Ele salta para trás com um
grito, embora tudo que eu apunhalei tenha sido o ar entre
nós. Covarde de merda.
— Scarlett, por favor. — Ele começa a recuar lentamente. Eu
combino com ele, passo a passo. — Você não tem que fazer
isso. Eu farei o que você quiser. Qualquer coisa. Eu… você quer
a bolsa? Você pode ficar com ela, farei algumas ligações, vou me
certificar de que entreguem a você, apenas...
Eu levanto a faca. A luz da vela refletida na lâmina faz com
que pareça que está pegando fogo. O metal é polido com um
brilho tão alto que me pergunto se ele já o usou antes, ou se a
faca é como os livros de sua biblioteca. Apenas para exibição.
Ele tropeça na cadeira onde deixei meu casaco e bolsa; ele
tomba para trás, batendo contra o tapete geométrico grosso. Eu
passo por cima e continuo indo. Kinnear é maior do que eu,
mais forte. Ele poderia me dominar fisicamente se quisesse, mas
acha que pode achar uma maneira de sair dessa. Ainda me
subestimando.
— Você me procurou. — Ele dá mais um passo para trás. —
Você veio me ver sozinha, você…
Meus dedos se fecham em torno da faca.
— Cale-se.
— Ninguém mais deu a mínima para você. Você sabe disso,
certo? Eu fui o único que tentou ajudar. — Ele balança a
cabeça, como se eu fosse patética, como se ele sentisse pena de
mim. — E este é o agradecimento que recebo.
— Cale a boca, porra. — Minha mão está tremendo,
segurando o cabo da faca com tanta força que dói até os ossos.
— Scarlett, vamos lá, foi dezesseis anos atrás.
Aí está: a raiva, a descrença, a indignação absoluta por eu
ousar julgá-lo, responsabilizá-lo. Para fazê-lo pagar pelo que
fez.
— Você também tem que assumir alguma responsabilidade
— diz ele. — Você sabia exatamente o que estava
fazendo. Garotas como você sempre…
Meu braço já está balançando. Um golpe, e a garganta de
Kinnear fica vermelha.
32
CARLY

A sala de espera do único pronto-socorro de Gorman está cheia


de estudantes universitários em fantasias de Halloween. Em
comparação, Allison, Wes e eu parecemos quase normais.
Allison está esticada em duas cadeiras do mesmo tom laranja-
claro de seu moletom com capuz, seu cabelo azul pendurado
para fora para escovar o chão. Wes está algumas cadeiras abaixo,
batendo o calcanhar nos ladrilhos compulsivamente.
Sento-me entre eles, uma prancheta balançando no meu
colo, minhas coxas grudando no assento de plástico através das
meia arrastão. Eu deveria estar preenchendo a papelada do
hospital, mas continuo me distraindo, verificando
Allison. Você não deve deixar pessoas com concussões
adormecerem, certo?
Uma enfermeira com uniforme verde menta emerge das
portas giratórias e chama outro nome. Desta vez, um cara com
uma capa de Superman responde. Ele está com o olho roxo e o
nariz torto, mas não está sangrando como o último paciente
que voltou.
Allison encara as luzes fluorescentes com a mandíbula
cerrada. O sangue em sua têmpora secou até virar uma mancha
de ferrugem. Ela continuou discutindo com Wes e eu no
caminho para o hospital, insistindo que ela estava bem, mesmo
com as palavras arrastadas juntas, mas desde que chegamos aqui
ela tem estado em silêncio.
Duas garotas vestidas de coelhinhas da Playboy correm
juntas para a lata de lixo de tamanho industrial ao lado da
recepção, a ruiva segurando o cabelo da morena para trás
enquanto ela vomita. Eu engulo a bile subindo na minha
garganta e inclino minha cabeça sobre o formulário do
hospital, escrevendo a data. 31 de outubro — não, já passa da
meia-noite, 1 de novembro. 2004. Tecnicamente é segunda-
feira; Wes e eu teremos aula de redação de Alex em algumas
horas.
Escrevo meu nome em seguida, depois percebo que deveria
ter escrito o de Allison e começo a rabiscar as letras.
— Seu nome completo é Scarlett? — Wes diz. Ele deve ter
lido por cima do meu ombro.
Allison se apoia no cotovelo.
— Por que você usa Carly?
Ela está parecendo mais lúcida a cada minuto — o que é
bom, é claro, mas temo que se tivermos que esperar muito mais,
o que quer que Bash tenha dado a ela estará muito fora de seu
sistema para registrar. Se eles vão mesmo testá-la para drogas,
ou o que quer que seja.
Eu encolho os ombros.
— Meus pais sempre me chamaram de Carly.
Bem, meu pai fez isso — e como tudo o mais, minha mãe
concordou com isso para mantê-lo feliz. Além disso, nunca
senti que poderia levar um nome tão dramático como Scarlett.
Depois de entregar o formulário preenchido, parece que se
passaram horas antes que a enfermeira chamasse o nome de
Allison. As meninas da Playboy são as únicas que ainda restam
na sala de espera conosco, a ruiva sentada com a cabeça da
morena no colo, acariciando seus cabelos.
Allison fica de pé e então estremece.
— Cuidado! — Eu digo, movendo-me para colocar um
braço firme em volta de sua cintura. Wes se levanta para ajudar
também, mas ela já está me dispensando, caminhando com
determinação em direção às portas duplas.
A enfermeira a deixa lá — quer dizer, não é bem um quarto,
apenas uma cama separada de outras camas semelhantes por
cortinas brancas. Ela vai sobre o que eu coloquei no
formulário, então examina os sinais vitais de Allison em um
borrão brusco e desdenhoso e nos diz que o médico a verá em
breve. Anotei que Allison caiu e bateu com a cabeça, mas
espero que, se conseguir que Wes saia um pouco, posso
convencê-la a contar ao médico o que realmente aconteceu.
Assim que a enfermeira se afasta, eu me viro para ele.
— Está com fome? Estou morrendo de fome.
Ele parece um pouco surpreso, mas também aliviado por ter
algo para fazer. Enquanto a enfermeira examinava Allison, Wes
ficou parado no canto, mordendo o lábio inferior.
— Eu posso ir tentar encontrar alguns lanches. Alguma coisa
em particular?
— Algo quente. Talvez a lanchonete ainda esteja aberta?
Ele olha para Allison. Ela está tão distraída, é como se ela nem
o visse por um segundo. Mas, eventualmente, ela balança a
cabeça e diz:
— Estou bem.
Ela não está, no entanto. Eu posso dizer. Ela parecia calma na
sala de espera, mas agora seus olhos estão brilhando, como se
houvesse lágrimas se acumulando, mas ela se recusa a
derramar. Isso faz meu peito doer, vê-la assim. E é tudo culpa
do Bash.
O médico chega alguns minutos depois que Wes sai. Ele é um
cara mais velho, linhas profundas gravadas ao redor dos olhos e
listras prateadas nas têmporas. Ele parece uma versão mais
magra do meu pai.
Ele me encara por um segundo. Não, não encara a mim:
encara o meu peito. Eu curvo meus ombros, e os ossos do
espartilho mordem minhas costelas. Essa maldita fantasia. Eu
nunca deveria ter deixado Allison me convencer disso. Mas esse
é o menor dos meus erros esta noite.
— Srta. Hadley? — o médico pergunta.
Allison acena com a cabeça. Ela parece tão cansada, como se
mal pudesse manter os olhos abertos. Espero que o médico
comece a examiná-la, mas em vez disso, ele cruza os braços
sobre o jaleco branco e diz:
— Você quer me contar o que aconteceu?
— Ela… — eu começo.
— Eu bati minha cabeça.— Allison está tentando parecer
extremamente lúcida para o benefício do médico, enunciando
cada uma de suas palavras com precisão, mas o esforço a faz
parecer ainda mais embriagada.
— Você estava bebendo? — ele pergunta.
Eu olho para ele.
— Isso é realmente…
— Sim. Eu estava bebendo. — Allison levanta o queixo,
desafiando-o.
Ele folheia seu gráfico.
— Vamos dar-lhe alguns fluidos, fique de olho em você nas
próximas horas.
— É só isso? — Eu digo. Ele nem mesmo a tocou. — E a
cabeça dela?
Ele se aproxima da cama e empurra o cabelo de Allison para
trás — mais áspero do que o necessário. Que boas maneiras.
— Você está bem; isso vai sarar em alguns dias. — Ele deixa
o cabelo dela cair para trás sobre a testa. — Não se preocupe,
você não terá uma cicatriz nesse rosto bonito.
Ele já está se virando para sair. Eu tenho que contar a
ele. Certamente se ele soubesse o que realmente aconteceu, ele
daria mais do que um olhar superficial para ela.
— Espere — eu digo. — Isso não é…
O médico volta. Allison me lança um olhar de advertência.
— Esse cara na festa — eu continuo. — Eu acho que ele a
drogou. Ele era…
O médico suspira e aperta os olhos para Allison.
— Sabe, é muito difícil para mim ajudá-la se você mentir para
mim. — Ele posiciona sua caneta sobre o gráfico. — Diga-me o
que você cheirou.
— Eu não cheirei nada — diz Allison. — Bebi alguns
drinques, só isso.
Eu balancei minha cabeça.
— Ele deve ter colocado na sua bebida.
— Não, eu… nada aconteceu, estávamos apenas brincando
e…
— Você estava inconsciente!
Allison me encara, perplexa, as lágrimas brilhando. O
médico tampa a caneta.
— Você quer um kit de estupro? — Ele diz isso com tanta
naturalidade, como se estivesse perguntando se Allison gostaria
de um copo d'água. Ele não parece nem um pouco
preocupado.
— Não! — Ela balança a cabeça, o cabelo balançando sobre
os ombros. Ela está tentando soar forte, mas há uma oscilação
em sua voz. Eu quero pegá-la em meus braços. Eu quero dar
um tapa na boca desse médico idiota. — Não, eu não…
— Ele não… — Eu não sei como explicar, sem fazer soar
como se eu estivesse minimizando o que Bash fez. — Quero
dizer, ele a estava tocando. Enquanto ela estava desmaiada.
O médico olha para Allison.
— Foi isso que aconteceu?
Ela hesita. Ela parece tão perdida, seu rosto empalideceu
completamente.
— Eu não estou… eu não…
— Você não se lembra? — Sua voz goteja zombaria. Eu não
quero mais dar um tapa nele; isso não seria o suficiente. Sinto a
sensação de novo: aquela onda misteriosa de calma sobre a
superfície, o calor turvando por baixo.
Os olhos de Allison estão marejados, mas ela continua
piscando para conter as lágrimas. Eu coloquei minha mão em
seu braço, para tranquilizá-la, para deixá-la saber que estou aqui
para ela, eu acredito nela, não importa o que aconteça.
Ela se afasta de mim.
— Não — ela diz. — Não me lembro.
33
SCARLETT

Eu nunca me senti tão fora de controle antes. Nem mesmo na


primeira vez.
Eu deixo cair a lâmina e algumas manchas de sangue
pontilham meu joelho nu. A poça de vermelho escorrendo da
garganta de Kinnear quase se espalhou para os meus dedos dos
pés. Eu saio do caminho a tempo de evitar que alcance meus
sapatos.
O sangue, o vidro quebrado de seu telefone quebrado. O
cheiro de bebida alcoólica no ar, a oscilação das chamas das
velas. Fecho os olhos, tentando me equilibrar, mas as imagens
começam a piscar na parte de trás das minhas pálpebras. Não
de Kinnear. Não da maneira fácil com que a lâmina cortou a
pele de sua garganta, o vermelho jorrando, a maneira como ele
agarrou o pescoço arruinado como se estivesse tentando
costurá-lo de volta.
Algo mais. Algo em que não penso há anos.
Não, isso não é verdade. Eu pensei sobre isso hoje à noite,
quando vi aquela garota de cabelo azul. Sua amiga mais simples,
caminhando em sua sombra. Essa costumava ser eu.
Meu joelho lateja e eu o golpeio distraidamente, tentando
afastar os cacos de vidro. Mas não há nada lá, nenhum
ferimento, nenhum sangue exceto o de Kinnear. Isso foi
naquela época, quando me ajoelhei no chão e agarrei Allison
em meus braços, seu cabelo azul derramando sobre mim como
água. Quando toda aquela raiva cresceu dentro de mim. A
mesma raiva que venho tentando manter sob controle desde
então, afiar e manejar como uma arma para não me consumir
de dentro para fora.
Esta noite eu falhei. Não há como eu fazer isso passar por um
acidente ou suicídio. As cortinas ainda estão fechadas, mas
alguém pode ter ouvido nossa luta, ouvido Kinnear gritando —
ele gritou? Eu não consigo me lembrar. Minha garganta parece
crua, como se eu pudesse ter gritado também.
Tudo está em silêncio agora. Sem sirenes, sem barulho de
fora. Isso é bom. A única coisa boa sobre esta situação.
Eu poderia tentar limpar isso. Arrastar seu corpo para a
floresta e enterrá-lo. Mas isso provavelmente aumentaria
minhas chances de ser pega, não as diminuiria.
Não. Eu tenho que sair daqui. Pego meu casaco e bolsa no
chão da sala de jantar antes que a poça de sangue possa alcançá-
los também. Provavelmente há algumas gotas de sangue no
meu vestido, mas meu casaco vai cobrir isso e os respingos no
meu joelho até que eu possa chegar em casa para me
limpar. Depois de queimar minhas roupas e qualquer outra
coisa que possa ter o sangue dele, vou esfregar cada centímetro
da minha pele até ter certeza de que nenhum vestígio de
Alexander Kinnear permaneceu.
As velas cônicas estão queimando mais abaixo, gotejando,
gotas brancas de cera pingando sobre a mesa, e a pele pálida de
Kinnear brilha na luz fraca. Seus olhos azuis me encaram, a
boca aberta quase tão larga quanto o ferimento em sua
garganta. Agora que a morte afrouxou suas feições, ele se parece
mais com o seu eu mais jovem. O jovem professor afável que
conheci há tantos anos, quando era jovem e
estúpida. Exatamente como ele gostava de nós.
A polícia saberá que se trata de um homicídio, mas não
necessariamente conseguirá rastrear o crime até mim. Fiz
questão de não tocar em nada sem luvas, então minhas
impressões digitais não deveriam estar em qualquer lugar da
casa. Definitivamente, não na arma do crime. E se aquelas velas
tombassem... um incêndio não pode destruir as evidências
inteiramente, mas certamente poderia tornar a investigação
mais desafiadora.
Volto para as estantes de livros, puxando para baixo todos os
volumes que posso carregar e largando-os em cima de Kinnear,
até que ele esteja coberto da cabeça aos pés com as palavras dos
homens brancos mortos que ele tanto amava. Então pego a
garrafa de uísque da mesa e despejo o restante do conteúdo
sobre as capas. Destruir esses lindos livros causa mais culpa em
mim do que qualquer um dos assassinatos que cometi, mas
pelo menos eles estão servindo a um propósito.
Estou prestes a acender minha pira funerária improvisada
quando me lembro: o diário de Viola Vance. O livro vermelho
fino ainda está na mesa de jantar, aberto no poema que Kinnear
leu para mim. Fica na extremidade oposta de onde dei o golpe
fatal, longe demais para que qualquer respingo atinja as
páginas.
Para evitar a transferência de sangue para o livro agora, uso
um dos guardanapos de Kinnear para pegá-lo. Enquanto o viro
em minhas mãos, imagino Viola Vance correndo os próprios
dedos sobre a capa quando era nova, rabiscando pedaços de
poesia à luz de velas. Ela ficaria furiosa, tenho certeza, se
soubesse que seu diário acabou na posse de alguém como
Kinnear. Este livro deve pertencer a uma pessoa que se
preocupa com ele, que sabe o que vale.
Deve pertencer a mim.
Ninguém vai saber o que está faltando, com o resto de sua
biblioteca reduzida a cinzas. Nunca fui de guardar troféus, mas
agora é diferente. Este é um tesouro literário único, e eu não
poderia viver comigo mesma se o deixasse queimar com o resto.
Eu deslizo o diário de Viola em minha bolsa e viro as velas
sobre o cadáver de Kinnear.

Eu sei meu caminho pela floresta, mas é mais difícil navegar tão
tarde da noite, mesmo com um inferno crescente nas minhas
costas. O tapete já estava em chamas quando saí pela porta dos
fundos e, quando chego à linha das árvores, as cortinas também
travaram. Se eu tiver sorte, a casa inteira vai pegar fogo.
O pânico não começa a subir na minha garganta até que eu
esteja mais para dentro da floresta. Parece tão vivo quanto as
chamas que acabei de fugir, como se estivessem me
perseguindo, batendo em meus calcanhares. Quero correr todo
o caminho para casa, tão rápido que meus pulmões queimam,
mas me forço a tomar um caminho lento, metódico e indireto,
contornando os limites da cidade. Uma vez que estou em
segurança dentro de casa, vou direto para o meu escritório e
acendo a lareira a gás. Eu tiro a roupa para ficar usando nada
além de minhas luvas e lingerie e começo a colocar minhas
roupas nas chamas.
Enquanto espero todo o tecido grudar, tiro o diário da bolsa
para admirá-lo novamente à luz do fogo. Meu plano pode ter
dado errado esta noite, posso ter perdido o controle, mas ainda
posso recuperá-lo. Eu ainda posso me safar com isso. Ninguém
sabe que eu estive lá esta noite, e ninguém precisa...
Ouço um som lá embaixo. Eu congelo, segurando a lombada
do livro.
A porta da frente se fechando. Passos. E então a voz de
Jasper, chamando meu nome.
Droga.
— Scarlett?
Jasper está no meio da escada agora. Eu coloco o diário em
um lugar vazio na estante ao lado da lareira, em seguida, tiro
minhas luvas e as jogo nas chamas, pouco antes de Jasper abrir
a porta do escritório.
Eu me viro para encará-lo, inclinando meu corpo para
bloquear sua visão do fogo. Enquanto ele me encara, parada ali
de sutiã e calcinha com as chamas rugindo nas minhas costas, já
posso ver as perguntas se formando em seus lábios. Então, eu o
evito com uma das minhas.
— O que diabos você está fazendo aqui, Jasper?
— Eu estava preocupado com você. — Ele claramente não
dormiu. Os círculos sob seus olhos parecem cadavéricos, e suas
roupas geralmente elegantes estão uma bagunça, sua camisa
para fora da calça, seu colarinho torto.
— Preocupado? Por quê? — Não tenho ideia de que horas
são, quanto tempo estive na casa de Kinnear. A noite inteira é
um borrão; completamente diferente das minhas outras mortes
em que, mesmo anos depois, me lembro de cada detalhe com
perfeita clareza.
— Você não me respondeu. — Pelo que sei, ele tem me
enviado mensagens de texto incessantemente desde que ignorei
suas mensagens anteriores. — Eu estive…
— Eu estava com meu telefone desligado — eu digo. — Eu
estava trabalhando.
Jasper entra na sala.
— Onde?
— Aqui. Eu estava…
— Não. Você não estava aqui. Eu vim mais cedo e todas as
luzes estavam apagadas. — Ele está se aproximando de mim
agora. Aparecendo, tentando me intimidar. — Você está
mentindo.
Talvez eu devesse sentir medo dele, mas não há espaço para
medo com toda essa raiva correndo por mim. Eu matei um
homem esta noite. Eu poderia matar Jasper também. Eu
poderia empurrá-lo para o fogo, segurar suas belas maçãs do
rosto de vidro lapidado lá até que derretessem com o calor. Eu
poderia fazer qualquer coisa.
— Você não pode simplesmente vir aqui quando quiser.
— Onde você estava?
— Vou precisar de sua chave de volta, isso é…
— Diga-me onde você estava esta noite.
Ele se inclina, o cabelo caindo na testa. Penso em todas as
vezes que passei os dedos por ele e quero arrancá-lo pela raiz. Ele
está tão perto e não tenho para onde ir. O calor na parte de trás
das minhas pernas nuas é quase insuportável do jeito que está.
Mas ainda mais forte do que meu desejo de fugir é meu desejo
de puni-lo. Se ele soubesse o que eu realmente sou, do que sou
capaz, não me trataria assim. Ele estaria se encolhendo de medo.
— Diga-me — ele diz novamente, e tenta me agarrar pelos
ombros. Mas já estou atacando, empurrando com tanta força
contra seu peito que ele tropeça para trás. Ele olha para mim,
perplexo.
Então ele olha para o fogo.
Todas as outras evidências foram reduzidas a cinzas, mas os
dedos pretos das minhas luvas ainda são visíveis, curvando-se
para dentro enquanto queimam como se estivessem segurando
algo.
Antes que Jasper pudesse fazer mais perguntas, eu bato
minhas mãos nele ainda mais forte, empurrando-o até que ele
caia de volta contra a minha mesa, jogando livros e papéis no
chão. Finalmente, há algum medo em seus olhos. Mas ele me
quer também. Mais do que nunca.
Eu o agarro rudemente pelo queixo e forço minha boca na
dele. Ele agarra minha nuca e eu mordo seu lábio inferior até
sentir o gosto de sangue.
Jasper me puxa para o chão em frente ao fogo, e estou
rasgando sua camisa, passando minhas unhas em seu peito,
tirando mais sangue, cavando com mais força quando ele
geme. Ele rasga o fecho do meu sutiã, a parte inferior das
minhas costas, a carne das minhas coxas, e tudo que posso
pensar é: Sim, bom, quanto mais ele me marcar, melhor. Os
arranhões que Kinnear deixou em mim não serão nada
comparados ao dano que Jasper e eu estamos prestes a fazer um
ao outro.
Se eu não o machucar, vou matá-lo.
34
CARLY

Nós não retornamos para Whitten até depois do amanhecer.


Enquanto Allison está no banheiro, consigo me esforçar para
tirar o espartilho sozinha e coloco um moletom. Pela primeira
vez em doze horas, posso respirar corretamente, e o alívio é tão
intenso que quase chega a doer.
Realmente só se passaram doze horas? A noite passada
pareceu longa, mesmo antes de irmos para o hospital.
— Você quer algo para comer? — Pergunto a Allison
quando ela volta. Wes nos trouxe uma bandeja de comida
morna do refeitório e alguns salgadinhos da máquina de venda
automática do hospital, mas ela não tocou em nada. — Eu
posso correr até o Trocino, ou aquele café que você gosta no
centro da cidade, e…
— Eu estou muito cansada. — Sua voz soa baixa e áspera.
— Claro — eu digo. — Você deveria descansar. Eu estarei
bem aqui se você precisar de alguma coisa.
— Você não tem aula de redação?— ela pergunta.
— Sim, mas… não é importante, posso faltar.
Allison balança a cabeça.
— Não, você deve ir. Eu só vou dormir.
Ela começa a tirar a fantasia e é quando eu noto os
hematomas. Em suas costas, sua caixa torácica, sua cintura. Eu
nem percebo que estendi a mão para tocá-la até que ela se afasta
da minha mão, puxando sua camisa de volta no lugar. Mas eu
sei o que vi. Todos os lugares que Bash…
— Ele machucou você. — É um eufemismo risível; os
hematomas são o mínimo.
— Não é nada. — Os olhos de Allison não encontram os
meus. Isso não é apenas exaustão. É como se a luz dentro dela
tivesse se apagado.
— Isso é alguma coisa — Não acredito que não percebi os
hematomas até agora. Não acredito que o médico não os
notou. Fodido bastardo negligente.
— Nós poderíamos voltar para o hospital — eu digo. —
Exija ver um médico diferente. Dessa forma, existirão registros
médicos para apoiar o seu relatório policial.
Allison obviamente ainda está em choque. É uma coisa boa
estar aqui para ajudá-la nisso, para fazer um plano. Os
hematomas são relativamente leves, então serão curados em
questão de dias. Não há tempo a perder.
—Você provavelmente não deveria tomar banho também,
talvez haja alguma outra evidência física que eles possam
coletar, como da sua pele, ou… ah, ele tocou no seu cabelo?
Allison se afasta de mim. Também há um pequeno grupo de
hematomas acima do cotovelo, como impressões digitais sujas.
— Eu sei que vai ser difícil — eu digo —, mas eu irei com
você. Wes também. Posso ligar para ele agora mesmo, tenho
certeza que ele virá nos buscar e nos levará até lá. Tudo vai ser…
— Não vou voltar para o hospital — diz ela. — Eu só quero
dormir. E você deve ir para a aula.
Ela se joga na cama, de costas para mim, puxando o edredom
sobre os ombros. Eu fico lá olhando para ela por alguns
segundos antes de um sino estridente quebrar o silêncio.
Meu celular. Allison estremece com o som e puxa o edredom
mais para cima.
— Desculpa. — Pego o telefone, pressionando-o contra o
peito para abafá-lo enquanto corro em direção à porta. Assim
que estou no corredor, atendo a chamada sem olhar para a
tela. — Alô?
— Eu te acordei, querida?
Merda. É minha mãe.
Desde que estou ignorando suas ligações, ela começou a ligar
em horários estranhos, na esperança de me pegar. Por mais que
eu tenha temido falar com ela, por mais que meus instintos
estejam gritando para inventar uma
desculpa, qualquer desculpa, e desligar o telefone, é
incrivelmente reconfortante ouvir sua voz familiar do outro
lado da linha. Eu me inclino contra a parede em frente ao nosso
quarto e deslizo para sentar no chão.
— Não, eu já estava... acordada. — Posso imaginar o som de
desaprovação que ela faria se descobrisse que eu estava em uma
festa em uma noite de escola, muito menos o resto do que
aconteceu.
— Ok, bom. Eu sei que você terá aula em breve, mas eu
queria entrar em contato com você sobre o Dia de Ação de
Graças.
Eu inclino minha cabeça para trás. Ação de Graças. Já estava
com medo, mas agora, sabendo o que sei sobre meu pai, voltar
para casa será insuportável. Eu me pergunto quais são os planos
de Allison. Como ela não se dá bem com os pais,
provavelmente não vai passar o feriado com eles. Talvez ela vá
para a casa de Wes no Dia de Ação de Graças? Ou ela pode até
ficar no campus. Talvez eu deva também.
— Você tem que ir a todas as suas aulas de quarta-feira?
— minha mãe pergunta. — Ou você pode…
— Não sei se vou conseguir chegar em casa, na verdade.
No silêncio que se segue, posso imaginar a cara exata que
minha mãe está fazendo — estreitamento de seus olhos, a
postura de sua mandíbula. Susan Schiller nunca levanta a voz,
mas seus silêncios passivo-agressivos do meio-oeste podem ser
ainda piores.
— O campus inteiro não fecha de qualquer maneira? — Há
um tom frágil em sua voz agora. — Você pode muito bem
voltar para casa. Eu sinto sua falta; parece que foi... — Ela para,
e eu percebo que ela não está com raiva de mim, ou pelo menos
não apenas com raiva. Ela está tentando não chorar.
Talvez eu pudesse ir para casa por alguns dias. Talvez eu
pudesse deitar na cama da minha infância com a cabeça no colo
da minha mãe e contar-lhe tudo e chorar e chorar e chorar.
— Seu pai também adoraria ver você. — diz ela.
Sim, tenho certeza de que meu pai adoraria me ver e agir
como se fôssemos uma grande família feliz. Ele adoraria deixar
minha mãe fazer o jantar de Ação de Graças para ele com todos
os enfeites e passar suas camisas e talvez até mesmo lavar sua
roupa de baixo para que fique bem e limpa na próxima vez que
ele fizer uma visita a sua amante que acabou de chegar na
maioridade.
— E se eu não quiser vê-lo?
— Carly, eu sei que ele pode ser rígido às vezes, mas ele é seu
pai.
— Ele não é rígido, ele é…
— Se você não tiver um relacionamento com ele, vai se
arrepender quando for mais velha.
Eu tenho que contar a ela. Agora é a hora perfeita. Eu sei que
ele está no trabalho, então ele não vai ouvir. Ela vai ficar
chateada, mas ela tem que saber.
— Mãe, eu…. — Eu engulo e me preparo. — Eu vi papai em
Pittsburgh.
— O quê? O que você estava fazendo em Pittsburgh? Como
você mesmo…
— Ele estava lá com outra mulher.
Ela fica tão quieta que me preocupo que a ligação possa ter
caído. Achei que me sentiria melhor, mais leve, uma vez que o
segredo fosse tirado do meu peito, mas em vez disso ele se
transformou em uma pilha de pedras pesadas, instalando-se na
boca do meu estômago.
Finalmente, ela estala a língua.
— Por que você diria uma coisa tão horrível, querida?
— Mãe, eu os vi. Eles estavam jantando em um restaurante
italiano em Shadyside.
— Ele estava em Pittsburgh a trabalho algumas semanas
atrás. Tenho certeza de que ela era apenas uma colega.
— Ela tinha praticamente a minha idade, mãe. Eles estavam
claramente em um encontro, ela ficava tocando a mão dele e...
— Você está errada. — Sua voz é inexpressiva, distante. —
Ele não faria isso.
Ela não está me ouvindo. Eu gostaria de estar mais surpresa.
— Que diabos há de errado com você? — Eu deixo escapar.
Ela engasga com o xingamento, como eu sabia que ela
faria. A maneira como meu pai trata nós duas é boa,
aparentemente, mas xingar está além do limite.
— Você não tem nenhum respeito por si mesma? — Eu
cuspo no telefone. — Ele está mentindo para você, é tudo o que
ele faz, ele…
— Scarlett Christina Schiller. Isso é o suficiente.
Se isso não a virou contra ele, nada o fará. É como se ele
tivesse feito uma lavagem cerebral nela. Mas isso não funciona
mais comigo. Eu cansei de tentar acalmá-lo, cansei de fingir que
nossa família é feliz ou normal. Estamos doentes até a medula,
e sempre estivemos.
— Eu tenho que ir — eu digo ao telefone.
— Não desligue na minha cara, mocinha — diz minha
mãe. — Não após…
Mas já estou pressionando o botão para encerrar a ligação.
35
SCARLETT

Eu pulo acordada, o grito ainda ecoando na minha cabeça.


Eu estava sonhando com Kinnear — queimando vivo em vez
de morto, uivando enquanto as chamas derretiam sua
carne. Nunca sonho com minhas vítimas. Devaneios,
certamente. Mas não assim. Não são pesadelos que me seguem
no mundo desperto.
Meu penteado cuidadoso da noite passada está selvagem
agora, torto pelos dedos de Jasper puxando-o. Não tenho ideia
de quando ele saiu, se passou a noite. Se dormíssemos lado a
lado mesmo por uma hora, seria mais do que jamais fizemos.
Ou talvez ele não tenha dormido. Talvez ele tenha se
levantado e bisbilhotado. Talvez ele já tenha visto algo que não
deveria. Algo incriminador.
O fogo ainda está queimando, e todo o meu corpo está
escorregadio de suor por dormir no chão tão perto dele. Eu
desligo o gás e as chamas se apagam. Nada que eu joguei na
lareira é mais reconhecível, mas preciso me livrar dos
restos. Não posso arriscar um único movimento errado agora,
não depois do meu erro fodidamente colossal na noite passada.
Pego meu robe do gancho na porta do banheiro, amarrando
a faixa em volta da minha cintura enquanto desço as
escadas. Jasper está de fato ainda na minha casa — e ainda mais
alarmante, ele está preparando o café da manhã. Uma panela de
ovos mexidos chia no fogão e ele está medindo os grãos na
minha máquina de café expresso.
— Bom dia — ele diz quando me vê observando-o da
porta. Ele já tomou banho e se vestiu, seu cabelo úmido
penteado para trás sobre o crânio.
— O que você está fazendo? — Eu pergunto.
— Pensei em fazer o café da manhã para nós.
Nós. Já me sinto desgastada o suficiente, e ele estar no meu
espaço, quebrando todas as minhas regras, só piora as coisas.
— Vá tomar banho — diz Jasper — Isso só vai estar pronto
em alguns minutos.
Ele mexe os ovos. A máquina de café expresso sibila como
uma cobra. Ele certamente está se sentindo em casa. Mas se ele
encontrou algo suspeito durante nossa festa do pijama, ele não
parece se incomodar com isso. Ele está cantarolando uma
música baixinho, mais feliz do que nunca. Eu penso
novamente na maneira como ele rosnou para mim na noite
passada, o polegar pressionando minha garganta enquanto
empurrava para dentro de mim.
Meu telefone vibra contra o balcão da cozinha, e o som faz
meu corpo inteiro apertar como um punho. Jasper pousa a
espátula e alcança o telefone, mas eu o agarro antes que ele
possa, puxando-o do carregador.
— Olá?
— Scarlett. — É Drew. Sua voz soa estranha, tensa como um
arco.
Ele sabe.
— Está tudo bem? — Eu pergunto, embora eu saiba muito
bem que não está.
— Receio ter más notícias.
Jasper se inclina ao meu lado para ouvir. Eu engulo a vontade
de empurrá-lo para longe do receptor.
— O que é?
— É Kinnear, ele… — Drew para de falar, respirando fundo,
estremecendo. — Ele está morto.
Jasper fica tenso. Não consigo olhá-lo nos olhos; tenho medo
de me entregar.
— Ai, meu Deus, isso é... isso é horrível — eu digo. — O que
aconteceu?
— Sua... eu acho que sua casa pegou fogo durante a
noite. Rafael e eu, estávamos levando a cadela para seu passeio
matinal e sentimos o cheiro da fumaça. Havia caminhões de
bombeiros por toda parte, ambulâncias, eu...
— Talvez ele esteja bem, então. — Parece a coisa certa a se
dizer. Estou tentando me concentrar em modular minha
reação de forma adequada, mas Jasper me distrai muito; o calor
de sua pele pressionando meu robe, o cheiro dos meus
produtos de banho persistindo em seu cabelo. Eu tenho que
me livrar dele. — Talvez ele tenha saído a tempo ou não estava
em casa.
— Não — Drew diz. — Não, o legista do condado também
estava lá. E há… bem, não há nenhuma maneira de alguém ter
sobrevivido. A casa, é... quase não sobrou nada.
Eu pressiono meus dedos na minha testa, mais para esconder
meu rosto de Jasper do que qualquer coisa. Não posso deixá-lo
ver a esperança em meus olhos: a esperança de que o fogo que
provoquei destruiu tudo, de que não sobrou Kinnear o
suficiente para a polícia descobrir como ele morreu.
— Devemos ir para o escritório? — Eu digo. — Ou esperar
até segunda-feira?
— Eu não sei. Eu… Deus, o que vamos dizer aos alunos?
— Ele soa como se estivesse à beira das lágrimas, mas então ele
exala, se firmando. — Vou entrar em contato com todos. Faça
uma reunião amanhã para a primeira coisa do dia, e então...
Sua cachorra boxer idosa começa a latir, e ouço Rafael
mandá-la calar. Então silêncio.
— Drew?
— Eu tenho que ir — ele diz.
— Por quê? — Eu pergunto. — O que é…
— A polícia está aqui.
36
CARLY

Passo pela aula de redação sem chorar.


Então Alex me pede para ficar por um minuto, e o calor
começa a aumentar como um fósforo aceso atrás dos meus
olhos. Eu deveria ter faltado como Wes fez, tentado descansar
um pouco. Mas eu sabia que nunca conseguiria dormir depois
daquela discussão com minha mãe e não queria incomodar
Allison. Ela estava totalmente inconsciente no momento em
que desliguei o telefone, apesar do jeito que eu estava
levantando minha voz no corredor.
Enquanto o resto dos alunos sai, não consigo nem olhar para
Alex. Tenho certeza que ele vai me contar que a história que li
hoje foi terrível (foi, eu sei que foi). Minhas mãos estão
tremendo tanto que tenho que agarrar as alças da minha
mochila para firmá-las. Eu não posso suportar isso hoje. Eu não
aguento mais nada.
Depois que todo mundo vai embora, tudo o que posso fazer
é não sair correndo da sala atrás deles.
— Está tudo bem, Carly? — ele pergunta.
Não era isso que eu esperava: a compaixão genuína em sua
voz, as rugas de preocupação ao redor de seus olhos. Tento
manter tudo dentro, brincar como se estivesse tudo bem, mas
estou muito cansada. Meu rosto amassa-se como um pedaço de
papel amassado e as lágrimas escorrem pelo meu rosto.
As poucas vezes que chorei na frente de caras antes, eles
sempre agiram em pânico, como se eu de repente tivesse me
transformado em um monstro horrível e assustador. O que
ainda é melhor do que a forma como meu pai reagiu às
lágrimas: como se fossem uma afronta pessoal para ele.
Mas Alex nem parece perturbado. Ele fecha a porta do
escritório e me conduz até a cadeira mais próxima, em seguida,
me entrega alguns lenços de papel da gaveta da escrivaninha
antes de se sentar ao meu lado, os cotovelos apoiados nos
joelhos.
— Você quer falar sobre isso?
Limpo meus olhos com o lenço de papel, fungando. Eu não
tenho ideia do que dizer. Mas talvez Alex pudesse ajudar. Ele é
um adulto, uma figura de autoridade. Ele está muito melhor
equipado do que eu para lidar com uma situação como esta. Ele
pode até saber a maneira certa de relatar o que Bash fez, para ter
certeza de que ele é considerado responsável.
— Tudo bem se você não quiser. — Alex estende a caixa de
lenços. — Aqui, você quer outro?
Eu balanço minha cabeça.
— Estou muito cansada.
Alex sorri.
— Festejando o Halloween até tarde?
Eu enrijeço. Ele está tão perto da verdade, mas
completamente errado.
— Minha colega de quarto, hum... adoeceu. Tivemos que ir
ao pronto-socorro. Ficamos lá a noite toda.
Seu sorriso desaparece, franzindo a testa com preocupação.
— Sinto muito por ouvir isso. Ela está bem?
Não sei como Allison está agora, mas ela definitivamente não
está bem. Mas não posso contar a Alex o que aconteceu ontem
à noite. Allison nem queria contar a verdade a Wes; ela nunca
me perdoaria se eu contasse a um professor, um estranho.
— Ela está bem — eu digo — Ela está de volta ao nosso
quarto, descansando um pouco.
— Isso é bom — diz Alex — E você? Você está bem?
— Eu estou… — Mas nenhuma palavra saiu, apenas mais
lágrimas. Isso é tão humilhante.
Mas Alex permanece totalmente calmo, como se eu pudesse
chorar o resto do dia e ele não se importasse. De alguma forma,
isso também me deixa mais calma.
— Ela tem sorte — diz ele —, de ter uma colega de quarto
que se preocupa com ela tanto quanto você. — Ele se inclina
um pouco para trás em sua cadeira, me dando espaço. — O
primeiro ano é uma época muito difícil para todos. É um
grande ajuste.
É — era. Eu deveria ter me ajustado agora, certo?
— Quando vim para Gorman pela primeira vez — diz Alex
—, foi um grande ajuste para mim também.
Acho isso difícil de acreditar. Alex parece o tipo de pessoa
que faria amizade com qualquer pessoa, em qualquer
lugar. Não como eu. Todos os meus “amigos” em Gorman são
na verdade amigos de Allison — Wes incluindo. Eles só me
toleram porque Allison gosta de mim. Se Allison decidir que
não quer mais, acabou. Eu estarei sozinha novamente.
— Minha esposa estava na pós-graduação — continua
Alex. — Portanto, só nos víamos algumas vezes por ano.
— Você é casado? — Ele nunca mencionou ter uma esposa
antes. Ele também não está usando um anel e não há fotos dela
em sua mesa.
Alex acena com a cabeça. Estamos sentados tão perto agora
que posso ver que seus olhos não são apenas azuis, eles têm
pequenas manchas verdes nas bordas.
— Olha — ele diz —, eu não quero bisbilhotar, mas se você
precisar de alguém para conversar, estou aqui. — Ele abaixa a
cabeça para me olhar bem nos olhos — Ok?
Eu assinto, torcendo o lenço de papel úmido entre meus
dedos. Pedaços de tecido caem no chão como cinzas.
— Não apenas durante o horário de expediente. Aqui.
— Alex volta para sua mesa e pega um cartão de visita,
anotando outro número de telefone no verso. — Esse é o meu
telefone pessoal. Ligue a qualquer hora.
Não consigo me imaginar ligando para um professor. Mas eu
nunca vi um professor mostrar tanta preocupação comigo
antes. No colégio, não importa o quão ruim as coisas tenham
sido com meu pai, não importa o quanto retraí ou revelei, cada
membro do corpo docente que encontrei me tratou com total
indiferença. Alex percebeu minha angústia imediatamente — e
não só isso, ele tentou fazer algo a respeito. Sua esposa é uma
mulher de sorte.
— Sei como às vezes pode parecer — diz ele, e o calor de seu
sorriso é como a luz do sol no meu rosto. — Mas acredite em
mim, Carly: você não está sozinha aqui.
37
SCARLETT

— Estou feliz, se você me perguntar — Jasper diz.


Eu torço meu rosto em uma expressão de nojo (essa reação,
pelo menos, eu não tenho que fingir) enquanto coloco o
telefone ao lado do fogão.
— Um homem está morto, Jasper.
— Ah, vamos lá. — Ele me puxa pelo pulso, prendendo-me
entre seu corpo e o balcão. — Você odiava
Kinnear. Deveríamos estar celebrando.
Jasper se abaixa para me beijar, mas eu empurro seu peito. Os
ovos mexidos estão começando a soltar fumaça, um cheiro
carbonizado enchendo a cozinha, o ar ao nosso redor ficando
nublado. Ele redobra seus esforços, cravando os dedos na base
do meu crânio para forçar meu rosto para cima em direção ao
dele, e tudo que consigo pensar é em páginas queimadas, tecido
queimado, carne carbonizada. Eu o empurro de novo, com
tanta força que ele tropeça para trás, quase colocando as mãos
no fogão quente.
— Jesus! — Ele desliga o fogo. — Qual é a merda do seu
problema?
— Você precisa sair. — Eu endireito meu robe, aliso meu
cabelo onde ele bagunçou novamente.
Ele suspira.
— Vamos sentar e tomar café da manhã, e então…
— Agora, Jasper. — Tiro a frigideira do fogão e jogo o
conteúdo no lixo. Os ovos são uma bagunça queimada, muito
além de salvar. — E eu quero sua chave de volta.
Eu estendo minha mão. Jasper me encara, sua mandíbula
trabalhando. Não tenho tempo para isso — seu humor, seus
jogos, suas tentativas infantis de me manipular. Eu nunca
deveria ter me envolvido com ele em primeiro lugar.
Sua bolsa está na beira do balcão, ao lado do meu bloco de
faca. Pego a sacola, enfiando a mão no bolso da frente até sentir
seu chaveiro.
— O que você está fazendo? — ele diz.
Minha chave de casa ainda tem a tampa de plástico vermelha
que eu coloquei antes de colocá-la na caixa de correio do aluno
de Jasper na primavera passada, enfiada em um envelope não
marcado.
— Scarlett, vamos lá.
Eu uso minha unha para separar o anel de metal, puxando
minha chave para fora. Eu estendo o resto das chaves para ele,
mas ele não as pega. Ele está pairando sobre mim novamente,
olhos escuros.
— Você sabe que não preciso disso para entrar nesta casa —
diz ele.
— Dê o fora daqui. — Atiro o chaveiro em seu peito e ele o
agarra, segurando o metal contra o esterno. Estou tremendo,
cravando as unhas nas palmas das mãos para me manter sob
controle. Ele precisa ir embora ou vou machucá-lo, muito pior
do que fiz ontem à noite.
Jasper pega sua bolsa e sai da cozinha. Poucos segundos
depois, a porta da frente bate e eu afundo no balcão com alívio.
Mas não consigo relaxar — ainda não. Talvez nunca mais.
Passei o resto do domingo limpando: jogando fora as cinzas
da lareira, esfregando minha pele em carne viva no chuveiro,
tentando raspar os restos ossificados dos ovos mexidos da
frigideira antes de desistir e jogar tudo no lixo com um grito
frustrado. Não me preocupo em cozinhar mais
nada. Normalmente fico faminta depois de uma morte, mas
hoje meu estômago está um nó nauseado.
A manhã de segunda-feira amanhece fria e cinzenta. Eu mal
dormi, mas pelo menos isso me poupou de mais sonhos de um
Kinnear chamuscado e gritando. Eu saio da cama ainda mais
cedo do que de costume e escolho uma roupa adequadamente
sombria para o trabalho. Depois de fazer minha maquiagem,
esfrego meus olhos um pouco para que fiquem lacrimejantes e
avermelhados de uma forma que se assemelha a lágrimas reais.
Não sou boa nessa parte — uma das muitas razões pelas quais
prefiro matar homens fora do meu círculo social. Já que
Kinnear era um colega, eu havia preparado uma longa lista
mental de coisas boas, mas evasivas, que eu poderia dizer sobre
o falecido no rescaldo. Mas pensei que estaria discutindo sua
morte como um acidente humilhante, não um crime violento.
Um movimento errado, uma nota falsa em minha voz pode
ser o suficiente para atrair suspeitas. Mas se eu conseguir fazer
isso — se eu puder executar o choque e a tristeza apropriados
na frente dos meus colegas, fazê-los acreditar que estou tão
perturbada quanto eles por esta tragédia repentina — estarei
um passo mais perto de escapar impune disso.
O cheiro de fumaça pairando no ar durante a minha
caminhada para o campus não faz nada para a minha
náusea. Quando chego ao Miller Hall, há duas viaturas
estacionadas do lado de fora. Polícia de Gorman Township —
um terço da força local.
Respiro fundo e coloco meu rosto em uma máscara de
preocupação antes de entrar. As salas de aula pelas quais passo
estão todas vazias, as luzes ainda apagadas. À medida que me
aproximo do corredor que abriga os escritórios da faculdade,
ouço choro suave e palavras sussurradas. Todos estão
amontoados do lado de fora do escritório de Kinnear como
uma espécie de vigília estranha.
Sandra Kepler está de pé no meio da multidão, fungando em
um lenço de papel rasgado, os olhos tão inchados de tanto
chorar que as pupilas mal são visíveis. Ela acena para mim.
— Scarlett, graças a Deus você está aqui!
Deixo Sandra me abraçar e lhe dou um tapinha que espero
ser reconfortante. Enquanto ela me abraça, eu olho por cima
do ombro para a antessala do escritório de Kinnear. Drew está
na porta, as mangas da camisa empurradas além de seus
cotovelos como se ele já tivesse trabalhado duro por horas,
enquanto dois policiais uniformizados conversam com a
secretária abalada de Kinnear. Stright também está lá, parado
bem atrás dela, as mãos apertando seus ombros como se ele
estivesse fazendo uma massagem nela.
Conforme a primeira aula da manhã se aproxima, mais
alunos invadem o corredor, tentando descobrir o que está
acontecendo. É como uma onda, enquanto o que aconteceu é
sussurrado de pessoa para pessoa: rostos iluminados pelo
choque, mãos voando para a boca, olhos marejados de
lágrimas. Quando Mikayla entra, segurando uma pilha de
livros da biblioteca contra o peito, Ashleigh Lawrence sinaliza
para ela compartilhar as novidades. Em resposta, Mikayla
apenas pressiona os lábios — decidida, como se ela sempre
soubesse que esse dia chegaria.
Os policiais emergem do escritório, com Drew e Stright um
passo atrás deles. A secretária de Kinnear fica lá dentro, a cabeça
inclinada sobre a mesa.
— Se houver alguma maneira de podermos ajudar mais… —
diz Drew.
O mais alto dos dois policiais acena com a cabeça.
— Obrigado, Dr. Torres. Manteremos contato.
Os dois policiais parecem jovens o suficiente para serem
estudantes. Com um crime dessa magnitude, porém, é apenas
uma questão de tempo antes que eles invoquem armas maiores
para investigar.
Tenho relativamente pouca experiência pessoal direta com a
polícia. Fui entrevistada por detetives locais após minha
primeira morte, mas eles me aceitaram pelo que eu parecia ser:
uma estudante universitária chorando com muito pânico e
angústia para possivelmente ser responsável pelo que tinha
acontecido. Vários dos meus assassinatos em Chicago foram
investigados como assassinatos, mas mesmo aqueles casos
próximos não chegaram a mim: eu não deixei DNA no local e
não tinha nenhuma relação com as vítimas, então as
autoridades nem mesmo me levara para interrogatório.
Stright começa a levar os policiais para fora, mas uma aluna
o pega pela manga — a mesma loira bonita do segundo ano que
vi dando um passeio de vergonha da casa de Kinnear durante
minha vigilância pré-morte.
— Dr. Stright, é verdade? — ela pergunta.
Ele acena com uma solenidade exagerada.
— Temo que sim.
Ela começa a chorar, desabando nos braços da garota ao lado
dela. Em vez de tentar confortá-la — ou a qualquer um dos
outros alunos que choram abertamente —, Stright desliza o
braço em volta dos ombros de Mikayla.
— Tudo vai ficar bem — diz ele, dando-lhe um aperto.
Ela imediatamente encolhe os ombros para longe dele,
escovando a manga como se houvesse sujeira nela, e eu sinto
uma onda de orgulho quase maternal.
Drew levanta as mãos para chamar a atenção de todos.
— Todas as aulas estão canceladas hoje, mas a partir das dez
da manhã haverá representantes do centro de aconselhamento
do campus na Sala de Aula C para quem precisar conversar. E,
claro, minha porta está aberta para vocês também.
Enquanto ele fala, todos parecem se acomodar, apaziguados
por sua competência serena. Bem, exceto Sandra Kepler. Ela
pressiona os restos do lenço nos lábios como se estivesse
tentando segurar as emoções em sua língua até que se
dissolvam.
Assim que a multidão começa a se dispersar, eu me aproximo
de Drew e coloco a mão em seu ombro. Ao meu toque, ele exala
e sua postura suaviza. Parece que ele dormiu tão bem quanto
eu ontem à noite.
— Como vai? — Eu pergunto.
— Eu só… — Ele balança a cabeça. — Ainda não consigo
acreditar.
— Eu sei. — Eu aperto seu ombro e ele coloca sua mão sobre
a minha, apertando de volta. — A polícia foi a sua casa ontem?
— Eles estavam conversando com as pessoas da vizinhança,
tentando descobrir se alguém viu alguma coisa. — Drew
baixou a voz para um sussurro. — Eles acham que ele estava
morto antes do incêndio começar, que alguém o assassinou e
incendiou a casa para encobrir. Isso não é loucura? — Ele passa
os dedos pelo cabelo, deixando alguns pedaços em pé. — Acho
que Rafael está mais chateado do que eu; ele passou o dia todo
ontem instalando detectores de incêndio extras. Como se isso
fizesse alguma diferença com um assassino à solta.
Eu puxo minha mão.
— Bem, você está fazendo um ótimo trabalho mantendo as
coisas juntas por aqui.
Ele realmente está: ele tem talento para isso. Talvez agora que
Kinnear está morto, eles deem a Drew a posição de chefe de
departamento que deveria ter sido dele o tempo todo.
— Obrigado. — Drew consegue dar um sorriso fraco. —
Você acha que poderia me ajudar a reunir todos para uma
rápida reunião do corpo docente?
— Claro — eu digo, refletindo o pequeno e triste arrepio de
seus lábios. — Dez minutos?
— Você é a melhor, Scarlett.
Eu posso lidar com isso. Posso ser útil, uma jogadora de
equipe, fazendo o que posso para manter as coisas
juntas. Como todo mundo.
Drew e eu saímos em direções opostas, parando todos os
professores que vemos para informá-los sobre a reunião na sala
de conferências. Eu verifico a sala dos professores, esperando
encontrar alguns de nossos colegas lamentando por causa de
um café preto e uma caixa de lenços de papel, mas a sala está
fechada, apenas a escuridão visível através da estreita janela de
vidro da porta.
Estou prestes a seguir em frente quando ouço uma
inspiração profunda, quase um suspiro. Eu espio pela janela,
procurando a fonte do som.
Mina. Ela está sozinha, encolhida no chão em um canto, o
rosto enterrado nas mãos. Estou dominada pela necessidade de
correr para o lado dela e envolvê-la em meus braços, acariciar
seus cabelos, sussurrar garantias. Mas não importa o quão tenso
foi o casamento deles, tenho certeza de que a última pessoa de
quem Mina gostaria de ganhar consolo agora é a assassina de
seu ex-marido.
Eu escapo antes que ela me veja, seus soluços angustiados
ainda ecoando em meus ouvidos.
38
CARLY

— Você quer algumas das minhas batatas fritas?


Empurro a bandeja para Allison. Ela recua, como se eu a
tivesse assustado. Seu próprio almoço — um pequeno
recipiente de papel com sopa de tomate e alguns biscoitos
amassados — permanece intocado na mesa. Pelo menos eu
consegui que ela fosse ao refeitório hoje.
Allison aceita uma única batata frita do meu prato. Em vez
de comê-la, porém, ela começa a separá-la, esfolando a camada
externa crocante.
Wes vem até nossa mesa, carregando sua própria bandeja. Ele
pediu o mesmo cheeseburger especial que eu pedi, anéis de
cebola e molho de churrasco por cima. Ele sorri para nós, mas
a expressão desaparece quando ele dá uma boa olhada em
Allison.
Em vez de suas roupas de brechó selecionadas e maquiagem
retrô-chique, ela está vestindo um suéter Gorman folgado com
uma mancha de graxa na frente, o rosto nu e manchado. Não
tenho certeza de quando ela lavou o cabelo pela última vez; os
fios azuis desbotaram para uma sombra doentia de piscina.
— Ei. — Wes se senta ao lado dela e tenta colocar a mão em
sua testa para verificar se há febre. — Você está doente?
Allison se afasta dele, sua cadeira empurrando para trás com
um guincho.
— Vou ao banheiro.
Também começo a me levantar, com a intenção de segui-la,
mas talvez seja melhor dar a ela um momento a sós. Ou talvez
ela não devesse ser deixada sozinha.
— O que está acontecendo com ela? — Wes coloca sua mão
sobre a minha, tentando chamar minha atenção. — É sobre o
que aconteceu na festa?
Allison desaparece no banheiro do outro lado do refeitório,
mas continuo olhando para a porta como se ainda pudesse vê-
la. Eu puxo minha mão de Wes.
Ela finalmente volta para a mesa no momento em que Wes
está terminando seu almoço. Ela parece ainda mais pálida do
que quando saiu, suas bochechas rosadas e úmidas como se ela
tivesse jogado água fria nelas. Também perdi o apetite.
— Espero que você se sinta melhor, Allie — Wes oferece
enquanto se levanta para limpar sua bandeja.
Allison tenta sorrir para ele, mas não é muito convincente.
— Estou bem.
Ela fica dizendo isso. Mas durante toda a semana ela dormiu
durante as aulas, mal comeu. Ela ainda vai ao ensaio
do Cabaret, mas isso significa passar horas na mesma sala que
Bash. Quero ajudá-la, mas não tenho ideia do que fazer.
Bem, isso não é totalmente verdade. Tenho uma ideia, mas
acho que ela não vai gostar.
— Você quer que eu te acompanhe de volta ao Whit? — Eu
pergunto a ela. — Minha próxima é só às duas.
Allison dá de ombros, como se ela não pudesse se importar
menos. Mas ela se levanta e me segue, primeiro até a fila de latas
de lixo para jogar meu almoço meio comido e sua sopa intocada
em temperatura ambiente, e depois para fora.
É um dia claro e limpo, congelando nas sombras, mas
suportável à luz. Allison está usando seu casaco favorito — um
feito de brocado verde vintage com gola de pele falsa — mas ela
ainda treme enquanto descemos a calçada ensolarada em
direção ao nosso dormitório.
Impulsivamente, eu deslizo meu braço ao redor dela. Ela
enrijece no início, mas não se afasta. Eu poderia jurar que seus
ombros estão mais leves, mais afiados. É como se ela estivesse
encolhendo e deixando de existir.
Enquanto isso, Bash está apenas cuidando de seus
negócios. Passei por ele em Oak Grove esta manhã, jogando um
Frisbee para frente e para trás com outro cara do departamento
de teatro, sorrindo e rindo, sem nenhuma preocupação no
mundo.
— Allison, não fique brava, mas… — Eu engulo, mantendo
meus olhos focados à frente. — Eu fiz algumas pesquisas.
Ela me olha.
— Sobre o quê?
— Sobre como relatar... o que aconteceu.
Allison para no meio do caminho. Ela está tremendo,
balançando a cabeça, piscando rapidamente para conter as
lágrimas. Eu odeio vê-la chateada, mas depois de tantos dias de
apatia inquietante, essa reação é quase um alívio.
— Não vou à polícia… — diz ela. —De jeito nenhum. Você
ouviu o que o médico disse, não há provas, e eles vão contar aos
meus pais, e…
— Não a polícia.
Conto a ela o que descobri durante as várias horas que passei
na biblioteca ontem, procurando desesperadamente alguma
maneira de ajudá-la: há um processo oficial para denúncia de
agressão sexual no campus. Você vai ao escritório do reitor de
alunos, faz uma declaração sobre o que aconteceu e eles fazem
sua própria investigação interna. Sem polícia necessária.
Allison continua balançando a cabeça, algumas lágrimas
escorrendo pelo seu rosto. Ainda estamos bloqueando a
calçada e outros alunos se separaram para nos contornar,
esmagando as folhas mortas reunidas na beira da grama.
— O que ele fez com você não foi bom. — Eu pego a mão de
Allison. Os nós dos dedos dela estão gelados. — Você sabe que
não foi.
Ela começa a andar de novo, mas não solta minha mão. Eu a
deixei me puxar, o calor crescendo entre nossas
palmas. Quando chegamos aos degraus da frente de Whit, ela
finalmente se vira para mim.
— Se eu denunciá-lo — diz ela —, você irá comigo?
Eu aperto a mão dela.
— Claro que eu vou.
39
SCARLETT

Quando chego na capela do campus para o funeral de Kinnear,


Mina já está lá, sentada sozinha no centro de um banco.
Ao contrário da última vez que a vi, ela parece
completamente recomposta, os olhos secos e claros. Eu vejo
quando Drew e Rafael se aproximam dela, seus rostos
combinando com máscaras de simpatia educada. Mina sorri
calorosamente para eles, mas assim que eles se viram para sentar
em seus próprios lugares, seu sorriso cai e sua mandíbula aperta.
Esta é a primeira vez que participo de um funeral de uma de
minhas vítimas em Gorman. Mas estou aqui como conhecida e
colega de Kinnear, nada mais. Eu deveria estar triste por ele
estar morto — e preocupada com o possível assassino à solta —
, mas não arrasada.
Eu ando em volta dos buquês ostentosos que revestem o
corredor para deslizar para o banco ao lado de Mina. As flores
são totalmente brancas, assim como as paredes da capela, mas
os vitrais acima do altar lançam fragmentos de cores em todas
as superfícies — incluindo o vestido de suéter cinza macio de
Mina. Ela é a única aqui que não está usando preto.
Mikayla Atwell está bem na nossa frente, um dos poucos
alunos de graduação presentes, apesar das extremas exibições
emocionais que tenho testemunhado nos corredores de Miller
durante a maior parte da semana. Mikayla se vira para me dar
um breve sorriso de saudação antes de inclinar a cabeça sobre o
livro em seu colo novamente.
Mina continua olhando para o caixão fechado. Eu me
pergunto o que eles encontraram para colocar lá. Resisti à
tentação de dirigir pela propriedade de Kinnear durante os
últimos dias, mas o jornal local publicou uma foto da casca
queimada de sua casa. Queimou até o chão, ainda melhor do
que eu poderia esperar.
Eu olho para Mina, tentando pensar na coisa certa a dizer. O
lamento muito pela sua perda não funcionará nesta
situação. Não sinto muito e não é realmente a perda dela.
Ela me vence.
— Estou feliz por você estar aqui — ela diz. — Talvez você
os assuste.
Mais pessoas estão entrando a cada minuto — incluindo
Stright e sua esposa, uma loira pálida fantasmagórica com uma
expressão permanentemente comprimida. Ou talvez ela só
pareça tão azeda perto do marido; eles parecem se odiar
totalmente. Eu me pergunto se era assim que Mina e Kinnear
eram quando ainda eram casados.
— Assustar quem? — Eu pergunto.
— Todas essas pessoas que querem saber “como estou me
saindo”.
— Por que eu os…
Ela se vira para mim. De perto, posso ver como ela está
cansada, a vermelhidão ainda marcando seus olhos, a
maquiagem não cobrindo bem a palidez de sua pele.
— Porque você é assustadora. — Ela sorri e bate seu quadril
no meu. Meu peito arrepia com o calor sob a gola alta da minha
blusa preta. — Isso é o que eu gosto em você.
Uma sombria melodia de órgão começa a tocar, sinalizando
o início do serviço. Mesmo que a capela esteja quase cheia,
nossa fileira permanece apenas nós duas — e a fileira da frente
permanece totalmente vazia. Sem família, pelo menos ninguém
disposto ou capaz de fazer a viagem.
O porteiro está prestes a fechar a porta quando mais duas
pessoas entram: uma mulher com cabelo grisalho em um
cabelo curto de corte prático, e um cara negro com cara de
bebê, nenhum dos quais parece familiar. O homem mantém a
mão na porta para mantê-la aberta para um último retardatário.
Jasper. Esta é a primeira vez que o vejo desde que o expulsei
de minha casa. Ele nunca apareceu para trabalhar na segunda-
feira e, desde então, faltou a todas as aulas e horas de expediente,
apenas notando um e-mail de uma linha informando que ele
estava “indisposto”. Ele parece perfeitamente saudável hoje em
um terno preto bem passado, seu rosto angular não mais pálido
do que o normal.
Mina respira fundo. Ela está olhando para a porta também e,
a princípio, acho que ela está reagindo à chegada de Jasper. Mas
seus olhos seguem o outro par, a mulher mais velha e o homem
mais jovem.
Ela se volta para a frente da capela.
— Eles poderiam pelo menos esperar até depois da porra do
funeral.
— Quem são eles? — Eu pergunto. Os dois estão claramente
aqui juntos, mas eles não aparecem como um casal. Ela tem
idade para ser mãe dele, se o tivesse jovem.
— Aqueles detetives que trouxeram de Pittsburgh — diz
Mina. — Eu fiquei trancada em um quarto com aquela mulher
por horas ontem. Se eu não estivesse em meu escritório com
Mikayla no momento da morte de Alexander, acho que ela teria
me algemado.
Eu esperava que a investigação fosse assim, mas certamente
não esperava que Mina fosse suspeita. Graças a Deus ela tem
um álibi sólido.
Jasper se senta do outro lado da capela, enquanto Stright e
sua esposa deslizam para o banco bem na nossa frente. Stright
bate com o ombro no de Mikayla, em seguida, levanta a capa
do livro para ver o que ela está lendo. Sua esposa finge não
perceber, olhando dentro da bolsa sem tirar nada.
Os detetives permanecem de pé, assumindo posições contra
a parede. Portanto, eles não estão muito preocupados em
permanecer discretos. Ambos estão vestidos com roupas
escuras indefinidas, mas eles estão examinando a sala como se
estivessem captando cada detalhe. Principalmente a
mulher. Ela tem olhos afiados e errantes como os de uma ave de
rapina. Seu olhar pousa em mim e eu olho para longe, focando
em Mina novamente.
— Eles têm outros suspeitos? — Eu pergunto.
— Não que eu saiba. — Mina balança a cabeça. — Quero
dizer, eles deveriam ter muitas opções para escolher. Muitas
pessoas o odiavam.
Sua voz está cheia de desprezo, mas novas lágrimas escorrem
por seu rosto.
— Ele era um bastardo — diz ela. Então ela desmorona
completamente.
Não tenho ideia do que fazer além de abraçá-la, do jeito que
eu queria quando a vi chorando na sala dos professores. Ela se
inclina contra mim, soluçando no meu peito. Mikayla olha
para nós, a testa franzida de preocupação, mas Stright
permanece de frente, fingindo não notar a cena acontecendo
atrás dele. Ele está sentado muito mais perto de Mikayla do que
o necessário, enquanto deixa vários centímetros de espaço entre
ele e sua esposa.
Enquanto a missa começa, Mina continua chorando, então
eu mantenho meu braço em volta dela, acariciando seus
cabelos. Jasper me encara do outro lado da sala —
provavelmente sua principal motivação para comparecer ao
funeral, em primeiro lugar. Ele com certeza não está aqui para
lamentar Kinnear.
A maioria dos palestrantes são colegas acadêmicos, e todos
dizem alguma variação dos mesmos chavões genéricos:
Alexander Kinnear foi um estudioso brilhante. Ele se
importava profundamente com seus alunos. Ele foi tirado de
nós muito cedo e sentiremos sua falta.
Quando o último orador sobe ao pódio, porém, quase
suspiro em voz alta.
É Judith Winters, curadora-chefe da Women’s Academy.
Não tinha ideia de que ela estaria aqui e não posso acreditar
que não a notei antes. Ela se parece exatamente com sua foto
no site do arquivo, seu distinto cabelo prateado penteado para
trás em uma torção.
Judith se apresenta como uma “velha amiga de Alexander de
Cambridge” e Mina faz um som contra meu ombro que pode
ser um escárnio ou uma fungada. Da maneira como Judith
torna-se poética sobre quão engraçado e generoso Kinnear era,
estou supondo que eles devem ter dormido juntos pelo menos
uma vez. Kinnear tinha um talento especial para fazer mulheres
inteligentes fazerem coisas estúpidas.
— Anos atrás — diz Judith —, Alexander me disse que não
queria que nenhum versículo da Bíblia fosse lido em seu
funeral, apenas Shakespeare. Esta era sua passagem favorita.
Ela fala as falas de memória: o discurso “Ser ou não ser”
de Hamlet. Ao redor da sala, as pessoas estão acenando com a
cabeça, seus olhos brilhando com lágrimas. Tudo o que posso
pensar é: essa leitura seria muito mais apropriada se sua morte
tivesse ocorrido como planejado e todos pensassem que ele se
matou.
Quando Judith termina, seus olhos também estão
brilhando. Alguém atrás começa a aplaudir, e então o resto da
platéia se junta a eles. Parece de mau gosto aplaudir em um
funeral. Mas Kinnear provavelmente teria adorado.
O serviço termina com um melancólico hino de piano, e
Stright e os outros carregadores colocam o caixão de Kinnear
nos ombros para carregá-lo para fora da capela. Não quero sair
do lado de Mina, mas também estou desesperada para falar com
Judith. Não que eu possa falar sobre a sociedade agora —
mesmo eu sei o quão insensível e inapropriado isso seria —, mas
devo pelo menos tornar minha presença conhecida.
Judith está parada perto do local onde o caixão de Kinnear
estava alguns momentos atrás, conversando com o reitor do
departamento de humanidades. Estou prestes a dar uma
desculpa a Mina para que eu possa ir até lá e falar com ela,
quando dois corpos se movem na frente do nosso banco,
bloqueando a visão de Judith.
Mina fica tensa, aconchegando-se mais perto do meu
lado. São os detetives.
O jovem fala primeiro.
— Bom dia, Dra. Pierce.
Mina estreita os olhos para ele.
— Isso é realmente necessário? Eu já te disse…
— Sim, obrigada novamente, Samina. Você foi muito útil
ontem — diz a detetive. — Na verdade, esperávamos falar com
a sua amiga.
Ela estende a mão para eu apertar.
— Professora Clark, sou a detetive Sharon Abbott. Este é
meu parceiro, o detetive Benjamin Flynn. Estamos com o…
Eu pego a mão dela.
— Departamento de Polícia de Pittsburgh. Sim, eu sei.
Eles já sabem quem eu sou. Eles estão me procurando,
especificamente. Mas não posso mostrar nenhum sinal de
inquietação. Isso não significa nada. Mesmo se eles suspeitarem
que eu matei Kinnear, eles vão precisar de evidências, e eu não
deixei nenhuma.
Pelo menos, não que eu saiba.
— Mina mencionou que você tem entrevistado nossos
colegas — eu digo. — Eu ficaria mais do que feliz em sentar
com você o mais cedo possível.
O detetive Flynn tira um cartão de sua carteira e o entrega
para mim.
— Você pode entrar em contato com qualquer um de nós
neste número.
— Obrigada. — Eu pego o cartão. — Embora eu não saiba o
quão útil eu possa ser, na verdade. Receio não saber muito
sobre a vida do Dr. Kinnear fora da universidade.
— Tenho certeza que você sabe mais do que pensa —
Abbott diz, fixando aqueles olhos astutos em mim. Ela vai ser
um problema, eu posso dizer. Mas vou me preparar para esta
entrevista como me preparo para todo o resto.
Assim que os detetives vão embora, procuro Judith Winters
novamente, mas ela já deve ter escapado. Não importa: vou
alcançá-la no cemitério. Talvez seja melhor de qualquer
maneira. Vou encontrar uma maneira de ficar perto dela
durante o enterro e me apresentar depois. Podemos relembrar
nosso amigo em comum e, em seguida, discutir meu futuro.
Estou tão absorta em minhas estratégias que levo um
momento para perceber que Mina está tremendo, mais
lágrimas escorrendo pelo seu rosto.
— Não consigo… — ela diz.
— O quê? — Eu me inclino, passando meu braço em volta
dela.
— Não posso, não posso ir ao cemitério, não posso vê-los…
— Ela desaba novamente, os ombros arfando, mas desta vez
está em silêncio.
— Está tudo bem — eu digo. — Você não precisa; você pode
ir para casa. Todos vão entender.
Outro soluço silencioso estremece através dela, e ela agarra
minha manga.
— Você vem comigo?
Já recusei Mina várias vezes antes, mas neste momento, com
aqueles olhos lindos e angustiados olhando diretamente para os
meus, não consigo me obrigar a fazer isso. Ela não deveria estar
sozinha agora, e eu sou a única responsável. A conexão com
Judith pode esperar.
Eu aperto seu ombro e sorrio.
— Claro.
40
CARLY

Eu não tinha certeza se ela iria continuar com isso. Mas na


manhã de nosso encontro com o reitor de alunos, Allison está
acordada e pronta para sair antes de mim.
Ela até tomou banho, mas não secou o cabelo. Na
caminhada de Whit ao Capin Hall, os fios úmidos congelam
em pequenos pedaços de gelo azuis. É a manhã mais fria do
semestre até agora, com geada brilhando no chão. A maioria
dos outros alunos pelos quais passamos está melhor do que nós,
com lenços enrolados na boca, gorros de malha puxados para
baixo sobre as sobrancelhas.
Capin é o edifício mais alto de Oak Grove, erguendo-se sobre
as copas das árvores. Há uma pequena torre de sino branca
presa no topo, mas nunca a ouvi tocar. Meu estômago se revira
enquanto subimos os degraus, mas não sei quanto é por causa
dos nervos e quanto é por causa da fome. Allison ainda se
recusa a tomar café da manhã, então eu também não comi
nada, em solidariedade.
No meio do caminho para a entrada, Allison para, olhando
para a fachada imponente do prédio, o vapor branco de sua
respiração obscurecendo sua expressão.
Eu ofereço a ela minha mão.
— Vai ficar tudo bem. Você está fazendo a coisa certa.
Ela não parece convencida. Mas ela pega minha mão e
continuamos subindo.
Dou o nome de Allison em vez do meu quando falo com a
recepcionista, um jovem de óculos com um colete de lã
carmesim. Allison fica para trás, olhando em volta
nervosamente. É quase tão silencioso quanto a biblioteca do
campus aqui, os únicos sons são de toques de telefone
silenciados e o clique distante de saltos altos.
Somos o primeiro compromisso do dia, então ela nos conduz
diretamente ao escritório do reitor antes mesmo de termos a
chance de nos sentarmos nas cadeiras de aparência
desconfortável na frente.
O site da universidade listava apenas um sobrenome, então
eu esperava um velho severo, talvez usando óculos de aro de
tartaruga e uma jaqueta de tweed. Em vez disso, Dean Bowman
é uma mulher vários anos mais jovem que minha mãe, com
olhos castanhos calorosos e cabelos loiros arrumados em um
estilo elegante e despojado que apenas roça o lenço floral
amarrado em seu pescoço.
Ela se levanta para nos cumprimentar.
— Allison? — ela me diz.
Abro a boca para corrigi-la, mas Allison dá um passo à frente
sozinha.
— Não, eu sou Allison Hadley. Esta é minha colega de
quarto, Scarlett Schiller.
Pela primeira vez em toda a semana, ela parece estar confiante
e equilibrada. Ela deve estar ainda mais aliviada do que eu por
estarmos nos encontrando com uma mulher. O escritório da
reitora parece projetado para deixar as pessoas à vontade
também: carpete macio, iluminação suave e paredes pintadas
de um azul suave apenas alguns tons mais claros do que seu
terninho feito sob medida.
A reitora sorri e aponta para as cadeiras estofadas em frente a
ela.
— Então — ela diz, tomando seu assento também. — Diga-
me o que traz vocês, meninas, aqui hoje.
Ontem à noite em nosso quarto, Allison ensaiou o que ia
dizer. Eu a ouvi contar a história inúmeras vezes até que ela
pudesse passar por ela sem chorar. Sua voz treme um pouco
quando ela começa a falar com a reitora, mas fica mais forte à
medida que avança. Ela consegue contar exatamente o que
Bash fez com ela em um tom claro e calmo, nem mesmo uma
pitada de lágrimas.
— E então Carly… — Allison olha para mim.
Eu sorrio, encorajando-a a continuar. Ela está indo muito
bem. Ela é a pessoa mais corajosa que conheço e, por mais que
odeie que ela tenha que fazer isso, também estou orgulhoso
dela.
— Carly e meu amigo Wes me levaram ao hospital — diz
Allison. — Eles pensaram que eu poderia ter uma concussão.
— E você teve? — Dean Bowman pergunta.
— Bem... não — diz Allison. — Eles me mandaram para casa
depois de algumas horas.
A reitora balança a cabeça e bate os dedos na mesa. É
impecável, apenas um telefone, um copo com um conjunto de
canetas azuis idênticas e uma única moldura prateada. A foto
está de costas para nós, mas presumo que seja uma foto de
família. Talvez ela até tenha uma filha.
Eu sei que Allison estava com medo de vir aqui. Eu também
estava nervosa (embora tenha tentado ao máximo esconder,
pelo bem dela). Mas não deveríamos ter nos preocupado
tanto. Esta mulher entende. Ela poderá nos ajudar.
— Bom, Sra. Hadley — diz Dean Bowman —, parece-me
que você teve muita sorte.
Allison e eu piscamos para ela em descrença. A reitora se vira
para mim, sorrindo novamente.
— Você é uma boa amiga — ela diz. — Cuidando dela assim.
Sou uma “boa amiga"? Allison tem “sorte”? Ela
está brincando?
— Mas e se… — eu gaguejei. — Quero dizer, se eu não
estivesse lá, ele poderia ter…
— Mas você estava lá. — A reitora cruza as mãos sobre a
mesa. — E nada realmente aconteceu. Não é?
Espero que Allison fique tão chocada quanto eu com essa
resposta, mas em vez disso ela parece estar em choque
genuíno. Seus lábios estão ligeiramente separados, seus olhos
desfocados, o sangue drenado de seu rosto. Estou perdendo ela
de novo.
— Você não está ferida — continua a reitora, marcando
pontos em seus dedos com unhas francesas. — Você não
precisa se preocupar com doenças sexualmente transmissíveis
ou gravidez.
— Ele a drogou — eu digo. — Ela estava quase inconsciente
e ele a tocava. Isso é…
— Sim, bom. — O sorriso da reitora endurece. — Talvez
agora vocês pensem duas vezes antes de aceitar bebidas de
garotos que você não conhece.
— Mas eu já o conheço — diz Allison. Sua voz soa tão
pequena e incerta agora que parte meu coração. — Ele está no
departamento de teatro comigo.
— Eles estão co-estrelando em uma peça — eu explico —,
então ela tem que vê-lo todos os dias.
— Entendo — diz a reitora, franzindo a testa.
Tenho um vislumbre de esperança — talvez ela
simplesmente não entendesse a seriedade da situação, a
urgência. Talvez agora ela concorde em fazer algo.
— Você estava flertando com esse menino? — ela pergunta
a Allison.
Allison olha para suas mãos torcendo em seu colo.
— Eu…
— Talvez ele tenha entendido mal — diz a reitora. — Isso
acontece às vezes, nessas situações.
Quanto mais calma ela parece, mais agitada fico. Minhas
pernas não param de balançar, meus calcanhares batem no
carpete grosso. Parece que as chamas lambem as solas dos meus
pés, subindo mais alto.
— Você quer saber o que ela estava vestindo também? — Eu
estalo. Dean Bowman e Allison me encaram. Estou igualmente
chocada com o tom de minha voz, mas não posso parar
agora. Estou com muita raiva. — Você acha que flertar é um
convite para ele violentá-la?
— Não é isso que estou dizendo. — A voz de Dean Bowman
é tão suave e neutra quanto a de um político. — Mas você
precisa ter cuidado com os sinais que envia.
Allison ficou assustadoramente parada, sua mandíbula
cerrada. Ela abaixa a cabeça e uma única lágrima cai em seu
colo, escurecendo o tecido vermelho de sua saia. Ver o quanto
ela está tentando se controlar só me enfurece ainda mais. Ela já
sofreu o suficiente; ela não deveria tem que lidar com isso. A
reitora deveria ajudá-la, não acusá-la de trazer isso para si
mesma.
— Então é isso? — Estou na beira da cadeira agora, os
músculos prontos para atacar.
Allison agarra meu pulso.
— Carly, não, não é…
— Você não vai fazer nada? Você não vai ajudá-la em nada?
— Esta pode ser uma lição valiosa para você — diz a reitora,
parecendo tão razoável que quero socar seus dentes. — Não há
necessidade de arruinar a vida de ninguém por isso.
— Mas que porra há de errado com você?
Allison engasga, como se ela não pudesse acreditar que eu
disse isso em voz alta. Também não consigo acreditar.
Dean Bowman aperta os lábios, claramente mais
incomodada por eu praguejar do que pelo crime real que
aconteceu. Assim como minha mãe, ofendida por todas as
razões erradas.
— Com licença, s… — ela começa, mas eu já ouvi o
suficiente.
— Você só vai deixar um predador sexual conhecido ter rédea
solta no campus? — Eu digo. — Sério?
— Srta. Schiller, vou precisar que você se acalme.
Mas isso é o mais estranho de tudo: pareço perfeitamente
calma. Não apenas calma, mas fria, comandante, toda a
habitual hesitação ansiosa em minha voz foi removida.
Eu me levanto, batendo minha cadeira para trás. Allison
crava as unhas em meu pulso.
— Pare com isso — ela implora. — Só…
Eu me afasto de seu aperto, avançando na mesa da reitora.
— Carly, pare com isso!
Não tiro os olhos de Dean Bowman, mas posso ouvir a
mudança na voz de Allison. Ela está chorando de novo. Essa
mulher, essa mulher horrível e sem coração a fez chorar.
Como ela ousa. Como ela ousa.
— Por favor, pare.
A reitora se recosta na cadeira. Tentando fugir de mim,
porque ela está com medo. Com medo de mim. Eu me sinto
tão alerta, o sangue latejando, os músculos contraídos, como se
o medo dela estivesse me alimentando.
— Ela não pode falar com você assim — eu digo.
— Está tudo bem — diz Allison. — Vamos embora. Por
favor, eu quero ir.
Não está bem. Nada disso está bem. Quero pegar aquela
porra de lenço floral e apertá-la até que o rosto da reitora fique
tão azul quanto seu terno. Quero quebrar janelas e arrancar
portas de suas dobradiças. Eu quero destruir tudo neste prédio,
tudo neste campus inteiro.
Tudo, exceto Allison.
Eu me viro para olhar para ela — para tranquilizá-la, para
dizer a ela que tudo não está bem, mas vai ficar, vamos descobrir
isso juntos, de alguma forma.
Mas sua cadeira está vazia, a porta do escritório se fechando
em seu rastro.
Ela se foi.
41
SCARLETT

Quando chegamos à casa de Mina, ela vai direto para o uísque.


Depois de se servir de um copo generoso, ela levanta a
garrafa.
— Você quer um pouco?
É a mesma marca que levei para a casa do Kinnear. Eu
balanço minha cabeça. Mina encolhe os ombros, depois bebe
sua própria bebida em alguns goles e se serve de outra.
— Você deveria comer alguma coisa — eu digo.
— Eu não estou com fome. — Ela está carregando o copo em
uma das mãos e a garrafa na outra, já balançando um pouco nos
pés.
A casa dela não é nada do que eu esperava. Há alguns toques
pessoais — um espelho quadrifólio acima da lareira, uma
manta de pele falsa estendida sobre o sofá cinza, uma pilha de
livros de arte sob a mesinha — mas fora isso é uma caixa branca
sem alma. Parece transitório, como se ela tivesse acabado de se
mudar e pudesse partir a qualquer dia. Todo o espaço cheira a
seu perfume, entretanto — aquele cheiro floral pesado como a
noite em um jardim de verão.
— Eu realmente não cozinho — digo —, mas poderia
pegar...
— É uma besteira. — Ela dá o pontapé inicial e ajusta a
garrafa de uísque na mesa de centro. —Todas aquelas pessoas,
agindo como se ele fosse a porra de um santo. Ele era um
pedaço de merda.
— Nós... nem sempre concordávamos.
— Ah, vamos lá. — Mina se joga no sofá, derramando um
pouco de uísque do copo. Seus olhos estão ficando turvos, mas
ainda brilham de raiva. — Você o desprezava tanto quanto
eu; eu podia ver isso toda vez que você olhava para ele.
O que mais você pode ver? A pergunta queima como ácido no
fundo da minha garganta.
Sento ao lado dela e suspiro.
— Você tem razão. Ele era um pedaço de merda.
Mina olha para o chão, segurando o vidro com mais força. Já
fui longe demais, tenho certeza disso. Não devo deixar cair
minha máscara por ninguém, nem mesmo
Mina. Principalmente Mina.
Mas então ela joga a cabeça para trás, seu corpo inteiro
tremendo de tanto rir.
— Obrigada! — Ela levanta o copo. — Finalmente, uma
mulher honesta.
Ela esvazia sua bebida, engolindo o uísque com um floreio
quase triunfante. Mas quando ela olha para mim novamente,
seus olhos estão molhados de lágrimas.
— Ei. — Eu me inclino em direção a ela, e ela se dobra sobre
si mesma, os cachos surgindo para esconder seu rosto enquanto
ela suprime outro soluço. Eu pego a mão dela. — Ei, está tudo
bem.
Ela se endireita, entrelaçando seus dedos nos meus.
— Eu simplesmente odeio que ele ainda possa me afetar
assim, sabe?
Eu aceno, e pela primeira vez eu não tenho que forçar minha
expressão simpática. Não me sinto mal por matar Kinnear, e
não posso imaginar que algum dia me sentirá. Mas saber que
minhas ações causaram a Mina tanta dor... isso faz algo retorcer
profundamente em minhas entranhas. Já se passaram anos
desde que senti algo tão próximo da culpa.
— E aquela mulher insuportável de Cambridge — diz
Mina. — Não acredito que ela apareceu hoje. Você sabe que ele
nem foi para Cambridge, certo?
Sempre me perguntei sobre isso. O currículo de Kinnear lista
um certificado especial da Universidade de Cambridge, mas
graduação e pós-graduação de diferentes instituições. Ainda
assim, ele falava constantemente sobre seus “dias em
Cambridge” como se fosse um ex-aluno de destaque.
— Era um programa de verão para crianças americanas
ricas. Eles aceitavam qualquer pessoa cujos pais pudessem
pagar. Foi assim que nos conhecemos, na verdade.
— Você foi para Cambridge?
— Não, eu gostaria. — Mina solta minha mão e dá outro
gole em seu uísque, mais contemplativa desta vez. Ela está
diminuindo a velocidade. — Eu estava trabalhando em um
pequeno café do outro lado da rua do King's College, tentando
economizar para as mensalidades, na verdade. Alexander
começou a vir todos os dias, comprando cappuccino após
cappuccino apenas como uma desculpa para falar comigo. E
então, uma noite, ele me levou para a biblioteca com ele.
Imagino uma Mina mais jovem caminhando com reverência
entre as pilhas, passando os dedos pelas lombadas dos livros,
sentindo o cheiro de café preso em seus cabelos.
— Ele tirava livros da estante e os lia para mim — diz ela. —
Joyce, Hemingway, Proust, toda essa merda. Eu era jovem o
suficiente para ficar impressionada. E ele era lindo pra caralho.
Ele era — lindo pra caralho. Entrando em sua sala de aula em
Gorman quando eu tinha dezoito anos, senti que não podia
olhar diretamente para ele.
Mina bate as unhas na borda do copo.
— Achei que ele era o amor da minha vida.
Ela se inclina para frente para colocar sua bebida na mesa de
centro. Quando ela se acomoda, ela está mais perto de mim,
nossos joelhos se tocando.
— Você é tão inteligente — ela diz. — Você ficou solteira,
você nunca deixou um homem ditar o curso de sua vida.
— Minha vida não é tão boa quanto você pensa. — Todo o
meu planejamento cuidadoso não significa nada se eu deixar
minha raiva sobrepuja-lo. Não cometerei o mesmo erro da
próxima vez; presumindo que haja uma próxima vez.
— Não faça isso.
Mina está me olhando como se estivesse olhando através de
uma mira de rifle, o dedo no gatilho. Minha garganta fica seca
e, de repente, estou me arrependendo de ter recusado aquele
uísque.
— Não faça o quê?
— Essa não é você — ela diz. — Você sabe que é brilhante,
você é linda...
E então sua mão está no meu joelho, e minha visão quase fica
branca com o calor do meu desejo. Eu nunca pensei — eu
nunca me permiti pensar…
Mina se inclina para mais perto, a mão deslizando mais alto.
— Você é boa demais para este lugar.
Por um momento, eu me permiti imaginar como o corpo de
Mina seria macio sob o meu, suas coxas se espalhando, abrindo,
me deixando entrar. Faz tanto tempo — muito tempo — desde
que estive com alguém além de Jasper, e ele é todo ângulos
rígidos. Sexo é sempre uma batalha para ele, mas com Mina
seria tão fácil quanto cair.
Eu coloquei minha mão sobre a dela, pressionando-a na
minha perna. Ela está olhando para os meus lábios, os olhos
com as pálpebras pesadas, sem foco. Posso sentir o cheiro de
uísque em seu hálito.
O mesmo cheiro de Kinnear, quando ele me empurrou
contra a parede, apalpou minha saia. Quando ele se contorceu
embaixo de mim, implorando por sua vida.
Eu não posso. Assim não. Não com a Mina embriagada, no
mesmo dia que o ex-marido dela foi para a cova por minha
causa.
Pego a mão dela entre as minhas e aperto. O encanto do
momento está quebrado, mas o calor ainda fervilha entre nós.
— Você deveria descansar um pouco — digo a ela. — Tire
alguns dias de folga, vá com calma.
Mina se vira para tomar outro gole.
— Essa é a última coisa que vou fazer.
42
CARLY

Já faz horas e ainda não há sinal de Allison.


Desisti da pretensão de fazer qualquer estudo há um tempo,
e agora estou apenas deitada na cama, olhando para o teto,
abrindo meu celular e fechando-o novamente. Fico ensaiando
mentalmente meu pedido de desculpas, da mesma forma que
Allison praticou sua história para a reitora, mas não sei o que
posso dizer para consertar isso. Quase quero que ela grite
comigo, para descarregar toda a sua raiva na minha direção. Eu
mereço.
Meu telefone vibra com uma nova mensagem e eu me sento
com o coração batendo forte.
Não é dela, no entanto. É do Wes.
Você viu Allison?

Eu digito de volta, acho que ela ainda está ensaiando.


Embora ele devesse estar lá também — controlando as luzes
ou os efeitos sonoros, não me lembro qual. E o ensaio acabou
meia hora atrás. Às vezes eles demoram muito, mas ela já deve
estar de volta. Se ela está voltando. Talvez ela esteja tão brava
comigo que decidiu dormir em outro lugar esta noite.
Não, responde Wes. Ela nem apareceu.

Allison está um desastre esta semana, mas ela nunca pulou


o ensaio do Cabaret antes. O show é a coisa mais importante
do mundo para ela. Isso é ainda pior do que eu pensava.
Eu disco o número de Wes, com as mãos tremendo. Ele
atende no primeiro toque.
— Ei, o que…
— Quando foi a última vez que você a viu? — Eu pergunto.
— Ontem — ele diz —, quando todos nós almoçamos.
Eu fico em silêncio, andando para frente e para trás ao lado
da cama. Eu nem me lembro de me levantar.
— Carly? Algo está errado?
— Não a vejo desde esta manhã — digo a ele. — E ela estava...
chateada.
— Vocês brigaram?
Isso é tudo minha culpa. Fui eu quem a convenceu a relatar
a agressão. Achei que ajudaria, mas tudo o que eu fiz foi
traumatizá-la ainda mais. E então, em vez de estar lá para ela,
tentando confortá-la, eu perdi minha paciência. Não acredito
que falei com a reitora dessa maneira. Mesmo que eu possa me
lembrar das palavras que disse, da maneira como me senti,
quase não parece real. Eu era uma pessoa totalmente diferente.
— Algo assim — eu digo.
— Ela provavelmente está apenas em algum lugar se
acalmando — diz Wes. — Ela faz isso. Como certa vez no
colégio…
— Não. — Eu balancei minha cabeça — Não, há algo
errado. Eu vou procurá-la.
— A esta hora da noite? Você está…
— Ligue-me se tiver notícias dela.
Corro para me vestir, puxando o casaco por cima do pijama,
acrescentando luvas e um boné de tricô, depois enfiando as
calças nos meus Doc Martens. Eu não deveria ter esperado
tanto. Eu deveria estar procurando por ela o tempo todo.
Não tenho ideia de por onde começar, no entanto. Wes disse
que ela não está no teatro, e não há muitos prédios do campus
abertos tão tarde, mesmo às sextas-feiras. Certamente ela está
em algum lugar dentro do campus — está muito frio esta noite
para ficar do lado de fora por muito tempo.
Enfio as mãos nos bolsos do casaco e saio na direção de Oak
Grove. Só consegui descer alguns metros no caminho, porém,
quando ouço passos à distância — muito longe, mas se
aproximando. Rápido.
Eu aumento meu passo, mas a outra pessoa acelera também,
avançando sobre mim, gritando algo contra o vento.
— Ei! — Uma mão me pega pela manga, me segurando.
É o Wes. Ele está ofegante, o rosto vermelho. Ele deve ter
corrido de Riffenburg.
— O quê você está fazendo aqui? — Eu pergunto.
— Eu não poderia… deixar você… — Wes para para
recuperar o fôlego, apoiando as mãos nas coxas. — Não é
seguro. Vagar sozinha à noite.
Eu cruzo meus braços sobre meu peito.
— Sim, algum cara aleatório pode correr e me agarrar.
— Desculpe — ele diz, mas ele está sorrindo. — Vamos, vou
te ajudar a procurá-la.
Entramos primeiro no sindicato estudantil. A única entrada
destrancada a esta hora da noite é a principal, com sua grande
porta em arco e um relógio antigo que parece pertencer a uma
estação ferroviária de uma cidade grande. Além do segurança
com ar entediado, as únicas pessoas lá dentro são duas garotas
deixando migalhas de Oreo com o dobro de recheio por todo o
carpete xadrez do átrio e um cara solitário fazendo repetições
de peso na academia sem um observador, música rock
estridente em seus fones de ouvido.
A biblioteca se mostra ainda mais deserta, e chegamos ao
Trocino Dining Hall no momento em que apagam as luzes à
noite. Eu acho que todos estão de volta aos seus dormitórios
como eu normalmente estaria, ou eles estão fora do campus
festejando. Wes diz que não há nenhuma reunião do
departamento de teatro que ele tenha conhecimento esta noite,
no entanto.
Em seguida, seguimos para o rio, pegando o caminho de
concreto que sai de Oak Grove. Não sei por que ela veio aqui
no meio da noite — e provavelmente não deveríamos estar aqui
também — mas não sei mais onde procurar.
— Você disse que ela fez isso antes? — Eu pergunto a Wes
enquanto nos aproximamos da área florestal na borda do
campus. Posso ouvir a água correndo além das árvores. Se não
fosse pelo luar brilhando nos óculos de Wes, eu mal seria capaz
de vê-lo andando ao meu lado.
— Sim… — ele diz. — No segundo ano do ensino médio, ela
brigou com os pais. Ela nunca me disse do que se tratava. Mas
ela desapareceu por alguns dias.
— Eles procuraram por ela?
— Não — ele diz, desgosto em sua voz — Eles oraram por
ela.
O caminho faz uma curva para encontrar a margem do rio, e
temos que atravessar uma pequena passarela de madeira para
continuar. No meio do caminho, eu paro, segurando o
corrimão, observando a corrente negra fluindo abaixo de
nós. Wes para também, apoiando as mãos nas minhas.
Quanto mais nossa busca continua, mais tenso Wes parece,
mas ainda tenho a sensação de que ele está me divertindo em
algum nível. Se ele soubesse o que realmente aconteceu com
Allison, se ele tivesse visto seu rosto esta manhã, ele ficaria
muito mais preocupado.
— Então o que aconteceu? — ele pergunta. — Você disse
que ela estava chateada.
Eu quero contar tudo a ele. Mas eu prometi, e já estraguei
tudo hoje.
O vento sopra sobre a água, soprando meu cabelo no
rosto. Wes estende a mão e alisa atrás da minha orelha.
— Você realmente se preocupa com ela, hein?
Eu concordo. Ele ainda está me tocando, as pontas dos dedos
demorando na minha têmpora. Assim como na festa de
Halloween, tenho certeza que ele vai me beijar. Só que desta vez
não estou com vontade de correr.
Eu me movo em direção a ele — nenhum passo, apenas
balançando para frente nas solas das minhas botas. Mas, em vez
de diminuir a distância, ele se afasta, baixando a mão.
— Não vamos encontrá-la aqui. — Ele bate os dedos na
grade da ponte. — Podemos pegar meu carro e dirigir por aí,
talvez? Pelo menos estaríamos aquecidos.
— Ok. — Sinto-me mais fria do que nunca, como se um
cobertor tivesse sido arrancado de mim, expondo meus
membros ao frio. Eu realmente queria que ele me
beijasse? Devíamos estar procurando por Allison. Eu não
deveria estar pensando em mais nada.
Caminhamos até o dormitório de Wes para pegar as chaves
do carro. Ele mora na residência de honra, Cooper. Ao
contrário do dilapidado interior bege de Whitten, as áreas
comuns de Cooper são todas agressivamente coloridas,
reproduções de pinturas clássicas em todas as paredes,
prateleiras cheias de livros em cada canto.
Passamos por um pequeno grupo de alunos acomodados em
poltronas que não combinam, passando uma tigela de pipoca
de micro-ondas chamuscada para frente e para trás, enquanto
eles têm uma discussão apaixonada sobre as prequelas de Star
Wars. Wes acena para eles em saudação, mas sou eu quem atrai
os olhares curiosos, seguindo Wes em seu dormitório bem
depois da meia-noite.
Ele tem um individual. As paredes são cobertas por uma
confusão de pôsteres de música e filmes — Elliott Smith, Pulp
Fiction: Tempo de Violência, Hora de Voltar — mas o espaço é
arrumado, livros empilhados cuidadosamente sobre a mesa,
todos os seus produtos de higiene pessoal alinhados ao longo da
parte de trás da cômoda.
Assim que Wes fecha a porta, sou atingida por uma pontada
de alarme. Está muito quente aqui, mesmo com a janela acima
do radiador rachada para deixar o excesso de calor sair.
Wes pega sua bolsa carteiro da cadeira ovalada no canto e
começa a procurar as chaves do carro. Eu bocejo, encostado no
canto da mesa para me manter de pé. Até que paramos de nos
mover, eu não percebi o quão cansada estava.
— Você está bem? — Wes pergunta.
— Sim — eu digo, sufocando outro bocejo. — Você está
com as chaves?
Ele as levanta.
— Podemos ficar aqui por um tempo se você quiser, no
entanto. Descanse um pouco.
Eu quero encontrar Allison. Mas eu mal consigo manter
meus olhos abertos. Se Wes estiver tão cansado, não é seguro
para ele estar ao volante.
Além disso, não há nada a temer. Estávamos na floresta no
meio da noite e ele nem tentou começar alguma coisa. Se há
algum cara no mundo com quem se pode ficar sozinha com
segurança, é o Wes.
Como se pudesse ler meus pensamentos, ele começou a
gaguejar:
— Quer dizer, você pode ficar com a cama, vou dormir no
chão, não precisamos...
— Não — eu digo.
Wes se encolhe um pouco, seus olhos se estreitando ainda
mais do que o normal.
— Quero dizer, sim, provavelmente deveríamos descansar
um pouco. Mas você não tem que dormir no chão, isso é
estúpido.
Ele engole, parecendo mais nervoso do que eu de repente.
— O-ok.
Não tenho ideia do que estou fazendo — nem ideia do
que quero fazer, exceto deitar, fechar os olhos e me aquecer. E
espero que onde quer que Allison esteja, ela esteja fazendo o
mesmo.
Antes que eu possa me convencer do contrário, tiro meu
casaco e minhas botas, em seguida, subo na cama alta de
Wes. Ele hesita por um segundo antes de seguir o exemplo.
Eu me viro para a parede, de costas para ele, porque achei que
seria menos estranho, mas agora tudo que consigo pensar é no
calor de sua respiração na minha nuca. Apesar da estreiteza do
colchão, ele tem o cuidado de deixar um pedaço de espaço entre
seu corpo e o meu.
É embaraçoso e estranho, e não estou nem um pouco
confortável, mas meu cansaço é tão opressor que durmo quase
imediatamente, caindo de cabeça em um sonho com
Allison. Ela está correndo ao longo da margem do rio, descalça,
os galhos agarrando-se aos cabelos. Chamando Wes e eu na
ponte, mas não podemos ouvi-la sobre a água corrente.
Seu pé fica preso em uma pedra afiada, e quando ela
mergulha na corrente, eu subo à superfície — acordando com
um solavanco, tombando, os braços se debatendo.
Quase empurro Wes para fora da cama. Ele acorda assustado
também, agarrando-se a mim para não cair da beirada do
colchão.
Estamos tão perto agora, cabeças compartilhando um
travesseiro, corações batendo forte no tempo, bocas a
centímetros de distância no escuro. Eu engulo e lambo meus
lábios, olhando em seus olhos.
Mas ele apenas puxa o cobertor sobre nós dois e,
eventualmente, volto a dormir, sonhando com ventos
cortantes e água gelada, embora esteja rodeada de calor.
43
SCARLETT

Achei que as coisas voltariam à normalidade após o funeral de


Kinnear, mas a maioria dos meus colegas ainda está usando sua
morte como desculpa para relaxar, cancelar as aulas e até
mesmo ficar em casa. Espero pelo menos que Mina esteja
conseguindo o descanso de que precisa; fiquei em sua casa
ontem à noite até depois que ela adormeceu, afundada no sofá
com os dedos dos pés descalços pressionados na minha coxa.
O Dr. Stright é um dos únicos professores ingleses, além de
Drew e eu, que se deu ao trabalho de aparecer para trabalhar
hoje. Stright sempre deixa a porta do escritório entreaberta,
então todos nós temos que ouvir sua lista de reprodução do
Spotify de indie folk pretensioso flutuando pelo
corredor. Quando passo por seu escritório a caminho do meu,
diminuo o passo para poder olhar para dentro. Há uma aluna
lá com ele novamente, e desta vez não é Ashleigh Lawrence.
É Mikayla.
Ela está de costas para a porta, mas aquela nuvem de cachos
escuros é inconfundível. Ela está sentada na cadeira em frente à
mesa de Stright, mas ele não está sentado atrás dela. Em vez
disso, ele está bem ao lado dela, inclinando-se sobre seu ombro.
Meus dedos apertam a pilha de papéis que estou
carregando. Eu sabia. Que canalha.
— Ei, Scarlett — Drew disse, colocando a cabeça para fora
de seu próprio escritório do outro lado do corredor. Ele parece
mais descansado hoje, de volta em seu uniforme usual de paletó
de tweed e calças escuras. — Eu ia pegar um café; você quer
alguma coisa?
Quero arrancar a porta de Stright das dobradiças e correr
para arrancá-lo de Mikayla. Stright se inclina mais perto para
apontar uma linha no livro em seu colo, e ela acena com a
cabeça para tudo o que ele acabou de dizer, erguendo o rosto
para sorrir para ele.
Drew levanta as sobrancelhas.
— Tudo certo?
— Sim — eu digo, arrastando minha atenção para longe de
Stright e Mikayla. — Sim, eu…
Minha bolsa vibra, e eu embaralho os papéis no meu outro
braço para que eu possa pegar meu telefone.
É um número do Reino Unido.
Drew também vê e seus olhos se arregalam.
— Aqui, aqui, me dê isso.
Eu coloco os papéis e minha bolsa em suas mãos, em seguida,
atendo a chamada.
— Olá, aqui é a Dra. Scarlett Clark.
— Dra. Clark, aqui é Judith Winters, da Women’s Academy.
— Dra. Winters. Obrigada pela sua chamada.
Drew sorri para mim, saltando um pouco em seus pés, e eu
sorrio de volta. Eu não posso deixar muita emoção vazar em
meu tom, no entanto. Afinal, eu deveria estar de luto por nosso
colega assassinado.
— Me desculpe por não ter tido a chance de falar com você
no funeral de Alexander — eu digo, indo para o meu
escritório. Drew segue, colocando meus pertences
silenciosamente sobre a mesa. — Mas seu elogio foi
incrivelmente comovente.
— Obrigada, querida — ela diz. — Foi um belo
culto. Receio ainda estar em choque.
— Sim, todos nós estamos. — Eu olho para o outro lado do
corredor. A porta do escritório de Kinnear está fechada, mas
sua secretária ainda está em seu posto do lado de fora,
enxugando o rímel já destruído com um lenço de papel. Ela está
mexendo em mais de uma caixa de lenços de papel por dia. Eu
não tinha certeza antes que ela e Kinnear estavam transando,
mas sua dor incontrolável parece confirmar isso. — É tão
horrível.
Há uma explosão de ruído do outro lado da linha, como se
Judith estivesse do lado de fora.
— Você ainda está na cidade? — Eu pergunto. — Talvez
pudéssemos…
— Não, estou no aeroporto. Meu voo para Heathrow sai em
uma hora. Mas eu gostaria de marcar um horário com você
assim que voltar para casa, para discutir mais sobre a
irmandade.
Não posso evitar de sorrir agora. Drew fala sem emitir
som, O que eu te disse?, e bombeia o punho no ar. Fiz uma
pesquisa exaustiva sobre todas as pessoas em nossa área que
podem se inscrever para a bolsa e, com Kinnear fora do
caminho, meu caminho deve estar claro. Embora alguns dos
meus concorrentes possam ter estabilidade em instituições de
elite ou ostentar outros elogios com os quais eu não posso
competir, nenhum deles tem mais conhecimento específico em
Viola Vance que eu. Mas eu não posso ficar confiante
demais. Foi assim que entrei na confusão em que estou agora.
— Eu adoraria — digo a Judith. — Sempre que for
conveniente para você.
— Você não tem aulas para dar? — Há uma severidade na
voz de Judith, como se eu fosse uma aluna desobediente que ela
está castigando.
— Sim, claro — eu digo. — Mas esta bolsa é minha maior
prioridade agora, e tenho um assistente de pós-graduação
muito capaz.
Ou eu tinha, de qualquer maneira. Eu me pergunto se Jasper
realmente vai aparecer para trabalhar hoje, já que ele mostrou
seu rosto no funeral. Assim que a poeira da morte de Kinnear
baixar, tratarei de transferir Jasper para outro professor. Talvez
eu consiga encontrar uma maneira de impingi-lo a Stright. Os
dois podem se matar e me poupar problemas.
— Tudo bem — Judith diz. — A próxima terça-feira seria
adequada? Estou disponível às três da tarde no meu horário, o
que eu acredito…
— Dez horas da manhã. Sim, isso é perfeito.
— Maravilhoso. Eu vou falar com você então. E espero que
você me avise se houver algum imprevisto.
Minha mente já está ganhando vida com os preparativos para
a entrevista, então levo um segundo para perceber que ela está
se referindo aos desenvolvimentos no caso do assassinato de
Kinnear.
— Certamente — digo a ela. — Eu sei que todos nós apenas
queremos respostas.
Do outro lado do corredor, a secretária de Kinnear levanta a
cabeça como uma corça assustada, olhando em direção à porta
de seu escritório. Está se abrindo.
— Você deve se sentir muito afortunada — diz Judith.
Os dois detetives de Pittsburgh emergem do
escritório. Flynn parece relaxado, com os membros soltos, mas
a mandíbula de Abbott está firme. Bom policial, mau
policial. Eles se afastam para deixar outra pessoa sair da sala.
Jasper.
Eu aperto o telefone com mais força, o coração batendo
forte.
— Desculpe?
— Sorte por ter trabalhado com ele por tanto tempo quanto
você — diz Judith. — Tenho certeza que ele te ensinou muito.
— Sim. Sim, claro. — Alexander Kinnear me
ensinou muito. Nunca esquecerei suas muitas lições. — Ele
era…
Jasper sorri para os detetives, tentando agir como seu típico
eu suave. Mas ele está abalado, as mãos tremendo tanto que
posso ver daqui. Ele as enfia nos bolsos das calças.
Então ele olha direto para mim.
— Bem, vou deixar você ir. — Há aquela rispidez no tom de
Judith novamente.
— Sinto muito — eu digo. —, eu… está um pouco caótico
aqui.
— Eu posso imaginar — ela diz. — Falo com você na terça-
feira, Dra. Clark.
— Sim, estou ansiosa por isso.
Mas ela já desligou.
— Então? — Drew diz. Ele está tão focado em mim que nem
percebeu os detetives. Abbott e Flynn estão parados do lado de
fora do escritório de Kinnear, conferenciando em vozes baixas,
mas o olhar de Abbott continua indo em direção à porta aberta
do meu escritório.
— Parece que cheguei à rodada final — digo a Drew.
Ele grita e me puxa para um abraço comemorativo. Agora
Abbott e Flynn estão nos observando, os olhos de Abbott se
estreitando com interesse.
Jasper aparece na porta, bloqueando minha visão.
— Por que vocês dois estão tão animados?
Drew olha para mim, ainda sorrindo, esperando que eu
compartilhe minhas boas novas. Em vez disso, aliso minha
blusa de volta no lugar e coloco o telefone voltado para baixo
na minha mesa.
— Legal da sua parte nos agraciar com sua presença hoje, Sr.
Prior.
— Bem — Drew diz, já caminhando em direção à saída —,
eu deveria voltar ao trabalho. Parabéns novamente, Scarlett.
Jasper fica de lado para deixar Drew passar pela porta. Então
ele passa pela soleira e, antes que eu possa protestar, fecha a
porta atrás de si.
— Não se preocupe — diz Jasper —, eu cobri para você.
De repente, estou ciente de quão pequeno é este espaço com
Jasper nele.
— O que você quer dizer?
— Os detetives estavam perguntando sobre você, o que você
estava fazendo na noite de…
— Eles estavam perguntando sobre mim?
Achei que era um bom sinal eu estar em uma posição tão
baixa em sua lista de pessoas a serem entrevistadas. Mas talvez
eles estejam entrevistando todo mundo primeiro para que
possam me pegar mentindo.
— Eu disse a eles que estava com você. — Suas mãos não
estão tremendo agora quando ele passa os dedos pelos meus
braços para agarrar meus quadris. — A noite toda.
— Você não deveria ter feito isso.
Jasper faz uma careta.
— Você deveria estar me agradecendo.
— Agradecendo? Por mentir para a polícia?
— Eles estão dizendo que o crime parece pessoal. — Ele
segura meus quadris com mais força, as pontas dos dedos
cravando. — Eles acham que é alguém que o conhecia, sabia
onde ele morava. Talvez até alguém que trabalhe aqui.
— Isso descreve você também, você sabe. — Eu empurro
Jasper para chegar até a porta. — Parece-me que você está
tentando se proteger.
— Você acha que eu o matei? — Jasper parece genuinamente
divertido.
Eu me viro para encará-lo, levantando meu queixo e
cruzando os braços.
— Você não tem coragem.
Por um segundo, acho que ele vai me dar um tapa. Eu
gostaria que ele o fizesse; eu adoraria uma desculpa para fazê-lo
sangrar novamente.
Em vez disso, ele sorri.
— Senti sua falta, Scarlett.
Minhas costas estão contra a porta fechada agora, então não
há para onde correr quando Jasper se inclina e me beija. Minhas
mãos permanecem rígidas ao lado do corpo, minha boca
inflexível, mas ele não desiste. Isso ainda é um jogo para ele.
Sua mão desce pela minha perna para levantar minha saia, e
eu o empurro.
— Pare. Aqui não.
— Onde então? — Ele agarra minha coxa. — Você me disse
para não ir mais à sua casa.
— Isso tem que parar, Jasper. — Eu me viro, tentando abrir
a porta, mas Jasper pressiona contra minhas costas, puxando
minha mão da maçaneta para que ele possa prendê-la contra a
porta. Sua respiração está escaldante na minha nuca.
Ele não estava tentando me proteger inventando aquele álibi
falso. Ele só me quer em dívida com ele. Se eu terminar com ele
agora, não há como dizer o que ele fará.
Alguém bate na porta, duas batidas fortes. A vibração
estremece meus dentes.
Os detetives, eu acho. Mas então uma voz familiar diz meu
nome.
— Scarlett? Você está aí?
É a Mina. Então ela veio trabalhar hoje.
— Um segundo. — Eu consigo me virar apenas o suficiente
para olhar para Jasper. Certamente ele não vai persistir com
Mina do lado de fora.
Ele segura mais alguns segundos antes de me soltar. Eu aliso
minha saia e o empurro para trás com meus quadris para que
eu tenha espaço suficiente para abrir a porta.
— Ah, que bom, você está aqui — diz Mina. Seus olhos não
estão mais vermelhos, mas estão desfocados, zumbindo com
uma energia estranha. Ela tem o ar de uma cientista louca à
beira de uma descoberta. — Eu preciso falar com você, eu só…
Jasper se moveu bem atrás de mim novamente, e ele plantou
sua mão na borda da porta, tocando a minha. Mina não está
olhando para ele, no entanto. Ela está olhando para meus
lábios.
Levo meus dedos à boca e eles saem manchados de batom
borrado.
— Mina — eu começo, mas algo se fecha atrás de seus olhos.
— Deixa para lá— ela diz. — Vejo que você está ocupada.
44
CARLY

A noite toda, sonhei com Allison.


Ela estava sempre correndo. Correndo pela floresta, por
intermináveis corredores irreconhecíveis. Do outro lado do
estacionamento de cascalho atrás da casa de Bash, descalça,
sangrando. Subindo a escada de incêndio, o rosto voltado para
o céu negro.
Eu acordo com todos os meus músculos contraídos, como se
estivesse prestes a correr também. Wes ainda está dormindo,
deitado de costas com as palmas das mãos imprensadas entre o
crânio e o travesseiro, um som suave que não é bem um ronco
escapando de seus lábios.
Eu deslizo para fora da cama, estendendo os dedos dos pés
até sentir o chão. Está congelando em seu quarto agora; o
aquecedor deve ter desligado em algum momento da noite. Eu
empurro a vidraça para baixo para fechá-la, estremecendo com
o barulho que ela faz contra a moldura.
E é então que percebo: conheço outro lugar onde Allison
pode estar.
Wes não se mexeu com o som da janela fechando, então
decido deixá-lo continuar dormindo. Não está mais escuro,
embora ainda seja tão cedo que o campus parece deserto
durante toda a minha caminhada de volta para Whitten.
Eu subo os degraus da escada de incêndio rápido, então não
terei tempo de pensar sobre a fraqueza nos meus joelhos. A
grade de metal é tão fria que machuca minhas mãos. Assim que
chego ao telhado, chamo por ela, mas soa mais como um
suspiro do que o nome dela. Meu pulso está acelerado com a
subida — e também porque Allison está sentada muito perto
da borda.
— Allison, graças a Deus. Há quanto tempo você está aqui?
Ela continua olhando para o céu cinza, como se ela não
tivesse me ouvido. Ela não pode ter ficado aqui a noite
toda; está muito frio, nuvens de aço ameaçando nevar, e ela está
vestindo aquele casaco fino com gola de pele falsa.
Eu chego mais perto, tentando não olhar por cima da beirada
do telhado.
— Você está... você está bem?
Desta vez, seus ombros endurecem com a minha
pergunta. Sua pele parece papel de cera, e seu cabelo azul
desbotado é liso e pegajoso, espalhando-se de seu crânio como
veias. Quero envolvê-la em meus braços, mas ela parece muito
frágil para isso. Ela parece que está à beira de se despedaçar.
— Estou bem — ela diz finalmente. Ela está mentindo para
si mesma tanto quanto para mim.
— Está congelando. Por que você não desce e…
— Onde você estava ontem à noite?
— Eu estava… — Eu engulo. Essa não é, de forma alguma, a
pergunta que eu esperava. Ela deve ter voltado para o nosso
quarto em algum momento e descobrir que eu tinha
sumido. — Procurando por você. Wes e eu… estávamos
realmente preocupados.
Passar a noite na cama de Wes parece uma traição de uma
forma que não consigo explicar. Allison claramente não o quer
para si — e nada aconteceu entre nós, de qualquer maneira —,
mas não quero arriscar incomodá-la mais.
— Vamos descer para o nosso quarto e conversar — eu digo.
— Não há nada para falar.
Allison se inclina para frente, deixando seus pés balançarem
para fora do telhado, e meu estômago embrulha.
— Eu te disse — ela diz. Seus saltos batem contra o tijolo
abaixo da linha do telhado. — Eu disse que não queria fazer
isso. Eu disse que não adiantava.
— Eu sinto muito. — Eu me agacho ao lado dela. Estou
tentando me lembrar de todo o discurso que preparei, o pedido
de desculpas eloquente, mas não consigo pensar com as pernas
penduradas no ar daquele jeito. — Eu sinto muito, Allison. Eu
estava apenas tentando ajudar.
— A reitora estava certa.
— Não. — Eu coloco minha mão sobre a dela. — Não, ela
não estava, isso é…
— Eu só quero fingir que aquela noite nunca aconteceu.
— Ela ainda não olha para mim. — Eu mal me lembro disso de
qualquer maneira.
Não posso saber exatamente o que Allison está
passando. Mas eu sei o que vi, e sei que Bash merece ser punido
por isso. A reitora também, por fazer Allison duvidar de si
mesma, fazendo-a se sentir tão desamparada.
Ela afasta a mão da minha e a enfia no bolso do casaco, depois
a puxa novamente, algo prateado cerrado em seu punho.
Um par de tesouras.
Meu pulso dispara.
— Allison.
Ela estende a tesoura à sua frente como uma adaga,
segurando o cabo com tanta força que todo o braço está
tremendo. As lâminas brilham intensamente mesmo na luz
sombria.
Minha mente se enche de imagens de metal cortando seus
pulsos pálidos, sangue derramando da borda do telhado. Eu
agarro seu cotovelo, cavando meus dedos no mesmo local onde
Bash deixou hematomas.
Allison se levanta, livrando-se do meu aperto. Eu me sinto
mal por agarrá-la, mas não posso deixar que ela se
machuque. Eu tenho de fazer alguma coisa. Seus olhos estão
marejados de lágrimas agora, o lábio inferior tremendo.
— Apenas me dê a tesoura, ok? — Eu também me levanto,
estendendo minha mão. — E então podemos descobrir um
plano. Eu quero ajudar.
Ela levanta a tesoura e aponta para a base do crânio.
— Allison, por favor. Não faça isso. Deixe-me ajudá-la.
Ela recolhe o cabelo em seu punho, agarrando com tanta
força que alguns fios se arrancam pela raiz. Então, em um
movimento violento, ela fecha a tesoura. Cortando seu rabo de
cavalo.
Gavinhas azuis chovem no telhado, flutuando com a brisa.
— Eu te disse. — Allison joga a tesoura nos meus pés. — Eu
não preciso da sua ajuda.
45
SCARLETT

Mina não pode me evitar para sempre. Mas ela tem feito um
ótimo trabalho nos últimos dias.
É domingo à noite quando finalmente a alcanço. Ela está em
seu escritório no segundo andar da Miller, trabalhando até mais
tarde do que eu. Seus olhos saltam da tela do laptop apenas o
tempo suficiente para ver que sou eu escurecendo sua porta, e
sua boca aperta. Ela parece exausta, sombras sob seus olhos,
novas linhas de preocupação gravadas entre suas sobrancelhas.
— Scarlett. — Ela digita mais algumas teclas. — Você
chegou tarde.
— Podemos conversar? — Eu quero saber se ela está
bem. Mas preciso saber sobre o que ela veio falar comigo com
aquela energia estranha e frenética brilhando em seus olhos. —
Sobre o outro dia, eu…
Eu paro — não estou mais olhando para Mina, mas para a
parede em frente à sua mesa. A teia de fotos no quadro branco
foi removida, as linhas do marcador apagadas em manchas
vermelhas fracas. Escrito em linha reta no meio do quadro,
agora há uma lista de nomes.

Richard Callaghan
Kevin pratt
Brandon Risman
Samuel Wexner
Tyler Elkin

Meu sangue se transforma em gelo. Eles são todos meus.


Em ordem cronológica, nada menos.
— Não é da minha conta. — Mina fecha o laptop,
finalmente encontrando meus olhos. — Isso me surpreendeu,
só isso. Não achei que você fosse assim.
Como Kinnear, ela quer dizer.
Eu dou um passo em direção a ela.
— Eu não sou.
— Mesmo? — ela diz. — Então você não está transando com
aquele garoto? Aquele graduando?
Eu não quero mentir para ela. Ela é muito inteligente, ela
veria isso de qualquer maneira. Ela vê tanto que é
aterrorizante. Ela pode estar certa de que essa confusão entre
mim e Jasper não é da conta dela, mas parte de mim quer que
seja.
— Estudante de pós-graduação, e estou terminando as coisas
com ele. Eu deveria ter feito isso há muito tempo. Bom,
tecnicamente, eu não deveria ter permitido que começasse.
Mina franze os lábios, como se não acreditasse em mim. Eu
não posso culpá-la.
Ela se levanta, contornando a mesa. Quando ela cruza os
braços sobre a blusa branca — de alguma forma, ainda nítida e
impecável neste final do dia — vejo as manchas de tinta
vermelha estragando sua manicure. Parece que ela escreveu
esses nomes em algo muito mais permanente do que um
marcador apagável.
— Você está apaixonada por ele? — ela pergunta.
Eu não posso deixar de rir.
— Deus, não. Ele é... conveniente.
Pelo menos ele começou assim. Agora ele é uma bomba-
relógio.
Mina me encara por um segundo, sua expressão
ilegível. Então ela põe a mão no meu braço. O calor de sua pele
parece fogo, mesmo através do tecido da minha manga.
— Você merece muito melhor do que ele. Você sabe disso,
certo?
A saudade pulsa através de mim novamente, pulsando no
mesmo ritmo do meu batimento cardíaco. Mina pode estar
exausta, mas agora está sóbria. E estamos completamente
sozinhas.
Mas eu já me permiti chegar muito perto dela. Esta mulher
tem o poder de arruinar minha vida tanto quanto Jasper. A lista
de nomes na parede atrás dela prova isso.
Eu me afasto.
— O que você queria me dizer?
Mina pisca, quase assustada — o feitiço entre nós se
estilhaçando mais uma vez.
— O quê?
— Quando você foi ao meu escritório. — Os nomes, fale-me
sobre os nomes.
— Ah. — Mina balança a cabeça. — Não era nada.
Eu olho para ela com expectativa. Essa centelha de energia de
cientista maluco ilumina seus olhos novamente.
— Ok, então; Mikayla e eu estávamos discutindo o caso
Tyler Elkin — diz ela. — Presumo que você tenha ouvido a
fofoca sobre ele e aquela garota, Megan...
— Megan Foster, sim. — Com a morte de Tyler, Megan
parece estar prosperando. Eu não a tenho em nenhuma das
minhas aulas neste semestre, mas toda vez que a vejo nos
corredores de Miller ou caminhando por Oak Grove, ela parece
mais brilhante, mais feliz, menos assombrada. Ela está prestes a
se formar na primavera, e ouvi dizer que ela foi aceita no início
de um programa de mestrado em Stanford.
— Bem, começamos a conversar e percebemos que vários dos
outros suicidas também tinham, bem, uma reputação menos
do que estelar. — Mina aponta para a lista no quadro
branco. — Todos esses homens tinham queixas contra eles, seja
na época de sua morte ou no ano anterior. Assédio
sexual. Abuso doméstico. Estupro.
Se isso é tudo que ela tem, não estou preocupada. As
acusações contra esses homens eram um segredo aberto, se não
um assunto de registro público, quando eu os matei. Ninguém
se importou na hora de seus crimes, então por que eles se
importariam agora?
Eu finjo considerar o que ela disse como se fosse uma
informação nova.
— Não seria um fator de risco para o suicídio? Enfrentando
acusações criminais como essa?
Mina balança a cabeça.
— É isso mesmo: nenhum deles estava enfrentando
acusações reais. Apenas reclamações para a
escola. Acusações. Aquele tipo de coisa.
— Rumores.
— Exatamente — diz Mina. — Como esse cara… — Ela bate
em um dos nomes. — Você conhecia ele?
Kevin Pratt. Segundo ano do Kentucky. Passava a maior
parte do tempo barricado em seu dormitório, jogando
videogame ou gravando arengas no YouTube lamentando as
vadias presunçosas do campus que abriam as pernas para
jogadores de futebol e se recusavam a transar com ele. Passei
horas assistindo aqueles vídeos enquanto planejava sua morte,
e sempre senti que precisava de um banho depois.
— Não muito bem — eu digo. — Acho que ele estava em
um dos meus cursos de pesquisa do primeiro ano?
— Uma estudante tentou obter uma ordem de restrição
contra ele, disse que a estava perseguindo. Mas o juiz indeferiu
seu pedido. Duas semanas depois, ele foi morto em um campo
nos arredores da cidade.
Para um garotinho verme tão magro, Kevin me deu muito
mais problemas do que eu esperava. Trazê-lo para um local
remoto foi fácil: fiz uma conta falsa no Facebook, fingindo ser
uma garota bonita de sua idade que mal podia esperar para
conhecê-lo pessoalmente. Mas quando ele percebeu que eu não
era Ashley G. de Blairsville, ele puxou uma faca de caça para
mim e lutou muito. Tive que arrastá-lo para um novo local
antes de acabar com ele para que a polícia não encontrasse sinais
de luta e gotas do meu sangue ao lado de seu cadáver ainda
esfriando.
Usei sua própria faca para cortar seus pulsos. Ninguém
jamais suspeitou que fosse outra coisa senão suicídio. Kevin
Pratt parecia absolutamente o tipo que se matava — embora se
não fosse pela minha intervenção, ele poderia muito bem ter
tirado a própria vida depois de tirar quem sabe quantos de seus
colegas de classe com o estoque de armas que encontraram ao
limpar seu dormitório.
— Mikayla está trabalhando em um relatório mais detalhado
para mim agora — diz Mina —, olhando redes sociais,
reportagens de jornais, fóruns de estudantes. Como você pode
imaginar, é difícil confirmar muitos fatos. Mas você tem que
admitir, é um padrão interessante.
— Você contou a mais alguém sobre isso?
— Não. Só você e Mikayla. Não posso levar para a
administração até que tenha mais coisas para fazer. Eles vão
pensar que eu sou uma vadia histérica com uma teoria da
conspiração. — Ela se afasta do quadro branco, passando os
dedos pelos cabelos com um suspiro. — Você acha que eu sou
louca?
Eu sei que deveria dizer sim. Sim, isso é loucura, você está
sobrecarregada, precisa dormir, está vendo coisas que não
existem. Você deveria largar isso, descansar um pouco. Deixe isso
para lá.
Mas não posso deixar de respeitar Mina por descobrir até
isso. Na verdade, é apenas uma pequena fração dos homens que
matei. E ela não tem nenhuma prova de que eles foram
assassinados, apenas de que eram todos uns idiotas que
mereciam ser. Não quero ser pega, é claro, mas é bom
finalmente ter alguém reconhecendo a minha obra.
— Não — digo a ela. — Eu não acho que você seja louca.
46
CARLY

Mesmo no escuro, eu posso detectar Allison à distância.


As janelas da sala de leitura do primeiro andar da Thiede
Memorial Library fornecem uma vista perfeita de Oak Grove
— e Allison, caminhando para o ensaio do Cabaret. Esta tarde,
ela pediu a uma das outras meninas em nosso dormitório que
ajustasse seu corte de cabelo feito em casa em um corte
acentuado na altura do queixo, e então ela tingiu os restos azuis
com preto brilhante. Faz com que sua pele pareça pálida como
a lua cheia, seus traços afiados como garras.
Ela para para cumprimentar os alunos fumando nos degraus
que flanqueiam a entrada principal do Riffenburg Hall. Bash
não faz parte do grupo; ele entrou alguns minutos atrás.
Fico enjoada de pensar nele ali com ela durante todas as horas
de ensaio, sorrindo, rindo e dançando como se não houvesse
nada de errado, como se ele não fosse um estuprador de merda.
Minha mão lateja e me forço a pousar a caneta. Pressionei
com tanta força no meu caderno que rasguei várias páginas
novamente. Eu sacudo meus pulsos e estalo os nós dos dedos
um por um. O som ecoa como tiros no silêncio da biblioteca, e
os meninos que estudam na mesa ao lado me encaram.
Quero pular da cadeira e me lançar sobre eles, os dentes à
mostra como um animal selvagem. Desde minha explosão no
gabinete do reitor, tenho tido esses desejos. Eu não posso agir
sobre eles, é claro. Mas só de imaginar um ataque envia uma
pequena onda de satisfação pela minha espinha.
— Carly?
Eu me viro em meu assento para encontrar Alex de pé bem
atrás de mim, as mãos enterradas nos bolsos de sua jaqueta de
couro. Eu imediatamente sinto que preciso me explicar — mas,
pelo que ele sabe, estou apenas aqui estudando, como qualquer
outro aluno. Ele é aquele que não deveria estar aqui; é sábado e
ele nem carrega nenhum livro da biblioteca.
— Como você está? — Alex pergunta. — Sua colega de
quarto está se sentindo melhor, espero?
Meus olhos voltam para os degraus de Riffenburg — vazios
agora.
— Sim. Muito melhor.
Eu sei que é errado seguir Allison, observá-la assim. Mas não
sei mais o que fazer. Ela não vai falar comigo. Desde nosso
encontro no telhado, ela nem me olha nos olhos. Mas com todo
mundo, ela está agindo como se estivesse totalmente bem, de
volta ao seu eu efervescente. Como se nada tivesse acontecido.
Alex se senta ao meu lado.
— Tem certeza que está bem?
Eu mordo meu lábio. Eu não vou chorar na frente dele. De
novo não.
— É só que você parece muito estressada. — Ele me olha de
cima a baixo. — Você definitivamente perdeu peso.
Eu me encolho em minha cadeira, puxando meu moletom
fechado sobre meu peito. Me sinto estranha ao pensar nele
notando meu corpo de alguma forma, mesmo por
preocupação. Mas, ao mesmo tempo, sua atenção é como uma
droga correndo em minha corrente sanguínea. Quanto mais ele
olha para mim, mais meu batimento cardíaco desacelera, meus
músculos se desfazem. Isso me lembra a estranha sensação de
calma que senti quando enfrentei Bash no Halloween. Eu
gostaria de poder me sentir assim o tempo todo.
Alex se inclina, o cotovelo apoiado na mesa ao lado do meu
caderno.
— Lembre-se do que eu disse: estou sempre aqui se precisar
conversar. — Ele sorri. — Eu realmente quero ajudar, Carly. Se
eu puder.
O ensaio acabou de começar, então eu poderia falar com
Alex por um tempo e ainda voltar a tempo para garantir que
Allison chegue em casa em segurança.
— Podemos ir para outro lugar? — Eu pergunto.
— Claro — diz ele. — Eu sei exatamente o lugar.

Alex e eu não conversamos durante toda a caminhada até o


centro. Acho que estamos indo para o café ao lado do
tribunal; esse é praticamente o único ponto de encontro
decente que não é no campus.
Mas ele vira na direção oposta, levando-me pelos trilhos do
trem. Nunca caminhei por aqui antes, então levo um segundo
para perceber aonde ele está me levando.
O Gorman Tap. Allison me contou histórias sobre me
esgueirar lá, mas não tenho uma identidade falsa como ela.
Eu olho para o copo de néon piscante de coquetel acima da
entrada do bar.
— Sinto muito, não tenho idade suficiente para...
— Está tudo bem — diz Alex, segurando a porta aberta para
mim —, eles me conhecem aqui.
Eu hesito. Isso parece errado. Mas ele é meu professor; ele
não me causaria problemas.
O Gorman Tap é maior do que parece do lado de fora, mas
ainda parece claustrofóbico, sombras e fumaça de cigarro
persistente pressionando por todos os lados. Alex contorna as
mesas até uma mesa enfiada no canto dos banheiros, depois
volta para o bar para pegar bebidas para nós.
Praticamente não há ninguém aqui, exceto nós e o barman,
mas ainda me sinto notável. A música tocando nos alto-falantes
parece muito alta, os apelos do cantor para “não olhar para trás
com raiva” ricocheteando no teto de zinco. Assim que estou
sozinha à mesa, a vontade de correr torna-se quase
insuportável. Isso foi um erro. Eu deveria voltar para a
biblioteca e esperar, como planejei.
Antes que eu possa pensar em uma desculpa ou fazer uma
pausa para a saída, Alex retorna, carregando um pequeno copo
com um líquido âmbar em uma das mãos e um refrigerante
com um canudo listrado na outra. Ele se acomoda na minha
frente e toma um gole de sua bebida, fechando os olhos para
saborear o gosto. O som baixo de prazer que ressoa no fundo
de sua garganta faz minhas bochechas esquentarem, mas espero
que ele não possa perceber, já que o abajur de vitral sobre a mesa
deixa tudo em tons de vermelho.
Ele realmente é bonito. Definitivamente, o cara mais bonito
que já me deu um único momento de atenção em toda a minha
vida. É porque sou uma de suas alunas e ele está preocupado
comigo. Mas ainda assim, é bom sentar aqui com ele. Melhor
do que ficar obcecada olhando pela janela da biblioteca.
Eu tomo um pequeno gole do refrigerante, afundando os
dentes na ponta do canudo. É uma Coca-Cola sabor cereja, tão
doce que faz minha cabeça girar. Eu pulei o jantar novamente
esta noite para que eu pudesse definir meu lugar na biblioteca
o mais cedo possível. Alex está certo, perdi peso; eu continuo
tendo que apertar meu cinto para evitar que meu jeans fique
solto em volta dos ossos do meu quadril.
— Então. — Alex coloca seu copo na mesa. — Você quer me
dizer o que realmente está acontecendo?
Eu gostaria. Eu realmente quero. Mas não é minha história
para contar. Allison já está com raiva de mim.
Eu fico olhando para o meu refrigerante. Alex abaixa a
cabeça, tentando chamar minha atenção.
— Problemas com garotos? — ele pergunta.
— Não! — Eu deixo escapar. Ele levanta as sobrancelhas,
mais divertido do que preocupado agora. Eu olho para baixo
novamente, traçando meu dedo através da condensação no
copo de refrigerante.
Alex endireita os óculos, como faz na aula quando quer ter
certeza de que estamos prestando muita atenção.
— Você sabe o que sempre me faz sentir melhor?
Eu balanço minha cabeça. Eu acredito que ele realmente
quer ajudar, mas não há como ele entender o que estou
sentindo agora — a vergonha, o desamparo. Se ele estivesse
naquela festa, ele provavelmente teria socado Bash na
mandíbula. Ele teria insistido em chamar a polícia
imediatamente, em vez de entrar em pânico como uma
garotinha patética.
— Escrever sobre isso. — Ele se inclina sobre a mesa. —
Sempre ajuda. Algumas semanas atrás, tive uma grande
discussão com minha esposa.
— A respeito? — Eu quero morder minha língua no
segundo que a pergunta for feita. Não é da minha conta.
Mas ele não parece nem um pouco incomodado com a
minha intromissão.
— Ah, as mesmas coisas pelas quais sempre brigamos. Sou
muito dedicado aos meus alunos, não tenho tempo suficiente
para ela.
Sua esposa pode ter razão nisso. É depois das 19h de um
sábado e ele está sentado em um bar comigo. Mas talvez ela
tivesse seus próprios planos esta noite. Não é minha função
julgar. Não sei nada sobre estar em um relacionamento. Eu
nunca namorei ninguém, e meus pais não foram exatamente
um exemplo positivo.
— De qualquer forma — ele continua —, fui ao meu
escritório só para me acalmar, sabe? E acabei escrevendo um
conto sobre isso.
Eu franzo minha sobrancelha.
— Sobre a briga?
— Tipo isso. Só que mais como... como eu estava me
sentindo, o que eu realmente queria dizer a ela. Saiu de mim
como água, lavando todas aquelas emoções ruins.
Eu enfio meu canudo no gelo picado no fundo do meu
copo.
— Você contou para sua esposa?
— Ah, não — ele diz. — Ela não teria entendido. Ela não é
artística como nós.
Allison é a artista, não eu. Nunca escrevi nada que não fosse
obrigatório para a escola. Pode valer a pena tentar, no entanto,
se puder me ajudar a entender esses impulsos violentos que
tenho sentido. Mas estou com medo de abrir a porta para eles
ainda mais. E se eu não conseguir fechá-la novamente?
Como se tivesse lido minha mente, Alex desliza a mão sobre
a mesa e diz:
— Você não pode manter todas essas coisas que está se
sentindo engarrafadas para sempre, Carly.
Ele não está me tocando, mas se ele se movesse mais uma
fração de polegada, ele estaria. Eu não sei se eu quero que ele
faça. Eu não sei o que eu quero. Ultimamente tenho sentido
tantas coisas diferentes, juro que meus músculos vão se romper
com o esforço de tentar conter tudo.
— Você não tem que me mostrar o que escreve. Você não
precisa mostrar a ninguém. — Alex sorri para mim, e a luz do
vitral faz seus dentes brilharem vermelhos. — Mas acredite em
mim: você tem que se liberar algum dia.
47
SCARLETT

— “Escute, vilões! Vou moer seus ossos até virar pó.”


A voz de Jasper ecoa no teto alto da sala de aula. Ele
finalmente apareceu hoje, então estou colocando-o para
trabalhar, lendo uma cena de Tito Andrônico em voz alta para
os alunos. É apenas um pequeno castigo.
Ele termina a passagem, então dá um passo para trás para
ceder a palavra para mim. Mesmo com a tensão crescente entre
nós fora da sala de aula, tenho que admitir que ele e eu ainda
trabalhamos bem juntos.
Sempre preferi o lado da pesquisa em minha carreira
acadêmica, mas agora ensinar parece um oásis. Sou forçada a
ficar no momento, minhas preocupações com a polícia e Mina
Pierce e sua lista de nomes discada para baixo para um zumbido
baixo no fundo do meu cérebro.
— Obrigada, Sr. Prior. Então me digam — volto minha
atenção para os alunos —, vocês acham que Tito se justifica em
seu tratamento dos estupradores de sua filha?
— Quer dizer... parece meio extremo? — Ashleigh Lawrence
diz. Ela está falando mais e mais, sem qualquer solicitação
minha (embora a maioria de seus comentários sejam
flexionados como perguntas). — Assando-os em tortas e
dando-os às mães. É tão nojento.
Ryan Cutler acena em concordância, a aba de seu chapéu do
Pittsburgh Pirates balançando.
— Sim, eu sei que o que eles fizeram com Lavinia foi
ruim. Mas não sei se eles mereciam morrer por isso.
Mikayla zomba. Não baixinho; ela quer que todos
ouçam. Eu não a vi com Stright novamente, mas há algo
acontecendo com ela. Ela faltou às aulas na sexta-feira passada,
o que é completamente diferente dela; no passado, ela aparecia
mesmo quando estava com febre e protestava quando a
mandava de volta para o dormitório.
Eu me viro para ela.
— Srta. Atwell, suponho que você discorda?
— Eu acho que Quíron e Demétrio se safaram facilmente —
ela diz.
— Sério? — Ashleigh olha boquiaberta para ela. — Ele
cortou suas gargantas e os triturou.
— Eles sofreram apenas alguns minutos. O que Lavinia
passou foi muito pior. Eles cortaram suas mãos, eles cortaram
sua língua, eles a deixaram para...
— Quero dizer, sim, eu acho — Ashleigh diz. — Mas pelo
menos eles a deixaram viva, certo?
— Eles a deixaram viva para machucá-la mais. — Mikayla
nem mesmo tenta esconder sua exasperação. — É tudo o
mesmo crime de qualquer maneira. É sobre poder, não sexo.
Ashleigh fica quieta, mas Ryan está ficando cada vez mais
agitado, balançando a cabeça, os pés batendo no chão.
— Ok, claro, tudo bem — diz ele. — Mas tipo, não podemos
sair por aí matando todos os estupradores e assando-os em
tortas?
— Por que não? — Mikayla se vira para olhar para ele. —
Você está com medo?
Seus colegas explodiram em risos e gritos inquietos. Eu lanço
um clarão sobre a sala para subjugá-los, mas um zumbido de
inquietação paira no ar.
Ryan se inclina para frente em seu assento. Seu rosto
escurece com uma mistura de vergonha e raiva — talvez a mais
perigosa combinação de emoções em um homem. Mikayla é
uma debatedora feroz e muitas vezes ela entra em discussões
acaloradas com seus colegas de classe, mas isso é
diferente. Parece que ela está ansiosa por uma briga.
— É isso que você faria se fosse estuprada? — Ryan pergunta
a ela. — Apenas cortar a garganta do cara?
— Ei, ei, ei — Jasper interrompe. — Vamos manter isso
acadêmico, vamos?
Ryan recua, colocando as mãos em sinal de rendição. Mas
Mikayla não.
— Se alguém me estuprasse — diz ela —, ninguém jamais
encontraria seu corpo.
A sala fica em silêncio, todos parecendo um pouco enjoados
— exceto Ryan, que revira os olhos e murmura baixinho, alto
o suficiente para garantir que Mikayla ouça
— Puta psicopata.
Ela está de pé em um instante, seu caderno e cópia de Tito
Andrônico caindo no chão.
— Venha aqui e me diga isso na minha cara, seu idiota de
merda.
Ryan ri, mas ele está encolhendo o mais longe dela que pode,
sua coluna pressionada contra a cadeira. Mikayla parece que
está prestes a escalar os assentos e estrangulá-lo. Eu sei que
deveria fazer algo — os alunos e Jasper estão todos olhando para
mim, esperando que eu intervenha, recupere o controle da
classe. Mas parte de mim quer que Mikayla faça isso. O
merdinha merece.
Jasper agarra Mikayla pelo cotovelo — suavemente, mas ela
reage como se tivesse levado um choque elétrico.
— Não me toque, porra. — Ela o encara e se solta de seu
aperto. Jasper recua, um sorriso estranho aparecendo nos
cantos de seus lábios.
— Srta. Atwell — eu digo. — Por que não vamos conversar
no meu escritório?
O rosto de Mikayla ainda está contorcido de raiva, mas antes
que as lágrimas tenham a chance de derramar, ela se vira e sai,
deixando suas coisas espalhadas pelo chão. Seus colegas de
classe ficam olhando para ela e depois trocam olhares de Você
acredita nisso?
— Terminem sem mim — digo a Jasper enquanto sigo
Mikayla. Ele nunca conseguirá chamar suas atenções de volta
para terminar a lição, mas talvez todos eles tenham aprendido
algo mais hoje.
O corredor fora da sala de aula está completamente
silencioso, Mikayla já se foi. Vou em direção ao banheiro
feminino mais próximo — talvez ela esteja chorando, é o que
eu teria feito na idade dela —, mas sou interrompida pelo som
do meu próprio nome.
— Dra. Clark. — O detetive Flynn caminha em minha
direção. — Eu estive procurando por você.
48
CARLY

— Com licença.
Uma garota com uma combinação suja e meia arrastão
rasgada passa por mim, puxando seu cabelo em rabos-de-cavalo
altos e tortos. Eles estão fazendo um ensaio geral para
o Cabaret esta noite, então o porão do Riffenburg Hall está
lotado de pessoas, a maioria delas vestindo pouco mais do que
roupas íntimas.
Dois caras magros em shorts listrados passam por mim em
seguida, já manchados com maquiagem branca pastosa do
cabelo até os quadris. Eu me pressiono contra a parede para
deixá-los passar. Então decido tentar ir na direção contrária, em
direção ao final do corredor com um pouco menos de gente, e
quase colido com Allison.
Ela também está fantasiada: short preto, espartilho e
botas. Parece muito com o que ela me fez usar na festa de
Halloween, exceto que o espartilho tem tiras finas para segurá-
lo no lugar e as botas vão até os joelhos.
— Oi! — Allison diz. — Você trouxe?
Eu levanto sua bolsa de maquiagem — uma mala de trem
vintage com fotos de estrelas clássicas decupadas em toda a
tampa.
— Obrigada! — Ela pega o estojo de mim, segurando-o
contra o estômago. — Não acredito que esqueci.
— Sem problemas — eu digo. Quando recebi sua mensagem
frenética me pedindo para trazer sua maquiagem para o teatro,
fiquei feliz com a desculpa para sair do nosso quarto por um
tempo. Passei o dia todo trabalhando na minha próxima
história para a aula de redação, ou tentando, pelo
menos. Tentei seguir o conselho de Alex e escrever sobre meus
sentimentos, mas tudo saiu uma bagunça, apenas um monte de
reclamações sobre como Bash era um idiota. Isso me fez sentir
pior, não melhor.
Falando no diabo. Bash aparece ao lado de Allison, sua mão
já apertando sua cintura.
— Sally, querida. — Seu traje consiste em shorts pretos de
cintura baixa e batom vermelho berrante manchando sua
boca. Ele parece um palhaço malicioso, finalmente tão grotesco
por fora quanto por dentro. — Você está pronta para isso?
Allison não o afasta. Ela nem mesmo estremece com os dedos
dele cavando em seu lado. Em vez disso, ela sorri e bate o
quadril contra o dele.
— Mas é claro, querido! — ela diz, colocando uma versão
ainda mais exagerada do sotaque britânico que ela faz para o
show.
Bash pisca para ela e se afasta. Eu olho para ele, mas por tudo
que ele se importa, eu posso muito bem fazer parte da porra da
parede de blocos de concreto. Eu me pergunto se ele ainda se
lembra de mim do Halloween.
— Eu deveria colocar minha maquiagem — diz Allison. —
Mas se você quiser…
— Você está bem? — Eu pergunto.
Ela inclina a cabeça, cabelo preto cortando sobre sua
mandíbula.
— O que você quer dizer?
— Ele simplesmente apareceu e agarrou você, como...
Allison aperta os lábios.
— Não é grande coisa.
— Sério? — Eu fico olhando para ela. — Depois do que ele…
Ela me agarra pelo braço e me arrasta pelo corredor. Eu
levantei minha voz mais do que pretendia, e agora todos estão
olhando nosso jeito — incluindo Wes, que acabou de sair de
um armário de suprimentos com uma bobina de cabos
enrolada no braço.
Wes sorri quando me vê, começando a se aproximar. Então
ele percebe a expressão de raiva no rosto de Allison, e ele para
no meio do caminho, deixando os cabos se soltarem.
— Você precisa se acalmar — diz Allison em um sussurro
áspero.
— M-me desculpe. — Eu me concentro no local onde seus
dedos cravam na minha manga, porque não consigo olhá-la nos
olhos.
— Eu não preciso disso agora. — Ela o solta, já se virando. —
Temos um show a fazer.
Ela segue em direção aos provadores. Bash se juntou a um
bando de dançarinos do lado de fora dos camarins e, quando
ela passa por ele, sua mão se agita, dando tapinhas na bunda
dela.
Eu quero jogá-lo de volta na parede, moer seu sangue nos
tijolos cinzentos. Mas Allison não reage de forma alguma. Nem
mesmo diminui o ritmo dela. Ela está claramente
acostumada. Ele deve fazer isso o tempo todo. Toda maldita
noite.
— Algo errado? — Wes me pergunta.
Ele nem mesmo viu. Bash apenas apalpou Allison bem na
frente de todos, e eu pareço ser a única pessoa que não está
totalmente alheia a isso. O que mais Wes perdeu durante todas
essas semanas de ensaio?
Muitas vezes, eu imaginei Allison e Bash no palco juntos:
sorrindo e piscando e deslizando as mãos sobre a pele um do
outro. Mas sempre foi coreografado, controlado. Uma
performance. Eu não imaginei isso — quão casualmente ele
coloca as mãos sobre ela, sua possessividade apavorante.
É claro que Bash se sente no direito de tocá-la como e quando
quiser. Ele escapou impune. Ele a drogou e agrediu e não
enfrentou uma única consequência. O que ele fez com ela pode
não se enquadrar na definição legal de estupro, mas tenho
certeza de que ele fez pior com outras garotas. Ele fará pior com
Allison se tiver a chance.
Eu imagino arrancando seus dedos de seu corpo, um por
um. Então imagino dobrá-los para trás até que se quebrem.
— Carly? — Wes diz. — Está tudo bem?
Os detalhes correm em minha mente tão rápido que me sinto
tonta: o osso saindo da pele de Bash, o vermelho raivoso de seu
sangue, a forma como seus gritos vibrariam através de mim.
— Eu tenho que ir. — Minha voz cai para o mesmo tom
gélido que assumi durante a reunião com a reitora.
Wes dá um passo para trás.
— O quê? Onde você está…
Mas eu já fui. Corro para fora do Riffenburg Hall e atravesso
o Oak Grove. Minha mesa de sempre na biblioteca já está
ocupada, mas não importa, porque não estou aqui para cuidar
de Allison desta vez. Eu deslizo em uma cadeira no canto e tiro
um caderno da minha mochila, meu coração batendo forte
quando eu viro para uma nova página.
Ele não tinha medo de mim, escrevo. Esse foi seu primeiro
erro.
49
SCARLETT

Esta é a primeira vez que vejo o detetive Flynn ou sua parceira


em dias, mas isso não significa que eles não tenham se
esquivado, revirando pedras para ver o que está rastejando por
baixo.
— A detetive Abbott e eu adoraríamos nos sentar com você
— diz Flynn. — Olhar o seu cérebro.
— Claro — eu digo. — Deixe-me saber quando…
— Que tal agora? — Ele sorri de uma forma que tenho
certeza de que pretende desarmar. Muito ruim para ele, esse
tipo de coisa não funciona mais comigo.
— Eu estou ensinando — eu digo. — Eu saí apenas por um
segundo, mas deveria estar…
— Ah, não se preocupe — diz ele. —, isso levará apenas
alguns minutos.
Um ataque furtivo. E eu sei o quão ruim parecerá se eu tentar
evitá-lo.
Então, deixo Flynn me conduzir até o escritório de
Kinnear. A secretária dele foi passar o dia em casa, então pelo
menos não tenho que lidar também com os olhares curiosos
dela. Abbott já está lá dentro, sentada na cadeira de
Kinnear. Tudo aqui está exatamente como ele deixou, exceto
pelo laptop e variedade de xícaras de café de Sheetz bagunçando
a mesa. As cortinas foram fechadas, bloqueando a vista
panorâmica de Oak Grove.
— Dra. Clark — diz Abbott —, obrigada por arranjar
tempo.
Ela faz um gesto para que eu me sente à sua frente. Flynn fica
de pé, movendo-se para trás da mesa. Ele parece um guarda-
costas, com as mãos cruzadas atrás das costas de forma que a
arma amarrada ao seu lado espreite para fora de sua jaqueta —
embora esteja bem claro que Sharon Abbott é uma mulher que
não precisa de qualquer proteção.
— Claro — eu digo —, espero poder ajudar.
Abbott se inclina para trás.
— Belo escritório, não é? Muito mais confortável do que a
estação em Pittsburgh, vou te dizer isso. — Ela balança um
pouco, o couro da cadeira rangendo. — Diga o que quiser
sobre o homem, mas ele tinha bom gosto.
— Suponho que sim.
Ela está me aquecendo, facilitando-me suavemente. Prefiro
acabar com isso.
— Você já foi à casa dele? — Abbott pergunta. — Na época
em que ainda estava vivo, quero dizer.
Eu cruzo minhas pernas e dobro minhas mãos.
— Uma vez.
— Era bonito também, não era? Eu vi fotos. Todos aqueles
móveis dos anos 60, uma pena. — Abbott se endireita na
cadeira, voltando a prestar atenção. — E quando foi? A única
vez que você estava lá?
— Algumas semanas atrás. Ele deu uma festa.
Abbott verifica suas anotações na tela do laptop.
— O Baile de Boas-vindas, correto? Sábado, vinte e quatro
de outubro.
Eu concordo.
— E essa foi a única vez que você esteve lá?
— Sim. — Isso está ficando cansativo, mas não posso deixar
meu aborrecimento transparecer. Tenho que ser agradável,
complacente, cooperativa. Eles têm que acreditar que quero
ajudar.
Abbott bate as unhas na borda da mesa.
— Então, nas outras vezes que você se encontrou com ele,
não foi na casa dele.
Minha máscara amigável vacila por um segundo.
— Não tenho certeza do que você quer dizer.
— Você mora na — ela verifica suas anotações novamente —
Beacon Street, 1489?
— Isso mesmo.
— Então o Dr. Kinnear encontraria você lá, em vez de ir para
sua residência?
— Ele nunca foi à minha casa. — Essa é a verdade. Em todo
o tempo que trabalhei na Gorman, Kinnear nunca pôs os pés
lá. Poucas pessoas o fizeram, além de Jasper.
— Isso é estranho. — Abbott olha para seu parceiro como
apoio.
— Muito estranho — concorda Flynn.
O suor pica entre minhas omoplatas.
— Como assim?
— Bom — diz Abbott —, alguns de seus colegas pareciam
certos de que você e o falecido estavam namorando.
Não consigo esconder meu desgosto.
— Namoro? Com certeza não.
Abbott sorri.
— Talvez namoro seja a palavra errada; eu estava tentando
ser educada. O que eles realmente disseram é que pensaram que
vocês dois eram...
— Nós também não estávamos fazendo isso, garanto a você.
Abbott inclina a cabeça, me estudando.
— Parece que você não suportava ele.
— Não, isso não é… — Eu tento engolir minha raiva, mas
ainda está muito perto da superfície, esticando o fundo da
minha garganta. — É só isso, éramos colegas. Só pensei nele em
um contexto profissional.
Flynn acena com a cabeça.
— Acho que isso explica por que você não parece muito
chateada com a morte dele.
Estou calma. Eu tenho que ficar calma. Eu não estava
preparada para a linha de questionamento anterior, mas para
esta que pratiquei.
— Bem, é claro que fiquei triste em saber disso. E chocada,
como todo mundo. Mas não éramos próximos. Nós realmente
não socializávamos fora do trabalho.
Meu pulso parece diminuir a cada palavra. Ainda posso
assumir o controle desta situação.
— Posso perguntar quem lhe disse que o Dr. Kinnear e eu
estávamos... envolvidos?
— Não podemos divulgar os detalhes de nossas outras
entrevistas — diz Flynn. Abbott está em silêncio, seu rosto
irritantemente ilegível.
— Bem — eu digo. — Posso garantir que nosso
relacionamento era totalmente profissional.
O cheiro da colônia de Kinnear paira no ar reciclado; não sei
como não percebi antes. É como se ele ainda estivesse aqui,
respirando no meu pescoço. O bastardo presunçoso.
Abbott se inclina para frente, apoiando os cotovelos na
mesa.
— E quanto ao seu relacionamento com a ex-mulher dele?
— Samina e eu também somos colegas.
— Não são amigas? — Abbott pergunta.
— Estou ajudando no trabalho dela na força-tarefa de
prevenção ao suicídio, talvez você…
— Você parecia muito amigável com ela no funeral.
Eu pressiono meus lábios. Eu me recuso a dar a eles qualquer
coisa que possa implicar Mina.
— Você foi para casa com ela depois também e ficou por um
bom tempo. — Abbott olha para seu parceiro novamente.
Flynn acena com a cabeça.
— Algumas horas.
— Vocês nos seguiram? — A raiva desliza direto pelos meus
dentes desta vez.
O rosto de Abbott está inteiramente legível agora: ela parece
encantada, os olhos brilhando de alegria.
— Dra. Pierce era uma suspeita em potencial na época, mas
nós a inocentamos.
A implicação é clara: eu ainda sou muito uma potencial
suspeita.
— Ela tem um álibi para a noite do assassinato — diz
Flynn. — Assim como você. O Sr. Prior nos disse que vocês
dois trabalharam até tarde naquela noite.
O sorriso em seu rosto diz que ele sabe exatamente o que
Jasper e eu estávamos fazendo. Mas não importa. Contanto
que eles acreditem no álibi, eles podem fazer todas as
insinuações sobre minha vida sexual que quiserem. Talvez a
mentira imprudente de Jasper seja benéfica para mim, afinal.
— Você ou o Sr. Prior viram seu colega Dr. Andrew Torres
na noite de Halloween? — Abbott pergunta.
— Não, eu acredito que Drew ficou com seu marido. Eles
são caseiros.
Abbott acena com a cabeça.
— Isso é o que o Dr. Torres disse. Bem, ele disse
que ele estava em casa naquela noite.
— Rafael Torres estava em uma festa — confirma Flynn. —
Em uma boate em Pittsburgh. As testemunhas o colocam lá até
pelo menos duas e quinze da manhã de primeiro de novembro.
Lembro-me vagamente de Drew mencionando isso,
reclamando que Rafael queria sair para dançar como se eles
ainda estivessem na casa dos vinte. Achei que ambos haviam
decidido contra isso.
Certamente eles não estão tentando arrastar Drew para isso,
de todas as pessoas. Mas se ele ficou sozinho a noite toda no
Halloween, ao virar da esquina da cena do crime...
— Quando você e o professor Torres se conheceram?
— Abbott pergunta.
— Meu primeiro semestre como professora em Gorman.
— Isso foi há cerca de sete anos, correto? Você foi contratada
logo depois de obter seu doutorado?
— Sim.
— E você gosta daqui?
Eu concordo. Abbott parece quase entediada agora, olhando
para algo em seu laptop. Flynn foca nisso também, olhando por
cima do ombro dela, e eles compartilham um olhar
conspiratório.
— Eu acho que você deve mesmo — Flynn diz. — Para
voltar ao mesmo lugar que você estudou.
Meu estômago embrulha.
Abbott vira o laptop.
— É você, certo? Scarlett Christina Schiller.
Na tela do laptop da detetive Abbott está uma foto da minha
antiga carteira de estudante da Universidade Gorman. Meu
antigo eu, com o cabelo escuro frizado e o rosto longo e sério,
meus olhos grandes demais para o resto de minhas feições.
— Você conheceu o Dr. Kinnear quando era estudante aqui?
— Abbott pergunta.
Não há razão para mentir; se eles souberem quem eu
realmente sou, podem consultar minhas transcrições. Talvez
eles já tenham.
— Eu tive uma aula com ele.
— Ele te reconheceu? Quando você voltou para a entrevista
de emprego?
Meu diploma de graduação é em Swarthmore. Meu
currículo omite o único semestre que passei em Gorman, e
meus registros de equipe não contêm vestígios do meu
sobrenome original. O que significa que eles cavaram mais
fundo do que isso — mas quão fundo?
— Eu não tenho certeza se eu teria reconhecido. Você está
tão diferente agora. — Abbott gesticula para a foto. — Nós
olhamos para isso por tanto tempo, não é? — Ela olha para
Flynn, sorrindo; ele sorri também, como se tudo isso fosse uma
enorme piada. — Tentando descobrir se era realmente você.
Eu não aguento mais a expressão triste e taciturna no rosto
de Carly Schiller, o medo avassalador em seus olhos. Eu não sou
mais essa pessoa.
Essa garota está morta.
Abbott nem está mais fingindo olhar suas anotações.
— Clark, esse é o nome de solteira da sua mãe, certo?
— Isso mesmo. — A resposta sai trêmula, do jeito que eu
costumava falar o tempo todo.
— E vocês duas começaram a usar o nome logo após a morte
de seu pai. — Abbott fixa seu olhar de ave de rapina em mim
novamente. — Como ele morreu, exatamente?
— Ele... foi um ataque cardíaco. — Minhas mãos também
estão tremendo; eu as pressiono contra minhas coxas para
imobilizá-las. Sinto como se tivesse mergulhado de volta no
meu antigo corpo tomado pela ansiedade, onde tudo era muito
intenso.
— Lamento ouvir isso — diz Flynn. — Deve ter sido difícil
para você e sua mãe.
Para minha mãe, sim. Ela nunca superou isso. Nunca me
perdoou, embora ela não pudesse provar que eu era a
responsável. Ela ainda não sabe o que eu fiz, como troquei seus
remédios para o coração, lentamente, metodicamente, ao longo
dos vários meses que passei morando em casa entre deixar
Gorman e me transferir para Swarthmore. Mas ela viu a
expressão satisfeita em meu rosto quando ele estava deitado no
chão da cozinha, segurando o peito, ofegando por suas últimas
respirações, e isso foi o suficiente.
Os detetives não teriam examinado tão profundamente meu
passado, a menos que tivessem fortes suspeitas sobre mim. Mas
eles também não me prenderam ainda. Para isso, eles precisarão
de muito mais do que rumores sórdidos e fotos antigas nada
lisonjeiras. Se eles tivessem algo real, eu estaria algemada em
uma sala de interrogatório da polícia, não sentada no escritório
do meu chefe morto tendo uma conversa casual sobre meus
dias de faculdade.
Se eles tentarem culpar Drew pelo crime... Não posso deixá-
lo levar a culpa pelo que fiz. Eu não teria escolha a não ser me
entregar e confessar tudo. A menos que eles decidam que
estávamos nisso juntos. Lembro-me do olhar de Abbott
quando viu Drew e eu em meu escritório, comemorando
minha ligação de Judith Winters. Sorrindo, rindo e se
abraçando menos de vinte e quatro horas após o funeral de
Kinnear.
— Bom... — Abbott coloca as mãos espalmadas sobre a
mesa. — Isso certamente foi esclarecedor. Mas não queremos
arrastá-la muito para o fundo da memória. Nós sabemos o
quão ocupada você deve estar.
Ela permanece sentada enquanto Flynn me conduz até a
porta e a mantém aberta para mim. A porra de um cavalheiro.
— Obrigado pelo seu tempo — diz Flynn —, Dra. Schiller.
Eu estremeço visivelmente quando ele usa meu antigo nome
— o que, tenho certeza, é exatamente a reação que ele
esperava. Uma fantasia violenta passa pela minha mente: enfiar
os nós dos dedos na ponte de seu nariz até atingir a cartilagem
em carne viva. Eu pisco para longe, mas não rápido o suficiente.
— Ah, me desculpe. — Flynn sorri. — Dra. Clark.
50
CARLY

Os olhos de Alex varrem a sala, e eu poderia jurar que ele


permanece em mim por mais tempo do que os outros alunos.
— Acho que temos tempo para mais um.
Desta vez, não desvio o olhar, rezando para que ele me
ignore, como costumo fazer. Desta vez, coloco minha mão para
cima.
Alex parece tão surpreso quanto todo mundo por me
oferecer para ler meu trabalho.
— O que você tem para nós hoje, Srta. Schiller?
— É um pedaço novo. — Pego a impressão grampeada. —
Apenas um trabalho em andamento, mas...
Passei a noite toda trabalhando nisso, digitando enquanto
Allison se virava e se virava do outro lado da sala. Como Alex
prometeu, as palavras saíram de mim. Mas não como
água. Mais como lava derretida.
Limpo minha garganta e começo a ler.
— “Ele não tinha medo de mim. Esse foi o primeiro erro
dele.”
Estou surpresa com o quão calma e confiante pareço. É mais
seguro de alguma forma, porque é a voz do meu personagem,
não minha. Talvez seja por isso que Allison adora atuar tanto.
A história não é sobre ela e Bash. É sobre uma mulher que é
assediada pelo mesmo homem todos os dias no caminho para o
trabalho — até que ela não aguenta mais e decide assassiná-lo. A
princípio, ela está planejando matá-lo rapidamente, cortando
sua garganta com uma faca de açougueiro. Mas ela não pode
deixá-lo escapar tão fácil, não depois que ele a assediou por anos
a fio. Então, primeiro ela o atraiu para um prédio abandonado,
o amarrou a uma cadeira e colocou fita adesiva em sua boca
para abafar seus gritos enquanto ela arrancava suas unhas um
por um. Então ela puxa a faca.
— “Sentiu bem a arma em sua mão” — li. — “Pesada,
fundamentada. A lâmina era tão afiada que bastaria um golpe
para…”
— Ai, meu Deus.
Junto com o resto da classe, eu me viro para olhar para a
garota que falou.
Mallory Russell, a garota mais velha que questionou minha
presença aqui no primeiro dia. Ela não ficou muito mais
amigável nos meses seguintes.
Mallory me encara, seus óculos roxos enormes fazendo-a
parecer um besouro crítico.
— Qual o seu problema?
Minhas bochechas esquentam, mas não estou corando desta
vez. Eu não estou envergonhada; estou furiosa. Eu adoraria ver
a expressão no rosto de Mallory se ela soubesse que Alex
pessoalmente me pediu para escrever esta história.
— Mallory — diz Alex —, você sabe que sempre guardamos
nosso feedback até o fim; vamos apenas deixar Carly…
— Não deveríamos ter que sentar aqui e ouvir isso. Isso
é doente!
Mallory busca apoio em nossos colegas de classe. Alguns
deles acenam com a cabeça — embora pareçam um pouco
assustados. Com medo dela ou de mim, não tenho certeza. Wes
me dá um pequeno sorriso, tentando me apoiar. Mas nem
mesmo ele consegue me olhar nos olhos.
Ela se volta para mim.
— Quero dizer, Jesus. Você é uma sociopata pura ou...
— Ei — Wes diz. — É apenas uma história. Ficção. Não é
justo presumir que diga algo sobre o autor.
Mallory zomba.
— De jeito nenhum. Só alguém com sérios problemas
mentais poderia escrever algo como isso.
— Sim? — Meu punho fecha em torno das páginas. — Bem,
apenas alguém com problemas enormes com o papai poderia
escrever as merdas que você escreve, Mallory.
Sua boca se fecha, os olhos já se enchendo de
lágrimas. Claramente eu acertei um nervo. Ela olha para Alex,
mas ele não sabe como recuperar o controle da classe.
Wes decide tentar bancar o pacificador.
— Por que não tomamos todos um…
— Guarde isso — eu estalo, e Wes recua como um
cachorrinho chutado. — Eu posso me defender.
— É o bastante. — Alex está sorrindo e eu quero dar um tapa
nele. Esta foi sua maldita ideia em primeiro lugar. Mas ele se
preocupa mais com todos gostando dele do que em me
defender. — Vamos retomar da próxima vez, vamos?
Os outros alunos saem em fila, deixando meu lugar bem
afastado. Tento chamar a atenção de Wes — eu sei que foi
errado arrancar sua cabeça assim —, mas ele se esquiva com seu
caderno apertado contra o peito como um escudo.
Mallory bate na minha mesa com o quadril ao passar.
“Aberração” ela murmura — apenas alto o suficiente para
mim, mas não para Alex ouvir.
Eu fico de pé, as pernas da cadeira gritando contra o
chão. Alex me pega pelo cotovelo, me segurando.
— Vejo você na próxima semana, Srta. Russell — diz ele, e
Mallory praticamente corre para a saída. Ela parece estar com
medo de mim.
Isso é ainda melhor do que escrever a história.
Uma vez que estamos sozinhos, Alex fecha a porta.
— Isso foi… — Ele para de falar, cruzando os braços sobre o
peito. — Muito criativo.
Eu enrijeço.
— Eu estava apenas fazendo o que você me disse para fazer,
você disse…
— Você está certa — diz ele.
Ele se senta na cadeira ao lado da minha. Alex não parece
nem um pouco zangado, e estou quase desapontada. Eu queria
a desculpa para discutir com ele, para atiçar o fogo da minha
raiva. A raiva já está queimando, lágrimas correndo para
substituí-la, voltando-me para o meu eu fraco e patético de
sempre.
— Eu não quero censurar sua auto-expressão. — Alex se
inclina para frente, os cotovelos sobre os joelhos. — Mas temos
que ter consideração pelos outros alunos. Certifique-se de que
este seja um espaço seguro para todos.
A fúria queima em meu peito novamente, afugentando as
lágrimas. Nenhum lugar é seguro, não enquanto caras como
Bash estão lá fora, pegando o que querem de quem eles querem,
sem ninguém para enfrentá-los. Minha história era ficção, mas
era sobre como o mundo deveria ser — como seria, se
pudéssemos voltar as ações dos homens contra eles. Em vez
disso, fazer com que tenham medo de nós.
Mas Alex não consegue entender isso. Mesmo que ele tente
ao máximo ser sensível e atencioso, ele ainda é um homem. Ele
nunca saberá como é.
— Tudo bem — eu digo. — Vou escrever algo mais otimista
para a próxima semana.
— Ei, você pode escrever o que quiser. O que você precisar
escrever. — Alex faz uma pausa, pensando sobre isso. — Mas
talvez seja melhor se você fizer uma pausa na aula.
Eu balancei minha cabeça.
— É muito tarde no semestre, eu não posso…
— Você é uma das minhas melhores alunas, não corre o risco
de fracassar. Achei que poderíamos nos encontrar um pouco
em particular durante meu horário de trabalho. O que você
acha?
— Toda semana? — Eu pergunto.
— Quantas vezes você quiser. — Ele se inclina ainda mais
perto. — Por mais sombrio que fosse o assunto, você se
iluminou ao ler aquela história. Eu nunca vi você assim. Tanto
fogo em seus olhos.
Seus olhos vagaram pelo meu rosto e, assim como no bar,
parece que ele está prestes a me tocar. A diferença é que agora
tenho certeza de que quero que ele faça isso.
Eu deslizo para a beirada da minha cadeira, então meu joelho
cutuca o dele.
— Já comecei a escrever a minha próxima história. Posso
trazer para você na quinta-feira?
Alex sorri.
— Estou ansioso por isso, Srta. Schiller.
51
SCARLETT

Isso não pode estar acontecendo. Quero arrancar minha pele,


sair dela como um vestido aberto.
Assim que Flynn fecha a porta, saio pelo corredor. Estou no
piloto automático, voltando para a sala de aula, mas está vazia,
as luzes estão apagadas. Meu peito dói, uma sensação de aperto
no esterno como um punho fechando. Mina e a polícia têm,
cada uma, partes do quebra-cabeça e logo vão montar a imagem
inteira.
Mikayla. Eu ainda preciso encontrar Mikayla. Não para
discipliná-la por sua explosão na aula, mas para ter certeza de
que ela está bem. Mas primeiro preciso sair deste prédio. As
paredes são muito próximas, os tetos muito baixos, não consigo
respirar.
Empurro as portas da frente, mas não percebo que estou
correndo até tropeçar no último degrau, tropeçando na
calçada. Está frio — frio demais para ficar do lado de fora sem
um casaco, mas estou pegando fogo, o suor escorrendo entre
minhas omoplatas.
— Dra. Clark. Para onde você está indo com tanta pressa?
Stright. Porra, perfeito. Ele estava recostado na escada,
fumando um cigarro. Ele se levanta para me cumprimentar
com um sorriso, mas está longe de ser amigável.
— Você viu Mikayla Atwell? — Minha voz ainda soa
trêmula e estrangulada. Eu odeio pedir qualquer coisa a ele,
mas talvez ele possa ser útil neste caso.
Ele solta uma nuvem de fumaça.
— Não desde meu horário de expediente na sexta-feira
passada.
Então ele se encontrou com ela em particular
novamente. Sua ausência da aula na sexta-feira, a maneira como
ela agiu hoje, faz todo sentido. Eu deveria saber que ele era o
culpado.
— Ela é inteligente, não é? — Stright diz.
Eu não respondo. Estou me imaginando arrancando o
cigarro de sua boca e segurando-o contra sua pele até que ele
grite. É a única coisa que me impede de gritar.
— Talvez muito inteligente para o seu próprio bem. — Ele ri
e dá outra tragada. — Não admira que você goste tanto dela.
— Cale a porra da boca, Stright.
Eu não quis dizer isso. Mas pelo menos minha voz voltou ao
seu registro normal mais baixo, então pareço eu mesma de
novo, em vez de Carly Schiller.
— Qual é o seu problema comigo, Scarlett? — Stright larga
o cigarro. O fim arde em laranja entre nossos pés. — O que eu
fiz para você?
— Foi você, não foi? — Eu digo. — Você disse aos detetives
que Kinnear e eu estávamos dormindo juntos.
— Vocês estavam dormindo juntos? — Stright pergunta.
Meus lábios se curvam de desgosto.
— De jeito nenhum.
— Você o queria pra caralho, no entanto. — Stright me olha
de soslaio, as sombras distorcendo suas belas feições. — Eu vi o
jeito que você olhou para ele. Como uma caloura apaixonada.
Meu entorno se desvanece em nada. Tudo o que posso ver é
o rosto de Stright, o sorriso irritante torcendo seus lábios. Eu
vou matá-lo. Vou matá-lo bem aqui na escadaria do Miller
Hall. Eu deveria tê-lo matado na noite da fogueira, antes que
ele colocasse a mão em Mikayla.
Ele dá um passo em minha direção, e minha raiva desliza para
fora, enrolando-se em torno dele como uma cobra.
Sim. Aproxime-se. Me dê um motivo.
Eu o encaro com um sorriso venenoso.
— Você não sabe nada sobre mim, Patrick.
Stright está pairando sobre mim — ou tentando, de qualquer
maneira. Ele não é muito mais alto do que eu, mas está
tentando ao máximo me fazer sentir pequena, ameaçada. Ele
está tão dentro do meu espaço que eu mal precisaria estender a
mão para acertá-lo. Para continuar batendo nele até que ele
esteja ensanguentado e desorientado, até que ele caia e eu seja a
única que aparece, levantando meu calcanhar para esmagar seu
crânio na calçada.
— É sempre um prazer, Dra. Clark.
Stright sorri ao se virar para entrar, e esta pode ser a pior
parte: deixá-lo acreditar, mesmo que por um momento, que
venceu. Ele para no último degrau para lançar mais um
comentário por cima do ombro.
— Direi a Mikayla que você estava procurando por ela.
52
CARLY

Quando os holofotes atingem Allison, o resto do teatro


desaparece.
Ela está sozinha no palco, cantando em um microfone de pé,
um boá de penas pretas pingando de seus ombros.

Talvez desta vez, terei sorte…

Eu a ouvi cantar essa música inúmeras vezes antes —


baixinho enquanto ela estava esparramada em sua cama
estudando, a plenos pulmões no boxe do chuveiro ao lado do
meu — mas eu nunca realmente ouvi isso, não até este
momento.

Algo está prestes a começar…

Ela segura o microfone com ternura, como uma carícia de


amante, cabelos pretos e unhas verdes brilhando sob as luzes
fortes do palco. Mas sua outra mão está segurando o suporte,
com os nós dos dedos brancos. Ela me olha nos olhos e parece
que está cantando só para mim.
Allison canta a última letra, jogando a cabeça para trás para
que eu possa ver o suor acumulado na cavidade de sua
garganta. À medida que a nota final se desvanece, todos na
plateia explodem em aplausos. Só quando levanto minhas
mãos para bater palmas é que percebo que estou segurando os
apoios de braço do assento, deixando marcas no vinil.
O resto do musical passa rapidamente. Consigo ignorar Bash
enquanto ele se esgueira pelo palco cantando música após
música com um sotaque alemão de desenho animado. Quando
ele agarra a mão de Allison enquanto eles fazem seus arcos, eu
me viro em direção ao fundo do teatro. Eu mal posso ver Wes
na pequena janela da cabine de som — o topo de seu cabelo
desgrenhado, as luzes refletindo em seus óculos.
Não nos falamos desde a aula de redação na segunda-
feira. Ele e Allison têm estado ocupados com o musical, mas sei
que ele está me evitando — e sei que mereço. Não consigo tirar
sua expressão de cachorrinho chutado da minha mente.
Eu conheço o caminho do teatro bem o suficiente agora para
contornar a multidão no saguão e descer as escadas para os
camarins pela escada escondida que os atores usam. O porão do
Riffenburg Hall está cheio de membros do elenco rindo,
abraçando uns aos outros, o fedor de suor e spray de cabelo no
ar.
Não vejo Allison, então continuo andando, de cabeça baixa,
até chegar ao último camarim, que ela divide com duas
dançarinas. Com certeza, ela está lá — sozinha — olhando para
si mesma no espelho. Ela já mudou de roupa, embora o vestido
preto com acabamento em renda que ela está usando pareça
algo que Sally Bowles também pode usar.
Ela não me nota no início. Eu vejo enquanto ela enfia seu
cabelo escuro e lustroso atrás das orelhas. Seu esmalte já está
lascado, um grande pedaço faltando no polegar direito. No
palco ela era magnética, hipnotizante — mas agora seus olhos
parecem perdidos e vazios. Da mesma forma que ficaram na
semana após o Halloween.
Assim que ela me vê parada na porta, porém, Allison liga
novamente, seu rosto se iluminando com um sorriso
exagerado.
— Então? — ela pergunta. — O que você achou?
Eu sorrio de volta.
— Você foi brilhante.
Todos os outros na plateia da noite de abertura
provavelmente pensaram que ela estava apenas fazendo uma
performance incrível, mas eu vi a dor genuína em seus olhos, o
desespero, o coração partido. Como Alex me disse, você não
pode manter os sentimentos reprimidos para sempre — e
Allison derramou os dela por todo o palco esta noite.
Allison sorri para mim.
— Obrigada, querida, eu tento.
— Wes está por aí? — Eu pergunto.
— Ele ainda está na cabine. — Um sorriso cruel aparece nos
cantos dos lábios pintados de vermelho de Allison. — Ele disse
que você foi uma grande filha da puta com ele na aula.
Minha boca se abre.
— Ele disse isso?
Eu fui uma grande filha da puta, mas não consigo imaginar
Wes chamando alguém assim.
— Não, ele apenas me contou o que aconteceu. Sou eu quem
está dizendo que você é uma vadia gigante. — Allison ri e
cutuca meu braço. Ela pode querer que seja brincalhão, mas
dói do mesmo jeito. — Você pode falar com ele na festa do
elenco. Vou para lá assim que consertar essa bagunça.
Ela aponta para a maquiagem suja e borrada de suor
distorcendo suas feições. Presumo que ela vai limpar tudo para
se parecer com ela novamente, mas em vez disso, ela pega uma
esponja e começa a aplicar ainda mais cor.
— Vai ser muito divertido! — ela diz, pegando um lápis
delineador em seguida. — O colega de quarto de Bash criou
este coquetel com o tema do show, “O Brinde de
Mayfair”. Não é adorável?
— A festa é na casa de Bash?
Ela não pode estar falando sério. Só de pensar em voltar a pôr
os pés naquela casa fico enjoada, e não fui eu a atacada lá.
O rosto de Allison endurece.
— Se você não quiser ir, não vá. Jesus.
Mas não tenho escolha. Eu tenho que ir para a festa.
É a única maneira de ter certeza de que ele não a machucará
novamente.
53
SCARLETT

No segundo em que minha raiva assassina por Stright se esvai,


algo pior toma seu lugar.
Ansiedade. Ansiedade que fecha a garganta, aperta o peito,
debilitante. Eu morava nesse estado o tempo todo e não sei
como sobrevivi. Só há uma cura quando me sinto assim, mas
não posso arriscar, não agora. Talvez nunca mais.
Eu não posso confiar em mim. Então, passei os últimos dias
trancada em minha casa, fingindo estar doente e tentando me
controlar.
Minha entrevista final para a bolsa da Women’s Academy
passou como um borrão — não sei se fui bem; eu mal consigo
me lembrar das perguntas que Judith me fez, ou do que eu disse
em resposta. Desde então, não tive contato com o mundo
exterior, ignorando todas as ligações cada vez mais preocupadas
de Drew e os e-mails passivo-agressivos de Jasper sobre as aulas
que ele estava cobrindo na minha ausência.
Tudo o que faço para me acalmar me deixa ainda mais
ansiosa. Resolvi sentar-me bem quieta no sofá, bebericando
xícara após xícara de chá de camomila, mas minha cabeça
parece um ninho de vespas. Cada vez que pisco, sangue ilumina
o interior das minhas pálpebras.
O toque áspero da campainha me assusta, e eu pulo na minha
cadeira, batendo a xícara de chá e o pires com tanta força que
fico surpresa que eles não se quebrem. Meu pulso já estava
batendo forte, mas agora parece alto demais para meu corpo
conter.
Largo a xícara de chá e vou até a porta, apertando a faixa do
meu robe. Eu sei que estou horrível: sem banho, sem
maquiagem, ainda usando minha camisola, minhas unhas
roídas até ficarem inchadas. Se Abbott e Flynn me virem assim,
vão pensar que a culpa finalmente está me afetando.
Abro a porta e não é Drew ou Jasper ou a polícia parada na
minha varanda.
— Mina. — Meu alívio dura menos de um segundo. Eu
também não tenho certeza se posso confiar em mim perto
dela. Não que eu fosse machucá-la, mas sua presença me torna
fraca de outras maneiras. — O que você está…
— Preciso falar com você — ela diz. Eu não a convidei para
entrar, mas ela se empurra para dentro de qualquer
maneira. Essa obsessão selvagem está de volta em seus olhos
novamente, e ela está segurando uma pasta de arquivo contra o
peito com tanta força que seus nós dos dedos empalidecem. —
Mas você não estava no trabalho. Você está doente?
Eu começo a responder, mas ela já está pensando em algo,
muito distraída para esperar pela minha resposta.
— Eu descobri — diz ela. — Eu descobri tudo.
Ela coloca a pasta em minhas mãos.
— O que é isso? — Eu pergunto.
— O relatório. Aquele em que Mikayla e eu temos
trabalhado, sobre os suicídios.
O documento grampeado inclui todos os homens que ela
listou no quadro branco, e ela também encontrou alguns
outros. Tantos rostos que olhei enquanto davam seu último
suspiro.
— Exceto — diz Mina — que não acho que tenham sido
suicídios.
Tento manter minha própria respiração estável enquanto
folheio as páginas, mas meu pulso está acelerado, meu corpo
me traindo.
— O que você quer dizer?
— Acho que todos esses homens foram assassinados. — Ela
sorri, os olhos escuros brilhando, triunfantes, e acho que vou
vomitar. — Pela mesma pessoa.
54
CARLY

Bash não está na festa do elenco ainda, mas todo mundo parece
estar.
A sala de estar está tão abarrotada de corpos que não consigo
nem dizer onde montaram os alto-falantes que sacodem as
paredes com uma música rap ensurdecedora. Ninguém está
dançando, pelo menos, mas esse é o único aspecto da situação
que não é meu pesadelo literal.
Uma garota com cabelo ruivo frisado e sardas passa por nós,
segurando um copo vermelho em cada mão. Já a vi no teatro,
mas não consigo lembrar o nome dela.
— Você foi incrível esta noite, Allison! — ela grita por cima
da música.
Allison pressiona a mão no peito como se dissesse: Quem,
eu?
— Obrigada, querida!
Achei que as coisas seriam menos estranhas entre nós, uma
vez que ela estivesse fora do traje, de volta ao seu verdadeiro
eu. Mas ela não está no personagem ou fora dele agora, ela é
algo no meio. De alguma forma, é ainda pior.
— Você quer algo para beber? — ela pergunta.
Eu balanço minha cabeça.
— É que…
— Ah, certo. Você não bebe. — Seu tom deixa claro que ela
de fato não se esqueceu disso. Ela está sendo tão má esta
noite. Não só esta noite, houve uma maldade apodrecendo sob
todas as conversas que tivemos desde aquela manhã no telhado.
Allison dispara em direção à cozinha, sem nem mesmo olhar
para mim. Eu penso em segui-la, mas eu teria que empurrar a
parte mais densa da multidão, e já é ruim o suficiente onde
estou parada agora. Fico o mais imóvel possível, pressionando
as palmas das mãos nas pernas, tentando me encolher para não
tocar em ninguém, mas as pessoas continuam batendo em
mim. O cotovelo de um cara me atinge bem na espinha e eu
quero acertá-lo na mandíbula.
Eu não posso fazer isso. Eu vou gritar.
A porta da frente se abre, uma rajada de vento gélido e um
grupo de garotos do departamento de teatro entram. Bash está
à frente do grupo. O resto dos caras esfregou a maquiagem do
palco, mas Bash ainda tem a sombra do delineador ao redor dos
olhos. Em vez de deixá-lo afeminado, isso o faz parecer mais
rude, como se ele tivesse passado por uma briga e estivesse
ansioso por outra.
Bash examina a multidão, olhos fixos em cada garota
seminua por um segundo antes de seguir em frente. Seu olhar
passa direto por mim. Com meu moletom preto largo com
zíper até a garganta, eu nem mesmo registro em seu radar. Eu
me imagino arrastando-o de volta como uma carcaça, batendo
meu punho em seu rosto até que suas órbitas se quebrem.
— Veja, você está se divertindo. — Allison cutuca o meu
lado com o cotovelo. Ela voltou da cozinha carregando uma
xícara de algo marrom e com cheiro nocivo. — Eu sabia que
você tinha isso em você!
Meus pensamentos violentos se dissipam como fumaça.
— Huh?
Ela aponta para minha boca.
— Você está sorrindo.
Eu largo os cantos dos meus lábios para baixo novamente,
arquivando a fantasia para mais tarde. Talvez eu possa
transformar isso em uma nova história para Alex.
— Wes! — Allison chama.
Ele estava passando com a cabeça baixa, obviamente
tentando nos evitar, mas Allison o agarra pela manga.
— Vocês dois precisam se beijar e fazer as pazes — diz ela. —
Na verdade, eu recomendo essa ordem exata de eventos.
Ela dá um gole em sua xícara, depois se vira para ir embora
com um sorriso malicioso no rosto.
— Allison, espere. — Eu a alcanço, mas ela já deslizou para a
multidão. Ela não está indo na direção de Bash, pelo menos; ele
ainda está na porta da frente.
Wes e eu ficamos ali olhando um para o outro, e é tão
estranho que quero morrer. Pelo menos há algum espaço entre
nós, mas mesmo isso é arruinado quando alguém bate em mim
por trás, me empurrando no peito de Wes.
Eu me afasto dele o mais rápido que posso.
— Desculpe, eu…
—Tudo bem. — Wes sorri. — Eu vou pegar uma
cerveja. Você quer alguma coisa?
Aí está: ele estava apenas sendo educado até encontrar uma
desculpa para dar o fora de mim.
— Estou bem — digo.
— Ok. Volto logo.
Não, você não vai voltar. Mas enquanto Wes empurra a
multidão em direção à cozinha, ele continua lançando olhares
para mim, os traços de um sorriso enrugando seus olhos. Então,
talvez ele realmente não esteja com raiva de mim. Ele deveria
estar. Ele é muito mais legal comigo do que eu mereço. Com
Allison também.
Assim que ele está fora de vista, eu percebo que perdi Bash
no meio da multidão. Eu examino a sala e o encontro encostado
na escada, conversando com uma garota com cabelos negros
que caem na mandíbula.
Allison.
Meu coração bate na minha garganta enquanto eu começo a
tentar empurrar meu caminho em direção a eles.
Eu esbarro em alguém com mais força do que pretendia e a
cerveja escorre em minhas botas.
— Cuidado! — a garota que encontrei diz, e eu percebo que
é Allison. Ela está aqui, não com Bash. Ela está bem, ela está
segura.
A outra garota, entretanto... Bash a olha maliciosamente,
ajustando a alça de seu vestido. Ela dá um tapa na mão dele, mas
não sai. Ela está sorrindo para ele.
Allison toca meu braço e eu pulo.
— Ai, meu Deus, relaxe! Você realmente precisa de uma
bebida.
— D-desculpe, eu… — Eu estou tremendo, toda aquela
adrenalina acelerada gritando através dos meus músculos sem
ter para onde ir. — Eu não sabia para onde você tinha ido.
Ela me olha como se eu tivesse duas cabeças.
— Eu literalmente estava bem aqui.
A música aumenta ainda mais, e as pessoas começam a
empurrar os móveis para fora do caminho para ter espaço
suficiente para dançar — o que significa que há ainda menos
espaço para ficar em pé. Allison e eu recuamos, esbarrando
uma na outra e depois em Wes, que acabou de voltar da cozinha
com uma garrafa de Yuengling6.
— Você quer dançar? — ele me pergunta.
Eu balanço minha cabeça. Não me importo se Allison está
chateada comigo, vou ficar ao lado dela esta noite, não importa
o que aconteça. E ficarei de olho em Bash também. Ele está
com o braço em volta da cintura da garota de cabelos escuros
agora, e ela está se inclinando para ele, sorrindo, enquanto ele a
puxa para a pista de dança improvisada.
— Quem é essa garota? — Eu tenho que gritar a pergunta
duas vezes e apontar algumas coisas bem rudes para que Allison
me entenda acima da música.
— Anna Turner — Allison grita de volta. — Ela é uma
caloura. Ela mora em nosso dormitório.

6
É a marca de cerveja operante mais antiga dos Estados Unidos, popularizada
no estado da Pensilvânia.
Anna na verdade não se parece em nada com Allison, exceto
pelo comprimento e cor de seus cabelos. Nunca falamos além
do ocasional olá no corredor, mas eu a vi no dia da mudança: a
jovem se despedindo chorosa do pai ao lado da farsa de
despedida de minha própria família.
Bash vira Anna de modo que ele está pressionado contra suas
costas, o braço travado em seu estômago, e há uma pequena
gagueira no ritmo de sua dança, seu corpo enrijecendo. Ela não
está mais sorrindo.
— Deveríamos fazer algo — eu digo.
Allison franze a testa.
— O quê?
— Devíamos fazer alguma coisa — repito, mais alto desta
vez, presumindo que ela não pudesse me ouvir.
Mas ela apenas revira os olhos.
— Eles estão dançando, Carly. O que você quer que eu faça?
Os dedos de Bash estão cavando nos ossos do quadril de
Anna agora, seu nariz pressionando contra seu pescoço. Ela
está claramente desconfortável. Como Allison não consegue
ver isso?
— Você está falando sério? — Eu grito. — Ele
está apalpando ela, bem na frente de…
— Ai, meu Deus, acalme-se. — Allison drena o resto de sua
bebida. — Só porque você é reprimida pra caralho.
Eu olho para ela.
— Eu não sou reprimida.
Ela é a reprimida — reprimindo todos os seus sentimentos
sobre o que Bash fez com ela, fingindo que tudo está bem
quando não está. Sou a única pessoa que está tratando o que
aconteceu com ela com a gravidade que merece. Aquele
médico horrível, a reitora dos alunos — ambos a
dispensaram. Eu sou a única que está tentando protegê-la dele.
E quem vai proteger aquela pobre garota? Se ele tentar fazer
com ela o que fez com Allison — bem, não sei o que vou fazer
exatamente, mas não posso ficar parada e deixar isso acontecer.
— Ah, sério? — Allison diz. — Você não é reprimida?
Então ela pega meu rosto em suas mãos e me beija.
55
SCARLETT

Mina nem parece notar como estou abalada. Ela está andando
de um lado para o outro, tagarelando nomes, causas de
morte. Se eu já não estivesse tão intimamente familiarizada com
os casos que ela está se referindo, seria impossível acompanhar
o ritmo estonteante de suas palavras.
— É meio brilhante, na verdade — ela diz. — Diferentes
métodos de assassinato a cada vez, feitos sob medida para a
vítima. Mas ainda há um padrão, sempre há um padrão.
Mina tira o relatório das minhas mãos e começa a virar as
páginas ela mesma.
— Mikayla traçou todas as datas para mim, e há uma morte
como essa por ano há pelo menos sete anos. O primeiro foi esse
cara...
Ela apunhala a imagem no topo da página com o dedo
indicador. Um belo garoto loiro com dentes brancos e
descoloridos. Dylan…
— Dylan Hughes — ela diz —, ele drogava meninas em
festas e tirava fotos nuas delas enquanto estavam
desmaiadas. Mas ele era filho de um grande doador, então a
universidade o varreu para debaixo do tapete. Então ele acabou
engolindo um monte de pílulas e sufocando até a morte com
seu próprio vômito na noite anterior à formatura.
Eu ainda estava refinando minha técnica. Felizmente, a
polícia presumiu que os cortes casuais no braço de Dylan eram
marcas de hesitação, que ele considerou cortar os pulsos antes
de se voltar para as pílulas. Um trabalho um tanto apressado —
não é o meu melhor trabalho — mas aquele menino era
desprezível, e eu não podia deixá-lo partir para seu futuro
brilhante ganhando seis dígitos na corporação de seu pai. As
fotos que ele tirou provavelmente ainda estão flutuando nos
cantos mais escuros da Internet, mas pelo menos me certifiquei
de que ele não poderia vitimar mais nenhuma garota.
— Você contou à polícia sobre isso? — Eu pergunto.
— Ainda não. — Mina se joga no sofá, passando os dedos
pelos cabelos. Seus joelhos batem na mesa de centro,
derramando um pouco do chá restante. — Não sei, estou
parecendo maluca de novo? Isso parece loucura.
Sento-me ao lado dela e dou um tapinha no chá derramado
com um guardanapo. Mina está olhando para o além, as rodas
girando atrás de seus olhos, então pelo menos ela não vê como
minhas mãos estão tremendo. A polícia nem chegou perto de
ligar todos esses pontos. Tenho que admirar a meticulosidade
de Mina, mesmo que isso seja o meu fim.
— Eu sei que é um salto em relação aos dados — diz ela. —
Quer dizer, um assassino em série? Em Gorman, Pensilvânia?
Ela pode não ter capacidade de investigação para rastrear
tudo isso até mim, mas assim que contar aos detetives, eles não
levarão muito tempo. Eles já suspeitam que eu tenha matado
Kinnear, ou pelo menos ajudando Drew a fazer isso. O fato de
não ter notícias deles há dias só me deixa mais paranóica. Tenho
certeza de que eles estão me observando, construindo seu caso.
— Eu até me perguntei se a mesma pessoa poderia ter
assassinado Alexander também — diz ela —, mas aquela morte
foi tão descuidada comparada com as outras; a menos que o
assassino finalmente tenha estourado ou algo assim. Você acha
que isso é plausível?
Eu tenho que impedi-la, antes que ela vá para a polícia. Mas
como posso fazer isso sem machucá-la?
Sem matá-la?
— Todos aqueles homens no relatório — eu digo. — Você
disse que eles eram abusadores, estupradores.
Mina acena com a cabeça.
— Mas seu ex-marido... quero dizer, ele era um pouco idiota,
com certeza.
Mina dá uma risada melancólica em concordância.
— Ele realmente se encaixa na mesma categoria que os
outros?
Eu acredito que sim. Mas a verdade é que matei Kinnear por
motivos pessoais, porque o odiava e o queria fora do meu
caminho. Foi vingança tanto quanto justiça.
— Bom, você sabe tudo sobre ele e seus alunos — diz Mina.
Sempre me perguntei se fui a primeira aluna com quem
Alexander Kinnear cruzou a linha ou se já fazia parte de uma
longa série de garotas infelizes anos atrás. Foi um erro mirar
nele, não importa as coisas terríveis que ele fez. Eu vejo isso
agora. Eu estava muito perto, meus sentimentos em relação a
ele eram muito crus para serem controlados. E vou pagar por
isso.
— Todo o tempo em que estivemos casados — diz Mina —,
eu sabia que ele estava me traindo, todos os sinais estavam lá,
mas ele negaria, me diria que eu estava imaginando coisas, que
deveria consultar um terapeuta para o meu “ciúme
patológico”. — Sua voz falha um pouco, a raiva vazando pelas
rachaduras. — Ele fez eu me sentir louca.
Num impulso, pego sua mão. Mina está tão presa em suas
memórias de Kinnear, que no começo eu não acho que ela
percebeu o gesto. Mas então ela entrelaça seus dedos com mais
força nos meus.
— Você sabe o que é realmente fodido? — ela diz. — Eu
costumava desejar que ele me batesse.
Eu tive esse mesmo pensamento sobre meu pai. Seu abuso foi
totalmente emocional e psicológico; as únicas marcas que
deixou foram internas. Impossível de ver, fácil de negar.
— Alexander poderia mentir e trapacear e virar minha
própria mente contra mim, e todos ainda o achavam
tão charmoso. Mas se eu tivesse mostrado, até ido trabalhar com
um olho roxo apenas uma vez, tudo teria mudado. Eles teriam
que levar isso a sério.
Você pensaria assim. Mas não há garantia. Eu matei muitos
homens que bateram em suas parceiras de forma sangrenta e
não enfrentaram nenhum tipo de consequência antes de mim.
— Se realmente há alguém matando todos esses homens, eu
tenho que dizer… — Mina me olha bem nos olhos. — Quase o
admiro.
— Admirá-lo? — É o que sempre quis ouvir. Mas tenho
certeza de que ela se sentiria diferente se soubesse que estava
segurando a mão que cortou a garganta de seu ex-marido.
Mina aperta minha mão, puxando-a para o colo.
— Quem quer que seja, não está esperando, deixando os
homens escaparem dessa merda. Está fazendo algo a respeito.
Quero contar tudo a ela, sobre Kinnear e Dylan Hughes e
todos os outros homens que matei, sobre a garota tímida que
costumava ser e a maneira como ela se transformou em uma
arma. Quero olhá-la nos olhos e dizer: sou eu, sou eu, e fiz tudo
para proteger mulheres como nós. Eu fiz isso e faria de novo.
Mas não posso dizer nada disso a ela. Então eu engulo meus
segredos e a beijo em vez disso.
56
CARLY

No segundo que os lábios de Allison tocam os meus, todos os


olhos da festa se voltam em nossa direção.
Ops e assobios de lobo e até mesmo alguns aplausos que se
elevam acima da música. Bash para de dançar apenas para nos
olhar maliciosamente, a caloura que ele estava apalpando
praticamente esquecida.
No momento em que Allison se afasta com um grande
smack teatral, estou tremendo, piscando as lágrimas dos meus
olhos. Eu queria beijá-la por tanto tempo. Mas não assim. Não
com todo mundo olhando para nós como se fôssemos animais
de zoológico, e seu batom pintado de forma tão grossa que sua
boca parecia um fac-símile ceroso ao invés da coisa real.
Wes também está observando, apertando a mandíbula,
segurando o gargalo de sua garrafa de cerveja. Ele não parece
mais um cachorrinho chutado, isso é certo. Não sei se ele está
mais zangado comigo ou com Allison.
— Por que… — Eu começo, mas eu não posso nem ouvir
minha própria voz acima da cacofonia. — Por que você…
Allison passa a unha do polegar pelo lábio inferior como se
estivesse consertando a maquiagem, embora ainda pareça
totalmente impecável.
— Não é grande coisa.
Mas isso é. É para mim. E ela deveria saber disso.
Eu tenho que sair daqui. Eu começo a empurrar a multidão,
e Allison não me segue.
Nada demais. Deus, gostaria que ela não tivesse feito isso.
É exaustivo estar na minha cabeça. Eu gostaria de poder parar
de pensar. Eu gostaria de ser como todo mundo.
Acabo na cozinha. O ar está menos saturado de fumaça aqui
e há espaço suficiente para se mover, apenas algumas pessoas
vadiando entre os armários pendurados tortos e a geladeira
amassada. Todas as superfícies parecem estar cobertas de
bebidas: um sortimento precário de garrafas e latas pesando
sobre uma mesa de carteado no canto, uma tigela de ponche
sobre o balcão, xícaras de plástico espalhadas pelo fogão e no
chão ao lado da lata de lixo. O ponche já passou pela metade,
respingos de um vermelho amarronzado como sangue seco
manchando a fórmica ao redor.
Talvez eu possa ser como todo mundo, pelo menos por esta
noite.
Antes de me questionar — antes de pensar em mais nada —
eu pego um dos copos de aparência mais limpa e mergulho na
tigela de ponche, em seguida, jogo minha cabeça para trás e
bebo.
Tem um gosto nojento, muito amargo e muito doce ao
mesmo tempo, queimando minha garganta. Mas me forço a
engolir tudo, e a intensidade dos meus sentimentos diminui,
substituída por um calor agradável e flutuante. Eu pego uma
segunda porção e a engulo também, ainda mais rápido do que
a primeira.
Respirando fundo como se estivesse prestes a nadar debaixo
d'água, abro caminho de volta para a sala de estar. A música
mudou para uma batida techno brutal que martela na base do
meu crânio. Não vejo Allison, mas pelo menos Anna Turner
está livre das garras de Bash no momento. Ela está dançando em
um círculo com algumas amigas, os braços levantados acima da
cabeça. Wes também está na pista de dança, pressionado contra
a ruiva que cumprimentou Allison antes.
Todo mundo está rindo, sorrindo, se divertindo. Todos
menos eu. Estou em uma casa cheia de gente e estou sozinha.
Relaxe.
Mas me sinto tonta, nauseada. Tudo é muito claro, muito
escuro, muito alto, muito tudo.
E então eu os vejo: Allison e Bash, no centro da multidão.
No começo, acho que estou imaginando. Uma alucinação,
um pesadelo. Mas enquanto os outros dançarinos se chocam ao
redor deles, corpos se separando e voltando a se unir, eu tenho
um vislumbre: a mão dele espalhada por suas omoplatas, seus
seios esmagados em seu peito, seus quadris empurrando contra
os dela. Ele abaixa a boca para seu esterno, seus dedos
deslizando pelo tecido de seu vestido.
Não. De novo não.
Eu empurro meu caminho até eles, acotovelando os lados,
pisando na ponta dos pés, o que for preciso para alcançar
Allison. Se ela grita de dor ou protesta quando a agarro pelo
cotovelo, não consigo ouvir por causa da música. Eu a arrasto
para longe dele, através da turbulência de corpos e perfume e
suor e fumaça, agarrando o corrimão da escada, puxando-nos
para cima, para fora da multidão.
No segundo andar, é mais silencioso e fresco, mas a música
ainda lateja em mim. Se eu não estivesse lá, se eu não tivesse
intervido…
Allison me empurra para longe dela. Meus ombros raspam
contra o painel de madeira, e é quando eu percebo onde
estamos: o corredor fora do banheiro onde Bash a levou no
Halloween.
— Que diabos há de errado com você? — ela exige.
— Ele estava… — As imagens estroboscópicas em minha
mente, acelerando, ficando mais nítidas. — Eu pensei que ele
estava…
Mas ele não estava. Bash não a estava agarrando, forçando-se
sobre ela. Não dessa vez. Desta vez, as mãos de Allison estavam
sobre ele. Agarrando a gola da camisa, a nuca. Puxando-o para
perto, não o afastando.
Um gosto amargo sobe na minha garganta, aquele soco
nojento ameaçando voltar.
— Você precisa de ajuda, Carly — diz Allison. — Não pense
que não percebi você me seguindo pelo campus como um
perseguidor esquisito.
— Eu estava apenas tentando… ter certeza…
— Bom, eu nunca pedi para você fazer isso. — Ela me prensa
contra a parede novamente, prendendo-me com os braços. —
Sabe, tentei ser legal com você, tentei incluí-la nas coisas porque
sentia pena de você. Mas você é uma total aberração.
Ela está certa. Eu não sou normal. Garotas normais não se
sentem assim. Garotas normais não fantasiam sobre quebrar os
dedos dos caras e bater em seus rostos. Ou sobre beijar suas
melhores amigas.
Não sei qual de nós começa desta vez. Em um segundo, seus
lábios estão a centímetros dos meus, seus olhos faiscando de
raiva, e no próximo estamos segurando uma a outra, sua língua
na minha boca, sua mão deslizando para baixo do meu
moletom. Ela está presa contra a porta do banheiro agora. Ela
se abre e nós tropeçamos para dentro, tropeçando nos pés uma
da outra. Ela geme na minha boca e coloca os dedos na minha
espinha.
Isso também não é o que eu imaginei, todas as vezes que
fantasiei sobre beijar Allison. É frenético, estranho e dói, e
nossas bocas estão amargas de ponche. Mas pelo menos
é real. A alça de seu vestido escorrega de seu ombro, e eu enredo
meus dedos nele, puxando-o para baixo.
Assim que seus quadris atingem a borda da pia, ela
interrompe o beijo, nos separando como um osso
quebrado. Ela diz algo, quase um sussurro, baixo demais para
eu ouvir. Eu a alcanço, deslizando minhas mãos em seu crânio
para agarrar seu cabelo pela raiz, mas ela me segura com o braço
estendido.
— Eu disse não.
Algumas mechas do cabelo de Allison caem em minhas mãos
quando ela me empurra. Eu fico olhando para os tentáculos
negros enroscados em meus dedos, então para seu rosto coberto
de lágrimas. Ela parece ainda mais irritada do que antes. Parece
que ela odeia me ver.
Ela passa os nós dos dedos sobre os olhos, manchando o que
resta de sua maquiagem em uma barra furiosa de preto em sua
têmpora.
— Saia.
Eu a alcanço novamente. Não estou tentando beijá-la mais,
só quero acalmá-la.
— Não me toque. — Ela me empurra ainda mais forte do
que antes, me enviando tropeçando de volta para a porta. — Eu
não quero que você me toque.
Meu coração está se desintegrando em pó.
— Allison, por favor, eu…
Desta vez, ela me empurra com tanta força, eu tropeço de
volta para o corredor, me segurando no batente da porta para
não cair.
— Saia, saia, dê o fora! — Ela está gritando, quase
incoerente.
— Sinto muito — digo a ela, porque é a única coisa que
consigo pensar em dizer.
Ela responde batendo a porta do banheiro na minha cara.
57
SCARLETT

Todas as vezes que eu me permiti fantasiar sobre dormir com


Mina, imaginei ela ser suave, macia: os lábios aveludados, seus
cachos, as curvas insinuadas sob sua roupa.
Mina pode ser macia, mas não é tenra. Há uma rápida
eficiência na maneira como ela tira minhas roupas, como se ela
tivesse pensado nisso com antecedência e mapeado o método
mais eficaz. Depois que ela me despe, ela me empurra para
baixo na cama e tira suas próprias roupas, ainda de pé, me
deixando assistir. Seu corpo me faz pensar em estátuas clássicas,
os quadris largos e seios pequenos como maçãs maduras, a
barriga arredondada. Ela é ainda mais bonita do que eu
imaginava.
Ela desliza entre minhas pernas, beijando meu peito, minha
clavícula, meu pescoço. Minhas mãos se encaixam
perfeitamente na curva de suas costas, segurando-a perto. Ela
segue para o ponto sensível atrás da minha orelha, sussurrando
algo que não consigo entender.
— O que você disse? — Minha voz é suave e sem fôlego, mas
ainda soa muito alta nas sombras silenciosas do meu quarto.
— Eu disse: por que você demorou tanto? — Mina beija
meu pescoço novamente, seus lábios se curvando em um
sorriso. — Eu queria você desde o primeiro dia que te conheci.
Desde o primeiro dia que te conheci. A mesma coisa que
Kinnear disse enquanto me pressionava contra a parede de seu
quarto.
Eu pisco a imagem para longe. Ele não tem lugar aqui.
Os lábios de Mina são suaves como pétalas de flores, mas
também há aço por trás deles. Ela sabe exatamente a
quantidade de pressão a ser usada, e antes que eu possa pensar
ou respirar ou mesmo gemer de prazer, estou gozando com um
suspiro assustado. Eu sinto seu sorriso novamente, moldando
contra minha coxa enquanto ela agarra meus quadris,
esperando as ondas do meu orgasmo diminuírem. Ela
pressiona um beijo na pele pálida, me fazendo estremecer,
então rasteja de volta para se deitar ao meu lado.
Imediatamente estamos nos beijando de novo, as mãos se
enredando nos cabelos uma da outra. Seu perfume, aquele
perfume de jasmim que floresce à noite, enche meus
sentidos. Eu deslizo minha mão entre suas pernas para que eu
possa olhá-la nos olhos enquanto a faço gozar. Quero saborear
cada momento disso, porque por mais que eu queira que seja o
começo de alguma coisa, é mais provável que seja o fim.
Toda a reserva de Mina derrete enquanto meus dedos
trabalham dentro dela. Ela geme e joga a cabeça para trás e
aperta as coxas em volta do meu pulso. Ela confia em mim. Ela
está vulnerável, aqui nesta cama, nua, sua garganta
exposta. Mas ela não está com medo.
Eu perco a conta de quantas vezes fazemos uma à outra
gozar. Nosso último clímax é quase simultâneo, e caímos nos
braços uma da outra, as cabeças compartilhando um
travesseiro, os corpos escorregadios pressionados um contra o
outro.
Eu não durmo assim — envolta em outra pessoa, bocas tão
próximas que compartilhamos a respiração — desde a
faculdade, então não tenho certeza se vou conseguir
dormir. Mas fecho os olhos e, quando os abro de novo, já
amanheceu.
Na luz pálida da manhã, Mina praticamente brilha, seu
cabelo escuro salpicado de fios de ouro e vermelho, uma leve
camada de sardas brilhando como constelações em seus ombros
nus. Como Kinnear poderia ter traído esta mulher perfeita? Eu
nunca quero deixá-la ir.
Mina se mexe um pouco e eu fecho os olhos, fingindo estar
dormindo ainda. Ela desliza para fora da cama, lenta e
cuidadosa, obviamente tentando não me acordar. Ela se
arrepende do que fizemos ontem à noite? Ela vai fugir de casa
sem falar comigo?
Abro um pouco os olhos, apenas o suficiente para ver Mina
se arquear lentamente como um gato e pegar meu robe do
chão. Ela se enrola em torno de si mesma, amarrando a faixa na
cintura.
Ela não vai embora. Ela parece satisfeita, feliz. Ela quer estar
aqui.
Por enquanto, pelo menos.
Mina segue pelo corredor, provavelmente procurando o
banheiro, e eu rolo de costas. Eu quero ficar na cama para
sempre. Assim que me levantar, terei que lidar com a realidade.
Meu celular vibra na mesinha de cabeceira. Eu o alcanço, o
brilho da tela ardendo em meus olhos turvos de sono.
É Judith Winters. Jesus Cristo. De todas as vezes que ela
finalmente liga: ao amanhecer de um fim de semana, quando
estou nua na cama.
Enrolo os lençóis em volta do meu corpo antes de responder,
embora Judith não possa me ver.
— Olá?
— Dra. Clark. Espero não ter acordado você.
— Ah, não, eu estava acordada. — Eu aperto a roupa de
cama mais apertada em volta do meu peito. — Eu sou uma
madrugadora.
— Assim como eu — ela diz. — Tenho certeza que vamos
vencer os outros no arquivo todos os dias no próximo
ano. Estou muito feliz em estender oficialmente a bolsa da
Women’s Academy a você.
— Eu estou… — Estou emocionada, meu coração quase
batendo forte no meu peito, mas também estou tomada pelo
pensamento: eu poderia estar na prisão até lá. Eu poderia estar
na prisão mais tarde hoje.
Ou talvez não. Talvez Mina não conte à polícia o que
descobriu. Talvez eu possa convencê-la. Talvez eles nunca me
peguem. Talvez eu pudesse ir para Londres e passar o próximo
ano exatamente como planejei: trabalhando no meu livro e
matando homens merecedores.
Talvez Mina pudesse vir comigo.
— Estou emocionada em aceitar — digo a Judith. — Muito
obrigada.
— Adorável! — ela diz. — Vou mandar meu escritório
enviar toda a papelada. Aproveite o resto do seu fim de
semana. Estou ansiosa para trabalhar com você, Dra. Clark.
— Idem. — Desligo o telefone e aperto-o contra o peito, e
tudo que consigo pensar é: consegui. E então: eu tenho que
contar à Mina. É estranho e maravilhoso ter alguém com quem
compartilhar minhas boas novas.
Passei muito da minha vida usando uma máscara: a aluna
dedicada, a professora impecável. Controlada e remota e
isolada por escolha, mas só porque eu pensei que
não existia nenhuma outra escolha. Qualquer outra coisa era
muito perigosa — tanto para meus amantes quanto para mim.
Quase o admiro. Isso é o que Mina disse. Mas ela realmente
quis dizer isso?
Visto a camisola que combina com o robe que ela pegou e
desço o corredor procurando por ela. A porta do banheiro está
aberta e ela não está lá. Talvez ela tenha descido para beber
água. Começo a subir as escadas, mas então percebo que a porta
do meu escritório está entreaberta.
— Mina? — Eu empurro a porta.
Com certeza, ela está lá dentro, bem na frente da mesa. Ela se
vira para mim e há algo em suas mãos.
Um pequeno livro com capa vermelha.
58
CARLY

Eu tenho caminhado a noite toda.


Até o sol aparecer no horizonte, não tenho ideia de quanto
tempo se passou. Meu rosto e mãos ficaram dormentes de frio
há um tempo, mas meus pés ainda formigam como se eu
estivesse pisando em agulhas. Eu poderia sentar em um banco
e descansar. Ou eu poderia engolir e voltar para Whitten, tentar
me desculpar com Allison. Mas, em vez disso, continuo
circulando pelo vazio de Oak Grove, me abraçando contra as
rajadas de frio.
Se eu continuasse, passasse pelo campus, pelos limites da
cidade de Gorman, andasse até meus pés sangrarem e eu caísse
em uma vala e morresse, eu me pergunto quem sentiria minha
falta.
Enquanto meu circuito me leva além de Miller Hall mais
uma vez, uma luz acende lá dentro. Eu vagueio em direção a ela
como uma mariposa para uma chama.
Escritório de Alex. O que ele está fazendo aqui tão cedo?
Não importa. Só consigo pensar em entrar, me
aquecer. Tento abrir a porta da frente, mas está trancada. O
metal frio da alça faz meus dedos latejarem.
Pego alguns pedaços de cobertura morta debaixo dos
arbustos, em seguida, jogo-os no vidro até Alex chegar à
janela. Os olhos dele alargam-se quando vê o estado em que
estou: tremendo tanto que estou praticamente tendo
convulsões, o rosto vermelho e inchado de tanto chorar. Ele
gesticula para eu contornar a entrada principal.
— O que você está fazendo aqui? — ele pergunta assim que
empurra a porta aberta. Ele está respirando com dificuldade,
como se ele corresse para chegar até mim. — Está congelando.
O aquecedor do prédio é reduzido para a noite, mas é muito
mais quente do que o lado de fora, o que dá a sensação de entrar
em uma fornalha. O alívio quase me derruba.
Alex pega minhas mãos nas dele, esfregando minha pele
gelada, enquanto me conduz pelo corredor. A sensação retorna
lentamente, os nervos iluminando minhas pontas dos dedos
com dolorosas faíscas de sensação.
De alguma forma, seu escritório parece ainda mais
claustrofóbico com as cadeiras que usamos para a aula
empilhadas no canto. Alex me coloca no sofá e envolve um
cobertor em volta dos meus ombros. Ele deve ter dormido
aqui; ele está amarrotado, os olhos injetados de sangue, as rugas
das almofadas pressionadas contra o rosto.
— Deixe-me fazer um chá quente para você — ele diz.
Alex não tenta falar comigo enquanto prepara o chá, mas
continua lançando olhares preocupados em minha direção. Ele
pode ser a única pessoa em Gorman que dá a mínima para
mim. Ele pode até ser a única pessoa na terra que o faz. Esse
pensamento é suficiente para fazer meus arrepios darem lugar a
soluços novamente.
Assim que ele vê que estou chorando, ele abandona a chaleira
elétrica e a lata de saquinhos de chá para se ajoelhar no chão na
minha frente, puxando-me contra o peito.
— Tudo bem. Você está segura.
Ele fica lá enquanto a água da chaleira ferve, esfregando a
mão em círculos lentos na minha coluna. É estranho ter um
professor me abraçando, mas é bom também.
Quando ele me entrega a caneca fumegante, tomo um gole
na hora, sem esperar que o chá ou a água esfriem. Isso queima
minha língua, mas o calor correndo em minha boca é tão bom
que não me importo com a dor.
Alex se senta ao meu lado no sofá.
— Ok. Você quer me dizer por que estava congelando sua
bunda em Oak Grove às cinco da manhã?
Hesito, pressionando as palmas das mãos nas laterais da
caneca. Ele chega mais perto de mim e cobre minhas mãos com
as dele novamente. Agora que tenho todas as sensações de volta
em meus dedos, posso sentir como a pele dele é macia, ainda
mais macia do que a de Allison.
— Apenas deixe sair — diz ele. — Você se sentirá melhor.
Ele tem razão. Não posso continuar segurando tudo isso
dentro de mim, ou vou explodir. E Allison já me odeia. Que
diferença faz agora se eu compartilhar seus segredos?
Então começo a falar. Conto a ele sobre Bash agredindo
Allison, o tratamento desdenhoso que recebemos no hospital,
o discurso vergonhoso da reitora, a maneira como Allison tem
me afastado, mesmo enquanto eu tentava protegê-
la. Porque tentei protegê-la.
Alex balança a cabeça com simpatia, mas não diz nada até eu
chegar ao fim: minha briga com Allison na festa e fugir noite
adentro depois que ela bateu a porta do banheiro na minha
cara. Eu pulo a parte do beijo; ele não precisa saber tudo.
— Você não pode se culpar, Carly. — Alex aperta minhas
mãos. — Eu sei que você se preocupa com ela, mas ela não é sua
responsabilidade. Ela é apenas sua colega de quarto.
Eu me afasto dele, derramando um pouco de chá nos nós dos
dedos.
— Ela não é apenas minha colega de quarto.
Ele me olha interrogativamente, esperando que eu
elabore. Mas não sei o que dizer. Às vezes, acho que amo
Allison. Outras vezes, acho que nem sou capaz de sentir amor.
— Olha — diz Alex. — Tenho certeza que se você for para
casa e falar com ela, você será capaz de superar isso. Parece que
ela está passando por um momento difícil e...
Eu balanço minha cabeça, colocando a caneca no
chão. Estou chorando de novo, mas é menos intenso desta vez,
as lágrimas escorrendo pelo meu rosto em vez de soluços de
corpo inteiro.
— Eu não posso ir para casa. Eu não posso.
Se eu nunca voltasse, aposto que ela nem sentiria minha
falta. Ela provavelmente ficaria aliviada por ter o quarto só para
ela, para finalmente se livrar das minhas atenções assustadoras.
— Você está… — Alex se aproxima.
Eu mantenho minhas mãos juntas no meu colo, então ele me
toca no joelho.
— Você está preocupada que esse menino possa machucar
você também?
Minha mente se enche de flashes das histórias que
escrevi. Toda aquela raiva, violência e sangue derramado na
página é uma pobre imitação do que eu realmente quero fazer
com Bash.
— Não — eu digo. — Eu tenho medo de que eu poderia
machucá-lo.
— Não seja ridícula — diz Alex. — Você não machucaria
ninguém.
— Eu quero. — Eu o olho bem nos olhos. As lágrimas
pararam, embora meu rosto ainda esteja molhado delas. — Às
vezes, é tudo em que consigo pensar.
Eu posso dizer que ele gostaria de se afastar de mim, mas em
vez disso, ele pressiona a mão com mais força no meu joelho,
forçando um sorriso em seu rosto.
— Essas são apenas histórias, Carly.
— Não. — Eu balanço minha cabeça, as lágrimas correndo
novamente. — Não, acho que há algo errado comigo.
— Não diga isso. — Alex agarra meus ombros, me puxando
para mais perto. — Não há nada de errado com você. Você é
inteligente, é uma escritora brilhante, tem um futuro brilhante
pela frente.
Essa sinceridade avassaladora brilha em seus olhos
novamente, um farol na escuridão. Ele não pode se preocupar
tanto com todos os seus alunos; seria exaustivo. Mas de alguma
forma, ele se preocupa comigo.
Eu sorrio, enxugando meu rosto com a manga do moletom.
E então a boca de Alex cobre a minha e eu não consigo
respirar.
59
SCARLETT

Mina estende o livro.


— Onde você conseguiu isso?
O diário de Viola Vance, aquele que peguei da biblioteca de
Kinnear. Ela o reconhece.
Estou tão ferrada.
— Comprei isso para ele — diz Mina. — No nosso primeiro
aniversário. Eu vasculhei minha lojinha favorita em Londres,
procurando por algo especial, algo que mostrasse a ele o quanto
eu... — Sua voz é firme, mas há medo em seus olhos. — Ele
nunca teria emprestado para você.
— Mina, posso explicar. — Dou um pequeno passo em sua
direção, e ela congela como se eu tivesse uma arma apontada
para seu peito.
— Foi você. — Ela não está perguntando. Ela tem certeza. —
Você o matou. Você matou todos eles.
Tento pensar em uma maneira de negar isso, de suavizar, de
explicar a presença do diário. Claro que não, eu nunca o teria
machucado, não tinha má vontade em relação a ele, nunca
poderia matar alguém. Mas eu sei como isso soaria falso.
— Mina, por favor.
Eu entro no cômodo, então não estou mais bloqueando a
porta. Mina se encosta na parede, apontando o livro para meu
coração como se fosse uma arma.
— Não se aproxime!
— Eu nunca faria mal a você, Mina. — Quero dizer cada
palavra, mas ela não tem razão para acreditar em mim.
— Quantos? — ela pergunta. — Quantas pessoas você
matou?
Quero cair de joelhos e implorar para que ela fique, para
entender, mas sei que é inútil. Nunca houve esperança para
nós. Nunca tive esperança de ter um relacionamento real, de ter
alguém que me ame. Eu estava me iludindo, pensando que
poderia tirar minha máscara por ela.
— Diga-me. — Sua voz falha, e agora ela está segurando o
livro contra o peito como se ele pudesse protegê-la. Como se
pudesse protegê-la de mim. — Somente…
— Eu só matei homens — eu digo. — Homens que
mereciam, como você disse.
Mina pressiona o diário com mais força no esterno, tentando
se equilibrar. Ela está começando a hiperventilar, o sangue
escorrendo de seu rosto, os olhos brilhando de lágrimas.
Mas ela ainda não tentou ir embora.
— Apenas os homens em meu relatório? — ela pergunta.
Eu mantenho seu olhar. Eu não quero mentir. Eu nunca
quis mentir para ela.
— Mais.
Ela me encara como se eu fosse um lobo prestes a despedaçá-
la com meus dentes. Já vi esse olhar antes: não apenas no rosto
de minhas vítimas, mas no rosto de Allison Hadley, a última vez
que a vi.
Quando Mina sai correndo porta afora, levando o diário com
ela, não tento impedi-la. Eu fui uma tola em pensar por um
segundo que ela poderia descobrir o que eu era e ainda me
aceitar.
Sou um monstro, assim como os homens que mato.
60
CARLY

No começo, estou chocada demais para fazer qualquer coisa a


não ser deixar Alex me beijar.
Foi assim que Allison se sentiu quando eu a beijei?
Congelada.
Atordoada.
Desamparada.
Alex não se barbeia há um ou dois dias, e a sensação de sua
barba por fazer arranhando meu queixo finalmente me tira do
sério.
Eu coloco minhas mãos em seu peito e o afasto.
— O que você está…
Ele enfia meu cabelo atrás das orelhas, segurando meu rosto,
sorrindo gentilmente enquanto me pressiona contra o braço do
sofá. Então ele começa a abrir o zíper do meu
moletom. Lentamente, dente por dente.
Estou sufocada por seu corpo, presa no lugar, mas também
estou flutuando, observando suas mãos se moverem em meus
seios como se eu estivesse no canto escuro do escritório, em vez
de embaixo dele. A única coisa que posso sentir é o pânico em
meu peito. Ele continua subindo até que tudo estoura para fora
da minha garganta.
— Pare — eu digo, mas sua boca engole o som. Ele está me
esmagando, sugando todo o oxigênio do meu corpo. Eu
empurro ele, com mais força desta vez, travando meus
cotovelos. — Pare com isso.
Ele ouve. Ele para. Mas quando ele se senta no seu lado do
sofá, ele tem uma expressão em seu rosto que eu nunca vi antes.
Alex está com raiva.
— Eu não… — Eu me enrolo em mim mesma, meus joelhos
contra meu peito. — Por que você... E quanto à sua esposa?
— Achei que tínhamos nos entendido, Carly. — Ele balança
a cabeça, como se eu fosse uma criança malcriada. — Achei que
você fosse mais madura do que isso.
Não faz muito tempo, eu teria me desculpado — por vir aqui
sozinha, por dar a ele a impressão errada. Eu teria chorado e
sorrido e tentado acalmar as coisas.
Mas estou sem lágrimas. Eu me levanto e fecho meu
moletom de volta, todo o caminho até a minha garganta. Alex
me observa com cautela. Minha calma o perturba, e isso me faz
agarrar mais rápido a ela, prendê-la em volta de mim como uma
armadura. Ele não pode me machucar a menos que eu deixe.
— Você não vai… — Alex engole. Sou eu quem o está
assustando agora. — Você não vai contar a ninguém sobre isso,
vai?
Ele passa as mãos pelos cabelos e parece tão perdido. Por que
eu não vi isso antes? Ele é patético, com seu sorriso constante,
sua necessidade desesperada de que todos gostem dele. Não é à
toa que ele finge se importar tanto com seus alunos. Somos os
únicos ainda jovens e tolos o suficiente para cair em suas
besteiras.
— Tudo bem, Carly. Eu sei que não deveria ter feito isso.
— Ele sorri ao dizer isso, olhando nos meus olhos, buscando
algum sinal de compaixão. Mas não sobrou nenhum. Não para
ele. — É só que minha esposa está me deixando. Este trabalho
é tudo o que tenho.
Eu fui estúpida em confiar nele, mesmo por um momento.
— Por favor — ele diz. — Estou te implorando.
— Você é patético, Alex.
O sorriso desaparece e uma maldade se infiltra de volta em
sua expressão. Seu rosto está tão feio agora, não posso acreditar
que já o considerei jeitoso.
— Ninguém acreditaria em você de qualquer maneira, se
você contasse a eles. Uma garota problemática como você.
Eu olho para ele.
— Acho que vamos descobrir.
Ele não tenta me seguir. Eu bato minhas mãos na porta da
frente de Miller Hall com tanta força que assusta um pequeno
bando de pássaros e os faz voar, recuando para os galhos quase
nus dos carvalhos. Está muito mais quente agora, o sol
passando por pequenos aglomerados de nuvens.
Eu poderia marchar direto para o escritório do chefe do
departamento na segunda-feira de manhã e registrar um
relatório sobre Alex Kinnear, para que todos soubessem
exatamente o que ele tentou fazer comigo. Não apenas o beijo,
mas tudo isso — as reuniões privadas, os toques prolongados,
me levando a um bar, embora eu tenha apenas dezoito anos.
Mas quem disse que ele me levaria mais a sério do que a
reitora dos alunos levava Allison? Não. Não posso confiar em
nenhum deles. Se vou dar a Alex e Bash e a todos os outros
homens como eles o que eles merecem, terei que fazer isso
sozinha.
61
SCARLETT

Eu planejei este dia assim como planejei todo o resto.


Minha única chance agora é mudar minha identidade
novamente — mais dramaticamente desta vez — e começar de
novo em algum lugar longe daqui. Minha mala já está feita. Eu
a mantive escondida no fundo do meu armário por anos,
pronta com roupas, uma identidade falsa, cartões de crédito
sem vínculo com minhas contas regulares. Também tenho
uma lista de verificação de todas as coisas que preciso levar
comigo se nunca voltar. Eu sabia que isso aconteceria algum
dia; é incrível que eu tenha durado tanto quanto em uma
cidade tão pequena como Gorman. Mas não pensei que fosse
acontecer assim.
Enfio os últimos itens da lista na minha bolsa e levo-a para a
porta da frente. É quando eu percebo que está nevando lá
fora. Deve ter começado faz pouco tempo, mas já tem uma
camada grossa no chão, as estradas revestidas de
branco. Normalmente, eu não pensaria em dirigir com esse
tempo. Hoje, terei que arriscar.
Seria mais prudente deixar meu carro para trás, mas o ônibus
Greyhound só para em Gorman uma vez por dia, e não posso
esperar até a hora da partida à tarde. Eles devem ter me
prendido até então. Portanto, plano B: vou de carro até
Pittsburgh, pegando apenas estradas rurais. Abandono o carro
lá, caminho até a estação da Amtrak e pego o primeiro trem
saindo para uma cidade que nunca estive antes, onde não tenho
vínculos, ninguém que me reconheça. Eu posso fazer isso. Eu
posso recomeçar. Posso encontrar outro lugar para caçar e,
depois de um tempo, nem pensarei mais em Mina Pierce. Seus
lábios macios ou a habilidade de sua língua ou o medo em seus
olhos.
Minha mão está na maçaneta da porta quando passos
começam a triturar a passarela coberta de neve. Eu agarro a alça
da mala, o coração batendo forte.
Eles estão aqui.
62
CARLY

Eu separo meu cabelo e espremo uma linha grossa de tinta


vermelho-sangue, espalhando-a sobre o marrom-rato. Não me
incomodei em colocar sacos de lixo no banheiro desta vez,
então estou ficando com pequenas manchas vermelhas por
toda parte: na tigela da pia, o rejunte entre os ladrilhos, até
mesmo no próprio espelho, fazendo meu reflexo parecer
salpicado de sangue.
Quando enxáguo a tinta no chuveiro, é ainda mais como um
filme de terror, o vermelho escorrendo pela minha pele,
escorrendo pelo ralo. Mudar a cor do meu cabelo não era uma
parte estritamente necessária do plano que inventei depois de
sair do escritório de Alex, mas eu queria parecer
diferente. Como uma estranha.
Eu me senti estranha o dia todo — um zumbido em meu
sangue, uma agudeza em meus sentidos. Eu nem tentei
dormir. Eu também não vi Allison e não quero. Se ela soubesse
o que eu estava prestes a fazer, provavelmente tentaria me
convencer do contrário. Mas é a única maneira. Espero que ela
seja capaz de ver isso, quando terminar.
De volta ao meu quarto, eu me enxugo, em seguida, tiro um
vestido do lado de Allison do armário. É preto e bem ajustado,
mangas compridas e uma saia acima do joelho, tiras de tecido
entrecruzadas amarrando a cintura como um
espartilho. Nunca a vi usar, exceto no camarim do brechó no
dia em que o comprou. Ela tentou me fazer experimentar
depois dela, mas eu era muito tímida.
Também pego emprestado a maquiagem dela: base clara,
batom do mesmo vermelho forte do tom da caixa de tintura,
sombra negra que caem sobre minhas bochechas como
fuligem. Minhas mãos estão tremendo tanto que bagunço meu
delineador, desenhando uma linha irregular na minha
pálpebra. Em vez de consertar, eu esfrego ainda mais. Então
coloco o lápis na cômoda e dou um passo para trás para me
avaliar no espelho.
Eu pareço diferente, isso é certo. O vestido de Allison
transforma meu corpo em uma série de cortes pretos, meu
decote inchando por cima. Meus lábios parecem inchados,
meus olhos escuros e vazios. E meu cabelo... mesmo
ligeiramente úmido, o vermelho brilha em volta do meu rosto
como chamas.
Também noto as falhas: fios que perdi com a tinta, uma
mancha de vermelho manchando meu pescoço, pedaços de
fiapos salpicando minha saia. Mas quando eu obtenho a foto
inteira, minha espinha fica mais reta, meus ombros retos para
trás. Eu não apenas pareço diferente.
Eu pareço perigosa.
63
SCARLETT

Os passos param e a porta estremece com uma batida. Quero


espiar pelas cortinas para ver quem é, mas não posso correr o
risco de mostrar meu rosto.
— Dra. Clark, você está aí?
Mikayla Atwell. Ela é a última pessoa que eu esperaria na
minha porta hoje. Eu não a vi ou falei com ela desde que ela saiu
da minha sala de aula, e ela nunca esteve na minha casa
antes. Mas seja o que for que Mikayla queira, não tenho tempo
para isso.
— Por favor, eu preciso… — Mikayla interrompe,
soluçando. Ela parece perturbada, desesperada.
Tenho que ir — já deveria ter ido, a polícia pode chegar a
qualquer minuto —, mas não posso deixar a pobre menina
chorando no frio.
Antes que eu possa me convencer do contrário, abro a porta
para ela.
— Eu sinto muito por vir aqui assim. — As palavras de
Mikayla saem em pânico. Ela está um caco, pele pálida, olhos
injetados de sangue e sombreados. — Eu não sabia mais para
onde ir.
— Está tudo bem, Srta. Atwell. Entre.
Eu espio além dela, examinando a rua lá fora. Tudo está
silencioso, coberto pela neve. A neve está caindo mais forte a
cada segundo. Flocos cintilam no cabelo de Mikayla, e assim
que ela entra na minha entrada bem aquecida, ela começa a
pingar em todo o tapete. Seu casaco está abotoado
incorretamente, e ela está usando pijama por baixo, as calças de
lã enfiadas desleixadamente em um par de imitações de botas
UGG.
Ela nota minha mala perto da porta.
— Você está indo a algum lugar?
— Sim, estou saindo da cidade — digo. — Eu preciso sair
logo, na verdade, mas por que eu não pego para você…
— Onde você está indo? Você ainda não está indo para
Londres, não é? — Ela está tremendo agora, seus olhos enormes
e frenéticos.
— Eu... não tenho certeza, eu…
— Você não pode. Você não pode sair. Eu não sei o que eu…
Ela se quebra em outra rodada de soluços, as pernas
convulsionando como se ela estivesse prestes a desabar no
chão. Eu coloco meu braço em volta dela, e ela afunda todo o
seu peso contra mim, chorando na curva do meu pescoço.
Não se trata de minha partida repentina, claramente. Algo
aconteceu com essa garota. Hoje, um pouco antes de ela vir
aqui. Algo devastador.
Meu tempo de fuga está se esgotando, areia em uma
ampulheta. Mas não posso deixar Mikayla, não neste
estado. Quando eu tinha a idade dela, procurei um professor
para me consolar em uma crise, e tudo o que ele fez foi piorar
as coisas. Eu não vou fazer isso com ela.
— Venha aqui — eu digo. — Senta.
Eu a levo até o sofá e me sento ao lado dela, acariciando suas
costas. Ainda estou me preparando para ouvir o grito das
sirenes se aproximando, mas não há nenhum som além dos
soluços de partir o coração de Mikayla. Eu espero até que haja
uma breve calmaria antes de dizer, o mais gentilmente que
consigo:
— Diga-me o que aconteceu.
Ela balança a cabeça.
— Você vai pensar que sou tão estúpida
— Estúpida é a última coisa que você é. Você é uma das
alunas mais brilhantes que já ensinei. — Eu sou a idiota,
sentada aqui conversando enquanto a polícia provavelmente
está correndo em direção a minha casa para me prender por
vários assassinatos.
Seus traços delicados se contraem com as lágrimas
novamente.
— Eu só... pensei que tinha tudo sob controle. Eu pensei…
mas ele não me deixaria em paz.
Stright. Eu sabia disso, porra.
— Eu preciso que você me diga exatamente o que ele…
Mikayla estremece e eu percebo que agarrei seu pulso. Eu o
solto e tento suavizar meu tom.
— Ele te machucou?
Ela balança a cabeça, uma sombra cruzando sua expressão.
— Ele tentou, no entanto.
— Há quanto tempo isso vem acontecendo? — Eu
pergunto.
— Eu não... quero dizer, no começo era...
Eu nunca vi Mikayla tão sem palavras. Mas posso preencher
os espaços em branco sozinha. Teria sido muito fácil para
alguém como Stright atraí-la. Ele pode ser um canalha, mas é
muito mais próximo do igual intelecto de Mikayla do que
qualquer um dos meninos de sua idade.
— Às vezes saíamos depois da aula, conversávamos sobre
livros, música, esse tipo de coisa. Mas então, bem... uma vez ele
me beijou, assim do nada. — As lágrimas de Mikayla estão
sumindo agora. Ela está ficando com raiva. Bom, ela vai
precisar dessa raiva. — Eu sempre pensei que se um cara
tentasse me machucar, ou me controlar, eu iria destruí-lo. Você
sabe?
Eu concordo. Eu sei muito bem.
— Mas ele começou a agir de forma estranha e possessiva, e
eu simplesmente, tipo... aguentei isso. Tentei terminar com ele
algumas vezes, mas ele não deixava.
— O que você quer dizer com ele não deixava?
— Quanto mais eu tentava evitá-lo, mais eu comecei a vê-lo
por todo o campus. Me assistindo. Mesmo do lado de fora da
janela do meu dormitório. Então... —Ela torce as mãos no colo,
evitando meus olhos. — Comecei a carregar uma faca.
— Uma faca? Onde diabos você conseguiu uma faca?
— Do refeitório. — Ela enfia a mão no bolso do casaco e
puxa para me mostrar. É uma faca de carne, o tipo padrão que
eles estocam na lanchonete do campus. Ela me deixa tirá-la de
suas mãos e colocá-la a uma distância segura sobre a mesa de
centro.
— Eu só queria ser capaz de me defender — diz ela. — Eu sei
que está confuso.
Eu olho a borda serrilhada. Não é uma arma especialmente
mortal, a menos que você saiba a maneira certa de usá-la, o que
eu sinceramente duvido que Mikayla saiba. Mas afiada o
suficiente para causar algum dano.
— O que aconteceu esta manhã? — Eu pergunto a ela. —
Um pouco antes de você vir aqui?
Mikayla começa a tremer, as lágrimas brotando
novamente. Eu coloco minha mão sobre seu pulso, mas
gentilmente desta vez.
Ela respira fundo.
— Eu finalmente consegui dormir durante a noite, e então
acordei e...
Eu aperto seu braço — ainda gentil — incitando-a a
continuar.
— Ele estava no meu quarto — diz ela. — Parado ali,
tipo, pairando sobre mim. Não tenho ideia de como ele
entrou! Eu gritei e ele apenas sorriu para mim. — Mikayla
estremece. — Ele disse que eu ficava tão bonita enquanto
dormia.
Meus olhos se voltam para a faca novamente. A lâmina está
limpa, mas ela poderia tê-la enxugado.
— Você não…
— Não, eu… eu estava com muito medo até mesmo de
pegar. Mas ele veio para cima de mim e… eu o soquei.
Ela flexiona os dedos. Os nós dos dedos estão vermelhos e
inchados; eu presumi que fosse por andar sem luvas no frio.
— Acho que quebrei o nariz dele — diz ela. — Ele estava
sangrando muito. Eu não sei. Saí correndo e... bem, não sabia
para onde ir, então vim aqui.
— Você fez exatamente a coisa certa, Mikayla. Estou
orgulhosa de você.
Nada do que ela disse antes me surpreendeu, mas isso... Eu
sabia que Stright era um idiota, que dormia com seus alunos,
mas isso é outra coisa. Eu estava tão obcecado por Kinnear que
esqueci o monstro que seu protegido se tornou.
— Não sei o que fazer agora — diz ela. — Eu não posso voltar
para o meu quarto, e se ele invadir novamente? E se ele tentar...
Eu a acalmo com um aperto em seu ombro.
— Eu cuidarei disso.
Se eu fugir, Stright poderá continuar machucando mulheres
impunemente. Assim como aqueles jogadores de futebol e
todos os outros homens da Universidade Gorman, evitei o
matar porque estava jogando pelo seguro, tentando não ser
pega. Eu deveria ter matado Stright anos atrás.
Eu deveria ter matado todos eles.
— S-sério? — A esperança nos olhos de Mikayla me corta até
os ossos. Nada disso deveria ter acontecido com ela em
primeiro lugar. Eu deveria tê-la protegido. — Mas como…
— Ele não vai incomodar você de novo, eu prometo.
Mina se foi há quase uma hora. Se ela fosse à polícia, eles já
estariam aqui. Mas não houve mais batidas na porta, nenhum
som lá fora, apenas o vento. Então ela não disse a eles ainda. Sei
que isso não me deixa segura de forma alguma, mas me dá
algum tempo.
Tempo suficiente para lidar com Patrick Stright.
64
CARLY

Eu não tenho certeza de que ele vá aparecer. Até eu ouvir o


ranger da escada de incêndio.
Seus passos são firmes, relaxados. Nenhum indício de
hesitação ou medo, apesar da névoa crescente tornando os
degraus mais traiçoeiros, distâncias mais difíceis de julgar. O
tempo todo que estive esperando, minhas costas pressionadas
contra a chaminé, eu me senti como se estivesse flutuando no
vazio, a escuridão e a névoa obscurecendo o resto do campus
como se nunca tivesse existido.
Deu-me muito tempo para pensar, para me questionar. No
momento, ainda estou brincando de me vestir. Eu poderia tirar
o vestido de Allison, esfregar a maquiagem, até mesmo tingir
meu cabelo de castanho e fingir que isso nunca
aconteceu. Volte a ser a garota trêmula e insegura que entrou
no escritório de Alex esta manhã, desesperada por segurança.
Bash Waller sobe no telhado do Whitten Hall, apertando os
olhos contra o brilho das luzes de corda enroladas em torno da
chaminé.
— Anna?
Quando me aproximei de Anna Turner no banheiro de
Whitt e disse a ela o que Bash fez com Allison no Halloween,
ela estremeceu como se quisesse correr de volta para o chuveiro
e se esfregar tudo de novo. Ela me agradeceu profusamente por
alertá-la — e ela ficou muito feliz em ajudar com meu plano.
— Anna? — ele chama novamente. — Você está aí?
Foi simples, na verdade: Anna mandou uma mensagem para
Bash, contando a ele o quanto ela se divertiu na festa do elenco
na noite passada e pedindo a ele para encontrá-la no telhado de
Whitten à meia-noite. Tive medo que ele suspeitasse, fizesse
perguntas — por que tão tarde, por que o telhado, por que ela
não poderia vir até ele —, mas ele concordou
prontamente. Com entusiasmo, até.
Agora Anna está dormindo em segurança em seu quarto lá
embaixo, e Bash está bem onde eu quero.
Ele faz mais uma varredura superficial do telhado antes de se
abaixar perto da borda para esperar. Há um clarão de chama
quando ele acende um novo cigarro.
Eu respiro fundo. Então outra vez. Não há volta agora.
— Procurando por alguém? — Eu digo enquanto saio do
meu esconderijo.
Bash se levanta, girando para me encarar. Ele perde o
controle do cigarro, e ele despenca pela lateral do telhado,
engolido pela névoa.
— Você não é Anna — ele diz.
Eu balanço minha cabeça. Bash me olha de cima a baixo. Ele
leva alguns segundos para se concentrar no meu peito antes de
finalmente me reconhecer.
— Você é amiga de Hadley, certo? Karen?
Eu não me preocupo em corrigi-lo. Provavelmente é melhor
se ele não souber meu nome verdadeiro.
— Sim, eu me lembro de você. — Bash sorri como um
lobo. — Aquele beijo na noite passada… foi quente.
Eu quero colocar meu punho direto em seus dentes brancos
e brilhantes. Ele está quase perto o suficiente agora.
Perto o suficiente para eu levantar a lata de metal apertada
em minha mão direita e borrifar tudo em seu rosto. Quando ele
desabar no telhado, uivando, vou chutá-lo nas bolas com a
ponta pesada das minhas botas de combate. Depois, no
estômago. Talvez até no nariz.
Ele vai gritar e ele vai sangrar, e da próxima vez ele vai
até pensar antes de tocar uma garota contra a vontade dela, ele
se lembrará desta noite como se estivesse acontecendo com ele
de novo.
— O que você está fazendo aqui? — Ele pergunta, ainda
olhando para o meu decote. — Onde está Anna?
Não há nem mesmo uma sugestão de preocupação na voz de
Bash. Estamos vários andares acima, sozinhos no escuro, eu o
atrai aqui sob falsos pretextos, e ainda não ocorreu a ele estar
nem um pouco preocupado com minhas intenções. Na
verdade, ele parece se divertir com tudo isso. Ele não me vê
como nenhum tipo de ameaça.
— Bom... — Estou tentando me mover devagar,
sedutoramente, mas minhas pernas estão tremendo, e não sei se
é de nervosismo ou raiva. — Anna e eu, nós pregamos uma
pequena peça em você.
Bash levanta as sobrancelhas.
— Ah, é?
— Eu tenho observado você — eu digo. — Todo o
semestre. Eu queria te dizer, mas eu estava... — Desvio meus
olhos, agindo tímida quando na verdade estou apenas evitando
ter que olhar para seu rosto arrogante. — Então Anna disse que
me ajudaria.
Os olhos de Bash vagam sobre mim novamente, seguindo as
costuras do meu vestido como um mapa rodoviário sobre
minhas curvas.
— Parece que você não precisa de ajuda.
Ele tem razão: não preciso de ajuda. Mas em um segundo, ele
irá precisar.
65
SCARLETT

Na ida para o campus, eu continuo esperando viaturas policiais


surgirem ao lado de meu carro, cortarem minha rota, conduzir-
me para o acostamento. Mas a estrada está deserta, meus pneus
são os primeiros a abrir caminho na neve fresca.
Deixei Mikayla em Whitten Hall no caminho e disse a ela
para esperar lá até que tivesse notícias minhas. Claro, duvido
que consiga contatá-la depois. Ela ficará sabendo da minha
prisão ou da morte de Stright ou ambos mais tarde hoje e
receberá a mensagem.
Seguindo minhas instruções, ela lhe enviou uma mensagem
pedindo-lhe que a encontrasse no Miller Hall para que
pudessem conversar. Ela recebeu uma resposta em minutos,
dizendo que ele estaria lá em breve.
Espero encontrar a porta da frente do Miller trancada já que
é fim de semana, mas ela se abre. Alguém já deve estar aqui, o
que não é o ideal. Ainda tenho um pouco de tempo, no entanto
— na neve, Stright deve levar mais tempo para fazer a viagem
para o campus. Nesse intervalo de tempo, posso encontrar
quem está aqui e tentar convencê-los — por bem ou não — a
irem embora.
Enquanto caminho pelo corredor, passando pelas salas de
aula às escuras e pelos escritórios fechados do corpo docente,
estou muito ciente do comprimento frio da lâmina
pressionando minha perna. Limpei as impressões digitais de
Mikayla da faca antes de colocá-la na minha bota. Na pequena
chance de Mina ainda não ter me entregado, quero tirar Stright
usando uma arma sem laços pessoais. A faca é perfeita:
totalmente genérica, uma das milhares em circulação no
refeitório do campus. Estou usando luvas também, para
garantir que não deixo nenhuma das minhas próprias
impressões para trás.
Todo o primeiro nível está vazio, então subo para o segundo,
onde encontro apenas uma sala iluminada em todo o andar.
O escritório de Mina.
Quando eu apareço em sua porta, ela começa, então exala,
pressionando a mão contra o peito.
— O que você está fazendo aqui? — ela pergunta. — Você
me seguiu?
Parece que ela tem trabalhado muito — embora também
pareça que ela parou em casa depois de fugir da minha. Ela está
vestindo um suéter branco e jeans, seu cabelo preso no alto da
cabeça, e ela até passou um pouco de rímel. Não exatamente as
ações de uma mulher que teme por sua vida.
— Eu não tinha ideia de que você estaria aqui. — Entro no
escritório e Mina fica completamente imóvel. Ela não parece
feliz em me ver, mas pelo menos ela não está recuando ou
gritando por ajuda.
Ela tem uma série de pastas de arquivo na mesa à sua frente,
organizadas em pilhas organizadas. O diário de Viola Vance
está no topo da pilha central. O quadro branco na parede ainda
contém a lista de nomes de homens, mas ela adicionou outra
no final.
Alexander Kinnear.
— Você não contatou a polícia ainda — eu digo.
Mina pressiona os lábios.
— Você não deveria estar aqui.
Ela está certa, eu não deveria. Se eu fosse inteligente, já teria
partido há muito tempo. Mas então Stright continuaria
aterrorizando Mikayla — e a próxima garota, e a garota depois
disso. Prometi cuidar disso e o farei. Pode ser uma coisa
estúpida de se fazer, mas é a coisa certa também.
Dou mais um passo em sua direção.
— Por que você decidiu não…
— Eu não decidi nada ainda — ela se exalta.
— Bom, o que você está esperando? — Eu pretendia soar
enérgica, mas a questão sai suplicante em vez disso. — Você
sabe o que eu fiz. O que eu sou.
— Eu não tenho ideia do que você é. — Ela arqueia os dedos
em cima das pastas de arquivo. — Não tenho todos os dados
ainda.
— Mina, sinto muito, mas não tenho tempo para
explicar. Eu preciso que você…
— Conte-me sobre os outros — ela diz. — Você sempre fez
as mortes parecerem suicídios?
Não adianta esconder segredos dela agora — especialmente
se responder suas perguntas vai tirá-la daqui mais rápido.
— Alguns deles foram encenados como acidentes.
Os olhos de Mina se iluminam um pouco de prazer por ter
deduzido certo.
— Como você decidiu?
— Eu os estudei — eu digo. — Por meses às vezes.
Toda essa conversa parece surreal. Depois que Mina saiu
correndo de minha casa, não esperava vê-la novamente, a
menos que fosse em um tribunal, testemunhando contra
mim. Mas ela está aqui e está ouvindo.
— Você se lembra daquele adjunto que morreu ao dirigir sob
efeito de álcool há dois anos? — Eu pergunto.
Ela acena com a cabeça.
— Ele costumava dirigir para casa de um bar em outra cidade
tarde da noite. Sempre na mesma estrada, nada além de vacas e
árvores por quilômetros. E assim que ele chegasse em casa, ele
iria para o quarto de sua enteada.
Os olhos de Mina ainda estão brilhantes e curiosos, mas ela
parece um pouco enjoada também. Ela quer saber e não quer.
— Então ele não estava bêbado quando bateu?
— Ah, ele estava. Mas coloquei algo extra em sua bebida para
ter certeza absoluta.
Ela parece mais fascinada do que horrorizada, e um pequeno
lampejo de esperança ilumina meu peito. Talvez eu esteja
conseguindo falar com ela. Ela ainda vai me denunciar, tenho
certeza, mas se ela consegue entender por que fiz as coisas que
fiz, é mais do que ousei esperar.
Mina bate as unhas na capa do diário.
— Mas algo deu errado, não foi? Com Alexander.
Quero contar a ela todos os detalhes: quanto tempo esperei
para matá-lo, quão furiosa Kinnear me deixou naquela noite,
como senti a faca em minha mão. O puro alívio que me
inundou quando cortei sua garganta. Quase tão doce quanto
da primeira vez.
— Sabe… — diz Mina. — Eu costumava pensar em matá-lo.
No começo eu acho que ela está brincando. Mas sua
expressão é mortalmente séria.
— O tempo todo. Principalmente no último ano de nosso
casamento. — Ela contorna a mesa e fica bem na minha
frente. — Ele voltava para casa cheirando a perfume barato de
uma universitária e se sentava à minha frente na mesa de jantar,
como se nada estivesse errado.
Ela tem um olhar distante, preso na memória.
— Cada vez que ele sorvia sua sopa, eu me imaginava
enfiando a colher em sua garganta, ou enrolando sua gravata
em volta do pescoço e estrangulando-o. E mais tarde, quando
estivéssemos na cama, eu fecharia meus olhos e apenas... — Ela
balança a cabeça. — Mas eu sabia que nunca poderia ter feito
isso.
É mais fácil do que você pensa, quero dizer. Mas fico em
silêncio, observando Mina, acompanhando as mudanças sutis
em sua expressão. Desejo estender a mão e tocá-la — estamos
perto o suficiente agora, e eu poderia —, mas tenho medo.
— Quando soube que ele estava morto, tudo que consegui
pensar foi que alguém finalmente o matou. Ele finalmente
empurrou alguém longe demais, e a pessoa estourou.
— Eu fui aluna dele, você sabe.
As palavras saem antes que eu possa detê-las. Mina inclina a
cabeça, confusa.
— Eu pensei que você tivesse ido para Swarthmore?
— Eu fui — eu digo. — Mas eu fui transferida de Gorman
para lá. Eu estava em sua aula de redação, meu primeiro
semestre de faculdade.
— Ele… — Ela engole, como se estivesse tentando não
vomitar. — Na época em que você era estudante...
— Ele tentou.
Mikayla me disse a mesma coisa. Ele não me machucou. Mas
ele tentou. O mundo é um lugar melhor sem homens como
Kinnear e Stright. Se eu tivesse matado Kinnear naquela manhã
fria em seu escritório, quando fui até ele em crise e ele tentou
me foder, eu poderia ter me salvado e quem sabe quantas outras
tantas mulheres do sofrimento.
Desta vez, quando me movo em direção a Mina, ela recua,
mas não há para onde ir. Seus quadris batem contra a borda da
mesa e ela coloca as mãos para trás para se equilibrar,
bagunçando as pilhas de pastas.
Eu a olho bem nos olhos.
— Esses homens são predadores, Mina.
Ela encontra meu olhar, inflexível.
— E você também.
Ela está certa; eu sou. Aproveitei cada segundo: seus gritos,
seu sangue, a vida drenando de seus olhos. Ela ainda está com
medo de mim, e deveria ter. Eu pertenço a uma gaiola.
— Quero dizer, você está planejando a morte deles — diz
Mina. — Caçando eles. Isso é…
Ela para, mas posso adivinhar o que ela está prestes a
dizer. Doente, distorcido, apavorante. Maligno.
— É brilhante.
Eu pisco para ela, não tenho certeza se ouvi direito. Ela passa
a mão na minha bochecha, me puxando para mais perto,
olhando nos meus olhos. Não com medo agora, mas com
carinho, desejo.
— Você é brilhante, Scarlett.
Quando ela me beija, fico tão chocada que levo um segundo
para responder. Mas então eu derreto nela, agarrando sua
cintura como uma tábua de salvação. Brilhante. Ela me acha
brilhante.
Finalmente encontrei alguém que aceita meu lado
monstruoso e agora vou perdê-la. Não posso deixar Stright
viver e não posso deixá-la ir, mas posso deixar o resto do mundo
desaparecer por um breve momento.
Eu aperto meus olhos e continuo beijando-a. Quando eu os
abro novamente, há um homem parado na porta, nos
observando com um sorriso malicioso no rosto. Mas não é
Stright.
É Jasper.
66
CARLY

Eu imaginei cada detalhe da minha vingança em Bash. Mas


agora, aqui, com ele avançando sobre mim e o vento
assobiando através da névoa, me encontro congelada.
Meu cabelo chicoteia em volta do meu rosto, e ele afasta um
pouco. Mas ele não desiste. Em vez disso, ele enrola um cacho
em torno do dedo, puxando a raiz. Minha garganta aperta de
medo, mais apertada do que meu punho em torno do spray de
pimenta.
— Gosto do novo visual — diz ele. — O vermelho combina
com você.
Meu polegar desliza sobre a segurança da latinha.
— Você não tem ideia de como você é bonita. — Ele pega
meu cabelo em seu punho e pressiona sua boca no local onde
meu pescoço encontra meu ombro. — Sabia?
— Espere — eu digo, mas Bash envolve seus braços em volta
de mim, prendendo meus cotovelos ao meu lado. Meu dedo
está no gatilho do spray, mas não consigo levantá-lo. Eu não
consigo me mover. — Pare com isso, eu…
Isso foi um erro. Eu não deveria ter tentado enfrentá-lo
sozinha. Eu sou idiota, sou tão idiota.
A boca de Bash sobe mais, próximo ao lóbulo da minha
orelha. Seus lábios estão frios, e também a respiração que os
empurra, deslizando sobre mim, repulsiva.
Eu luto contra ele, mas isso só o faz apertar com mais força,
cavando em meus braços, o mesmo lugar onde ele deixou
aqueles hematomas em Allison. Eu penso na minha fantasia,
minha história para a aula de Alex, mas parece patético agora.
Eu ainda poderia chutá-lo na virilha. Eu poderia gritar —
alto o suficiente para acordar Samantha, para despertar todo o
dormitório. Vou dizer a eles que ele tentou se forçar a
mim. Vou dizer a eles que ele já fez isso antes.
Mas vou levar toda a culpa, assim como Allison levou. Mais,
provavelmente, porque me vesti assim. Eu o atraí aqui. Eu pedi
por isso.
— Relaxe — Bash sussurra contra minha pele.
Não é o suficiente. Nunca teria sido o suficiente, espalhar
spray de pimenta em seus olhos ou chutá-lo nos dentes ou
mesmo gritar que ele é um estuprador para todo o campus
ouvir. Ele merece muito pior do que isso.
E então estou imaginando outra coisa: Bash tropeçando na
beirada do telhado, gritando enquanto cai.
Ele pega meu rosto em suas mãos, os dedos cutucando meu
queixo. Liberando meus braços, porque ele pensa que me tem
sob seu controle. Ele acha que não sou uma ameaça, não posso
machucá-lo, não ousaria, sou apenas uma garota assustada
como todas as outras. Não tenho ideia de quantas já
existiram. Mas pretendo ser a última.
Talvez ele ficasse tão surpreso que nem teria tempo de
gritar. Seu corpo ainda faria um som, entretanto, quando
atingisse o pavimento abaixo. Uma crise úmida
nauseante. Então silêncio.
Eu pressiono minhas mãos contra seu peito. Há um estrondo
em meus ouvidos como uma tempestade que se aproxima.
— Pare.
Eu digo isso mesmo sabendo que ele não vai. Homens como
ele não param. Não, a menos que alguém os impeça.
O som troveja mais alto, até que é tudo que posso ouvir.
Esse deveria ter sido meu plano o tempo todo.
67
SCARLETT

Eu não tenho certeza quanto tempo Jasper estava parado lá na


porta, quanto da minha conversa com Mina ele ouviu. Seu
nariz está vermelho, com uma crosta de sangue seco ao redor de
suas narinas, e de repente eu entendo.
Foi ele quem invadiu o quarto de Mikayla esta
manhã. Aquele que ela atingiu, aquele que ela escondeu uma
faca sob o travesseiro para se proteger. Era ele, não Stright. Foi
ele o tempo todo.
— Eu sabia que você estava por trás daquela mensagem.
— Jasper parece abatido, seu cabelo escorrido e oleoso, e sua
camisa oxford branca amassada como se ele dormisse com
ela. Mikayla deve ter acertado ele com as unhas também: linhas
vermelhas e cruas marcam a pele acima de seu colarinho. — Ela
nunca teria feito isso sozinha.
Mina olha para trás e para frente entre nós dois.
— O que diabos ele está falando?
— Eu não sei o que Mikayla disse a você — diz Jasper —, mas
aquela vadia é tão obcecada por mim.
Mina se ergue. Ela pode não saber a história toda, mas ela não
vai tolerar que ele fale sobre Mikayla dessa forma mais do que
eu.
Todas as peças estão se juntando em minha mente, os sinais
que perdi porque estava tão focado em Kinnear e Stright: a
pequena figura ao lado de Jasper na noite em que segui Kinnear
até o Gorman Tap. As habilidades de arrombamento de
fechaduras que devem ter colocado Jasper no dormitório de
Mikayla. A maneira como ela reagiu quando ele tocou seu
braço na aula. Ele era o único na sala que não ficou perturbado
por sua explosão — porque ele sabia que era sobre ele.
— Para ser justo, porém, Mikayla é muito obcecada por você
também — Jasper diz, se aproximando de mim. Mina dá um
passo para trás quando ele se aproxima, mas me forço a
permanecer completamente imóvel.
Eu poderia ter matado Stright sem remorso ou
hesitação. Com Jasper, não é tão simples. Ele é muito maior do
que Stright, e estou muito ciente da força vigorosa daqueles
braços. Se estivéssemos sozinhos, eu poderia seduzi-lo. Teria
sido fácil fingir se reconciliar, colocá-lo no chão debaixo de
mim, onde ele esteve tantas vezes antes, e sufocá-lo até a morte.
— Ela fala de você o tempo todo. A Dra. Clark isso, Dra.
Clark aquilo. Eu me pergunto o que a Dra. Clark pensará do
meu trabalho de conclusão de curso. — Ele traça o dedo pelo
meu braço e ao redor da ponta do meu cotovelo. — Aposto
que ela ficará muito desapontada ao descobrir que seu modelo
é a porra de uma assassina.
Mina respira fundo. Eu apenas fico olhando para ele. Ele
quer uma reação, e eu não vou dar a ele. Estou economizando
toda minha energia para derrubá-lo.
Jasper agarra meus ombros e se inclina para me olhar bem
nos olhos.
— Por que você não me contou?
— Com licença? — Tento me afastar, mas ele se mantém
firme.
— Eu não teria contado a ninguém. Eu não contei a
ninguém. Eu poderia ter delatado você para aqueles detetives,
mas não o fiz. Isso não conta para nada, Scarlett?
Ele está me apertando com tanta força agora que dói. Quero
dar um tapa na mão dele, mas sei que se tocar nele não vou
conseguir parar até que ele sangre.
— Eu te segui até a casa de Kinnear naquela noite, sabia?
Eu não sabia. Eu não fazia ideia. Ele segurou os pregos no
meu caixão o tempo todo. Então, por que ele não os
martelou? Por que ele mentiu por mim, disse à polícia que
estive com ele a noite toda? Jasper sempre gostou de me
encurralar, mas de sua própria maneira distorcida, ele se
preocupa comigo. Isso não muda o que ele fez, ou o que eu
tenho que fazer agora.
— Eu odiava aquele bastardo também — Jasper diz. — Eu
poderia ter ajudado você.
Não, ele não podia. Ele me dá nojo. Ele é igual a todos os
outros homens que matei.
Jasper balança a cabeça.
— Mas agora…
Não posso matá-lo ainda. Não na frente de Mina.
Mantendo meus olhos treinados em Jasper, pego sua mão.
— Mina. Você precisa sair.
— Não — ela diz —, eu não vou a lugar nenhum.
— Eu não quero que você veja isso.
Ainda não consigo acreditar que Mina seja tão compreensiva
quanto afirma ser sobre minha vida secreta. Saber que matei
dezenas de homens é uma coisa. Mas me testemunhar tirar uma
vida diante dos olhos dela, é outra. Não quero que sua última
lembrança de mim seja com sangue em minhas mãos.
— Não vou deixar você sozinha com ele — ela insiste.
Jasper me solta, mas apenas para que ele possa olhar para
Mina.
— Estive sozinho com ela mais vezes do que posso contar.
— Ele paira sobre ela, os lábios esticados em um sorriso lascivo,
e ela se encolhe. — As coisas que fizemos, você não tem ideia.
— Jasper — eu advirto. — Se você tocá-la…
Ele ri.
— O que, Scarlett? Você vai me matar também?
68
CARLY

— Tire suas mãos dela!


Wes. Ele está aqui, no telhado. Ele está correndo em nossa
direção, Allison logo atrás dele.
Aquele som trovejante que ouvi não era apenas na minha
cabeça: eram os dois correndo pela escada de incêndio.
Vindo para me salvar.
Bash se vira languidamente, como se tivesse todo o tempo do
mundo. Minhas palmas ainda estão pressionadas em seu
esterno. A névoa está tão densa agora que é difícil ver onde
termina o telhado e começa o ar livre.
— Ei, cara — Bash diz para Wes, um sorriso preguiçoso se
esticando em seu rosto. — Fica frio.
Wes responde dando um soco na boca dele.
Allison grita, e Bash cambaleia, segurando-se nas costas das
mãos. Ele está tão perto da beirada do telhado que seus dedos
se enrolam na lateral. Ele cambaleou para trás, os olhos
arregalados de pânico. É a primeira vez que o vejo realmente
com medo.
— Ela me enganou para vir aqui! — Bash aponta um dedo
trêmulo para mim, sua voz soando estranhamente alta. — Ela
queria isso!
— Assim como eu queria no Halloween, certo? — Allison
diz. Ela está tentando parecer forte, quadris levantados em
desafio e braços cruzados sobre o peito, mas posso ver como ela
está abalada.
Bash cospe um bocado de sangue no telhado e então olha
para Allison.
— Você me quer, você estava praticamente implorando…
Allison o chuta com força entre as pernas, da mesma forma
que imaginei fazer. Bash não uiva de agonia como na minha
fantasia, no entanto; ele apenas se enrola como uma bola,
abraçando os joelhos contra o peito.
— Cale a boca! — Allison grita, embora seus choramingos
patéticos mal sejam audíveis acima do vento. Está aumentando,
ficando mais selvagem agora, como se a raiva dela estivesse
convocando uma tempestade de verdade.
Ela recua, mas antes que ela possa chutá-lo novamente, ele se
põe de pé.
— Cadelas loucas — ele murmura baixinho. Ele olha para
Wes. — Elas são todas suas, cara.
Bash tropeça em direção à escada de incêndio, o mais rápido
que pode, enquanto ainda está dobrado de dor. Allison parece
querer ir atrás dele, acertar mais alguns golpes, mas ela
permanece enraizada no lugar, olhando para suas costas
recuando.
— Está tudo bem — Wes diz, colocando o braço em volta de
mim. — Ele se foi. Tudo bem.
Mas a última coisa de que preciso é conforto. Wes fez Bash
sangrar, Allison o fez chorar e eu não fiz nada. Eu falhei e Bash
simplesmente foi embora. Ele tem um lábio partido, talvez
alguns hematomas, mas é isso. Nada permanente, nada
realmente prejudicial.
— O que vocês estão fazendo aqui, afinal? — Eu tremo e
Wes me puxa para mais perto. Mas não estou com frio nem
com medo. Estou vibrando de raiva não gasta.
— Não conseguimos encontrar você — diz Wes. — E Anna
Turner nos disse...
— Belo vestido, a propósito. Eu disse que ficaria bem em
você. — Allison lança um olhar penetrante para Wes e ele
aperta meus ombros com mais força. — Eu não disse a ela?
— Allie — avisa Wes.
— Bash gostou também? — Sua voz está pingando
veneno. — Aposto que sim. Aposto que ele não conseguia
parar de olhar para você. Assim como no Halloween, certo?
Estou confusa no início: ela está com ciúmes? Ou apenas
chateada por ter tentado me vingar sozinha, sem envolvê-la?
Mas não é isso o que parece. Parece que roubei o vestido dela,
me arrumei e tentei ficar com o agressor, menos de vinte e
quatro horas depois de entrarmos em uma discussão
desagradável sobre esse assunto. Depois que nos beijamos e ela
bateu a porta na minha cara. Isso parece vingança contra ela,
não Bash.
— Como você pôde? — Allison pergunta. A mesma coisa
que eu disse a ela quando a arrastei para longe de Bash na noite
passada.
— Você não entende — eu digo.
E ela nunca entenderá. Meu plano parecia perfeitamente
razoável quando eu estava pensando nele, mas agora, mesmo na
minha cabeça, parece completamente confuso. Eu ia aplicar
spray de pimenta nele e deixá-lo um pouco áspero — e então,
quando isso não funcionasse, pensei seriamente em empurrá-lo
do telhado para a morte? Eu não posso dizer isso a ela. Não
posso dizer isso em voz alta.
— Não. — O fogo de sua raiva já está sumindo, seus olhos
azuis congelando. — Eu realmente não entendo.
69
SCARLETT

Jasper sustenta meu olhar enquanto agarra Mina pelos


ombros. Desafiando-me.
Eu me atiro nele, mas Mina não precisa de mim para defendê-
la. No momento em que ele a joga contra o quadro branco, ela
já está gritando e agarrando seu pescoço e pulsos. Então ela bate
a palma da mão no nariz dele.
Ele se vira para trás, soltando-a para agarrar seu próprio
rosto. Ela não o atingiu com tanta força, mas com o dano que
Mikayla fez antes, não demorou muito para fazê-lo sangrar.
Enquanto Jasper ainda está cambaleando, o vermelho
escorrendo por seu queixo, eu coloco minhas botas na parte de
trás de seus joelhos, derrubando-o no chão. Ele está se
debatendo, furioso, tentando me jogar fora enquanto subo em
cima dele. Eu aperto meu joelho contra sua garganta e tiro a
faca da minha bota.
Os olhos de Jasper se arregalam quando ele vê a lâmina
serrilhada apontada para seu rosto, e ele finalmente fica
imóvel. Eu aperto meus dedos enluvados em torno do cabo,
alinhando a faca sob sua mandíbula.
— Pare! — Mina grita. — Scarlett, não…
Ela está no chão com a gente, e ela continua me
agarrando, tentando puxar minhas mãos — e a faca — da
garganta de Jasper. Por um segundo, acho que ela também está
sangrando, mas é apenas o marcador vermelho do quadro
branco, manchado nas costas do suéter. A lista de nomes foi
apagada no esquecimento.
— Deixe-me cuidar disso. — Eu pressiono a faca com força
o suficiente para desenhar uma linha fina de vermelho do
pescoço de Jasper.
Por que achei que seria difícil matá-lo? É tão simples. É
sempre simples, não importa o quanto eu tenha de fazer um
planejamento cuidadoso e preparação. Corte-os e eles
sangram. Sufoque-os e eles param de respirar.
Jasper engole em uma respiração em pânico, e a faca o corta
novamente, um pequeno corte sobre seu pomo de adão.
— Você não pode — diz Mina. — Você irá para a cadeia.
Ela está desesperada, implorando, com lágrimas escorrendo
pelo rosto. Mas eu sei que não há esperança e, no fundo, Mina
também sabe. Eu vou para a cadeia, não importa o que eu faça
agora. Eu matei meu chefe, estou atacando um aluno com uma
faca.
Mas eu posso fazer isso. Eu posso cuidar dele para que ele não
machuque mais Mikayla, para que ele não tenha a chance de
machucar mais ninguém. Não posso matar todos eles, mas
posso matar Jasper.
— Por favor. — Mina envolve seus dedos em meu
cotovelo. — Por favor.
Jasper se empurra contra mim novamente, me jogando para
o lado. A faca voa da minha mão, caindo no chão, e nós três
mergulhamos nela. Quando nos levantamos, estou entre Jasper
e a saída. Mas ele tem a arma.
Ele se aproxima de mim, narinas dilatadas, sangue cobrindo
seu rosto como uma máscara mortuária.
— Mova-se, Scarlett. Agora.
Eu fico mais reta, ocupando o máximo de espaço
possível. Ele terá que passar por mim. Mina tenta agarrar a faca
de novo, mas Jasper dá uma cotovelada para trás, quebrando-a
na bochecha e jogando-a no chão.
Ela bateu com a têmpora no canto da mesa ao descer, e não
está se levantando. Eu não posso dizer se ela está inconsciente
ou apenas atordoada. E eu não posso chegar até ela, porque
Jasper está entre nós, brandindo a faca.
— Mova-se — ele diz. — Ou eu vou te matar, porra.
Ele aponta a lâmina para mim, mas suas mãos estão
tremendo. Ele não é capaz disso. Ele nunca foi. Ele não passa de
um animal encurralado e, mesmo sem arma, eu sou a perigosa.
Mina se mexe, se apoiando, pressionando as pontas dos
dedos contra a testa. Eles saem manchados de vermelho. Mas
ela está consciente, isso é tudo que importa. Ela é tudo o que
importa para mim.
Jasper está tremendo mais a cada segundo. Patético. Ele não
tem nenhum problema em intimidar uma mulher, violá-la, mas
não consegue cometer violência de verdade. Como Mikayla
disse em sala de aula, no entanto, é tudo o mesmo crime.
— Você é uma vadia psicopata! — Ele cospe na minha cara,
sua voz tão serrilhada quanto a faca.
Minha boca se curva em um sorriso.
— Sim, eu sou.
— Afaste-se dela!
O aperto de Jasper já era tênue, e o grito repentino o faz
perder o controle completamente. A faca corta minha clavícula
e cai aos nossos pés.
O que diabos Mina está fazendo? Eu disse a ela para me
deixar lidar com isso, ela não está em condições de...
Mas então eu a vejo, com o canto do olho. Ela não se
levantou, ela ainda está deitada no chão. Só que agora ela está
olhando para cima com horror enquanto Jasper tropeça para
longe de mim, agarrando seu peito, sua camisa branca
rapidamente manchando de vermelho.
70
CARLY

A batida dos pés de Allison enquanto ela desce pela escada de


incêndio soa como pedras caindo de um poço. Eu realmente a
perdi desta vez.
Eu estremeço, engolindo um soluço, e Wes esfrega minhas
costas.
— Está tudo bem — ele diz novamente, como se fosse se
tornar verdade caso ele repita o suficiente.
Nada disso está bem. Allison nunca mais vai falar
comigo. Bash nunca será punido. Tudo está bagunçado e
quebrado, e não posso consertar. Eu sou uma aberração e um
fracasso, e eu não deveria ter tentado em primeiro lugar.
— Você deve estar com frio — diz Wes.
Estou com calor, na verdade, queimando como se tivesse
febre, o cabelo grudando na nuca de suor. Mas ele já está
colocando seu casaco pesado sobre meus ombros.
Wes desliza seu braço em volta de mim novamente.
— Ela vai se acalmar. Ela sempre se acalma. Ela e sua colega
de quarto no ano passado também brigaram muito, mas
sempre se reconciliaram.
— Mesmo? — Eu digo.
— Sim, houve um mês inteiro na última primavera em que
elas não puderam até mesmo estar na mesma sala sem tentar
matar uma à outra. Então Allison ficou no meu quarto.
— Isso é... permitido? — Tento imaginá-los na cama juntos,
Allison apoiando a bochecha no peito de Wes como eu fiz
durante aquela noite estranha que passei em seu quarto, mas
não consigo imaginar.
Wes ri.
— De jeito nenhum. Mas você sabe que as regras nunca a
impediram. Ela entrou e saiu pela janela todas as noites durante
semanas. — Ele balança a cabeça e ri de novo, mas é um som
mais áspero. Quase amargo. — Todos os nossos amigos
pensaram que estávamos dormindo juntos. Não é engraçado?
Não é engraçado. E não é a mesma coisa de forma
alguma. Allison me odeia, e ela nem sabe a metade de como eu
sou fodida.
— Por que você estava aqui com Bash, afinal? — Wes
pergunta, aquela nota amarga persistente em sua voz.
Não posso contar a ele sobre meu ridículo plano de vingança
também. Eu nem mesmo tenho mais o spray de pimenta; devo
ter deixado cair. Não importa agora.
— É uma longa história — digo em vez disso.
— E você e Allison se beijando na festa ontem à noite? Essa
também é uma longa história?
Eu sei que ele está se referindo ao beijo na pista de dança, mas
minha mente vai imediatamente para o nosso outro beijo — o
verdadeiro. Suas mãos em minha espinha e sua língua em
minha boca e sua respiração em minha garganta.
Wes não percebe as lágrimas enchendo meus olhos, nem
mesmo quando ele segura meu rosto em suas mãos.
— Você merece muito mais do que ela — ele diz, dando um
beijo na minha bochecha. — Você sabe disso, certo?
Ele beija minha outra bochecha em seguida, perto do canto
da minha boca, mas eu mal sinto isso. Meus pensamentos estão
correndo, perseguindo uns aos outros em círculos.
Então Wes se inclina e me beija de verdade.
Está longe de ser um selinho amigável desta vez. Sua língua já
passou pelos meus dentes, suas mãos emaranhadas no meu
cabelo. Consigo me afastar por tempo suficiente para dizer seu
nome.
— Wes, eu…
Ele me beija de novo — ainda mais forte agora — e me sinto
mal, não consigo respirar, quero gritar, mas sua boca está
cobrindo a minha, e como ele pode pensar que estou gostando
disso? Meu corpo está rígido, minhas mãos em volta de seus
pulsos como algemas, meu rosto molhado de lágrimas.
— Pare com isso. — Não é um sussurro queixoso como no
escritório de Alex. Eu grito as palavras, empurrando Wes de
cima de mim com tanta força que ele tropeça para trás. — Pare.
Espero que ele peça desculpas, diga que se empolgou muito,
que sente muito, não sabe o que deu nele. Isso tudo é apenas
um mal-entendido. Claro que ele não gostaria de me deixar
desconfortável. Claro que ele nunca me pressionou a fazer
nada que eu não queira fazer.
Em vez disso, seus olhos ficam duros e sua boca se torce com
crueldade.
— Você está brincando comigo, porra? — ele diz.
71
SCARLETT

— Sua vadia, sua vadia de merda!


Não é para mim que Jasper está gritando, ou Mina.
É para Mikayla.
Afinal, é ela quem está segurando a faca manchada da ponta
ao cabo com o sangue dele.
Jasper cai de joelhos, um círculo vermelho já se espalhando
no chão abaixo dele. Estou vagamente ciente de que estou
sangrando também, uma picada pulsante abaixo da minha
garganta, onde a lâmina cortou quando ele a deixou cair, o calor
pegajoso encharcando minha camisa.
Mikayla está tremendo, segurando a faca com tanta força que
os nós dos dedos ficam pálidos. Seu rosto angelical é uma
máscara de horror, os olhos desfocados.
Ela deve ter me seguido até aqui em vez de ficar em seu
quarto como deveria. Ela não deveria ter que ver isso. Ela não
deveria ter que fazer isso.
— Mikayla. — Eu dou um passo em direção a ela. — Me dê
a faca.
— Ele ia te matar. — Ela mal consegue pronunciar as
palavras em torno dos suspiros de pânico que prendem sua
garganta. — Não ia?
A poça de sangue ao redor de Jasper aumenta, sua pele parece
mais encerada a cada segundo. Incrível que uma lâmina tão
pequena pudesse tirar tanto sangue. Ela deve ter atingido uma
veia.
Sorte de principiante.
— Ele ia te matar, eu tinha que, eu tinha que...
Ela desaba em soluços, segurando a faca perigosamente perto
de seu peito. Eu envolvo minha mão em torno dela, soltando
seus dedos para que eu possa tirá-la dela. A lâmina a atinge sob
o queixo quando eu a puxo, mas ela nem mesmo recua.
— Está tudo bem, Mikayla — diz Mina. Ela se levantou
agora, embora pareça mais do que um pouco instável, o sangue
manchando o lado de seu rosto de onde sua cabeça bateu na
mesa. — Apenas tente respirar.
Jasper ainda está segurando o peito, os olhos arregalados de
terror, como um garotinho desesperado para acordar de um
pesadelo. Aquela escuridão que sempre senti nele, não é como
minha vontade de matar. É outra coisa: um desejo de controlar,
de possuir.
Não me sinto culpada, nem um pouco. Mas vou assumir a
culpa.
— Ouça-me com atenção — digo a Mikayla. — Quando a
polícia chegar aqui…
Ela choraminga, agarrando-se às mangas do casaco para se
sentir confortável.
— Quando a polícia chegar aqui, você vai dizer a eles que eu
o esfaqueei.
Mina agarra minha mão — a que está segurando a faca.
— Scarlett, você não precisa fazer isso.
Mikayla parece tão assustada, tão perdida. Eu quero colocar
meus braços em volta dela, mas o sangue de Jasper está em todas
as minhas luvas. Suas mãos também estão cobertas com isso, e
ela tem uma mancha na bochecha. Teremos que limpar isso,
antes que a polícia chegue.
— Você fez a coisa certa, Mikayla. — Eu esfrego a faca na
minha camisa, limpando suas impressões digitais. — Você me
protegeu. Você se protegeu. Você ainda tem um futuro
brilhante pela frente. — Tiro minha luva direita e jogo no chão,
em seguida, envolvo meus dedos em torno do cabo da faca,
pressionando minhas próprias digitais. — Eu disse que ia
cuidar disso, não disse?
Mikayla me dá um aceno trêmulo, mas Mina está
balançando a cabeça.
— Scarlett, estou te dizendo. Não faça isso.
Ela coloca as mãos no meu rosto, me forçando a me virar para
ela. Ela está tão linda, mesmo com os olhos inchados, o sangue
emaranhado em seus cabelos. Quero gravar esse momento em
minha mente — a maneira como ela está olhando para mim, a
sensação de seus dedos na minha pele. Se este é um dos meus
últimos momentos com ela, estou determinada a lembrar cada
detalhe.
— Está tudo bem — digo a Mina; as mesmas palavras que ela
disse a Mikayla. — É escolha minha.
Ela tem que saber que é tarde demais para mim. Pelo menos
se eu puder salvar Mikayla, algo de bom virá desta
situação. Jasper ficou imóvel agora, com as mãos espalmadas ao
lado do corpo. Ele está respirando superficialmente, o mais leve
subir e descer aparente em sua camisa manchada de vermelho,
mas ele não vai durar muito mais tempo.
— Tudo bem, mas não é sua única escolha. — Mina não está
mais implorando ou desesperada. Ela está estranhamente
calma, olhando para mim com aquela intensidade de arma
carregada novamente. Ela estende a mão. — Me dê a faca.
— O quê? — Eu me afasto dela. — De jeito nenhum, você
não está…
— Você confia em mim?
Eu olho de volta em seus olhos castanhos escuros. Ela
poderia ter me denunciado para a polícia hoje, mas ela me
deixou explicar. Ela ouviu, e pelo menos em algum nível, ela
entendeu. Eu confio nela. Mina pode ser a única pessoa no
mundo em que confio.
Eu deixo meu aperto cair. Mina arranca a faca da minha
palma, deliberadamente pressionando suas digitais sobre as
minhas. Então ela pega a mão mole de Jasper e envolve seus
dedos em torno da alça também.
— O-o que você está fazendo? — Mikayla nos observa,
piscando como se tivesse acabado de acordar.
Mina sorri para ela.
— Tudo vai ficar bem, querida.
Aquela pobre garota vai precisar de muito apoio para manter
esse segredo, para se manter sob controle. Qualquer que seja o
plano de Mina, eu sei que ela garantirá que Mikayla esteja
segura. Isso é o que importa agora.
Ainda segurando a faca, Mina pega seu celular e disca 190.
Enquanto espera a operadora atender, ela parece
completamente, terrivelmente calma.
— Um nove zero, qual é a sua emergência?
— Estou em Miller Hall, no campus da Gorman — diz Mina
ao telefone.
Seus olhos permanecem firmes e sem piscar, mas sua voz se
transforma totalmente. Ela parece genuinamente em pânico,
sua respiração superficial e ofegante como se ela estivesse
correndo para salvar sua vida. Seu aperto aumenta em torno da
faca, sacudindo mais sangue de Jasper da ponta para o chão.
— Você tem que vir imediatamente! Ele... ele vai nos matar.
72
CARLY

Eu sinto o frio agora, todo o caminho até meus ossos.


— Eu... eu realmente gosto de você, Wes. — Eu lambo meus
lábios. Eles se sentem machucados com a força de seu beijo. —
Mas…
— Mas o quê? — ele exige.
— Simplesmente não parece… Quero dizer, com Allison, e...
Não consigo encontrar as palavras certas. Pareço uma
menininha insegura e odeio isso. Eu me odeio.
— Por quê? — ele diz. — Por que você está tão obcecada por
aquela vadia fodida quando estou bem aqui?
Eu realmente pensei que Wes fosse diferente. A maneira
como ele me ouviu quando lhe contei sobre meu pai, a
distância respeitosa que ele manteve entre nós quando eu
dormia em seu quarto. Até o peso de seu casaco em meus
ombros agora. Eu pensei que éramos amigos. Eu pensei que ele
se importava comigo. Mas eu nunca o conheci de verdade.
— Você age toda inocente. — Ele está carrancudo e parece
um completo estranho. — Mas você é tão manipuladora
quanto ela. Quer dizer, eu acabei de dar um soco em um cara
por você, eu salvei você, e agora você fica tipo: Ah não, não me
toque, como você ousa.
Eu estremeço com sua imitação alta e zombeteira de mim,
puxando as mangas do casaco sobre as palmas das mãos.
— Me desculpe se eu dei a você a impressão…
Wes zomba.
— Você não está arrependida.
Ele está certo: não estou. Ele não merece um pedido de
desculpas, mas as palavras continuam subindo na minha
garganta, quentes e urgentes como vômito. Sinto muito, sinto
muito, sinto muito.
Eu me encolho para longe dele, envolvendo meus braços em
volta de mim enquanto outra rajada de vento gelado rasga o
telhado. Ele está andando bem na frente da escada de incêndio,
então não posso sair. Estou presa e ninguém vem para me salvar
desta vez. Se eu gritasse por socorro, alguém me ouviria?
Wes coloca as mãos nos meus ombros, esfregando para cima
e para baixo como se estivesse tentando me aquecer.
— Eu poderia te fazer feliz. Eu sei que poderia, Carly. — Ele
sorri, de repente seu doce e suplicante eu novamente. — Se
você apenas desse uma chance.
Talvez um garoto como Wes pudesse ter me feito feliz. Se eu
fosse uma garota diferente, uma garota normal, não uma
aberração com a cabeça cheia de fantasias de vingança. Se eu
nunca tivesse visto por trás de sua máscara de cara legal. Ele
nunca deu a mínima para mim, ou para Allison. Ele pensou
que se fosse bom para nós, eventualmente nós transaríamos
com ele. Ele acha que devemos isso a ele.
Desta vez, quando ele se inclina para me beijar, não digo
para parar. Eu não o afasto. Em vez disso, eu o agarro pelos
ombros, os dedos cavando em torno do osso.
Wes toma minha agressão por paixão, me apalpando, tirando
o casaco de meus ombros. Ele acha que eu o quero, quando
tudo o que quero é machucá-lo. Eu quero machucá-lo tanto
que me oprime, o sangue gritando em meus ouvidos, mais alto
que o vento, mais alto que os pequenos ruídos patéticos de
prazer que ele está fazendo no fundo de sua garganta.
Ele é exatamente como o resto deles. Bash, Alex… Meu
pai. Eles querem que nos dobremos e dobremos, deixando-os
dizer e fazer o que quiserem conosco. Eles escapam impunes,
uma e outra vez.
Wes está tão perto da beirada agora que nem preciso
empurrar.
Tudo o que tenho que fazer é soltar.
73
SCARLETT

As sirenes soam minutos depois, mas Mina espera até ouvirmos


o barulho de botas da polícia batendo no corredor para
começar a chorar de novo.
— Ah, graças a Deus — ela soluça quando Abbott irrompe
no escritório da força-tarefa, sua arma apontada para a forma
imóvel de Jasper no chão. — Graças a Deus vocês estão aqui.
Abbott é flanqueada por seu parceiro e vários oficiais do
município de Gorman, mas apenas um dos com uniformes a
segue para dentro da sala; há muitos de nós aglomerados aqui
do jeito que está. Ele se abaixa para sentir o pulso, então olha
para Abbott e balança a cabeça.
Abbott coloca sua arma no coldre, examinando a cena:
Jasper em uma poça de seu próprio sangue, a faca abandonada
no chão ao lado dele. Mina, Mikayla e eu em pé em uma fileira,
as mãos manchadas de vermelho entrelaçadas.
— Você quer nos contar o que aconteceu aqui? — Abbott
pergunta.
— Scarlett salvou nossas vidas, foi o que aconteceu. — Mina
enxuga suas lágrimas, o sangue de Jasper manchando seu olho
esquerdo como tinta de guerra. — Ele simplesmente apareceu
aqui e me atacou do nada.
Ela olha para mim — esperando que eu pegue a próxima
parte da história que decidimos enquanto esperamos a chegada
da polícia. Meu desejo era que nós tivéssemos tido mais tempo
para trabalhar em nosso plano, mas qualquer atraso adicional
teria gerado perguntas sobre a hora da morte de Jasper.
— Eu estava… Nós estávamos no meu escritório lá embaixo.
A Srta. Atwell e eu. — Eu olho para Mikayla.
Ela acena com a cabeça, mordendo o lábio. Concordamos
que seria melhor ela ficar em silêncio o máximo possível.
— E nós ouvimos Mina gritando…
— Ele tinha uma faca — diz Mina. — Se ela não estivesse
aqui, eu não sei...
Ela desmorona novamente, enterrando o rosto no meu
pescoço. Eu envolvo meu braço em torno dela. Eu gostaria de
poder me forçar a chorar assim. Só posso esperar que os
detetives considerem meu estoicismo relativo como uma
tentativa de permanecer forte por Mina e Mikayla.
Abbott se agacha para fazer uma inspeção mais detalhada do
corpo de Jasper.
— Parece que uma de vocês tem um gancho de direita
impressionante.
— Fui eu — diz Mikayla. A voz dela está tremendo. Eu
coloquei meu braço em volta dos ombros dela também,
puxando-a contra o meu outro lado. — Ele veio até mim, eu
não sabia o que…
Mas Abbott já mudou, apontando para as marcas no
pescoço de Jasper.
— E esses?
As fatias de quando eu segurei a faca em sua garganta se
sobrepõem aos arranhões que Mikayla deu a ele antes, e os
golpes mais recentes de sua briga com Mina. Normalmente
tento apagar todas as evidências forenses das cenas dos meus
crimes, mas, neste caso, quanto mais bagunçado, melhor. Nós
apenas temos que seguir a história.
— Estávamos todos lutando — digo. — Tentando tirar a
faca dele.
Mina acena com a cabeça.
— E então ele correu em nossa direção, e…
Abbott levanta as sobrancelhas.
— Ele correu para a faca?
— Tudo aconteceu tão rápido. — Os olhos de Mina se
enchem de lágrimas novamente. Abbott parece duvidosa, mas
Flynn está olhando para Mina com muito mais compaixão. Os
homens nunca conseguem resistir às lágrimas de uma mulher
bonita.
Outro homem irrompe pela porta, não um dos policiais, mas
Drew, respondendo à mensagem frenética que enviei a ele após
a ligação de Mina para o 190.
Ele para no limiar, absorvendo o corpo, o sangue.
— Querido Deus. Você está…
— Por favor, espere no corredor, Dr. Torres — Flynn diz.
Drew recua conforme as instruções, mas seus olhos não me
deixam.
— Você está bem, Scarlett? Eu cheguei assim que eu…
— Dr. Torres. — Abbott lança um olhar de advertência para
ele. — Na verdade, se vocês pudessem ir para fora. E cuidado
com os passos. — Ela nos conduz para fora do escritório,
evitando a infiltração viscosa do sangue de Jasper. Assim que
entramos no corredor, Drew se move para me abraçar. Abbott
avança para detê-lo.
— Não toque nela — Abbott responde rispidamente. —
Não toque em nenhuma delas.
Drew recua ainda mais, os ombros contra a parede, as mãos
nos bolsos.
— Desculpa.
— Estou bem — digo a ele. — Mas ela está sangrando. — Eu
aponto para o ferimento na cabeça de Mina.
— Onde está a ambulância? — Drew pergunta. — Ela pode
ter uma concussão, ou…
— Eles estão bem atrás de nós — diz Flynn. — Dra. Pierce,
por que você não se senta.
Mina acena para ele ir embora.
— Estou bem. Scarlett é quem precisa de atenção médica.
Ela aponta para minha garganta. Quase me esqueci do
corte; a dor se transformou em um latejar surdo. Mas, embora
o corte no queixo de Mikayla já tenha começado a coagular,
ainda estou sangrando muito. A faca deve ter cortado mais
fundo do que eu pensava. Drew estende a mão como se
quisesse limpar o sangue, mas então ele coloca a mão de volta
no bolso, lembrando-se do aviso de Abbott.
Abbott aperta os olhos para ver minha ferida.
— Sr. Prior fez isso?
Eu começo a responder, mas Mikayla intervém.
— Ele tentou cortar a garganta dela. Eu vi. — Sua voz está
soando mais estável. Ela é melhor nisso do que pensa.
— Scarlett estava apenas tentando me proteger — diz
Mina. — Eu pensei que ele ia matá-la também. Achei que ele
fosse matar todas nós.
Drew balança a cabeça horrorizado. Abbott parece menos
crédula.
— Alguma ideia de por que ele iria atacá-lo, Dra. Pierce?
Mina balança a cabeça.
— Eu mal o conhecia. Mas…
Ela faz uma pausa, deixando que os detetives a vejam refletir
sobre isso, então parece que a ideia acabou de lhe ocorrer. Mina
me chamou de brilhante, mas eu empalideci em comparação a
ela.
— Jasper sempre odiou meu ex-marido — diz ela.
— Isso é verdade — diz Drew. — Jasper costumava ser o
assistente de graduação de Kinnear; ele te disse isso? Eles nunca
se deram bem, eles discutiam constantemente. É por isso que
ele foi transferido para Scarlett.
Os detetives trocam olhares.
— Ele não mencionou isso para nós, não — diz Abbott. —
Mas estávamos cientes.
Os olhos de Mina se arregalam, sua mão voando para a boca.
— Você não acha que ele pode ter algo a ver com…
— É possível — diz Flynn. — Temos motivos para acreditar
que o Sr. Prior visitou a residência do Professor Kinnear na
noite de sua morte.
— Então por que diabos vocês não o prenderam? — A voz
de Mikayla está quebradiça de raiva. Eu aperto meu aperto em
seus ombros. Cuidado.
Abbott lança um olhar furioso para Flynn; claramente ele
não deveria oferecer essa informação.
— Vamos discutir isso na delegacia… depois que verificarem
os ferimentos, é claro. — Ela acena para Flynn. — Certifique-
se de que os forenses obtenham fotos de tudo antes que os
paramédicos as tratem. Dr. Torres, você não se importa de ficar
por aqui? Eu tenho mais algumas perguntas.
Flynn acena para Mina, Mikayla e eu irmos com ele. Eu pego
o olhar de Drew, e ele sorri, tentando me tranquilizar. Ele não
tem ideia do inferno em que poderia se encontrar se dissesse a
coisa errada para Abbott. Mas ele está sozinho por
enquanto. Ele não dirá nada além da verdade, então eu só
espero que eles acreditem nele.
Mikayla nos segue obedientemente no início, mas depois fica
paralisada, olhando pela porta do escritório para o corpo de
Jasper. Ela tinha evitado até agora: realmente olhar para o que
ela fez. Os olhos de Jasper ainda estão abertos, arregalados e
vazios e impossivelmente verdes.
Eu conduzo Mikayla para longe antes que alguém possa ver
a expressão ferida em seu rosto. Abbott parece cética, mas nós
apenas temos que ficar juntas, continuar repetindo a mesma
história. Jasper não está aqui para nos contradizer, e graças ao
pensamento rápido de Mina, ele pode até mesmo acabar
levando a culpa pelo assassinato de Kinnear.
Posso ter um futuro, afinal. Um futuro com ela.
74
CARLY

Eu corro pela escada de incêndio, como se ainda pudesse salvá-


lo. Mas eu sei que é tarde demais.
Wes pousou na calçada ao lado do prédio. Seu pescoço está
dobrado em um ângulo estranho, sangue acumulando em
torno de seu crânio, olhos arregalados e vazios por trás das
rachaduras de teia de aranha em seus óculos.
Ele está morto. Eu o matei.
Eu não choro, nem grito. Em vez disso, enquanto olho para
seu corpo sem vida, meu ritmo cardíaco desacelera e minha
respiração se acalma. Aquela estranha calma tomando conta de
mim novamente.
A porta se abre. Samantha sai com o namorado bem atrás
dela, enxugando o sono dos olhos. Ela me encara
acusadoramente.
— Schiller. O que diabos você está…
Ela vê Wes e seus olhos se arregalam de horror.
— Jesus Cristo, caralho! — seu namorado grita, correndo
para onde Wes está deitado. Ele se agacha, deslizando o braço
por baixo dos ombros de Wes como se fosse pegá-lo e embalá-
lo como um bebê.
— Não o mova! — Samantha grita. Ele se vira para ela com
um olhar impotente. A frente de seu moletom Steelers já está
encharcada com o sangue de Wes. — Ligue para a ambulância.
Seu namorado gentilmente coloca Wes no concreto
manchado de sangue antes de correr de volta para pegar o
telefone. Samantha me encara. Eu sei que pareço muito
calma. Eu deveria estar pirando, gritando, soluçando. Eu
deveria…
— Estávamos no telhado — digo a ela. — E…
— O que diabos vocês estavam fazendo lá? — Ela está
tentando soar como sempre mandona, mas sua voz está
tremendo. — Eu disse a vocês, idiotas, para nunca…
— Eu sei — eu digo. — Eu sinto muito.
Você não está arrependida.
A porta se abre novamente, e o namorado de Samantha corre
de volta para fora, com seu celular pressionado contra o
ouvido. Vários outros alunos saem atrás deles — incluindo
Anna Turner, descalça, o cabelo enrolado em um lenço. Ela
engasga com a visão horrível, segurando a garota ao lado dela.
Então Allison aparece na porta, passando por
todos. Quando ela vê Wes, ela grita mais alto do que as sirenes
que se aproximam.
Ela se vira para mim, olhos vermelhos e selvagens.
— Você fez isso! — ela grita.
— Hadley. — Samantha solta um suspiro, o vapor branco
obscurecendo o estranho olhar vazio em seu rosto. Não sei
dizer se ela não acredita na minha história ou está apenas em
choque.
— É tudo culpa sua! — Allison me empurra com tanta força
que tropeço para trás. — Sua vadia, você fez isso, você o matou!
Ela me empurra de novo, e eu caio no chão, arranhando
minhas mãos em carne viva.
Ela está certa. Isso é tudo minha culpa. Mas não me sinto
culpada. Eu me sinto do jeito que esperava me sentir depois de
me vingar de Bash.
Estou satisfeita.
Allison continua gritando acusações, mas agora ela está
quase tão incoerente quanto inconsolável. Algumas das outras
garotas, Anna entre elas, se fecham em torno dela como uma
concha protetora e a levam de volta para dentro.
Samantha fica para me ajudar a levantar.
— Isso não é culpa sua, Carly — ela diz, soando tão calorosa
e maternal que quase não a reconheço. — Foi apenas um
acidente.
Eu não posso acreditar que é tão simples. Mas quando as
autoridades vierem, repito as palavras de Samantha para
eles. Estávamos no telhado, estava escuro e nenhum de nós
conseguia ver a beirada com clareza. Wes chegou muito perto e
escorregou e caiu. Não havia nada que eu pudesse fazer. Não
deveríamos ter estado lá. Nós deveríamos saber melhor.
Eu consigo chorar para eles também — gradualmente,
lágrimas lentas levam a soluços violentos, como se o choque
estivesse passando, como se a realidade estivesse me
atingindo. Os paramédicos me dão lenços de papel e colocam
um cobertor em volta dos meus ombros. Os detetives deixaram
Samantha sentar-se comigo no banco de trás do carro enquanto
me faziam muitas perguntas, sobre meu relacionamento com
Wes, se estávamos bebendo, por que estávamos lá em primeiro
lugar. Um deles escreve tudo o que eu digo em um caderninho,
enquanto o outro se concentra em meu rosto como se estivesse
tentando memorizá-lo.
Mas eles nunca fazem a pergunta que temo: você o
empurrou? Eles não têm nenhuma razão para suspeitar que eu
fiz algo tão horrível. Samantha mantém o braço em volta de
mim o tempo todo, me segurando no lugar como uma âncora.
Quando meus pais ficam sabendo do que aconteceu, eles
querem me tirar da escola no dia seguinte. Eu os convido a me
deixar ficar até o feriado de Ação de Graças, mas eles não vão
ouvir falar de eu voltar na primavera.
Em poucas horas, Allison esvaziou o armário e foi se
hospedar com algumas garotas do departamento de teatro em
uma casa do outro lado da cidade. Espero que sua acusação se
espalhe pelo campus tão rápido quanto a história chocante da
morte de Wesley Stewart. Eu me preparo, esperando os
sussurros começarem: louca, psicopata, assassina.
Mas, em vez de me evitar, as pessoas parecem atraídas por
mim. Eles se aproximam de mim no refeitório, nos corredores
da Miller, no meio de Oak Grove, só para me dizer o quanto
estão tristes por minha perda. Elas dizem quão amável Wes era,
quão bom amigo. Eu sorrio e agradeço a eles, e o tempo todo
estou pensando naquele sorriso de escárnio feio em seu rosto
quando eu disse a ele para parar de me tocar. Eu me pergunto
quantas outras garotas viram esse lado dele. Eu me pergunto se
Allison já viu isso.
Não a vejo de novo até um dia antes do Dia de Ação de
Graças, quando estou parada do lado de fora de Whit
esperando meus pais me buscarem. O céu está escuro, os
primeiros flocos de uma tempestade de neve estão começando
a cair. Vejo um carro andando pesadamente pela estrada e pego
minhas malas.
O carro se aproxima, os pneus derrapando no asfalto
escorregadio, e percebo que não é o veículo dos meus pais. É
um carro marrom gigante, com um grande amassado na porta
do motorista e placas de Indiana.
O carro de Wes.
Allison sai e começa a andar em direção a Whitten. Ela está
horrível: pálida e magra, os olhos sombreados e as bochechas
encovadas. Ela mudou seu cabelo novamente. É vermelho
agora — muito mais brilhante do que o meu, o vermelho
estridente das luzes de alarme.
Eu coloquei minhas malas no chão. Quando ela me vê, sua
expressão fica fria como uma pedra.
— Não se atreva — ela rosna. — Eu não tenho nada para
dizer para você.
Parece uma frase de uma peça, sua voz soando como se
estivéssemos no palco. Os flocos de neve girando entre nós
tornam a cena ainda mais irreal.
— Foi um acidente. — As palavras vêm tão naturalmente
agora.
— Não. — Allison balança a cabeça. — Ele não teria estado
lá se não fosse por você. Wes era cuidadoso, ele era o
responsável, ele era...
— Eu estava lá — digo. — Eu vi.
O olhar de Allison cai para o chão sob meus pés. Estou bem
no local onde Wes morreu. A equipe do campus tentou por
dias limpar o sangue do concreto, mas o vermelho ainda está lá,
se você souber onde olhar.
Seus olhos se estreitam.
— Você fez isso.
O pânico explode em meu peito, mas eu o reprimo. Estou
ficando melhor nisso a cada dia.
O que eu achei tão fascinante nela? Ela é apenas uma
garota. Uma garota que não tem ideia de quem ela é, que muda
a cor do cabelo como ela troca de calcinha, que está tão
desesperada por atenção que vai aceitar de homens que a
odeiam. Eu gostaria de ter feito mais para protegê-la. Mas ela
fez sua escolha e eu fiz a minha.
— Vai se foder, Carly — diz ela.
Eu sorrio para ela, com tanto frio que ela realmente
estremece.
— Vou sentir sua falta, Allison.
O que quer que ela tenha procurado em Whitten parece
totalmente esquecido. Ela não tira os olhos de mim por um
segundo enquanto ela dá ré para o carro de Wes e entra.
Eu a vejo se afastar. Mesmo quando o carro chega ao fim da
estrada, posso ver seu cabelo ruivo através da cortina de flocos
de neve, brilhante como uma chama.
Quando meus pais chegam, a neve está caindo forte, montes
de neve cobrindo o solo.
Minha mãe pula do banco do passageiro antes que o carro
pare completamente e corre para mim, me pegando nos braços.
— Ah, querida — ela diz. — Como você está? Você está
bem?
— Estou bem — digo, e é a verdade, embora não devesse
ser. Desde que Wes morreu, ou melhor desde que o matei,
tenho dormido melhor do que nunca. Sem pesadelos, sem
acordar com todos os meus músculos contraídos.
— Seu cabelo — ela diz, tocando as pontas vermelhas. Eu sei
o que ela está pensando: meu pai vai odiar.
Que bom.
Ela pega minhas malas e as coloca no porta-malas. Antes de
entrar no banco de trás, raspo minha bota na calçada até que a
mancha vermelha no concreto fique visível novamente.
Meu pai não diz uma palavra enquanto dirige o carro para
longe de Whitten Hall, mas posso sentir sua ira apenas pelo
conjunto de seus ombros, a forma como suas mãos seguram o
volante, o brilho em seus olhos quando encontram os meus no
espelho retrovisor.
Eu encontro o seu olhar — firme, sem piscar — e penso na
maneira como aquela garota no restaurante em Pittsburgh
colocou seus longos dedos bem cuidados sobre os nós dos seus
dedos e riu. Ele pode ser capaz de enganar ela e minha mãe, mas
ele não pode me enganar. Não mais.
Um sorriso se espalha pelos meus lábios, ainda mais frio do
que a neve.
Você é o próximo, filho da puta.
Epílogo
SCARLETT

— Fique parada. — diz Mina.


Ela inclina minha cabeça para o lado para que possa enrolar
a trança com mais força. Eu me inclino contra suas pernas,
fechando os olhos. Nunca vou me cansar da sensação de suas
mãos em meus cabelos.
Ainda estamos nos acomodando em nossa nova casa em
Londres, caixas de livros esperando para serem desempacotadas
nas prateleiras embutidas ao redor da lareira. O apartamento de
um quarto é apertado e arejado, com paredes de gesso
esburacadas e uma vista panorâmica de uma chaminé de tijolos
manchada de fuligem, mas já parece um lar. Porque estamos
aqui juntas.
Abbott e Flynn passaram meses investigando, tentando
recriar a sequência exata de nossa luta com Jasper. Mas no final,
eles não puderam provar quem estava segurando a faca no
momento em que ela entrou em seu peito, se foi acidental ou
intencional — pelo menos, não conclusivamente o suficiente
para se provar no tribunal.
Após a morte de Jasper, parecia que metade do campus
apresentou suas próprias anedotas sobre ele. Até Stright
provou ser estranhamente útil: ele aproveitou todas as
oportunidades para presentear a polícia contos do
comportamento assustador de Jasper e o rancor prolongado
que ele guardou contra Alexander Kinnear.
Já que Jasper me seguiu até a casa de Kinnear no Halloween,
seus registros de telefone celular o colocaram bem na cena do
crime — circunstancial na melhor das hipóteses, mas com a
maioria das evidências concretas comprometidas pelo incêndio
que eu provoquei, e Jasper não estar mais por perto para contar
seu lado da história, foi o suficiente para culpá-lo pelo
assassinato, pelo bem da papelada, pelo menos.
Quando os dois casos foram oficialmente encerrados, Mina
estava praticamente morando comigo — passando todas as
noites na minha cama, suas roupas amontoadas ao lado das
minhas no armário, sua marca favorita de chá ao lado do
fogão. Assim, quando fiquei livre para viajar para Londres,
nem precisei pedir que ela fosse comigo: ela pediu demissão
imediatamente e reservou uma passagem em um vôo alguns
dias depois do meu.
Muitas vezes, nos últimos meses, pensei que estava
condenada, que iria me ferrar e levar Mina comigo — ou
mesmo que a polícia voltaria a focar suas suspeitas em Drew
novamente e eu teria que confessar para limpar seu nome. Ele
foi promovido a chefe de departamento no início do semestre
da primavera e já está provando ser o líder capaz que sempre
soube que ele poderia ser. Um de seus primeiros atos como
presidente foi a introdução de um código de conduta mais
rígido para proteger os alunos de professores e funcionários
predatórios. Não é suficiente, mas é um começo.
Eu sei que Sharon Abbott suspeita do que eu sou, mesmo
que ela não possa provar isso. Se ela descobrir qualquer um dos
meus outros crimes, ainda posso enfrentar as
consequências. Mina também sabe disso, mas ela ficou ao meu
lado durante tudo isso, sem vacilar. Pela primeira vez na minha
vida, não tive que dar conta de cada detalhe sozinha.
Mina termina de amarrar a trança e começa a enrolá-la na
base do meu crânio — sua melhora no penteado que eu
costumava usar para minhas mortes. Ela tem razão: fica mais
preso no lugar, mesmo com movimentos vigorosos.
— Escrevi no Grande Tribunal do Museu Britânico durante
a maior parte do dia — diz ela enquanto enfia grampos no
nó. — Parei na Sainsbury's, na Tottenham Court Road, para
comprar vinho.
— Fiquei no arquivo até às cinco e cinquenta e duas da tarde.
Depois, peguei o metrô direto para casa.
Enquanto eu trabalho na Women’s Academy, Mina está
fazendo progresso em um projeto de pesquisa envolvendo
análise estatística de relatórios de violência doméstica para
prever crimes futuros. Apesar da distração das investigações
policiais, ela conseguiu encerrar o trabalho da força-tarefa antes
de se juntar a mim em Londres — embora, é claro, seu relatório
final para a administração da universidade não mencionou o
fato de que alguns dos suicídios do campus não foram
realmente suicídios.
Mesmo que estejamos do outro lado do oceano, nos
certificamos de checar Mikayla semanalmente, e ela está indo
tão bem quanto se poderia esperar nas circunstâncias: ainda se
destacando em suas aulas e vendo um terapeuta que está
provando ser muito útil, embora Mikayla não tenha
compartilhado a história completa.
Mina coloca outro grampo, prendendo alguns fios de cabelo
soltos na lateral da minha cabeça.
— Comemos vindalho de cordeiro no jantar. Tomei uma
xícara de chá e você vinho, e assistimos a um documentário da
Netflix sobre tumbas egípcias.
Eu concordo. Já passamos por tudo isso antes, mas
concordamos que você nunca pode estar muito preparada.
— Adormecemos por volta das onze.
Ela se inclina sobre meu ombro, olhando para mim.
— Você estará em casa até lá?
— Eu não sei — eu digo. — Vou fazer o meu melhor.
Ela alisa as mãos no meu cabelo.
— Pegue a linha Piccadilly de volta. Vai ser mais rápido a essa
hora da noite… e terá menos passageiros.
Mina foi quem me trouxe este último alvo: Edward
Victorson, um advogado de Southwark que ela viu gritando
com sua esposa no meio do Parque de Potters Fields.
A última vez que segui o casal não tão feliz, o tempo estava
mais quente, e a Sra. Victorson usava um vestido sem mangas
que exibia os hematomas em volta de seus braços como joias
grotescas. Ele continuou dizendo a ela para se cobrir, mas ela
recusou. Sempre que ele estava de costas, ela olhou para ele
como se quisesse estrangular a vida fora dele.
Mas ela não precisa se preocupar; eu farei isso por ela. Esta
noite.
Eu coloco o cinto do meu sobretudo preto em volta da
cintura, em seguida, verifico minha bolsa para ter certeza de
que tenho tudo que preciso. Mina me observa, com a testa
franzida de preocupação. Ela sempre se preocupa quando saio
para caçar. Ela nunca quer discutir os detalhes depois; ela
apenas pergunta:
— Está feito? — E eu aceno, e voltamos direto para nossa
aconchegante vida acadêmica; até a próxima. Para mim, esse
trabalho nunca será terminado de verdade.
Ela abre a porta, deixando o ar noturno enevoado se infiltrar
em nossa entrada. A névoa é tão densa que você mal consegue
ver um pé à sua frente. Exatamente por isso que escolhi atacar
esta noite: Edward sempre sai para beber com seus colegas
depois do trabalho e vai para casa sozinho ao longo do Rio
Tâmisa. Ele nunca vai me ver chegando.
Mina me puxa para um beijo, as pontas dos dedos passando
sobre a cicatriz rosa serrilhada em minha clavícula — meu lindo
presente de despedida de Jasper Prior.
— Tenha cuidado — ela sussurra contra minha boca.
Ela parece tão linda, encostada no batente da porta, olhos
brilhando na luz fraca, cachos envoltos em névoa. Às vezes não
consigo acreditar que ela é real. Não posso acreditar que Mina
pode olhar para mim e ver tudo — a mulher e o monstro — e
me amar de qualquer maneira. Desde a noite em que empurrei
Wes daquele telhado, pensei que não tinha escolha a não ser
viver minha vida em pedaços irregulares. Mas por enquanto,
pelo menos, posso ter tudo.
— Não espere acordada. — digo a ela.
Mina sorri.
— Você sabe que não pode me impedir.
Agradecimentos
Tenho que começar agradecendo minha amiga e companheira
guerreira Emily Thiede, sem a qual este livro nunca teria
existido. Eu realmente deveria enquadrar esse seu tweet!
Grande gratidão, é claro, à minha editora, Kate Dresser, e à
minha agente, Sharon Pelletier. Kate, não só você fez minha
escrita melhor, você me fez melhor. Obrigada por ser uma
professora brilhante e uma defensora feroz. E Sharon, quando
assinei com você, pensei que você fosse a minha agente dos
sonhos. Agora que já se passaram alguns anos, posso dizer com
certeza: trabalhar com você está muito além dos meus sonhos.
Obrigada também a Molly Gregory, Jessica Roth, Jen
Bergstrom, Abby Zidle, Anabel Jimenez, Caroline Pallotta,
Christine Masters, Anne Jaconette, Erica Ferguson e todos os
outros da Scout Press. E a Laywan Kwan pela capa
deslumbrante e assustadora — talvez eu nunca pare de olhar
para ela!
Wendy Heard, obrigada por me ajudar a me tornar uma
melhor (fictícia) assassina e por ser a melhor irmã-esposa gótica
que uma garota poderia pedir. Halley Sutton, acredito que o
destino nos uniu, e estou ansiosa por sua futura fenomenal
carreira de escritora e nossa futura dominação feminista do
mundo. E uma mensagem também para Hannah Whitten,
Bibi Cooper, Lisa Catto e todos os outros que leram os
primeiros trechos de They Never Learn ou ofereceram
conselhos enquanto eu trabalhava nele. Eu escrevi Temper
principalmente sozinha, mas este livro eu escrevi cercado por
uma comunidade de mulheres incrivelmente inteligentes,
engraçadas e fodonas, e isso fez toda a diferença.
Finalmente, obrigado à minha família: minha mãe, meus
avós, minha “tia” Patty e meus fiéis assistentes de redação, Finn
e Tallie (que nunca deixam de sentar no meu teclado quando
pensam que estou trabalhando demais). E para meu parceiro,
Nate: bem quando eu acho que não posso te amar mais, você
vai e prova que estou errada. Você merece tudo o que deseja na
vida e muito mais.

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