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aprendizagem-de-criancas-com-deficiencias-multiplas

Publicado em NOVA ESCOLA 01 de Outubro | 2006

Aluno em foco

A aprendizagem de
crianças com deficiências
múltiplas
Andréia Pereira Gil, 12 anos, é surdocega. Não ouve e não
enxerga quase nada - feixes de luz talvez, e só pelo olho
direto. A alegria descoberta no vaivém do balanço é uam
das maneiras que ela encontrou, na escola, de tomar
contato com o mundo - apenas um dos muitos jeitos de
sentir a vida
Débora Didonê

Sensações. É
por meio delas
que as
pessoas com
deficiência
múltipla
aprendem
sobre as
coisas que
estão a sua
volta. A
professora
Carolina
Bosco,
especialista
nesses casos,
Andreia Pereira Gil, balançando no pátio estimula a
da EMEF Doutor João Alves dos Santos. descoberta da
Foto: Kriz Knack
sensibilidade
com diversos
tipos de toque
e movimento, como numa recente cena vista na EMEF Doutor João Alves dos
Santos, em Campinas, a 90 quilômetros de São Paulo. Ela dá a mão para
Andréia equilibrar-se numa mureta. A menina apóia-se no seu braço para
descer e as duas vão de mãos dadas até o pátio. A aluna abraça uma árvore e
passa a mão sobre a casca. O contato arranca de Andréia um raro sorriso.

A cena não chamaria tanta atenção se não fosse o jeito diferente de ser da
jovem. Ela gira a cabeça, baba e vive com o braço direito levantado. O grande
desafio em relação a Andréia é criar um modo de comunicação para que ela
reconheça lugares e pessoas. Foi a tarefa assumida por Carolina. A menina
também conta com a ajuda de Carmen Sílvia Dias, sua professora da 2ª série,
onde tem 30 colegas. Ambas procuram maneiras de explicar por que ela vai à
escola e o que todos fazem por lá.

Carolina formou-se em Pedagogia com ênfase em Deficiência Mental na


Universidade de São Paulo e é pós-graduada em Arte em Educação Especial
pela Universidade de Paris. Ela já havia trabalhado com alunos com
deficiência múltipla (associação de duas ou mais deficiências, como mental e
física ou auditiva, visual e física), mas Andréia é a primeira que atende em
escola regular. Ali, elas cumprem um cronograma, religiosamente, toda
segunda, quarta e sexta-feira. É quando Andréia mexe com sucata, aprende a
escovar os dentes, caminha pelo pátio da escola, sente a vibração da música
colocando as mãos sobre um rádio portátil e brinca no balanço. "É um
trabalho de reorganização corporal, percepção tátil e de volume", diz
Carolina. Aos poucos, a menina aprende a lidar com o próprio corpo.

Carmen foi a única professora da escola que se dispôs a acolher Andréia. A


menina está com ela desde a 1ª série. "No começo, parecia que seria
impossível controlá-la. Ela levantava no meio da aula e mexia em tudo", diz.
"Não sabia usar o tato para se comunicar e logo se cansava de ficar na
carteira apalpando o alfabeto móvel." Por isso, a união do trabalho de
Carmen e Carolina fez a diferença. "Uma criança com deficiência precisa de
dois professores", afirma Carolina. "O de classe, que atua na área da
aprendizagem de maneira geral, e o especializado, que trabalha na dos
distúrbios." Por isso, enquanto Carolina desperta o lado comunicativo de
Andréia, Carmen cria atividades para integrá-la à turma. Na roda da conversa,
onde as crianças desabafam até sobre o desgosto de ser banguelas, Carmen
abriu um espaço para elas interagirem com a colega surdocega. Como
Andréia está aprendendo a usar o toque para reconhecer as pessoas, cada
um pensou num sinal só seu que ela pudesse sentir. Daiane Gomes de Lira, 8
anos, sempre conduz a mão de Andréia para seus cabelos crespos: é a marca
que a identifica. A professora Carolina, por sua vez, faz a menina pegar em
seu anel.
Também é pelo tato que Andréia começa a entender a rotina da escola. "Para
iniciar qualquer atividade, mostra-se o ambiente onde ela está", diz Carolina.
Na sala de aula, no começo do dia, fazem-na apalpar a porta, a lousa e o giz.
Aos poucos, a menina demonstra mais confiança em quem a toca. "Já permite
com mais facilidade que movimentem sua mão direita", conta a professora.
Tempos atrás, ela puxaria o braço em sinal de rejeição. Afinal, habituou-se
desde criança a mantê-lo levantado para mexer a mão em frente ao olho
direito, talvez para perceber as luzes que a pouca visão permite. "Para ela, é
como se fosse uma sensação de prazer", diz Carolina. "Nosso desafio é fazê-la
baixar o braço para ela recuperar o equilíbrio do corpo", afirma o professor
de Educação Física Renato Horta Nunes, que faz a aluna andar de mãos
dadas com os colegas durante as aulas.

Prazer maior que esse Andréia só encontra no balanço da escola. Quando


está nele, embalada, chega a gargalhar (mesmo sem nunca ter visto ou
ouvido alguém fazer isso). Estica-se e joga-se para a frente e para trás,
segurando a corda com firmeza. "É como se ela reordenasse o equilíbrio do
corpo", explica Carolina. Um ano atrás, a menina chegava à escola no colo da
mãe ou do irmão, ficava descalça e perambulava pelos corredores sem
destino. Com a chegada de Carolina, Andréia já usa uma colher para comer,
segura o copo ao tomar água, lava as mãos e fica sentada em sua carteira
durante as aulas.

A Matemática nas mãos


Toda escola tem obrigação de receber qualquer aluno, mas não basta
simplesmente matricular as crianças com deficiência múltipla. "É preciso ter
estrutura", diz Carolina. Nessa hora, entram em cena os educadores que dão
o melhor de si para atendê-las.
Em Brasília, a professora de Matemática Patrícia Renata Marangon, da 6a
série da EE EC-405 Sul, não teve muitas dúvidas sobre o que fazer quando, no
ano passado, recebeu em sua classe Paulo Santos Ramos, aluno cego, com
apenas 30% da audição num ouvido e pouco movimento nos braços. Nas
primeiras aulas, ela percebeu a afinidade do garoto com números e contas e
a vontade que tinha de solucionar problemas. Decidiu inscrevê-lo numa
olimpíada nacional de Matemática. Paulo, então com 16 anos, conquistou
uma das 300 medalhas de ouro concedidas pelo torneio, que teve cerca de
10,5 milhões de participantes.
Sem uma versão da prova em braile, Patrícia adaptou ao material concreto as
figuras geométricas que apareciam em algumas questões: "Pensei numa
forma de fazer Paulo raciocinar com autonomia, sem a interferência dos
professores que fariam a leitura das questões". Deu certo. A compreensão
das ilustrações ficou por conta da sensibilidade das mãos do garoto, que
apalparam figuras feitas pela professora com palitos de dente, EVA, cartolina
e papel cartão.
Paulo foi o primeiro aluno com deficiência que Patrícia recebeu. O único
apoio especializado que a escola oferecia na época era o de um professor
itinerante que fazia transcrições para o braile. "Foi difícil lidar com a falta de
audição", diz Patrícia. Mas ela não se deu por vencida. Sentava perto do
aluno, aumentava o tom de voz dentro da sala de aula e falava bem perto do
ouvido do menino, o que a deixava exausta. Antes que perdesse a voz,
lembrou-se de uma caixa de som e um microfone que a escola usava em
eventos e passou a dar suas aulas com o equipamento.

Ele não nasceu cego. Por isso, lembra de imagens e formas. Aos 2 anos,
durante as férias que passou com os pais em Cuba, levou um tombo
enquanto brincava. Na volta, seu joelho não desinchava. Os pais levaram-no
de um médico a outro para entender o porquê do hematoma persistente.
"Foi diagnosticada a artrite reumatóide juvenil", lembra a mãe do menino,
Maria Lima dos Santos. Uma em cada mil crianças tem essa doença, uma
inflamação crônica que afeta as articulações, os olhos e o coração.
Aos 3 anos, o pequeno entrou na escola regular com problemas nos joelhos e
nos olhos. "Quando sua letra começou a aumentar, me aconselharam a
colocá-lo numa escola especial", diz Maria, que se recusava a ver seu
primeiro filho, "tão lindo e perfeito", aprender braile. "Tive aversão ao braile
até descobrir como seria necessário", admite ela, que chegou a afastar Paulo
dos estudos por causa disso.

Quando Paulo concluiu a escola especial, onde cursou as duas primeiras


séries, voltou à escola comum para continuar a Educação Básica. Sugeriram
que ele repetisse o ano. "Os professores afirmaram que ele se adaptaria
melhor, já que tinha saído de uma turma de quatro alunos e entrado numa
de 20", lembra a mãe. Ao chegar à 6ª série, o aluno, defasado, teve a sorte de
deparar com a professora Patrícia, que o levou à olimpíada, apesar da
descrença de alguns de seus colegas de trabalho. "Ele tem uma força de
vontade que nunca vi em crianças sem deficiência", diz ela. A imprensa
divulgou o desempenho do menino e seu feito teve repercussão. "Recebeu
até convite de universidade para contar sua história", conta a mãe. Aos 17
anos e com cara de 12 anos (parou de crescer por causa dos remédios que
tomou), Paulo não tem medo de público. Adora falar. Só uma otite pode
impedi-lo, pois ela causa dor e surdez. Mas já está aprendendo libras para
atravessar momentos como esse. Quem conta é Maria, que superou seu
horror a braile.

"Ele quer se casar e trabalhar", diz ela. O menino que não tomava banho
sozinho nem andava com a cadeira de rodas em casa hoje é praticamente
atleta. Faz exercícios abdominais e flexões, fisioterapia e natação para
recuperar os movimentos das pernas e evitar cirurgia.

Apaixonados pela escola


Enquanto Paulo se exercita, Matheus Gomes de Sousa, 7 anos, faz cada curva
com a cadeira de rodas. "A gente pensa que ele vai capotar", conta a mãe,
Rita de Abreu de Souza, de Rio Branco. Ele é espoleta e agitado desde a pré-
escola, quando plantava pé de cebola na horta, brincava de escalar no morro
de terra, rastejava pelo chão imitando cobra e competia em natação.
Ninguém diria. Matheus, que sofre de hidrocefalia, carrega uma válvula
implantada no corpo para drenar o excesso de líquido no cérebro. Também
tem deficiência mental, paralisia nas pernas e usa fraldas. Está na 1ª série da
EEEF José Sales de Araújo e vai muito bem. "Lê tudo sozinho para fazer os
deveres de casa", diz Rita.

Matheus não é um medalhista em Matemática, mas a professora Damiana


dos Santos Gomes não vê nada de errado nisso. "É uma dificuldade com a
qual estou acostumada", diz. O diagnóstico de deficiência mental nunca
serviu de barreira para seu bom desempenho na escola. "Ele nem precisa de
sala de recursos para desenvolver-se intelectualmente", conta ela.
O garoto depende da ajuda alheia somente para a troca de fraldas. Por causa
da paraplegia, não controla a vontade de ir ao banheiro. Sua mãe cobrou
esse cuidado da escola. "Falei que Matheus precisaria ser trocado nos
horários certos", conta Rita. Nada disso o intimida. Se for preciso, vai à sala
de aula aos domingos de tanto que gosta de estudar. Até reclamou da mãe -
que é professora - para o pai quando ela cogitou tirá-lo de lá.

Matheus freqüentou a classe especial até os 4 anos, mas foi na regular que
fez amigos. "Antes, ele quase não convivia com crianças", diz Rita. Já a
garotada sem deficiência instigou-o a explorar o próprio corpo. "O convívio
com outros modelos de comportamento estimula o lado sadio da criança",
diz a especialista Carolina Bosco.

A aluna Sandy Gracioli Sartori, 5 anos, só começou a engatinhar ao entrar na


EEI Fazendo Arte, em Rio Claro, a 180 quilômetros de São Paulo. Ela já venceu
muitos obstáculos. Nasceu com pouco mais de 1 quilo, aos seis meses de
gestação. Das mãos do obstetra, foi direto para a unidade de terapia
intensiva, onde ficou 15 dias. Foi entubada. Passou por uma cirurgia de duas
horas e meia. Sofreu parada respiratória e falta de oxigenação no cérebro.
Usou bolsa no intestino durante dois anos.

Hoje, sua mãe, a dona-de-casa Silmara Gislaine Sartori, não permite que
deixem Sandy o tempo todo na cadeira de rodas na escola. "Ela começou a
engatinhar e se mexer na cama elástica porque via as outras crianças
brincando", diz. Sandy só fica na cadeira para comer ou ser levada à
videoteca. E muitos se animam a ajudar a empurrar a colega. Ela não gosta
muito dessa disputa e, quando é contrariada, grita e enruga o rosto como
quem vai chorar. "Quando ela bate palma e manda beijo, quer dizer que está
gostando do ambiente", conta a professora Camila Ferreira Lopes, que
aprendeu a interpretar os gestos da pequena geniosa.

Camila foi bem preparada pelas psicólogas da escola para receber Sandy na
turma do maternal. Ela também conversou com a fisioterapeuta, a
fonoaudióloga e os pais da menina diversas vezes. Sandy não andava nem
falava, só comia alimentos pastosos e tinha o raciocínio um pouco lento.
Mesmo com tantos avisos e informações, Camila ficou travada quando se viu
diante da aluna. "Eu não sabia como falar com ela, como segurá-la, que tipo
de brincadeira fazer", diz. Enquanto isso, a meninada de 3 anos não se
deixava abalar. "A relação entre as crianças e Sandy era muito carinhosa. Não
sei por que me sentia tão apreensiva."

Atividades e estratégias

Rotina da escola
Estabeleça símbolos na sala de aula para que um aluno surdocego
compreenda, aos poucos, sua rotina escolar: ao entrar na sala, ele toca a
porta, o quadro e o giz, sempre na mesma ordem e com a ajuda do professor
ou de um colega; antes de iniciar uma atividade, ele pode passar as mãos nas
folhas de um caderno. O mesmo mecanismo serve para a hora do lanche e
de ir embora.

Roda de brincadeira
Observar o comportamento das crianças sem deficiência ajudaaquelas que
têm deficiência múltipla a se desenvolver. Por isso, faça jogos e brincadeiras
que reúnam a turma no final das aulas. Se o aluno com paraplegia, por
exemplo, tem dificuldade para se movimentar, sente-o no chão (se o médico
autorizar), em roda com os demais, e proponha uma atividade em que eles
usem as mãos e os braços.

Incentivo ao movimento
É possível estimular a criança de pré-escola que não engatinha.Deitada numa
cama elástica, ela sente as oscilações causadas pela atividade dos colegas. Vê-
los engatinhando e rolando a levaa tentar os mesmos movimentos.Se o
médico autorizar, deixe-a o mínimo tempo possível na cadeira de rodas. Ela
se sentirá instigada a se mexer ao se sentar com os colegas num tapete ou
tatame.

Histórico do aluno
Pesquise tudo sobre a criança: de onde ela vem, como é a família,como se
comunica e quais as brincadeiras preferidas. Na avaliação, valorize a evolução
do aluno, dentro de seus limites, e não os resultados. Afinal, em certos casos
há um grande avanço entre chegar sem falar e depois participar das aulas
oralmente.

Quer saber mais?

Contatos
. EMEF Doutor João Alves dos Santos, R. Manoel Tomas, 288, 13067-170, Campinas, SP, tel. (19) 3281-2694
. EE EC-405 Sul, SQS 405, Área Especial, 70239-000, Brasília, DF, tel. (61) 3901-7694
. EEEF José Sales Araújo, Av. Pastor Muniz, Conj. Universitário 2, s/no, 79915-300, Rio Branco, AC, tel. (68) 3229-
4141
. EEI Fazendo Arte, Av. 32A, 112, 13506-675, Rio Claro, SP, tel. (19) 3534-7600
Bibliografia
. Deficiência Múltipla e Educação no Brasil, Mônica Kassar, 113 págs., Ed. Autores Associados, tel. (19) 3289-5930,
24 reais
. Inclusão - Um Guia para Educadores, Susan e Willian Stainback, 456 págs., Ed. Artmed, tel. (51) 3027-7000, 64
reais

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