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CLINICS 2012;67(10):1125-1126 D0l:10.

6061/clinics/2012(10)01

EDITORIAL
Transtorno de déficit de Atenção / hiperatividade:
Uma perspectiva científica
Guilherme V. Polanczyk,UI Erasmo Barbante CaseNa,m Eurípedes Constantino Miguel,I'II Umbertina Conti ReedIV
' Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Departamento de Psiquiatria, Disciplina de Psiquiatria da Infância e Adolescência, São Paulo/SP, Brasil." Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) Instituto de Psiquiatria, Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Psiquiatria do Desenvolvimento para Infância e
Adolescência (INCT-INPD), São Paulo/SP, Brasil.Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Instituto da Criança, Departamento de
IV
Pediatria, São Paulo/SP, Brasil. Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Departamento de Neurologia, Disciplina de Neurologia Infantil, São Paulo/SP, Brasil.

Conforme dados da Associação Médica Americana, o Atualmente não há marcadores biológicos, eletrofisiológicos,
transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) é nem por neuroimagem que tenham utilidade clínica para fins
"um dos transtornos mais bem pesquisados da medicina e a de diagnóstico do TDAH. Portanto, o treinamento clínico e o
totalidade dos dados sobre sua validade são muito mais conhecimento são essenciais para estabelecer um diagnóstico
convincentes do que os da maior parte dos transtornos mentais preciso, porque os sintomas do TDAH devem ser diferenciados
e inclusive de muitos problemas médicos”. (1). Apesar deste do desenvolvimento normal e outras causas precisam ser
corpo de pesquisa robusto que torna o TDAH um dos excluídas. Também podem ser identificadas comorbidades.
“transtornos mais bem pesquisados na medicina", ainda falta Estudos etiológicos de avaliação de famílias, crianças
conhecimento acerca desse transtorno no Brasil. Para abordar adotadas e gêmeos com TDAH identificaram uma contribuição
essa lacuna, apresentamos uma visão geral da atual genética forte, com uma taxa de hereditabilidade agregada de
compreensão científica do TDAH. 76% (7). Metanálises identificaram os genes que participam dos
O TDAH é um transtorno crônico, com início na infância, sistemas dopaminérgico e serotoninérgico, entre outros
que afeta aproximadamente 5% das crianças e adolescentes no sistemas, como genes de susceptibilidade. Fatores ambientais,
mundo, independentemente do país no qual o portador vive tais como exposição intrauterina ao tabaco, prematuridade e
(2). Este transtorno persiste até o início da fase adulta em baixo peso ao nascer (parecem aumentar a susceptibilidade ao
aproximadamente 65-75% dos casos (3). O TDAH tem uma TDAH (5). De forma semelhante aos dados sobre outras
apresentação clínica variável que inclui desatenção, doenças complexas, tais como doenças cardiovasculares e
diabetes, os dados atuais referentes ao TDAH sugerem que
hiperatividade ou impulsividade (4). Os sintomas do TDAH
múltiplos alelos de risco responsáveis por pequenos efeitos e
causam um comprometimento funcional significativo, como
fatores ambientais participam da etiologia do TDAH. Há
problemas sociais e familiares, baixo aproveitamento escolar e
evidências recentes que também sugerem que a variação do
um risco maior de evasão escolar; esse comprometimento
número de cópias desempenham um papel importante (8).
funcional frequentemente leva à baixa-autoestima e tem uma
Estudos neuropsicológicos e de neuroimagem
influência negativa sobre o desenvolvimento emocional (4). O
demonstraram um claro substrato biológico para o TDAH,
TDAH está também associado a desfechos físicos ruins, tais
envolvendo os sistemas neurais e áreas envolvidas na atenção,
como lesões, inclusive acidentes de trânsito, gravidez (9). Muitos estudos diferentes demonstraram que as redes
prematura e doenças sexualmente transmissíveis, entre outros. neurais do córtex dorsolateral pré-frontal, cíngulo dorsal
Indivíduos com TDAH também correm um risco significativo anterior, o parietal, o corpo estriado e o cerebelo estão
atual ou futuro de desenvolver comorbidades psiquiátricas, principalmente envolvidos no TDAH ( (9,10). Além disso, um
tais como transtornos de conduta, ansiedade e transtornos de estudo marco conduzido pelo Instituto de Saúde Mental dos
humor, comportamento antissocial e abuso de substâncias (5). Estados Unidos demonstrou um atraso acentuado na
O diagnóstico é estabelecido segundo critérios clínicos maturação cerebral de crianças com TDAH, com o pico de
confiáveis, que exigem um padrão persistente de desatenção espessura cortical ocorrendo aproximadamente três anos
e/ou hiperatividade/impulsividade, que devem levar à má depois que em crianças com TDAH, em comparação às
adaptação e inconsistência com a idade desenvolvimental da crianças controle sadias. O atraso foi mais proeminente nas
criança (6). Os sintomas devem causar dificuldades regiões pré-frontal, relacionada aos mecanismos de controle da
significativas quanto ao funcionamento social, acadêmico ou atenção e funções executivas (11).
ocupacional. Os sintomas devem ocorrer, frequentemente, em Mais de 200 estudos randomizados controlados avaliaram os
mais de um contexto e devem persistir por pelo menos seis tratamentos farmacológico, psicossocial e alternativo para
meses. Além disso, o diagnóstico só pode ser feito se pelo TDAH (12). A medicação traz melhorias acentuadas nos
menos alguns sintomas comportamentais estiverem presentes sintomas cardinais e é o tratamento de escolha para crianças
em idade escolar, adolescentes e adultos (12). Contudo, a
antes da idade de sete anos (6).
intervenção comportamental é o tratamento de escolha para
crianças em idade pré-escolar. Os estimulantes são o
Email: gvp@usp.br tratamento de primeira linha e vêm sendo usados para tratar o
Tel.: 55 11 2661-7594/2661-7650 TDAH há décadas, com dados consistentes que demonstram a
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ADHD: A Scientific Overview CLINICS 2012;67(10):1125-1126
Polanczy GV et al.

efeito agregado de 0,7-1 em crianças e 0,7-0,9 em adultos na REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


redução dos sintomas de TDAH (14,15). Os não estimulantes 1. Goldman LS, Genel M, Bezman RJ, Slanetz PJ. Diagnosis and treatment of
(ex.: atomexetina e clonidina) apresentam um efeito agregado attention-deficit/hyperactivity disorder in children
and adolescents. Council on Scientific Affairs, American Medical Association.
de 0,6 em crianças e 0,4 em adultos para os mesmos sintomas JAMA. 1998;279(14):1100-107.
(12,14). 2. Polanczyk G, de Lima MS, Horta BL, Biederman J, Rohde LA. The worldwide
Apesar da capacidade robusta dos medicamentos em prevalence of ADHD: a systematic review and metaregression analysis. Am J
reduzir os sintomas do TDAH, há um reconhecimento cada Psychiatry. 2007;164(6):942-8, http://dx.doi.org/ 10.1176/appi.ajp.164.6.942.
3. Wilens TE, Faraone SV, Biederman J. Attention-deficit/hyperactivity disorder
vez mais amplo da relevância de uma abordagem abrangente in adults. JAMA. 2004;164(5):619-23, http://dx.doi.org/
com intervenções multimodais, que também estão voltadas 10.1176/appi.ajp.292.6.942.
para as questões associadas, tais como dificuldades escolares, 4. Swanson JM, Sergeant JA, Taylor E, Sonuga-Barke EJ, Jensen PS, Cantwell DP.
Attention-deficit hyperactivity disorder and hyperkinetic disorder. Lancet.
disfunções familiares, baixa autoestima e outras comorbidades 2007;164(6):942-8, http://dx.doi.org/10.1016/ 10.1176/appi.ajp.164.6.942.
(5).É importante identificar os desfechos alvo para elaborar o 5. Biederman J, Faraone SV. Attention-deficit hyperactivity disorder and
melhor plano de tratamento. Para a maioria dos pacientes, são hyperkinetic disorder. Lancet. 2007;164(6):942-8,
http://dx.doi.org/10.1016/S0140- 10.1176/appi.ajp.164.6.942.
necessárias outras intervenções de diversos tipos e 6. American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental
intensidades. As necessidades do indivíduo determinam que Disorders, 4th ed. Washington, DC.: American Psychiatric Press, 1994.
profissionais estarão envolvidos no tratamento e quais técnicas 7. Biederman J. Attention-deficit/hyperactivity disorder: a selective overview.
Biol Psychiatry. 2005;57(11):1215-20, http://dx.doi.org/10.1016/
deverão ser utilizadas (13).
j.biopsych.2004.10.020.
É possível concluir que o TDAH é um transtorno 8. Williams NM, Zaharieva I, Martin A, Langley K, Mantripragada K, Fossdal R,
extensivamente estudado, com dados de alta qualidade que et al. Rare chromosomal deletions and duplications in attention-deficit
demonstram sua validade. Crianças e adolescentes com TDAH hyperactivity disorder: a genome-wide analysis. Lancet. 2010;376(9750):1401-
8, http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(10)61109- 9.
apresentam um comprometimento significativo e correm um 9. Castellanos FX, Tannock R. Neuroscience of attention-deficit/hyperac- tivity
risco maior de terem um déficit no seu desenvolvimento social, disorder: the search for endophenotypes. Nat Rev Neurosci. 2002;3(8):617-28.
emocional e educacional. Apesar das preocupações existentes 10. Castellanos FX, Lee PP, Sharp W, Jeffries NO, Greenstein DK, Clasen LS, et al.
Developmental trajectories of brain volume abnormalities in children and
com diagnósticos errados, que podem estar relacionados com a adolescents with attention-deficit/hyperactivity disorder. JAMA.
pequena quantidade de profissionais bem treinados nessa 2002;288(14):1740-8, http://dx.doi.org/10.1001/jama.288. 14.1740.
área, os estudos conduzidos no Brasil indica que 11. Gornick MC, Addington A, Shaw P, Bobb AJ, Sharp W, Greenstein D, et al.
Association of the dopamine receptor D4 (DRD4) gene 7-repeat allele with
aproximadamente 95% das crianças com TDAH não recebem children with attention-deficit/hyperactivity disorder (ADHD): an update.
tratamento (16). A falta de treinamento adequado, o estigma e Am J Med Genet B Neuropsychiatr Genet. 2007;144B(3):379-82.
os conceitos errados são barreiras importantes para o 12. Pliszka SR, Crismon ML, Hughes CW, Corners CK, Emslie GJ, Jensen PS, et
reconhecimento e tratamento do TDAH e devem ser al. The Texas Children's Medication Algorithm Project: revision of the
algorithm for pharmacotherapy of attention-deficit/hyperactivity disorder. J
combatidos ativamente. Am Acad Child Adolesc Psychiatry 2006;45(6):642-57.
13. Pliszka S; AACAP Work Group on Quality Issues. Developmental trajectories
Conflito de Interesses: Guilherme V. Polanczykhas foi of brain volume abnormalities in children and adolescents with attention-
palestrante e/ou consultor de Eli Lilly, Novartis, Janssen- deficit/hyperactivity disorder. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry.
Cilag, e Shire Pharmaceuticals, desenvolveu materiais 2007;46(7):894-921.
14. Faraone SV, Glatt SJ. A comparison of the efficacy of medications for adult
educativos para a Janssen-Cilag e recebe apoio irrestrito à attention-deficit/hyperactivity disorder using meta-analysis of effect sizes. J
pesquisa da Novartis e do Conselho Nacional de Clin Psychiatry. 2010;71(6):754-63, http://dx.doi.org/
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, Brasil). 10.4088/JCP.08m04902pur.
15. Faraone SV, Buitelaar J. Comparing the efficacy of stimulants for ADHD in
Erasmo B. Casella foi palestrante e/ou consultor da Eli Lilly, children and adolescents using meta-analysis. Eur Child Adolesc Psychiatry.
Novartis, Janssen-Cilag, e Shire Pharmaceuticals. Euripedes C. 2010;19(4):353-64, http://dx.doi.org/10.1007/s00787-009- 0054-3.
Miguel e Umbertina C. Reed não relataram conflito de 16. Polanczyk G, Rohde LA, Szobot C, Schmitz M, Montiel-Nava C, Bauermeister
interesses. JJ. ADHD treatment in Latin America and the Caribbean. J Am Acad Child
Adolesc Psychiatry. 2008;47(6):721-2, http://
CONTRIBUIÇÕES DO AUTOR dx.doi.org/10.1097/CHI.0b013e31816c0008.
Polanczyk GV e Casella EB prepararam a primeira versão deste trabalho. Miguel
EC e Reed UC foram responsáveis pela revisão da primeira versão do trabalho.
Todos os autores aprovaram a versão final do trabalho.

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