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Fédération Internationale de Médecine Sportive

Posicionamento Oficial

Treinamento físico excessivo em crianças e adolescentes

É de aceitação geral que a aptidão física é importante para Por muitas razões que serão apresentadas, esse treinamen-
um desenvolvimento ideal de crianças e adolescentes. Por to intensificado não tem justificativa fisiológica nem educa-
essa razão, os programas de aptidão física para essa faixa cional. Ademais, leva com freqüência a um estresse físico e
etária devem ser recomendados e estimulados1,2. mental extremamente grande durante o treinamento e a com-
As autoridades médicas e de saúde pública devem consi- petição.
derar a aptidão física de crianças e adolescentes como parte O esporte competitivo de alto nível na infância não só tem
da sua esfera de competência e responsabilidade. As crian- limites biológicos de rendimento mas também traz riscos de
ças têm uma necessidade natural de comparar sua força, ha- natureza psicológica e de desenvolvimento social. Um pre-
bilidade, velocidade e endurance em maturação com as de paro intensivo para competições desportivas de alto nível
outras crianças. Jogos livres, exercício e esportes proporcio- pode provocar abandonos e/ou crianças com problemas psi-
nam uma forma natural para que as crianças e os adolescen- cológicos. Tais competições desportivas podem estar organi-
tes adquiram um nível adequado de aptidão. zadas a tal ponto (por adultos) que reste pouco ou nenhum
Ocorreu nos últimos anos grande aumento do número de lugar para as relações e o desenvolvimento sociais.
crianças e adolescentes que participam de esportes organiza- O conteúdo e os métodos de treinamento devem ser ade-
dos. O esporte de competição contribui para o desenvolvi- quados para as crianças. A diversidade de movimentos e o
mento físico, emocional e intelectual de crianças e adoles- condicionamento físico geral devem ter prioridade, com a
centes. A experiência no esporte pode desenvolver a auto- especialização sendo deixada para mais tarde. Os ambientes
confiança e estimular o comportamento social3. Por todas de treinamento devem ser organizados de forma a proporcio-
essas razões, o esporte de competição para crianças deve ser nar isso3.
considerado de forma positiva. Deve-se realizar um exame clínico consciencioso, que ga-
O esforço qualitativo e quantitativo dedicado ao desen- ranta que sejam admitidas para competição somente crian-
volvimento de futuras carreiras em nível de esporte de elite ças para as quais não haja riscos para a saúde. Ademais, deve-
envolve uma série de influências biológicas e pedagógicas. se dar conselhos sobre as diversas possibilidades para parti-
A razão para dedicar cada vez mais tempo para o treinamen- cipação em esportes e para supervisão médica durante o trei-
to é que um desempenho ideal só pode ser atingido após lon- namento. Em algumas crianças para as quais a supervisão
go período de desenvolvimento. Para se destacar nos espor- médica, os métodos de treinamento ou a modalidade sejam
tes, hoje, o atleta jovem é obrigado a treinar mais, de forma inadequados para o grupo etário, podem ocorrer prejuízos
mais intensa e iniciando em idade mais precoce. Deve-se para a saúde e isso merece uma atenção séria de todos os
distinguir os esportes que exigem treinamento inespecífico profissionais envolvidos nos programas desportivos.
em ampla gama de atividades, daqueles nos quais o treina- Um número cada vez maior de lesões por sobrecarga está
mento para competição deve começar suficientemente cedo, sendo registrado em crianças que praticam esportes organi-
para a aquisição de habilidades específicas e para atingir um zados. Estas lesões são o resultado de sobrecargas freqüen-
desempenho de alto nível. tes, que causam microtraumatismos aos tecidos dos mem-
bros superiores ou inferiores, submetidos a tensões excessi-
vas pelo treinamento4-6. As crianças são mais suscetíveis a
lesões por sobrecarga do que os adultos devido à presença de
Aprovado pelo Comitê Executivo da FIMS, na sessão de 6 de novembro de tecidos em desenvolvimento e da placa de crescimento, além
1990, em Amsterdã, Holanda. do próprio processo de crescimento que pode produzir dese-
Traduzido e publicado com permissão, do original “Excessive physical trai- quilíbrios musculares em torno das articulações, aumentan-
ning in children and adolescents”. do o risco de lesões4,6. Estudos biomecânicos sugerem que a
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placa de crescimento é mais vulnerável ao estresse nas crian- soma das habilidades motoras, as habilidades pessoais e as
ças do que em adultos. Microtraumatismos de repetição são necessidades sociais da criança devem ser estimuladas atra-
freqüentemente causados por sobrecarga e podem estar asso- vés do esporte. Somente quando as crianças puderem adqui-
ciados com o supertreinamento. Entre os fatores etiológicos rir a consciência desta soma de atributos terão a motivação
estão o aumento da quantidade ou da intensidade do treina- necessária para atingir um desempenho desportivo de alto
mento, métodos de treinamento incorretos e equipamento nível. A criança deve ser capaz de manter diferentes conta-
inadequado7. Técnicos experientes sabem que durante perío- tos sociais não apenas durante o treinamento, mas também
dos de crescimento rápido, a intensidade do treinamento deve fora do esporte. Deve-se evitar o isolamento social devido a
ser reduzida e programas de exercícios específicos compen- uma posição especial no esporte3. A não observância destes
satórios devem ser introduzidos, a fim de prevenir lesões e princípios sob o pretexto de um grande êxito ou talento é
compensar os desequilíbrios musculares. As bases teóricas inaceitável. Quando as crianças são pequenas (ou pelo me-
expostas acima indicam que o crescimento por si só é um nos abaixo dos 10 anos de idade) não se dão conta de que o
fator de risco para lesões de sobrecarga e que há a necessida- resultado de um esporte depende tanto da capacidade como
de de haver atenção especial ao atleta pré-pubere e púbere. do esforço. Portanto, ganhar e perder no esporte não é espe-
É bem sabido que níveis toleráveis de exercício parecem cialmente informativo para as crianças em relação às suas
estimular o crescimento físico normal. Em indivíduos jovens capacidades. Somente quando têm 12 a 13 anos de idade
saudáveis, os efeitos positivos da atividade física que ten- começam a reconhecer que os resultados são determinados
dem a estimular o crescimento se sobrepõem a quaisquer efei- tanto pelo esforço quanto pela capacidade8.
tos negativos e anulam os fatores de risco relacionados ao Com base nas considerações descritas acima, a Federação
crescimento. Contudo, é provável que quando a carga física Internacional de Medicina do Esporte (FIMS) apresenta as
se torna excessiva, os efeitos benéficos sobre o sistema es- seguintes recomendações:
quelético desapareçam e o treinamento se torne traumático e 1) Antes de participar em um programa desportivo de com-
prejudique o crescimento normal6,8. Dados a respeito das in- petição, cada participante deve ser submetido a um exame
fluências do exercício e do treinamento físico intensos sobre clínico detalhado que garanta – por um lado – que somente
o sistema circulatório são escassos. A Academia Americana crianças sem condições clínicas que representem riscos para
de Pediatria adverte sobre a tendência do levantamento de a saúde sejam admitidas para o esporte competitivo, e que,
pesos em elevar a pressão arterial e que o levantamento de por outro lado, represente uma oportunidade para um acon-
pesos muito grandes pode produzir lesões epifisárias em pré- selhamento sobre os diferentes esportes e treinamentos exis-
adolescentes10. tentes. É necessária uma supervisão médica cuidadosa e con-
Os diversos níveis de desempenho dentro de um determi- tínua, principalmente para prevenir lesões por excesso de
nado grupo etário são com freqüência o resultado de diferen- carga ou de crescimento, que são mais freqüentes nos adul-
tes níveis de maturidade, mais do que diferenças de habili- tos jovens.
dade específica. O nível de desempenho em vários tipos de 2) Além da sua tarefa meramente desportiva, o treinador
esportes depende mais da idade esquelética do que da idade tem uma responsabilidade pedagógica em relação ao presen-
cronológica12. Por essa razão, a classificação com base na te e ao futuro das crianças a ele confiadas. Ele/ela deve co-
idade cronológica não é satisfatória durante a adolescência, nhecer os problemas especiais nas esferas biológica, física e
razão pela qual devem ser utilizados outros sistemas basea- social, relacionados ao desenvolvimento da criança e ser ca-
dos na avaliação do desenvolvimento sexual secundário13,14. paz de aplicar este conhecimento nos treinamentos.
Até o momento sabe-se muito pouco sobre a influência do 3) A individualidade da criança e as oportunidades para
estresse físico excessivo de repetição no desenvolvimento um maior desenvolvimento devem ser identificadas pelo trei-
dos diversos órgãos e sistemas nas crianças e adolescentes. nador e tidas como um critério maior para a organização e
Nesta situação deve-se utilizar a experiência de muitos elaboração do seu programa de treinamento. A responsabili-
anos da medicina do trabalho. Em muitos países, a repetição dade sobre o desenvolvimento integral da criança deve estar
freqüente de movimentos laborativos estereotipados e uma acima das necessidades em termos de treinamento e compe-
carga excessiva são proibidos por lei para crianças e adoles- tição.
centes. Nos códigos de leis de trabalho estão incluídas várias 4) Se o “treinamento infantil” estiver sujeito a um contro-
limitações das cargas a serem utilizadas. Da mesma forma, o le médico e pedagógico, conforme indicado acima, pode tra-
número de repetições do mesmo movimento é limitada. É zer valiosas oportunidades de desenvolvimento para a crian-
útil elaborar prescrições semelhantes no treinamento despor- ça. Contudo, se assumir a forma de um “treinamento para
tivo, principalmente para as crianças16. desempenho máximo” a qualquer preço, deve ser condenado
Pais, professores e técnicos devem estar conscientes dos rotundamente com bases éticas e médicas. Tampouco existe
processos psicológicos e dos estresses experimentados pela dúvida de que o que foi aqui exposto também se aplica am-
criança que está envolvida em competições desportivas. A plamente aos adolescentes.
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5) As crianças devem ser expostas a uma ampla varieda- REFERÊNCIAS
de de atividades desportivas, para assegurar que elas possam 1. American College of Sports Medicine. Opinion Statement of Physical
identificar os esportes que melhor se adaptam às suas neces- Fitness in Children and Youth. Medicine and Science in Sports and Exer-
sidades, interesses, constituição física e capacidade. Isto tende cise 1988;20:422-3.
a aumentar o seu êxito e prazer no esporte, reduzindo o nú- 2. Mácek M, Vávra J. FIMS Position Statement on Training and Competi-
mero de abandonos. Não se deve estimular uma especializa- tion in Children. Journal of Sports Medicine and Physical Fitness 1980;
ção precoce. 20:135-8.
6) Principalmente em esportes de contato, os participan- 3. Council of Europe. Committee for the Development of Sport. Sport for
Children, 1983, CDDS (83) Inf. 4.
tes devem ser classificados conforme a sua maturidade, di-
4. Micheli LJ. Sports injuries in children. Annales Nestlé 1986;44:20-7.
mensões corporais, habilidade e sexo, não apenas com base
5. Personne J, Commandré F, Gounelle de Pontanel H. Sur les risques de
em idade cronológica. l’entrainement sportif intensif précoce. Bulletin Academie Nationale de
7) As regras e a duração das partidas devem ser adequa- Médecine 1983;167:207-14.
das para a idade dos participantes e as sessões de treinamen- 6. Micheli LJ. Overuse injuries in children’s sports: the growth factor. Or-
to devem ser relativamente curtas e estar bem organizadas. thopedic Clinics of North America 1983;14:337-59.
A sessão planejada otimiza a instrução quanto à atividade e 7. Codmmandré F, Gagnerie F, Zakarian M. The child, the spine and sport.
habilidade e reduz ao mínimo o risco de lesão. Journal of Sports Medicine and Physical Fitness 1988;28:11-9.
8) O levantamento de pesos e o halterofilismo não devem 8. Caine DJ, Lindner KJ. Overuse injuries of growing bones. The young
ser recomendados antes do fim da puberdade. female gymnast at risk. The Physical and Sportsmedicine 1985;13:51-
65.
9) Eventos competitivos de corrida de distância excessi-
9. Roberts GC. Children in competition. Motor Skill 1980;4:37-50.
vamente longa não são recomendados para crianças antes da
10. American Academy of Pediatrics. Weight training and weight lifting:
sua maturação completa. information for the pediatrician. The Physician and Sportsmedicine 1983;
11:157-62.
11. Plas F. Guide de Cardiologie du Sport. Paris: Baillére Ed., 1976.
12. Cumming GR, Garant T, Boryzyk L. Correlation of performance in track
and field events with bone age. Journal of Pediatrics 1972;80:970-3.
13. Hollmann W, Bouchard C. Untersuchungen über die Beziehungen swis-
chen chronologischem und biologischem Alter zu spiroergometrischen
Meβgröβen, Herzvolumen, anthropometrischen Daten and Skelettmus-
kelkraft bei 8- bis 18-jährigen Jungen. Zeitschrift für Kreislaufforschung
1970;59:160-72.
14. Hebbelinck M. Das körperliche Wachstum, die Entwicklung und mo-
torische Leistungsfähigkeit von Schulkindern. Medizin und Sport 1987;
27:104-9.
Traduzido por: 15. Beunen G. Biological age in pediatric exercise research. In: Bar-Or O,
Dr. José Kawazoe Lazzoli editor. Advances in pediatric sport sciences. Vol. III. Champaign, Illi-
Professor do Departamento de Morfologia e da Disciplina de Medicina do Exercício
nois: Human Kinetics Publishers, 1989:1-40.
e do Esporte, Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ
Primeiro-Secretário da Sociedade de Medicina Desportiva do Rio de Janeiro 16. Rutenfranz J. Long-term effect of exercise training procedures on young
Editor-Chefe da Revista Brasileira de Medicina do Esporte athletes. In: Binkhort A, editor. Children and exercise. Vol. XI. Cham-
Diretor Técnico do Instituto Petropolitano de Ergometria – Ergocenter paign, Illinois: Human Publishers, 1985:354-7.

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