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P R E F A C IO

Para quem escreve estas páginas é uma ocasião e um privilégio.


Fica subentendido que aquele que precisamente escreve vem de longe.
Disse “vem d e ” e não “é ” ou “ vive” longe (como também é ver­
dadeiro, já que esta poderia ser vista também como “uma carta de Florença
—Itália ”), pelas razões que serão tornadas imediatamente evidentes.
Uma ocasião, portanto. E mais precisamente uma ocasião de um
testemunho: testemunho que é, sim, de amizade, mas de uma amizade que se
fundou e funda-se sobre a profunda condivisão de um projeto cultural.
Porque Ricardo Fonseca é antes de tudo um homem de diálogo;
e o é porque acredita firmemente na dimensão espiritual, intelectual e
cultural da experiência jurídica e acredita também que esta dimensão se
manifeste antes de tudo na historicidade daquela experiência.
Também um privilégio, dizia.
De fato, para abrir a novos horizontes aquele diálogo Ricardo
Fonseca, muito jovem - mas não solitário, porque sustentado pela dedi­
cação e pelo entusiasmo de sua esposa Angela — e de sua espontânea
iniciativa, veio a transcorrer mais de um ano (de novembro de 2003 a
outubro de 2004 e depois ainda mais um mês em 2006) exatamente em
Florença.
Escolha pensada e não casual, visto que a cidade de Santa Ma­
ria del Fiore com a sua cúpula bruneleschiana e as suas pontes - antes
de todas a Ponte Vecchio - que se abrem para o rio Arno , è também a
sede universitária na qual Paolo Grossi veio a fundar o seu “ Centro di
Studi per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno ” e a revista que é
dele a sua mais viva expressão, ou seja os “Quaderni Fiorentini per la
Storia del Pensiero Giuridico Moderno ”.
Não casual, estávamos sublinhando.
Ricardo Míireelo lonseca
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Wn) por acaso o “diviso " que talvez mais qualifique aquela ini­
ciativo foi formulada por Paolo Clrossi sempre como “diálogo entre ju-
nsfiis" (o ’h'io com os juristas), querendo dizer que o historiador do di-
jvifo c plcnamcntc jurista, e justamente enquanto tal é chamado a frutuo-
samcnte dialogar com os colegas “positivistas”, não se limitando a to­
mar os momentos abstratos, meramente ligados às contingências arbitrári­
as íuias como presentes por um legislador ou um operador profissional -
os "pontos", enfim - do movimento do ordenamento jurídico mas bus­
cando identificar o fio, evidente ou secreto - a “linha”, para ainda usar
uma feliz imagem sua1 - do percurso histórico do direito entendido na
sua integralidade.
Mas Ricardo Fonseca, com a sensibilidade que o caracteriza, não
limitou-se a recepcionar, em diálogos lógicos, interessantes, pontuais - dos
quais eu, justamente, tive frequentemente o privilégio de ser testemunha e,
algumas vezes, partícipe - a força inovadora de tal mensagem.
Fez mais: desenvolveu-o e o inseriu criativamente no debate jurí­
dico-cultural brasileiro, tornando possível o início de uma relação frutuosa
entre a historiografiajurídica brasileira e afiorentina e italiana.
Uma relação suscetível de desenvolvimentos que a este ponto
também para nós, do outro lado do oceano, representam um imprescin­
dível ponto de referência e de contínuo confronto.
Num importante ensaio sobre a cultura jurídica brasileira e o
processo de codificação civilística do séc. XIX, o próprio Ricardo Fonse­
ca recordava como a sua belíssima terra, o Brasil, fo i anfitriã - e tam­
bém fonte de importantes sugestões e reflexões - para um nosso grande
jurista em fuga do regime opressivo:

Tuilio Ascarelli, eminente jurista italiano do século XX, que na


época do fascismo encontrou abrigo e acolhimento no Brasil por
quase dez anos, ao ter participado, nessa sua permanência, da
vida cultural e universitária brasileira, teve condições de aduzir,
com sensibilidade histórica e argúcia intelectual, que o traço mais
típico do direito privado brasileiro estava na vigência ininterrup­
ta, até a codifícaçao de 1916, do velho direito comum integrado no
plano legislativo peias Ordenações Filipinas de 1603. Para o gran-

1 CjROSSI, Paolo. El punto y la línea: historia del derecho y derecho positivo en


la formación del jurista de nuestro tiempo. (Acto solemne de investidura como
Doctor Monoris Causa del profesor Dr. D. Paolo Grossi). Sevilla, 1998.
In i!( mIik .i , , I , ni I, ,, Il I I i U wim (In I >ji i ili
* II

tic jurista italiano, assim, a maio/ e mais u n io n i m a in i da liristi»


O’}» hrasdcit a era a de tei ea tie p id o atè a seconda d n a da do se
etdo X X um direito eom mareas »isti etmente medieval*!,

Poiler ,v(* ni (flitis<*di. er tpte o piip<7 desmitpmihado ¡irlo nosso


iHi indi' co n n rih ilis in, a sua partii ipuçiío tir,ssa sua perm anência, da
rida cultural e universitaria ita lia n a ‘ h i lini siilo prove/tosau/ente rapii
cihht /><*/(> nosso hospede em itihano, (¡ne nssi/n poilc depois dar ocasião
in prim is a ru o lo (¡rossi no meio tempo, como confirmação da perii
nerichi ih' sua afeiiçéio ao d ucilo vivente dos jurìstns e dos juízes, tornado
Juiz dii ( 'orto ( 'onsfitneionnl italiana mas depois, coni prandi' genero
sìiiadc cultural, tanihcni vários ile nos, di' ripercorrer, por assim dizer,
iis trilhas brasileiras de Tullio Ascari j/i.
Mas esta referencia si* reveste também de uma importância
substanciai
A redescoberta da natureza "peculiar ” da s n id a r experiência
jurídica brasileira da (piai Asciacili Jazia menção para atem dos bre­
ves parêntesis do positivism o e da ¡egolatria moderna produziu de fa to
uma im portantíssim a eonseipiêneia.
A q u ela ipie não hesitaria em definir corno a NouveUe Vague
da h isto rio g ra f ia jurídica brasileira da qual o atua! D iretor da F a­
culdade de D ireito da Uh'FR (além de Presidente do Itili D Instituto
tiras ileiro de H istória do Direito, fundado em 2002 e que já chego u ao
seu pleno desenvolvim ento organiza ti vo e cultural) representa sem
dúvida um a das vozes m ais originais, ao lado de autores como Arno
Dal Ri Junior, A irton Seeíaender e Samuel barbosa, para não fa la r de
um juspuhlieista sensível á história como (1il berlo llereoviei ou de
expoentes da geração im ediatam ente precedente, como Antonio ('arlos
Wolkmer e Jo sé R einiddo de Lima Lopes, de qualquer modo em con­
junto eom os prim eiros p ela analogia de intentos pode imprimir um
des lanchar e um entusiasm o novos sobre a pesquisa histórica satire o
campo, diríam os quasi', sem termos de exagerar, uma verdadeira vira­
da, expressa tam bém na fundação, por oras ido do III ( Vingresso do
IIHII) ocorrido ¡ustam ente em ('uritiha em setembro de 2007, do

lONSRCA, Ricardo Marcelo. Dal difillo coloniali* alla codilicaxionc: appunti


sulla culi tirsi giuridica brasili,una Ita Settecento c Novecento. ///: (Juadcrni Mo-
rcntavii per I» Sforisi del Pensiero (ouridieo Moderno, a 2004/2005, I. Il
: n m , p. 003.
j^ Ku;ii(lo M íi iv i 'Io I ousccm

// Í / / P {Instituto / atino-■americano de H istória do Direito). Virada


qm e marcada também, c o m > uma de suas p rin cip a is nuances, pela
original irdnboraçáo, cm ( liare claram ente a iitb p o sitivista e portanto
pluralista, das temáticas "florentinas" relativas ao "absolutism o jurí­
dico hurgues dos se es. A/A e AA.
} ' se temos presente a importância que na historia não somente
:undica do Brasil tere (e em parte continua de m odo resistente a terj a
comente “positivista ", poderíamos apreciar plenam ente também o valor
do texto que aqui se publica.
Nao só urna modesta, ou mera Introdução Teórica à H istoria
do Direito , mas um verdardeiro e próprio acerto de contas com um
complexo percurso cultural, que procedendo no curso do tempo -
como demonstra a datação das diversas contribuições recolhidas e
reelaboradas, até a última, interessantíssima, resultado da interven­
ção recente no congresso de São Paulo de setem bro de 2009, sobre os
"usos " que têm sido dados atualmente no B rasil à p ro p o sta historio-
gráfica do historiador inglés E. Thompson - restitui não som ente o
processo de form ação biográfico-científico do autor em todas as suas
nuances, mas constitui uma verdadeira contribuição p a ra a "Autobio­
grafia cultural " daquela que convimos chamar de N ou velle vague da
história do direito brasileiro.
De fato, depois de uma introdução que se dá conta da "falta "
(até agora: mas, justamente, já em via de "liberação ") no Brasil de uma
discussão e de um enquadramento teórico do papel da disciplina, em
seguida à profusão de abordagens positivistas, encontramo-nos diante do
esforço de redefinição daquele papel para além das simplificações dos
vários positivismos (filosófico, sociológico e finalm ente histórico).
Tudo isso num "espaço discursivo " que dialoga de modo
inovador - além de que com as melhores fo rça s atuais da história do
direito europeu, de Carlos Petit a A. M. Hespanha e a Paolo Grossi -
com a "Ecole des anuales"; com o marxismo, nas suas correntes
mais críticas e atentas; com as perspectivas foucaultianas; para en­
cerrar, com uma série de páginas de grande interesse sobre Walter
Benjamín, buscando identificar percursos possíveis de ligação entre a
sua reflexão nas “ Teses sobre o conceito de história" e a historio­
grafia jurídica.
Um esforço, em suma, para dotar as novas levas daquela histo­
riografia dos instrumentos metodológicos e conceituais necessários a
Introdução T eórica a História do Direito 13

tarefa que já se entrevê como não mais eludível: a de “repetidamente”


fazer vir à luz a partir de uma modernidade “uma dimensão ”, que mor­
tifica a natureza complexa do direito e a criatividade do jurista, sempre
em prejuízo de uma “imaginação social ” que esteja em grau de enfrentar
os desafios que nos estão adiante.
Neste sentido, uma obra que merece ser atentamente refletida,
mas não somente no além-mar.
Portanto, uma “carta florentina ” com a consciência adquirida
de uma solidariedade que liga já indissoluvelmente os nossos mundos,
aparentemente distantes. E, também, consciência da maturidade adquiri­
da pela pesquisa histórico-jurídica brasileira.

Paolo Cappellini
Catedrático de Historia do Direito da
Università degli Studi di Firenze
SUMÁRIO

NOTA PR F M A ...... J?

1 - INTRO DUÇÃO: PENSAR () FAZER PARA NÃO FAZER SEM


P E N SA R .......................................................................................................................... 21
l.I Por que história do direito?...........................................................................21
l .2 lim a primeira aproximação ao conteúdo cia história do direito..................24
1.3 Pensar a história do direito: a questão do método........................................26
1.4 Teoria e metodologia: esclarecimentos necessários.....................................29
1.5 A “história" e o percurso subjacente a este livro......................................... 30

2 - H ISTÓ R IA DO DIREITO: UM ESFORÇO DE DEFINIÇÃO................... 33

3 - P O SIT IV ISM O , “HISTORIOGRAFIA POSITIVISTA” E HISTÓRIA


DO D IR E IT O ..................................................................................................................39
3.1 A m biência histórica do positivismo............................................................. 39
3.2 Positivism o e “positivism os"........................................................................40
3.3 Pressupostos epistemológicos do positivismo............................................ 43
3.4 Pressupostos do positivismo nas ciências humanas....................................48
3.5 O Positivism o na história e seus pressupostos............................................ 51
3.6 A “história positivista" e seu contexto histórico e teórico........................ 53
3.7 A lguns problem as na abordagem positivista............................................... 57
3.8 O positivism o e a história do direito............................................................ 61

4 -E S C O L A DOS “A N N A L E S” EHISTÓRIA DO DIREITO............................67


4.1 A história do m o vim ento............................................................................... 68
4.2 A s principais linhas dos “Annales"...............................................................75
4.3 Os “A nnales" e a história do direito: as dificuldadesdo diálogo inicial... 81
4.4 Os “A nnales" e a história do direito: um enorme campo de conexões..... 83
, Kii'iiulo M.-inclo I' o iisc c ii
I0

5 M vi 1 Kl M ISMO HISTÓKK O K MISTÔUIA IM) DIKIOITO..........


**'*••••H9
s 1 1Vhmitando o toma.................................................................................
.... -V)
s; Marxismo e historiografia...................................................................................... ^
\3 liasses sociais c ideologia..................................................................... ..... <
^
5.4 O direito no marxismo e a leitura de E. P. T hom pson........................
55 Contrapontos à leitura de Thompson.......................................................... j

6 - A HISTÓRIA NO DIREITO E A VERDADE NO PROCESSO: O


\RGUMENTO DE MICHEL FOUCAULT.......................................................... 109
6.1 Direito e História...........................................................................................109
6.2 Problemas na abordagem do passado ju ríd ico ...........................................11 !
6.3 A resposta de Foucault para a história........................................................116
6.4 Foucault, a história e o processo................................................................. 124
6.5 Para finalizar................................................................................................ 128

7 - MICHEL FOUCAULT E O DISCURSO HISTÓRICO-JURÍDICO:


ESTADO E PODER................................................................................................. 131
7.1 O “proj eto” foucaultiano.............................................................................. 131
7.2 Foucault e a história..................................................................................... 134
7.3 A ideia de “sociedade de segurança” e a história do direito público.....140

8 - WALTER BENJAMIN, A TEMPORALIDADE E O D IREITO ............ ^


8.1 O legado................................................................................................. ...... 149
8.2 A narração e a experiência........................................................................... *^
8.3 Narração, temporalidade e história............................................................. 1^
8.4 História e direito...........................................................................................^
8.5 Conclusão.....................................................................................................^

REFERÊNCIAS............. ............................................................................................ 163

ÍNDICE ALFABÉTICO........................................................................................... 169


"(fas coisas que cu fi: a metro
todos soberao quantos (/uilomctros soo
aquelas cm centímetros
sentimentos mínimos
ímpetos infinitos nào’>"
Paulo Leminski

E ste texto nasce de uma necessidade sentida na didática do curso de


história do direito: situar os estudantes sobre algumas especideidades e com­
plexidades do conhecim ento histórico, antes de se iniciar a abordagem "pro­
priam ente d ita” de um program a dessa disciplina. Tal necessidade foi sentida
pela evidência de que o senso comum teórico (que os estudantes trazem con­
sigo) acerca do significado da história, enquanto saber que se volta ao passa­
do hum ano, é, m uitas vezes, carregado de uma visão estreita e imobili/ante
da história. N o m ais das vezes se espera, antes de se entrar no terreno dessa
disciplina, que som ente será encontrado nesse percurso teórico uma narrarão
de eventos logicam ente concatenados que "explicarão” o presente (no caso, o
presente ju ríd ico ) e, quem sabe (se tudo der certo!), darão um cabedal de
erudição que poderá adom ar o conhecimento jurídico "propriamente dito” (o
dogmático) n o futuro. A história que se espera, assim, parece ser uma relação
de “curiosidades” , cuja função se restringiria a aumentar o conhecimento
geral, num sentido obtuso e inoperante, do direito vigente.
E v id e n te m e n te que essa visão tem (como nao poderia deixar de
ser) um a e x p licação que é, ela m esm a, histórica: e que, de um lado, nossa
tradição cultural em geral, e de m odo muito particular o modo dc conce­
ber a h istó ria, sem p re foi im pregnada por um positivismo oitocentista
com um forte o d o r de m ofo que resistiu (e resiste!) muito, impedindo que
Ricardo M arcelo F on seca

so p u sso m os \c n to s do (eorins o c o n c e p ç õ e s h is to rio g rá fic a s mais abertas


e^ d è q n .n fis a oufro am b icn le cnlfum l lato e sse q u e já o co rria em outros
lu mires desde o im oto do soo. XX. P or o u fro iad o o e n sin o ju ríd ico brasi-
to m \ dosdo o cn.iç.io dos cursos do d ire ito em 1827, se m p re foi marcado
pó? um osiilo quo pri\ ilogiavn o o rn am en to , a re tó ric a e o e/cito ao invés
do com endo o da p ro fu n d id ad e da reflex ão . S ão as c aracterísticas do as­
sim cham ado 11hacharelismo jurídico", já ta n to e stu d a d o p o r sociólogos e
historiadores''. Isso. de fato, d eterm in o u um a fa s ta m e n to (sobretudo ao
longo do sec. X X ) do saber ju ríd ic o com re la ç ã o às in o v a ç õ e s ocorridas
nas outras ciências sociais (no nosso c aso eu su b lin h o : um afastamento
com as inovações historiográficas) que aca b o u p o r c ria r u m fosso entre o
sab er jurídico e um a efetiva co m p reen são h istó ric a . C laro que ainda
existem outros fatores explicativos desse fe n ô m e n o , m a s isso já indica
que ha no Brasil um sério obstáculo de n a tu re z a te ó ric a a se r enfrentado
p o r aquele que estuda e aprende história do d ireito.
Essa breve explicação já m ostra que a h istó ria (e, em particular, a
história do direito) pode ter outro escopo: o de explicar e problematizar
cnticamenie (e não som ente enunciar dados sepultados, co m o num a curio­
sidade necrófila tanto inútil quanto nociva), faz e n d o -o de um modo tal
qu e esse saber sirva, de algum m odo (de um m o d o crítico , que complexi-
fique e problem atize), ao nosso presente. E nfim : a h istó ria , depois de um
dialo g o teórico que procure afastar um a boa p o rç ã o d a p o e ira cultural que
nossa tradição cultural e nossa tradição ju ríd ic a acu m u lam , p o d e se tomar
um saber ativo, crítico e, consequentem ente, m ais in teressan te àquele que
se aventura nos terrenos dessa disciplina ju ríd ic a que é jo v e m nos currí­
culos universitários brasileiros.
M as que essas observações não levem à equivocada conclusão de
que aqui se fará uma grande discussão m etodológica o u que aqui nascerá
algum a nova teoria. A pretensão do livro é m ais m odesta: a de indicar al­
gum as características teóricas centrais de algum as escolas que se esforça­
ram em com plexificar a visão sobre o passado hum ano. C om isso, tenta-se
dem onstrar que também a abordagem do passado ju ríd ic o deve tomar pre-

Vide a respeito cl. ADORNO, Sergio. Os Aprendizes do Poder. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1988; IÍOLANDA, Sérgio Duarque de. Raízes do Brasil. 25. ed. São
Paulo: Companhia das Leiras, 1995. p. 156-165; VENÂNCIO FILHO, Alberto.
Das Arcadas ao Bacharelisiiio. São Paulo: Perspectiva, s/d; FONSECA, Ricardo
Marcelo. A formação da cultura jurídica nacional e os cursos jurídicos no Brasil:
uma análise preliminar (1854-1879). hr Cuadernos dei Instituto Antonio de
Nebrija de Estúdios sobre la Universidad. Madrid, v. 8, p. 97-116, 2005.
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19

cani,ocs pili»! nao uni iiiis toniuçoes siinpliliuulonis (jnc certos resgates
históricos do lincilo Ululo la/eni anula ho|e, ;io iiic/, iii() tempo ern que
aponta alguns instrum entos il;is correntes liisloi iopràlicas diselliidas que
podem sor litcis un abordagem do passado jurídico. Assim, a finalidade é
antes descritiva do algum as lornias loóricas do ahordar o passado do que
prospcctiva do soluções, estratégias ou receitas. Nilo c finalidade do livro
“ensinar” ninguém a fazer história do direito, c por isso a discussão teórica
do algum as osoolas que são propriamente historiográfico-jurídicas (discus­
são que poderia ser útil, mas deveria ser feita em outra sede) não é objeto
desse livro, que tem eseopos muito mais estreitos. Por tudo isso, esse é um
livro destinado aos estudantes ou ao profissional ou estudioso do direito
que eom eee agora a interessar-se no estudo da história jurídica.
D e todo m odo, em bora a finalidade da obra seja de fato modesta,
acredito que a m eta para a qual pretende contribuir tenha lá sua im portân­
cia: creio verdadeiram ente que a consolidação de uma história do direito
didática e cientificam ente sólida no Brasil só pode ser feita a partir do m o­
m ento em que seja definitivam ente deixada de lado essa visão tradicional,
m u seo ló g ica e reducionista do passado e se adquira consciência de que
co m p reen d er o passado é uma operação complexa que tam bém deve ser
avaliada internam ente, ou seja, a partir do ângulo teórico-m etodológico. Se
a leitura dessas páginas de algum modo contribuir para isso (quem sabe
p o ssib ilitan d o novos voos) o autor se considerará satisfeito.

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E ste liv ro foi g estado lentam ente. D esde que cursei a faculdade
de h istó ria sem p re tiv e enorm e afinidade com a “teoria da h istó ria” e não
foi um a caso que, vários anos depois, tivesse escrito m inha dissertação de
m estrad o (em 1997) no territó rio da “teoria da histó ria do d ireito” . M uita
coisa aco n te c e u d esd e então, m as a preocupação com a reflexão teórica
sem pre se m an te v e em tu d o o que vim fazendo a p artir dali. A reunião
dos tex to s que com p õ em este livro é, então, de certa m aneira, um teste­
m unho de um certo percu rso .
E, com o em todo percurso, cruzei com muitas pessoas que, nesta
discussão da teoria da história do direito, foram-me cruciais. Daí a necessi­
dade de alguns registros. O prim eiro deles, institucional, ao CNPq, que vem
financiando m inhas pesquisas. Para com eçar com os registros pessoais, devo
dizer, p o r ju stiça, que foi A na M aria B urm ester quem me introduziu neste
continente, quando eu era ainda estudante. Luiz Fernando Coelho, Celso
«>0 Ricardo Marcelo Fonseca

I udwig. Amonio Carlos Wolkmer e Jayme Antonio Cardoso fizeram ap0tls


tamentos c correções de minos. A familiaridade com a obra e, mais tarde, 0
privilegio de poder contar com o diálogo e a amizade de Antonio Manuel
Hespanlia (“objeto” de análise da minha dissertação, há mais de 12 anos) é
para nnm um privilegio absoluto. Meu soggiorno florentino, entre 2003 e
2004. quando fiz meu pós-doutorado, abriu-me a possibilidade de conheci-
memo e dialogo com la scuola Grossi, e a partir daí nunca mais fui o mestno
e meu olhar para a historiografía jurídica mudou. Ler, traduzir, dialogar,
aprender e desfrutar da convivência científica e pessoal de Paolo Grossi (e de
Paolo Cappellini e de Pietro Costa) são e serão sempre tesouros a serem bem
guardados. Mais adiante, tive o privilégio de estreitar relações e aprender
com outros mestres a quem também muito devo na minha formação “meto­
dológica”: Bernardo Sordi (de Florença), Giovanni Cazzetta (de Ferrara),
Massimo Meccarelli (de Macerata) e o espanhol Carlos Petit (de Huelva).
Privilégio também foi poder dialogar com alguns amigos de vários lugares
sobre a teoria da história do direito (e “obrigar” alguns deles a la um ou
outro texto que agora são publicados): são eles Ramón Narváez (México),
Alberto Spinosa (Florença), Mario Belloni (Pisa) e Manolo Martínez Neira
(Madri). Por aqui, minha dívida é, de um lado, com o frutuoso diálogo aca­
dêmico que mantenho com os amigos do Instituto Brasileiro de História do
Direito (EBHD), que, creio, têm contribuído para dar um “passo adiante”
nesta área no Brasil: Airton Seelaender (UFSC), Andrei Koemer (UM-
CAMP), Antônio Carlos Wolkmer (UFSC), Amo Dal Ri Junior (UFSC),
Gilberto Bercovici (USP), Samuel Barbosa (USP) e Luis Femando Lopes
Pereira (UFPR). A este último, registro especial agradecimento pela leitura
da última versão do texto e pelas pertinentes sugestões feitas (mas devo
isentá-lo de quaisquer erros e imprecisões que eu tenha cometido). De outro
lado, crucial foi e continua sendo minha radicação institucional na Faculdade
de Direito da UFPR, polo de excelência na graduação e na pós-graduação
em direito do Brasil, onde tenho colegas e amigos da melhor qualidade (e
que, sendo tantos, não arrisco nominar para ninguém esquecer). Devo regis­
trar ainda que após um curso de extensão que proferi na UFPR em 2003
sobre “teoria da história do direito”, meus então monitores, Ivan Furmann
(hoje professor e pesquisador) e Thais Sampaio (hoje juíza federal), foram
cruciais na degravação e organização do material lecionado.
Por fim (mas não por último): sem Angela - comigo desde a
primeira linha do primeiro texto, que faz a primeira leitura e dá a última
palavra - este trabalho, simplesmente, não existiria. Como também o
modo como hoje concebo a existência não seria a mesma sem as dádivas
que, iuntos. engendramos: João e Antonio.
1

INTRODUÇÃO: PENSAR O FAZER PARA


NÃO FAZER SEM PENSAR
“não fosse isso
e era menos
não fosse tanto
e era quase
Paulo Leminski

1.1 POR QUE HISTÓRIA DO DIREITO?

Iniciar esse livro com essa pergunta pode parecer um absurdo.


Eventualm ente pode-se ter a impressão que a disciplina sobre a qual tudo
o que será escrito a partir daqui (a história do direito) necessite de uma
justificativa para sua existência, uma desculpa para ser estudada. Que
tipo de conhecim ento precisa justificar-se antes de ser estudado? A im­
portância de um determinado ramo do saber não deve se impor por si só,
sem que haja a necessidade de maiores explicações?
Em parte essa pergunta é absurda e em parte não é.
É absurda, de um lado, porque a história do direito não deveria
justificar-se com o disciplina (como a filosofia do direito ou a sociologia
do direto, por exemplo, também não necessitam). Ela é dotada de uma
especificidade dentro desse saber maior que é o saber jurídico - que
desvela aquilo que no fenômeno jurídico antes estava encoberto (velado),
como tam bém form ula perguntas (e também fornece algumas respostas)
que são próprias das suas estratégias teóricas de abordagem. A ênfase que
damos na form ulação de novas perguntas é deliberadamente maior que
Ricardo Marcelo Fonseca

no oferecimento de respostas, pois nin saber tanto é mais instigante


quanto mais tenha capacidade de formular questões novas, às vezes inu­
sitadas e surpreendentes, diante de uma realidade que às vezes é sempre
batida por um mesmo tipo de olhar. A história do direito, sem dúvida
alguma, tem um olhar muito próprio, muito específico e também muito
penetrante, que não se confunde com o olhar filosófico, sociológico ou
com o olhar das disciplinas dogmáticas - embora com elas (e também
com outras disciplinas) se cruze constantemente.
Deve-se desde logo dizer ainda que a história do direito também
c uma abordagem teórica que se localiza dentro dos lim ites da disciplina
da história (enquanto saber geral que é cultivado de m odo “científico” a
partir do séc. XIX, mas que tem suas raízes no grego Heródoto). Não se
pode fazer história do direito sem prestar atenção nas contribuições, nas
pesquisas, nas abordagens e nas metodologias específicas que os historia­
dores “gerais” utilizam - às vezes com um refinamento exemplar - den­
tro das suas subáreas específicas. Afinal, se o direito está presente na
sociedade e se ele é histórico, não se pode desprender sua análise no pas­
sado da análise da própria sociedade onde ele se insere e onde ele dialoga
com a política, com a cultura, com a economia, com a sociedade etc.
Mas aquela pergunta (pra que história do direito?) se assenta,
em parte, em premissas que nada têm de absurdo. Em primeiro lugar
porque todas as disciplinas - de modo explícito ou não - têm seus es­
tatutos e credenciais “científicos” vinculados com vicissitudes que são
eminentemente históricas e, portanto, ligadas a um a provisoriedade e a
uma “mundanidade”. Não há nenhuma razão supra-histórica que, de um
modo metafísico, imponha um determinado ramo do saber como o “pri­
vilegiado” em um espaço e em um tempo. Nenhum saber se impõe por
si mesmo, pois, afinal, os saberes também fazem parte do jogo de forças
que compõe o mundo histórico em que vivemos. Isso vale para as ciên­
cias em geral e para o conhecimento jurídico em particular. Ninguém
melhor do que o próprio historiador pode perceber como o privilégio
que em determinada época se dá a uma dada abordagem ou a uma de­
terminada “ciência” (ou a um ramo seu) é ligado a práticas, a lutas, a
interesses, e, enfim, a fatores eminentemente históricos (portanto mun­
danamente provisórios) que nada têm a ver com a imposição “em si” de
alguma ideia intrinsecamente ligada à essência dessa “ciência”. Isso
implicaria em ver atuando na história algo que está fora dessa mesma
história. Por isso, fazer a pergunta “por que história do direito?” é, de
certo modo, entrar no palco histórico das vicissitudes que elegem pri-
Introdução Teórica à História do Direito 23

vilégios e p referên cias ao m esm o tem po em que definem exclusões e


desprezos nos ram os do saber.
Em segundo lugar aquela pergunta não é de todo despropositada
porque que os ju ristas em geral - e os juristas brasileiros em particular -
realm ente não estão acostum ados a olhar para o fenômeno jurídico como
algo a ser com preendido em perspectiva temporal. O passado não é visto
com o algo que ten h a tanto a ensinar ao presente, ao menos ao presente
jurídico. O senso com um dos juristas (fala-se evidentemente de uma ma­
neira g en eralizad o ra) gosta de pensar que o direito atual, o direito moder­
no, é o ápice de todas as elaborações jurídicas de todas as civilizações
precedentes, já que é a única ungida com a água benta da “racionalida­
de". O d ireito m oderno frequentem ente é visto como o resultado final de
um a ev o lu çã o h istó rica onde tudo aquilo que era bom no passado vai
sendo sab iam en te assim ilado e decantado, de modo a transform ar o nosso
direito v ig en te n a m ais sofisticada e elaborada maneira de abordar o fe­
n ôm eno ju ríd ic o .
E , geralm ente, quando se fala de algo bom no passado, pensa-se
no d ireito ro m an o e nos seus respectivos institutos jurídicos que tanto
legaram ao n o sso direito moderno (especialmente ao direito privado m o­
derno). G eralm en te, porém , pensa-se no direito romano como algo que
contém em si m esm o um núcleo precioso, de juridicidade “pura”, e que
p o dería ser ap licad a diretam ente (ou após algumas poucas mediações) na
nossa re alid ad e m oderna. Evidentemente que esse modo de observar o
direito ro m an o (m uito difundido o Brasil) ignora o modo como ele foi
filtrado e recep cio n ad o pelo direito moderno, a ponto de muitas vezes
tran sfo rm á-lo e diluí-lo nesse mesmo direito moderno. Como diz Paolo
C appellini, n ão se deve olhar a relação do direito rom ano com o direito
m oderno so m en te em term os de um a forçada continuidade, mas sobretu­
do deve-se o lh á-la nas cesuras, nas rupturas e nas mudanças de rota, pois,
afinal, os ju rista s europeus olhavam em direção à antiguidade, mas com
olhos de “m o d ern o s”4. E se assim o fizermos - isto é, historicizamio o
direito rom ano - certam ente ele se apresentará com m aior riqueza, com
uma instigante força crítica e relativizadora (o que só se pode fazer, toda­
via, a partir da análise das características da sociedade romana que acolhe

4 CAPPELLINI, Paolo. Dal diritto romano al diritto moderno. In: SCH1AVONE,


Aldo (a cura di). Diritto romano privato: uni profilo storico. Torino: Einaudi,
2003. p. 454 e ss. N essa perspectiva que enquadra historicamente o direito ro­
mano, veja-se também SCHIAVONE, Aldo {a cura di). Linee di storia del
pensiero giuridico romano. Torino: Giappichelli, 1994.
2-4
Ricardo Marcelo I’onscca _________________

o sen magnífico direito), c não será som ente tim saber passado que só
sen e pura ser observado na medida em que se pode ser espelhado e re­
fletido nos institutos jurídicos vigentes, buscando justificar, dessa forma
nem sempre convincente, a sua atual existencia. De fato, infelizmente o
direito romano (que é urna disciplina im portantíssim a na formação do
jurista, e que desafortunadamente vem sendo crescentem ente desvalori­
zada na formação dos jovens bacharéis) é m uitas vezes ensinado como se
fosse um complemento ao estudo do direito privado vigente, uma espécie
de demonstração de como o direito atual, afinal de contas, soube apro­
veitar muito bem o velho legado latino.
Dessa forma, se excetuarmos esse aproveitam ento duvidoso que
se faz do direito romano, pouca coisa sobra de todo o passado histórico
no trabalho intelectual que fazem os juristas na com preensão do direito.
Geralm ente a idade média é solenemente desprezada com o o “período
negro" da história do ocidente - e que nada tem a nos ensinar de útil - e
toda a conflitualidade que caracteriza a m odernidade desde seus primor­
dios é vista como um processo raso e tranquilo em que a razão vai se
im pondo até chegar placidamente na sofisticação da elaboração jurídica
moderna. E isso pra não falar do modo como se ignoram as especificida­
des da história brasileira (iniciada por um processo de conquista e de
exploração, pela eliminação dos índios e pela m ancha da escravidão, que
deixou mais sinais nas nossas instituições e em nosso direito do que se
pode inicialmente suspeitar) na compreensão do direito.
Certamente existem razões históricas p ara isso (que o presente
trabalho, todavia, não tem a intenção de enfrentar). D e todo modo, esse
cenário demonstra como é necessário perquirir as razões da presença ou
da ausência da história do direito como saber no ensino jurídico. Mas
convém desde logo avançar na direção da com plexidade que um questio­
namento sobre a história do direito pode suscitar.

1.2 UMA PRIMEIRA APROXIMAÇÃO AO CONTEÚDO


DA HISTÓRIA DO DIREITO

Em geral, a “história do direito” é tom ada como um conjunto de


saberes com uma compleição bem definida e definível, como algo dado,
como algo que talvez nem mereça uma discussão sob um crivo teórico-
metodológico. Enfim, pode-se pensar que quando falam os de História do
Direito já sabemos do que se trata.
__________Inlrodu^ao Tcóricji ñ I lisióm tio Dircilo 25
1

De lato, o nosso senso comum teórico 5 costuma definir rapida­


m ente o que significa esta disciplina da seguinte lorma; se não íór uma
ciencia, um saber (no sentido de ‘V/ disciplina da história da direito”, ou
'\ i história do direito ensina qne..Ó j certamente que ela vai significar o
objeto deste saber, que é precisam ente o passado jurídico. Ou, em outros
term os: neste segundo sentido, a história do direito seria o conjunto de
eventos e lato s que com põe o passado jurídico da humanidade, reconsti­
tuídos através de procedim entos controlados (se não m esmo objetivos),
hauridos do ram o das ciências hum anas (em verdade teoricam ente muito
tum u ltu o so ) que é a “ ciência da história” . A história do direito seria assim
definida ráp id a e tranquilam ente, pois parece haver pouco a ser discutido
ante a certeza de que a história do direito é, por um lado, o ram o do co­
n h ecim en to que se ocupa do passado jurídico, e, por outro, ela é, afinal, o
co n ju n to dos eventos que compõe este passado.
U m a reflexão m ais detida, todavia, dem onstraria que as coisas
n ão se p a ss a m bem assim . U m filósofo “idealista” diria que os fatos e
e v en to s n ã o têm u m a m aterialidade exterior ao pensam ento, m as que
e x istem so m en te ideias destes fatos. Tudo o que tem os, para esta form a
de a n a lisa r o m undo, não passaria de um conjunto de concepções m en­
tais. A p a rtir d este tipo de reflexão, poderíamos então dizer que o passado
do d ire ito (en ten d id o com o o conjunto de eventos concretos e m ate­
riais) n ã o existe; o que existem são somente ideias ou representações
so b re eles. A h istó ria do direito, assim, não existiría; havería apenas ela­
b o ra ç õ e s su b jetiv as sobre o passado do direito, tom adas possíveis através
da co n sc iê n c ia .
P o r o u tro lado, se pensarm os no conceito de história do direito
com o sa b e r (e n ão com o objeto deste saber), e se o saber histórico, como
dito acim a, fo sse “ o conjunto de fatos” do passado hum ano, haveria ainda
outra p o ss ib ilid a d e teó ric a - sem precisar serm os necessariam ente idea­
listas - q u e co n sistiria sim plesm ente em duvidar dos critérios tradicionais
de esco lh a dos “ fa to s” que com põem o saber histórico jurídico. Sim, pois
se o sab er h istó ric o é a reco lh a de alguns eventos do passado humano, e,
afinal de co n tas, a cad a m inuto ocorrem sim ultaneam ente milhões de
fatos de ordem e n atu reza variadas, devem os perguntar que critérios ju sti­
ficam a esc o lh a de algu n s eventos para ingressarem na galeria da história,
e n ão de o u tro s. Q uais os m eios de ju lg a r que alguns fatos são “históri­
co s” (o u ao m e n o s dign o s de registro histórico) e outros não?

5
Vide capítulo 6.
2(y Kiciirdo Marcelo Fonseca

So não nos conteníannos com a fácil resposta (que será adiante


analisada) de que sao dignos de registro os "grandes” eventos, nomes e
datas (no caso da historia do direito, os grandes eventos legislativos e
as grandes escolas jurídicas), percebemos que a resposta ao questio­
namento do significado da historia do direito fica ainda m ais difícil. E
tudo isto para nào talarmos na possibilidade de sim plesm ente proscre­
ver os tatos da ciência da história (que seriam, nas palavras de Fer-
nand Braudel, uma mera “agitação de superfície (...) de oscilações
breves. rápidas e nervosas”6), substituindo-os, com o fizeram Lucien
Febvre e Marc Bloch (como também, a rigor, boa p arte da historiogra­
fia francesa educada pela Escola dos “Annales”7) pelas análises estru­
turais de longa duração, onde os eventos perdem im portância e digni­
dade. Afinal, para esta importante corrente de h istoriografia francesa,
o nível factual é o mais pobre dentro da análise histórica, devendo ser
privilegiadas as visões problematizantes em term os de conjuntura e
estrutura.
Até aqui se pode notar como aquela conclusão trivial de que a
história do direito seria, afinal, a simples “reconstituição dos fatos jurídi­
cos do passado” pode ser severamente questionada e duvidada por vários
ângulos. Uma definição ou explicação rápida da história do direito se
toma, como se pode ver, algo tremendamente problemático: afinal, não
há um único caminho para o conhecimento histórico (como não pode
haver um único caminho para o saber).

1.3 PENSAR A HISTÓRIA DO DIREITO: A QUESTÃO


DO MÉTODO

Tudo isso demonstra que pensar H istória do D ireito implica


necessariamente em uma série de interações teórico-m etodológicas que
a primeira interpretação ingênua passa por cima. N ão há aproximação a
um objeto do saber sem o uso de um instrumental teórico-metodológico.

6 BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a história, p. 112-119; apud BOURDÉ,


Guy; MARTIN, Hervé. As Escolas Históricas. S/l: Publicações Europa Améri­
ca, s/d. p. 131.
7 Exemplar nessa tentativa de fazer uma história que tem um “horror ao evento”
que culmine numa “história sem homem” é o texto-manifesto de LE ROY LA-
DURÍE, E. Le territoire de Phistorien. Paris: Gallimard, 1973.
________________________■nu-püuçào Tcóricn ;i 11istoria do |)jUMlo 27

M ichael L õ w y 8 fa z a esse respeilo uma melalo,-a ¡„(crossarne: comparar


a a tiv id ad e de uni cien tista com a atividade de uni pintor. O pintor, que
tem d ian te de si um a paisagem a ser retratada, seria o cientista, que
tam bém tem o seu o b jeto (a sua paisagem ) a con sid erar. A paisagem
para o p in to r se ria, p o is, o correspondenle do ohjetn para o cientista.
M as fu n d a m e n ta l p ara o cientista é tam bém um b e lv e d e r e , um obser­
vatório . de o n d e ele possa vislu m b rar a paisagem de um minio mais
in s p ira d o r (q u iç á m a is ab ran g en te) para retratar em seu quadro. Não é
p o ssív el p in ta r u m q u ad ro de um a paisagem sem que o pintor se colo­
que em u m a d e te rm in a d a altu ra e em um a perspectiva, que constituirão
o o b s e rv a tó rio d e o n d e a paisag em será retratada. Pois bem : esse obser­
vatório c o rr e s p o n d e à teoria do cientista, pois sem um determ inado
p o n to d e o b s e r v a ç ã o (co m u m a altura e perspectiva dadas) o seu objeto
n ão p o d e rá s e r a lc a n ç a d o . N ão existe ciência sem uma estratégia teórica
q u e b u s q u e a lc a n ç á -lo . A ssim com o para o pintor existem vários obser­
v a tó rio s p o s s ív e is (e é ju s to p en sar que em alguns desses observatórios
a p a is a g e m se m o s tra rá m ais do que em outros), para o cientista existem
d iv e r s a s te o r ia s p o ss ív e is , que levarão a diferentes níveis de d esv ela­
m e n to d e s e u o b je to 9.
S e o c ie n tis ta (pintor), diante de seu objeto (paisagem ), neces­
sita d e u m a te o r ia (observ ató rio ) sem o qual seu trabalho não pode se
d e s e n v o lv e r, h á q u e se co lo ca r logicam ente a conclusão de que a escolha
da te o r ia ir á im p lic a r n ão só n a escolha de um determ inado cam inho, m as
ta m b é m n o a tin g im e n to de um resultado diverso.

8 LÕ W Y , M ichael. A s aventuras de Karl M arx contra o Barão de M un­


ch au sen : m arxism o e positivismo na teoria do conhecimento. 5. ed. São
Paulo: C ortez, 1994.
9 O uso dessa m etáfora evidentemente não faz com que desconsideremos toda a
essencial postura teórica do paradigma hermenêutico segundo o qual a opera­
ção cognitiva deve superar o dualismo sujeito-objeto (próprio do paradigma
epistêm ico) em direção a uma relação sujeito-sujeito, ou, dito de outro modo,
à evidência segundo a qual o ato de conhecer não é apenas debruçar-se sobre
um objeto que se coloca em uma natureza inerte, pronto para ser colhido por
um sujeito altivo, dominador e racional, mas sim uma operação onde que se dá
no m undo da linguagem, onde a interpretação e criação do saber têm um papel
central. Vide a propósito VATTIMO, Gianni. OItre Pinterpretazione.
Roma/Bari: Laterza, 1994; e também LUDWIG, Celso. Gadamer: racionalida­
de herm enêutica - contraponto à modernidade. In: FONSECA, Ricardo
Marcelo (Org.). C rítica da modernidade: diálogos com o direito. Florianó­
polis: Boiteux, 2005.
28 Ricardo Marcelo Fonseca

Por isso, ao pensar a historia do direito devem os antes de tudo


colocar a questão teórico-m etodológica dessa disciplina. C om o qualquer
ram o do saber, não se pode fazer historia do direito sem disciplina teóri­
ca, sem um questionam ento de fundam entos e de m étodos. N esse mesmo
sentido Hespanha sentia que “ ve pode afirmar que a tarefa historiográfi-
ca não pode decorrer sem a adesão a um modelo explicativo prévio que
permita seleccionar as questões relevantes e relacioná-las entre si,
adoptar as estrategias de pesquisa adequadas, estabelecer ligações entre
os factos apurados pela investigação empírica”101.
Se assim não fazem os, a apropriação te ó ric a será intuitiva,
logo irrefletida e, portanto, prenhe de consequências te ó ric a s e p ráti­
cas indesejadas. O rganizar os instrum entos teó rico s d a H isto ria do
D ireito significa, portanto, capacitar todo aquele que in g re ssa nos li­
m ites dessa disciplina com algum instrum ental que, de alg u m m odo,
p erm ita um m elhor m anejo com esse saber específico. P ie tro Costa,
com razão, adverte que

se a pesquisa histórica quer ser um verdadeiro e próprio ato de inte-


lecção, ela deve servir-se de uma linguagem (aliás, de linguagens)
adequadas e rigorosas, de procedimentos controláveis, onde o <(senso
comum” cede seu lugar ao exercício da razão crítica: a pesquisa
histórica tende à teoria no método e no resultado, assim como a teo­
ria se torna real na reflexão historicamente fundada u .

D iante desta situação, de fato parece-nos que urna das prim eiras
tarefas é justam ente rediscutir os pressupostos teóricos e m etodológicos
desta disciplina, de modo a capacitá-la a enfrentar discussões históricas
* relevantes, alterando o foco onde tradicionalmente os holofotes teóricos
se dirigem. Afinal, nas palavras de Hespanha, a “ adopção pela historio­
grafia jurídica de um modelo metodológico cientificamente fundado re­
presenta, por sua vez, a aquisição de um novo sentido para esta discipli­
na no quadro das disciplinas sociais e jurídicas - não um sentido apolo­
gético, não um sentido mistificador, mas um sentido libertador”12

10 HESPANHA. António M. A história do direito na história social. Lisboa:


Livros Horizonte, 1978. p. 16.
11 COSTA, Pietro. Iurisdictio: semantica del potere politico nella pubblicistica
medievale (1110-1433). Milano: Giuffrè, 2002. p. 7. (Ristampa).
12 HESPANHA, Antonio M. A história do direito na história social, p. 16-17.
_____________________ lntro^llÓl° • OÓI H';* n I lisióna <|n ^

1.4 TEORIA E METODOIXH.IA: I,S( I.AKIX IMKMOS


NECESSÁRIOS

D esde logo convém esclarecer que inclndo c teoria não síír> a


m esm a coisa. A m eto d o lo g ia na História do Direito, ou a metodologia na
ciência de um m o d o geral, diz respeito aos passos a serem dados pelo
cientista no p ro c e sso de constituição do seu saber. M etodologia dentro da
historia, assim , p o d e ser exem plificada com o modo de selecionar as
fontes, o m o d o de abo rd á-las e lê-las, o modo de classificá-las e organi/á-
las e. en fim , a p a rtir de tu d o isso, o m odo de descrevê-las. A m etodologia
e um a e sp é c ie de p a sso a passo, é o caminho que se faz para ter um re­
sultado de co n h ecim en to . Já a teoria é a chave conceituai, a ferramenta
que o te ó ric o u tiliz a p ara tratar determ inado tema na ciência em geral (e
na H istó ria o u D ire ito em particular).
É c e rto qu e essa distinção é um tanto artificial porque não se
p o d e o p e ra r u m a m eto d o lo g ia sem o uso de uma certa teoria, com o tam ­
bém n ã o se p o d e m a n ejar um a teoria sem o uso de uma certa m etodolo­
gia. H á q u e se p e rc e b e r que na prática o m anejar teórico e o m anejar
m e to d o ló g ic o se confund em um pouco - embora perm aneçam sendo
c o n c e itu a lm e n te diferentes.
D a d a essa diferenciação, esclarece-se desde logo que esse livro
dará um p riv ilé g io à teoria, m ais do que à m etodologia. A intenção é
fo rm u la r u m d iscu rso que contribua mais para a reflexão e com preensão
teó rica q u e à o p eracio n alização m etodológica (embora, como se disse, às
vezes isso p o s s a se co nfun d ir até mesm o nos argum entos que possam os
d esfiar m a is ad ian te).
F in a lm e n te , quanto a esse particular um a outra observação é
obrigatória: a d iscu ssão pu ra e sim ples de teoria e de m etodologia, quan­
do for c o m p le ta m e n te desvinculada dos propósitos do ram o do saber em
questão (n o n o sso caso, da história do direito), pode se tom ar uma dis­
cussão até certo p o n to estéril. A final, tanto a teoria quanto a metodologia
servem p a ra operacional izar um saber que não deve se esgotar nem na
teoria e nem na m etodolog ia. O que se pretende, enfim, é que seja feita
um a h istó ria do direito bem inform ada (ou ao menos autoeonsciente) nos
seus lim ites teórico -m eto d o ló g ico s. Todavia, de outro lado, não podemos
perder de v ista o fato de que a abordagem do saber específico (no caso, a
“h istória do d ire ito ”) não pode ser separada da discussão teórica e meto­
dológica que a envolve, senão de m odo fictício. A diferença entre o “ob-
Ríemelo M iircelo Ponscca
'0

jcUr do saber o o m odo com o ele é a p reen d id o é um a d istin ç ã o retórica,


eis que o m odo com o se apreende o o h jclo c o n stitu i, cm certa medida,
csse m esm o ohjeto. A bordar o objeto c em certo se n tid o c o n stru ir esse
obieto N outras palaxras. discutir história do d ire ito é, em cad a passo e a
cada m om ento, discutir tam bém seus lim ites e p o ss ib ilid a d e s do ponto de
\ ista teo n eo e m etodológico.

1.5 A "HISTÓRIA” E O PERCURSO SUBJACENTE A


ESTE LIVRO

Feitas todas essas ressalvas e to m ad as to d a s as p recau çõ es,


p o d e-se agora anunciar o cam inho escolhido n e sse p e q u e n o liv ro para
g u ia r o leito r nessa problem atização teó rica da h istó ria . E sclarece-se
d esd e logo que não se fará um a “história da história ” (p ro je to tã o am ­
p lo q u an to infactível), m as sim um recorte m u ito d e m a rc a d o . E m b o ra a
re fle x ã o sobre o significado da h istória nos a u to res a n te rio re s ao séc.
X IX seja im portante para alguém que bu sca u m a c o m p re e n sã o com pleta
da co n stitu ição da história com o ram o do saber, esse c a m in h o n ão será
trilh ad o aqui. O pta-se, apenas, por um reco rte que to m a c o m o p o n to de
p artid a o m om ento em que se com eçou, ju sta m e n te , a a c re d ita r que se
estava fazendo "ciên cia” da história, ou seja, a p a rtir d o m o m e n to em
que v o ltar ao passado deixava de ser, no d iscu rso d os histo riad o res,
algo que fosse a busca do "ex em p lo ” dos a n tep a ssad o s e p a ss a v a a ser a
“descrição ob jetiv a”, com enquadram ento c ien tífico , do q u e j á aconte­
ceu. E sse é um m om ento em que o estudo do p a ssa d o e fetiv am en te se
profissionaliza, passa a ocupar um lugar de d ig n id ad e em universidades,
passa a revestir-se (com o se verá a seguir), ju n to co m ou tras jovens
ciências sociais, de uma aura "c ie n tífic a ” cap az de a tin g ir u m a “verda­
de” do m esm o m odo com o o faziam as já e sta b e le c id a s "c iên cias natu­
rais” . E tam bém o m om ento em que se co m eça a re fle tir com o nunca
sobre o próprio ato de fazer história - ou seja, co m eça a ex istir um dis­
curso teórico e m etodológico sobre a d isciplina. E stam os já , enfim, no
séc. X IX , período cujas características e p istêm icas serão justam ente
cham adas de " Era da H is tó r ia \

lj FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 6. ed. Tradução de Salma


Tannus Muchail. São Paulo: Martins Pontes, 1992. p. 231 e ss.
Introdução Teórica à História do Direito 31

D entro desse recorte, o percurso começa com um breve texto


(concebido com o verbete de um dicionário)14, escrito em 2009, sobre a
definição da própria história do direito como disciplina. Em seguida é
abordado o “positivism o” no conhecim ento histórico (sobretudo aquele
oitocentista, e ciente, antes de tudo, que o próprio term o “positivismo ”
pode aqui dar m argens a controvérsias). Este texto teve um longo percur­
so: houve um a prim eira versão em 1997 (como parte de m inha disserta­
ção de m estrado), foi reescrito em 2004 e ganhou as últim as pinceladas
em 2009, quando finalm ente foi publicado15.
A seguir nos ocupam os das duas “escolas” h isto rio g ráficas
que, no consenso de praticam ente todos os estudiosos, constituem
aquelas que m aiores m arcas deixaram no trabalho acadêm ico dos h isto ­
riadores ao longo do séc. XX: em prim eiro lugar a “Escola de annales ”,
ou escola francesa, e em segundo lugar o m arxism o, ou m aterialism o
histórico. A m bas, cada um a a seu modo, trouxeram um cabedal de
questões ao h istoriador que não pode, de nenhum m odo, ser hoje d e s­
cartado. N o que diz respeito ao marxismo, embora seja um tanto a rtifi­
cial “sep ará-lo ” em diversas “contribuições” disciplinares (pois não se
entende que o m arxism o seja “cindível”, pois dessa form a essa a b o rd a­
gem perde um tanto sua força argum entativa), o que se tentará fazer
aqui é centrar o foco, ciente do risco de reducionism os, sobre a co n tri­
buição que essa corrente trouxe para a história (o núcleo daquilo que
ficou conhecido com o “materialismo histórico”), pois m esm o qualq u er
olhar ideologicam ente desapaixonado deverá reconhecer, se tiv er um a
pitada de honestidade intelectual, que essa abordagem em m uito e n ri­
queceu o olhar que a disciplina histórica pode dar ao passado. A m bos os
textos nunca foram publicados e tam bém são partes de m inha d isserta­
ção de m estrado (escrita em 1997), e sofreram im portantes alterações.
Todavia, não busquei atualizar os textos de modo exaustivo com a
enorme bibliografia que surgiu desde então sobre estas duas “esco las”,
pois isto significaria reescrever os dois textos.
Finalm ente, outras duas abordagens serão tam bém discutidas:
trata-se de algum as das contribuições específicas para o conhecim ento
histórico que nos foram dadas pelos filósofos M ichel Foucault e W alter
Benjamín. Sobre Foucault, reproduzem-se dois textos: O prim eiro deles,

14 De próxima publicação.
FONSECA, Ricardo Marcelo. Positivismo, a “história positivista” e a história
do direito. In: Argumenta. Fundinopi, v. 10, p. 143-166, 2009.
32 Ricardo Marcelo Fonseca

publicado em 200016, busca uma análise mais recortada sobre sua análise
do processo e seu papel dentro das diversas “epistemes”; já o segundo,
publicado em 200617, partindo de uma avaliação mais geral das contri­
buições do filósofo francês para o conhecimento histórico, termina por
abordar suas contribuições específicas para a análise histórica dos apara­
tos públicos do séc. XIX. Finalmente, sobre Walter Benjamín, reproduz-
se o texto Walter Benjamín, a temporalidade e o direito, publicado em
199918, e que foi resultado da participação em um evento, no ano ante­
rior, sobre A Escola de Frankfurt e o direito.
Como se percebe, os textos foram concebidos e escritos em
épocas diferentes. Isto pode explicar certas repetições ocasionalmente
ocorridas e algumas diferenças de tons, ênfases e abordagens. Embora a
reunião de todos estes textos, em princípio, possa parecer um mosaico (de
temas, de tempos e mesmo de etapas e maturidades diferentes do próprio
autor), creio que sua junção agora pode, como dito antes, desempenhar
uma função útil para a tarefa (que continuo achando crucial) de pensar
em termos teóricos a história do direito.

16 FO N SEC A , Ricardo M arcelo. A história do direito e a verdade no processo: o


argum ento de M ichel Foucault. In: R ev ista G enesis de D ireito P ro c e ssu a l C i­
vil. C uritiba, v. 18, p. 570-585, 2000.
17 FO N SEC A , Ricardo M arcelo. M ichel Foucault e o discurso histórico-jurídico:
encontros e desencontros entre Estado e Poder. In: FO N SE C A , R icardo M arcelo
(Org.). D ireito e d iscu rso : discursos do direito. Florianópolis: B oiteux, 2006. p.
139-159.
18 FO NSECA, Ricardo M arcelo. W alter B enjam im a tem poralidade e o direito. In:
M USSE, Ricardo er alii. A E sco la d e F r a n k f u r t no D ireito . C uitiba: Edibej.
1999. p. 75-86.
2

HISTÓRIA DO DIREITO:
UM ESFORÇO DE DEFINIÇÃO

“a história fa z sentido
isso li num livro antigo
que de tão ambíguo
faz tempo se foi na mão de algum amigo
logo chegamos à conclusão
tudo não passou de somenos
e voltaremos à costumeira confusão
Paulo Leminski

A história do direito pode ser definida de dois modos distintos,


de acordo com o próprio sentido dúplice que a própria palavra ‘história’
encerra. De um lado, a história do direito é o ramo do saber que se ocupa
do passado jurídico (como na expressão “a história do direito aborda
prioritariamente o período moderno”). De outro lado, história do direito
é o objeto deste mesmo saber, aquilo que está sendo estudado (como por
exemplo na expressão “ a história do direito demonstra que a emergência
da propriedade fo i um processo descontínuo e complexo”). Este texto se
concentrará na prim eira acepção.
A história do direito é estudada e cultivada prioritariamente nas
faculdades de direito, tanto no Brasil quanto no exterior. Embora haja
inúmeros historiadores (e tam bém sociólogos e cientistas políticos) que
se dediquem de modo profissional ao objeto “direito”, é nas academias
jurídicas que seu estudo tem se dado de modo mais específico. Claro que
esta afirmação depende de uma certa concepção de história do direito
34 Ricardo Marcelo Fonseca

que se adota. Sendo uma área que oscila entre mais de um camp0
conhecimento, a própria definição disciplinar da história do direito? ^
se mostrar bastante controversa. Mas um critério aparentemente vá|°?
consiste em considerar como efetivamente histórico-jurídicos os estud °
que centram as suas problemáticas de análise (suas hipóteses, seu “0^
jeto", para usar uma expressão hoje epistemológicamente gasta)
questões efetivamente jurídicas. Ou seja, o direito ocuparia o centro da
preocupação teórica destes estudos, e não seria um mero instrumento de
analise. Como exemplos de usos “instrumentais” do direito (e quep0r.
tanto não seriam rigorosamente estudos histórico jurídicos), temos as
análises nas quais a semântica do direito (seus conceitos, sua doutrina) é
"utilizada” por determinado estudo para problematizar uma questão mais
extema ao direito (como a política, a sociedade, a filosofia) ou então
quando fontes jurídicas (sobretudo processos judiciais no passado) são
usadas como meios para resolver e compreender questões que não são
centralmente jurídicas (inquisição ou escravidão, por exemplo). Toman­
do ainda mais explícitos os exemplos: se um sociólogo trabalha com
problemáticas como “liberdade” ou “democracia”, ou então se um histo­
riador baseia todo o seu esforço de compreensão sobre um dado período
da escravidão brasileira em fontes judiciais, tais fatos, por si sós, não
transformam estes estudos em “história do direito”. Ao contrário, quan­
do a problemática da pesquisa centra-se, de modo não instrumental, em
analisar o passado de questões como “codificação”, “constitucionalis­
mo”, “liberdades” (para citar apenas alguns exemplos), e as estratégias
de investigação levam em conta, em grande medida (embora não exclu­
sivamente), uma compreensão e análise interna destas fontes (seja elaa
lei, a doutrina ou o costume no passado, por exemplo), estamos diante de
um estudo de história do direito. Tomando claro o que se quer dizer
pode-se, por exemplo, tomar uma análise de uma lei para um estudo que
seja pertencente à história social ou econômica (exemplificando: anali­
sar-se instrumentalmente a Lei de Terras de 1850 para compreender uma
etapa da história fundiária brasileira), ou para uma análise que seja histo-
riográfico-jurídica (continuando o exemplo: toma-se a Lei de Terras de
1850 para compreender como o direito interveio na modernização da
ideia de propriedade moderna no Brasil).
E claro - repete-se - que esta é uma distinção precária, o quee
normal ocorrer numa disciplina que transita por vários saberes. E é ^
critério - esclareça-se - que não quer caminhar de modo algum em dfi'
ção a um “encastelamento” da disciplina na área do direito e seu co®e
5
__ lntroJuyao Teóricii ;i I listona do Direito 35

quente isolam ento com relação às áreas afins (corno a história em geral, a
filosofía, a sociologia etc.). Panto c assim que existem nomes que traba­
lham em faculdades de história ou ciencia política (e não dc direito) que
podem ser legitim am ente considerados historiadores do direito. Se o his­
toriador do direito nao navega por outras áreas e se isola apenas no saber
ju ríd ico , ele corre o risco efetivo de produzir uma historiografía jurídica
pouco arejada e até m esm o estéril. Apesar de tudo isso, o critério apre­
sentado é cap az de divisar práticas de pesquisa, modos de atuação de
investigação e, sobretudo, um a atitude com relação ao “objeto” de análise
- o “ d ireito ” - b astan te distintos. E tais distinções não parecem ociosas.
A p re o c u p a ç ã o com a história do direito, no âm bito europeu,
nào é re c e n te . B a sta lem b rar (dentre tantos outros exem plos possíveis) o
e sfo rç o d a c h a m a d a “escola culta do direito” (ou “humanismo jurídi­
co ” ), n o séc. X V I, n a controvérsia com os juristas m edievais, em “histo-
ric iz a r” o le g a d o rom ano. M as é no séc. X IX que a história do direito
(c o m o p ra tic a m e n te todas as ciências hum anas) busca ganhar um esta­
tu to b a s ta n te esp ecífico e “ científico” enquanto área do saber. E claro
q u e ta is e sfo rç o s n ão são “n eutros” ou isolados das circunstâncias histó ­
ric a s q u e os en v o lv em . Tem -se, de um lado, nos oitocentos, o uso da
h is tó ria d o d ire ito com o m eram ente justificadora dos resultados da
d o g m á tic a (c o m o oco rria no seio da pandectística alem ã - usus moder-
nus pandectaruní)\ de outro, com as revoluções burguesas, a histo rio ­
g ra fía ju r íd ic a in sistia n a naturalidade na nova ordem , em contraponto à
irre m e d iá v e l h isto ric id a d e da ordem social e p olítica pré-
r e v o lu c io n á r ia 19. D e q u alq u er m odo, a história do direito desde então é
d is c ip lin a q u e c o m p u n h a os currículos das faculdades de direito da E u­
ro p a e q u e, p o rta n to , desem p en h av a um papel im portante na form ação
dos ju r is ta s (m a lg ra d o suas fortes oscilações na sua m etodologia e nos
seus c o m p ro m isso s te ó rico s e ideológicos).
S eja co m o for, ao longo do séc. X X (sobretudo a partir dos anos
60), esp e c ia lm e n te n o âm bito europeu, a historiografia jurídica buscou
en fren tar suas crises e dilem as m etodológicos e avançou significativa­
m en te em ou tra direção. A utores com o A ntônio M anuel H espanha (Por­
tu g al) e P ao lo G rossi (Itália), para ficar apenas com exem plos em blem á­
ticos, acab aram p o r dem o n strar uma outra função para a historiografia
ju ríd ic a : n ão m ais co n stru ir retrospectivam ente uma “ linha do tem po” do

19 H ESPA N H A , António Manuel. A história do direito na história social. Lisboa:


Livros H orizonte, 1978. p. 10-11.
Ricardo M arcelo F onseca

direito (geral ni en te eom com eço na an tig u id ad e rem ota, ou então, aon^
nos. desde a época romana clássica), eom a finalidade mal disfarçada de
colocar o presente num ponto de chegada inevitável de todo utn processo
de preparação e "lapidação" histórica; não m ais isolar a historiografía
jurídica numa função m eram ente "in tro d u tó ria” (e, em certo sentido, ser*
vil) eom relação à dogmática jurídica.
Ao contrário, o estudo do passado do direito passa a importar
justam ente para, ao dem onstrar as profundas diferen ças existentes entre
experiencias jurídicas do passado e da atualidade, te r a capacidade de
relativizar o presente, contextualizar o atual, "desnaturalizando-o” e co-
locando-o na contingência e na provisoriedade h istó rica a que ele perten­
ce. A análise do passado do direito passa a servir para, ao afirmar a histo­
ricidade que é ínsita ao direito (que não é, portanto, algo que sobrepaira
de modo isolado da realidade ou que é m ero “efeito ” da economia ouda
política), demonstrar aos juristas das áreas da "do g m ática jurídica” (civi­
listas, penalistas, processualistas etc.) que seus saberes, para serem bem
m anejados, dependem fundamentalmente de u m a responsável análise
diacrônica. Não mais uma mera e anacrônica "introdução histórica” -
habitual nos manuais e mesmo nos trabalhos m ais acadêmicos - que
acentue principalmente as continuidades e perm anências (frequentemente
de modo artificial) ao longo do tempo, mas, ao contrário, a história do
direito passa a demonstrar que uma análise teórica de qualquer dos “ra­
mos do direito” deve ser atravessada pela história (visto que os conceitos
e instituições jurídicas são, eles mesmos, em bebidos de historicidade) e
sua boa compreensão depende de sua inscrição tem poral.
Em outros termos, a história do direito p assa a ter uma fimçào
crítica, desmistificadora do formalismo ju ríd ico que busca sempre “iso­
lar” o direito de seu tempo, funcionando desse m odo como “consciência
crítica” dos demais juristas20.
No Brasil, ao contrário da Europa, a disciplina "história do di­
reito” é relativamente recente nas faculdades jurídicas. Desde as funda­
ção das primeiras faculdades de direito no Brasil, em 1827, até o final do
Império, esta disciplina não estava incluída nos currículos. Foi somente
com a proclamação da república e com a cham ada " Reforma Benjamín
C o n s t a n no final do séc. XJX, que ela surge na fonnação dos juristas

20 Como bem colocado por GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros


ensaios. Tradução de Luiz Emani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Ja­
neiro: Renovar, 2006. p. 90.
____ ________________ Jnnocliivào I conca A I lislórin cio I )iroiio 37

brasileiros. N e s le m om en to, porém , com o ocorria com as cien cias em


geral no B rasil, a an álise hisforiográlica era marcada por iiid forte evolu ­
cio n ism o p o sitiv ista (co m o na importante obra de Isidoro Martins junior,
da Faculdade de D ireito do R ecife), estando, evidentem ente, distante de
uma abordagem critica e m ais reflexiva.

Logo, porem, a historia do direito vai gradativamente desapare­


cendo dos currículos das faculdades. No início do séc. XX, uma forte
influência do rom anism o europeu acaba por substituir o interesse pelas
analises histórico-jurídicas. Isso ocorre em grande medida pelo fato de
que 0 direito rom ano passa a ser estudado majoritariamente não enquanto
disciplina histórica, mas como conteúdo atual. Esta era, de fato, a atmos-
íera im perante: afinal, a principal obra de Savigny, nos anos 40 do séc.
XIX. era seu monum ental (e de título sintomático) “Sistema de Direito
Rom ano A tual” ; de outra parte, a comente pandectística que vicejou al­
gum as décadas depois, e sobre a qual já se mencionou brevemente, bus­
cava atualizar o uso das Pandectas de Justiniano (parte do Corpus Iuris
Civilis, docum ento do séc. VI que serviu de base a todo o estudo do di­
reito rom ano no ocidente). Com tudo isso, o direito romano desempenha­
va, m uito m ais (e não sem certo anacronismo) a função de matéria intro­
dutória ao direito (sobretudo com relação ao direito privado), tendo como
prem issa teórica inevitável, naturalmente, proceder a uma reconstrução
linear do p assado jurídico desde os romanos até o “direito vigente”. Esta
forte presen ça do D ireito Romano, estudado nestes moldes, acabou, por­
tanto, p o r substituir a história do direito tal qual era praticada quando de
sua introdução nas faculdades brasileiras, tomando sua vida científica,
neste m om ento, bastante breve.
Tal contexto começou a mudar nas últimas décadas do séc. XX.
A Portaria/M E C 1886 de 1994 - que estabelece as diretrizes curriculares
para os cursos de direito - contribuiu ao estabelecer a importância dos
estudos teóricos nos cursos de direito. Esta diretriz é retomada e ampliada
na Resolução/CNE 09 de 2004, atualmente vigente (que substituiu a
Portaria anterior), que estabelece a necessidade, nos cursos de direito, de
conteúdos de história. Progressivamente a disciplina da história do direito
passa a ser reinserida nas grades curriculares das faculdades de direito.
Em alguns lugares substituindo as velhas cadeiras de Direito Romano, em
outros convivendo com elas. Esta reinserção, todavia, justamente em
vista de uma longa falta de cultivo cientifico e também em vista da au­
sência de diálogo com as novas tendências europeias em curso, reaparece
marcada por uma crise teórica. Na maior parte das faculdades, ela repro­
38 Ricardo M arcelo Fonseca

duz uma abordagem m arcada pela linearidade, factualidade e pelo m atiz


de justificação e acessoriedade com relação às disciplinas da dogm ática
jurídica. A ausência de bibliografia adequada e a falta de tradução dos
autores estrangeiros de ponta faz com que boa parte das abordagens p er­
maneça, portanto, em termos historiográficos, m arcadam ente positivista
(ou “historicista”).
A partir dos últimos anos do século passado este contexto co­
meça a mudar. Alguns bons manuais brasileiros com eçam a aparecer
(embora ainda convivam e concorram com o enorm e sucesso de outros,
acríticos, descritivos e pretensiosos, elaborados apenas para satisfazer o
m ercado editorial). A lém disso, importantes autores estrangeiros da área
passam a circular nos meios acadêm ico-jurídicos brasileiros, são traduzi­
dos textos importantes da área, associações científicas com fortes critérios
acadêm icos são criadas para a história do direito e congressos de qualida­
de começam a ocorrer.
Esta retomada da disciplina no Brasil - com rigorosos critérios
acadêmicos de qualidade - convive ainda, contudo, com enorm e diletan­
tismo na abordagem do passado jurídico. Os resquícios abundantes das
abordagens lineares, demasiadam ente abrangentes, descritivas e factuais
ainda persiste na prática do ensino e em boa parte da bibliografia da his­
tória do direito. Trata-se, portanto, de um a fase de transição de uma dis­
ciplina jovem cujos paradoxos e am biguidades devem, eles mesmos, so­
frer uma compreensão histórica.
3

POSITIVISMO, “HISTORIOGRAFIA
POSITIVISTA” E HISTÓRIA DO DIREITO

“tudo dito,
nada feito,
fito e deito
Paulo Leminski

3.1 AMBIÊNCIA HISTÓRICA DO POSITIVISMO

Apesar dos pressupostos teóricos iniciais do positivismo, como diz


Lõwy21, estarem relegados ao museu das ideologias do séc. XIX, o fato é
que as sementes do positivismo e de suas premissas epistemológicas, planta­
das a partir da reflexão do filósofo francês Augusto Comte, estavam destina­
das a tomarem-se um dos pilares da ciência moderna. E, de fato, de modo
poucas vezes explicitado, mas muitas vezes subjacente, o positivismo está
presente nas análises de diversas das áreas das “ciências humanas” .
E para a compreensão do positivismo é necessário frisar, já de
saída, que se trata de uma corrente de pensamento tipicamente oitocen­
tista. Pois ser uma teoria do séc. XIX significa, em primeiro lugar, dizer
que se trata de uma reflexão que se dá num ambiente liberal (ou que
assim vai se tomando progressivainente) e pós-revolucionário. As cha-

21 LÕWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchau­


sen: marxismo e positivismo na teoria do conhecimento. 5. ed. São Paulo: Cor­
tez, 1994. p. 26.
40 Ricardo Marcelo Fonseca

madas revoluções burguesas aconteceram no séc. X V III e no início do


séc. XIX (exceção feita à grande Revolução G loriosa na Inglaterra, ocor­
rida no séc. XVII). E isto significa que é o século onde a burguesia já se
instalou no poder é uma época onde uma outra ordem política é reinante.
As revoluções burguesas têm o significado de serem exatam ente aquelas
em que a burguesia, que já era hegem ônica do ponto de vista econômico,
passa a ser hegemônica também do ponto de vista político. Pode-se dizer
sem meneios que o séc. XIX é o século burguês. A lém disso, e um tanto
por conta disso, o séc. XIX é o século do otimism o com relação aos pro­
digiosos progressos científicos e tecnológicos que então se verificam,
progressos esses sem par na história, até m esm o se com pararm os com
progressos tecnológicos dos séculos anteriores quando nasceu a ciência
moderna. O séc. XIX é herdeiro do iluminismo que triunfou, é o século
que acredita no homem de modo incondicionado.
Exatamente por isso o positivismo não poderia nascer em outra
época que não o séc. XIX. O positivismo, como veremos mais adiante, tem
em suas bases epistemológica, sociológica e historiográfica uma confiança
na capacidade de conhecer, na capacidade de fazer uma ciência de fato
pura, que nós só podemos enquadrar como sendo algo típico do séc. XIX.

3.2 POSITIVISMO E “POSITIVISMOS”

Ao se abordar alguns aspectos desta ampla corrente de pensa­


mento (sobretudo na forma como ela se manifestou no séc. XIX, quando
nasceu e teve enorme influência), convém, antes de tudo, demarcar de
modo claro que a maneira como o positivismo incidiu no âmbito filosófi­
co, sociológico, jurídico e histórico não foi simétrico. M uito embora pos­
sa ser identificada uma “matriz” epistemológica comum (sobre a qual se
refletirá logo adiante), o fato é que podemos assinalar a existência de um
positivismo filosófico, um sociológico, um jurídico, outro histórico e
assim por diante. Em outras palavras, apesar de haver entre estes ramos
uma identidade epistemológica, há uma divergência de abordagem, e por
isto existem especificidades próprias (mesmo no surgimento histórico das
manifestações teóricas particulares) em cada um destes “positivism os”.
Talvez, em função disso, seja um tanto problemático falar-se em
um positivismo “puro”. Pode-se dizer mais apropriadamente que existem
‘positivismos’ diferentes: existe o positivismo de Augusto Comte (conhe-
Inlrodi^A o I córicn A H istória do D ireito 4|

eido com o o fu ndador dessa corrente de pensam ento), que seria um a espé­
cie de p o sitiv ism o filosófico (do qual. de m odo curioso, o ch am ad o “posi­
tivismo h i s t ó r i c o do qual adiante se com entará, irá se afastar em vários
aspectos). E xiste um positiv ism o sociológico, que é aquele de Em ile
D urkheim (que, tam bém paradoxal m ente, m ais tarde inspirou grandem ente
alguns histo riad o res trem en d am en te “ antipositivistasA com o M arc Bloch).
N o âm bito ju ríd ico , qu an d o se fala em “positivismo ” , pen sa-se em prim eiro
lugar (nào sem certa controvérsia, aliás) na Escola da E xegese francesa,
integrante do m o v im en to do positivism o juríd ico , com o consta na co n h eci­
da obra do filó so fo italiano N orberto B obbio2223. M as um a pesq u isa acurada
veria p o u co s reflex o s do positivism o filosófico nesse âm bito ju ríd ic o - até
porque esse “p o sitiv ism o ju ríd ic o ” é, em certa m edida, até m esm o an terio r
ao ch am a d o “positivismo filosófico ” de Comte.
E ssa falta de diálogo ou, às vezes, até m esm o u m a a u sên cia de
g en ealo g ia en tre essas várias form as de positivism o, tam bém é m arcad a
no âm b ito do co n h ecim en to histórico: aquilo que com um ente se co n h ece
com o “positivismo histórico ” (leia-se, o m odo de se fazer h istó ria a p artir
do m o d e lo de L e o p o ld vo n R anke, de quem falarem os m ais d etid am en te
ad ian te), tin h a u m a declarad a aversão aos grandes m o d elo s filo só fico s
criados n o séc. X IX , incluindo-se nesses m odelos filosóficos as a b straçõ es
de A u g u sto C om te! A partir daqui, alguns autores inclusive c h eg am a
sustentar a im p ro p ried ad e de se denom inar a história “ rankeand\ que
tam b ém é c o n h e c id a com o “história tradicionar22 de histó ria p o sitiv ista.
É o caso de R o n a ld o V ain fas 2425e de H elio R ebello C ardoso Jr. que, co m
razão, d e m o n stra m com o essa discussão é um p ouco m ais m a tiz a d a do
que p arece a p rin cíp io . C om efeito, percebe-se que a h istó ria “rankeana” é
carregada d e in flu ên cias um tanto heterodoxas, já que aquilo que v iria a
ser ch am ad o n a A lem an h a de “positivismo históricó> \ acab o u se em be-

22 BO B BIO , Norberto. Positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São


Paulo: ícon e, 1995.
23 BUR KE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas, São Paulo:
Unesp, 1992. p. 9 e ss.
24 VAINFAS, Ronaldo. História das mentalidades e história cultural. In: CARDOSO,
Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios da história: ensaios de
teoria e m etodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p, 130,
25 CARDO SO JR., H elio Rebello. Tramas de Clio: convivências entre filosofia e
história. Curitiba: A os Quatro Ventos, 2001. p. 169 e ss. Diz este autor: “a histo­
riografia positivista não é o positivismo, embora dele retenha traços essenciais”.
(p. 169)
42 Ricardo Marcelo Fonseca

bendo do importante movimento do romantismo alemão26. Veja-se a im­


portante “Escola Histórica" alemã, para a qual, ao contrário de uma con­
cepção jusnaturalista do homem (que a ele atribui caracteres eternos,
imutáveis, trans-históricos), diz que a essência do homem e as suas deter­
minações fundem-se em um mesmo núcleo, cujo conteúdo e cuja forma
são definidos como históricos; existiria, na verdade, segundo essa escola
alemã, unidade entre homens e forças da natureza, e a historia, como um
eterno fluxo de geração, plasmaria os homens, irmanando-os e reunindo-
os na comunidade de autoconsciência. A partir daí é que o conceito de
“ Volksgeist” (espírito do povo), se toma central para essa corrente (como
consequentemente para a “Escola Histórica do direito” de Savigny27), pois
é na historia que tudo se funde, é lá onde se devem buscar as raízes. Pois é
desse fusionismo que irá decorrer o importante papel que será atribuido
aos personagens notáveis na Historia. Ou seja, personalidades imbuidas de
um “espirito do povo”, e que, portanto, deverão ocupar o primeiro posto da
cena histórica e historiográfica. Assim, portanto, esse caráter central dos
“grandes nomes” na historiografia alemã do séc. XIX, que serão em muitos
casos lidos como “encarnações” da “volksgeist", pode ser compreendido
muito mais a partir de um olhar sobre essas raízes do romantismo alemão
e da Escola Histórica Alemã - e não do positivismo “filosófico” que nasce
na França com Augusto Comte28.
Todavia, apesar dessa efetiva falta de unidade genealógica entre
os “diversos tipos” de positivismo (no sentido de que não se pode, em
muitos casos, identificar uma relação de parentesco ou influência recí­
proca entre eles) e, mais, apesar da efetiva diversidade teórica que se
pode de fato encontrar em cada um (e, particularmente, no caso do campo
do conhecimento da história), esse texto, fazendo as devidas ressalvas
acima referidas, opta por utilizar o termo “positivismo histórico” àquele
tipo de conhecimento que foi colocado em uso por Ranke e que tanto
influenciou a historiografia posterior. É que, como já dito (e pretendemos
demonstrar), existe uma base epistemológica que é comum entre o positi­
vismo filosófico e o histórico (e que toca também o positivismo socioló-

26 Sobre romantismo, vide LÕWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melan­


colia: o romantismo na contramão da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1995;
THOMPSON, E. P. Os românticos: a Inglaterra na era revolucionária. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
27 Vide PELÁEZ, Francisco J. Contreras. Savigny y el historicismo jurídico.
Madrid: Tecnos, 2005.
28 CARDOSO JR, Helio Rebbelo. Tramas de Clio, p. 170-171.
In tro d u co I colica a I listona do D m n ,
o 43

gico e o jurídico). Islo o, todos oíos tcm unui íonna de se aproximar do


conhecimento, de captar o ohjclo. qu<* llu s e e.omum e, diga-se de passa­
gem. muito típica do modo de \e r o mundo no s e t. XIX.
Pito isso. a opção metodológica para abordar esse positivismo
(ressalte-se: positivismo oitocentista) c estruturada do seguinte modo: parti­
mos dos seus pressupostos epistemológicos. buscando uma aproximação do
modo mais “filosófico" de apreensão do saber por essa corrente fon, em
outras palavras, veremos o modo como se dá a relação sujeito-objeto); de­
pois. dando um passo adiante, abordaremos alguns pressupostos do positi­
vismo nas ciências humanas, que se revestem de especial importância na
medida em que as ciências do homem nascem de fato com a marca positi­
vista; e, finalmente, veremos os pressupostos do positivismo no conheci­
mento da história, que aplicam de modo mais específico os pressupostos
mais gerais do positivismo no saber em geral e no saber das ciências huma­
nas, em particular no âmbito do conhecimento do passado humano.
E m bora já de saída se explicite o caráter não exaustivo dessas
explicações, justifica-se esse caminho tomado na medida em que os
“pressupostos históricos do positivismo”, como se verá, dependem e são
de certo m odo fundamentados pelos “pressupostos do positivismo nas
ciências humanas”, bem como, estes últimos, por sua vez, se assentam
nos “pressupostos epistemológicos”.

3.3 PRESSUPOSTOS EPISTEMOLÓGICOS DO


POSITIVISMO

Para enunciar os “pressupostos epistemológicos do positivismo",


servimo-nos de parte das premissas citadas por Antony Giddens, citado por
Boaventura de Souza Santos29, que selecionamos por entender sejam elas
esclarecedoras nesse passo “ epistemológico” de compreensão do positivismo.
3.3.1. A realidade é dotada de exterioridade, Enunciar que
realidade é dotada de exterioridade significa dizer que para o positivismo
a realidade é exterior ao sujeito. Ou seja, o objeto existe independente-

29
GIDDENS, Anthony. Studies in social and political theory. Londres: Hutchin­
son, 1980; apud SANTOS, Boaventura Souza. Introdução a uma ciência pós-
moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989. p. 52.
M Ricardo Marcelo Forneça

inente do sujeito. “O objeto é", no sentido de ter uma existência bastante


cm si mesma. O objeto não precisa do sujeito para que ele afirme sua
. própria existência.
• Embora num primeiro momento se possa pensar que sc está afir­
mando uma obviedade (c até pensar-se em como seria possível que o posi­
tivismo não tivesse razão nesse pressuposto: «final, os objetos existem!),
um olbar superficial sobre a nossa tradição filosófica demonstra nâo se
tratar de uma afirmação tão tranquila e de uma discussão tão trivial
Oc lato, boa parte da história da filosofia debateu esse problema
na querela do “realismo** contra o “idealismo’* (onde sc encontram posi­
ções muito polarizadas c muitas posições intermediárias14). A primeira
corrente, cm termos muito gerais, via a realidade como um dado, sobre o
qual o existência do sujeito em nada interfere, cm outros termos, para o
“realismo” a realidade (o objeto) existe independentemente do sujeito, llá
uma realidade ontológica independente da subjetividade. Como sc vê,
essa é exatamente a posição do positivismo - que poderia, portanto, ser
enquadrada dentre as correntes “realistas**. A segunda corrente, por outro
lado, também em termos gerais (c cm diversos graus), via a existência do
objeto condicionada peto sujeito, ou, dito de outro modo. via que a exis­
tência do mundo real só se tomava possível cm vista da existência de
uma consciência (na modernidade sc dirá: de uma razão subjetiva) que o
pçrcebc, pois aqui o mundo sc constitui através de atos mentais. Como sc
nota, a primeira corrente (o “realismo"), onde sc situa o positivismo, co­
loca nessa relação cognitiva um forte acento no objeta ; já a segunda cor­
rente (o “idealismo'*) acentua, na operação do saber, a figura do sujeito.
Apenas para citar um exemplo dessa forma “idealista” dc conce­
ber a relação sujeito-objeto, tomemos Górgias (filósofo grego pré-
socrático, pertencente ao grupo dos chamados "sofistas"), que dispunha de
algumas máximas conhecidas: a) nada existe; b) se algo existisse, nâo seria
cognoscivel; c) se fosse cognoscivcl, não poderia ser transmitido. Concen­
tremo-nos cspccialmcnte na primeira f“nada existe"). O que-ck quer dizer,
em verdade (e em coerência com a postura sofista dc colocar o “ homem
como medida de todas as coisas", como dizia Protagoras), é que nada
existe atém dos sentidos. Ou seja: é o modo particular de petccpção do
homem que dá existência ás coisas. Porque o homem possui formas espeei-

* Além, i claro, dc posições (como a hermenêutica, por exempio) cm que se bus­


ca superar a dualidade sujeito-objeto (e. portanto, a polarização coire "realismo"
e "idealismo")
Introdução Teórica à História do Direito 45

ficas de percepção que o dotam de um determinado modo e tais possibili­


dades sensitivas fornecem ao mundo uma maneira - forma - específica de
existência, que dá o sentido às coisas. Assim, em palavras pobres, pode-se
dizer que se não fosse essa percepção humana, se não fosse o homem, as
coisas não existiriam. As coisas só existem porque existe essa percepção
que dá sentido a todo um mundo lá fora. A verdade sobre as coisas está,
portanto, na subjetividade31. E tal posição filosófica fez parte em grande
medida do debate filosófico ocidental, como se pode notar pela obra do
filósofo inglês do início séc. XVIII, George Berkeley, e, em certa medida,
de todo o cham ado “idealismo alemão” do séc. XVIII.
Pois bem: como se pode perceber, essa posição “idealista” re­
presenta exatam ente o contrário daquele pressuposto de que parte o p o si­
tivismo. C om o já dito, para o positivismo, como corrente “realista” que é,
o objeto existe em si, bastante em si mesmo, e independe de quem o ob­
serva. In dependentem ente de quem observa, ele “é” daquela m aneira, tem
um estatuto que lhe é próprio. Como se vê, assim, a posição “epistem oló­
gica” do positivism o no sentido de que o objeto existe e que a realidade é
dotada de exterioridade é uma peculiaridade do seu m étodo. E m sum a,
aqui sujeito e objeto são entidades radicalmente diversas e independentes,
sendo essa um a prem issa necessária para que a operação do co n h eci­
m ento possa se ater unicamente ao objeto - pois é o objeto que deve o cu ­
par um a posição central no processo cognitivo, sendo que o sujeito (que é
dotado de outro estatuto ontológico), estando na posição de “ observante” ,
exterior ao objeto, deve perm anecer do lado “de fora” e em posição de
não interferir no objeto, sob pena de transformar a operação cognitiva em
algo não “objetivo” e - supremo pecado! - “subjetivar” a análise. M as
isso será m ais bem esclarecido na análise dos pressupostos seguintes.
3.3.2. O conhecimento é representação do real. U m a vez es­
tabelecido que sujeito e objeto são duas realidades separadas e indepen­
dentes, o positivism o pode afirm ar que o conhecim ento (o processo cog­
nitivo) é capaz de abarcar o objeto em sua integralidade, é capaz de re­
presentar o objeto da “maneira com o ele S \ porque, afinal de contas,

31 As demais premissas, acima citadas, partem do mesmo pressuposto: se as coisas


existissem (além dos sentidos) não poderiam ser cognoscíveis... pois o conheci­
mento também depende dos sentidos; finalmente, se fossem cognoscíveis, não
poderiam ser transmitidas porque... a comunicação do saber é diretamente de­
pendente dos sentidos humanos. Daí a ênfase colocada no homem como a refe­
rência e a medida das coisas: é nos limites do próprio homem (e dos seus senti­
dos, e de sua percepção) que o conhecimento se dá.
Un/;m1o Man olo 1onscoa
lo

c omo \isto no primeiro pivssuposlo, o objeto “é” . O conhecim ento, por»


tonto, podo Ji/ei o \ colado sobre o objeto. Logo, serio m elhor d i/er que o
</;/</ o objeto, mas aprésenla o objeto. Nao existe ne­
obieto n.io o /vi %
nhuma pétela, para o positivismo, no processo de conhecim ento. Ou seja.
ao registrai o objeto (pois o objeto pode ser registrado) ele se mostra da
maneira que ele “c" dado que, repita-se, o objeto “ é” .
Assim, se relembramos aquela m etáfora que fazia a analogia do
objeto do conhecimento com a paisagem e do sujeito do conhecimento
eom o pintor32, poderemos dizer que para o po sitiv ism o o conhecimento
que resultará a partir daí não é propriam ente um quadro (com o quer a
m etáfora) mas muito mais um espelho. O sujeito não tem exatamente
uma participação no processo de conhecim ento, com o deveriam os pres­
supor naquela metáfora (pois o pintor é aquele que p in ta o quadro). A
tarefa do sujeito (do “pintor”) é m eramente m ecânica, é m eram ente pas­
siva. Ele não pode “representar” a paisagem - pois isso im plicaria no fato
dele ter que im primir na pintura a sua técnica, o seu conhecim ento de
pintura, enfim, a sua “subjetividade” ; ele deve, isso sim , “ apresentar a
paisagem ” como ela é, pois o conhecimento, segundo o positivism o, tem
essa capacidade de apresentá-lo. Em suma, o sujeito /p in to r deve apenas
colocar um espelho na frente da paisagem. O conhecim en to deve apenas
refletir as características do objeto, e, por isso, o conhecim ento não pode
ser um quadro - que é algo excessivam ente dependente das qualidades de
quem o pinta - mas deve ser um espelho, que reflete de m odo fiel o ob­
jeto , independentem ente de quem esteja segurando o espelho.
Com o se vê, dizer que “o conhecimento é representação do
re a r significa dizer que não deve existir participação do sujeito na cons­
trução da paisagem /conhecim ento; o sujeito deve apenas seguir os passos
m etodológicos para, ao final, refletir no espelho aquilo que o objeto *é\
Perceba-se, portanto, como, de fato, o positivism o é u m a teoria embebida
do otim ism o do séc. XIX, como dissem os h á pouco. P ara o positivismo o
conhecim ento diz o objeto. Ele não tem u m a leitura sobre o objeto, mas
íe isso é dem onstração de otim ism o teórico) ele apresenta o objeto como
ele “é” . Nesse processo de conhecim ento do objeto, portanto, não haveria
perdas entre o m om ento da ‘p ercepção’ do objeto e o m om ento de sua
fixação no conhecim ento. O conhecim ento sobre o objeto e o próprio
objeto se identificam. 3

3" Em LÕWY, Michel. As aventuras de Kart Marx contra o Barão de Mun­


chausen, p. 14.
______________ ________ Introdução I córicn à I lislóiia do Direito 47

Tudo isso, no fundo, paradoxalmente, advem de uma crença ili­


mitada nas potencialidades da razão humana, que poderia criar um método
e uma “ciência” que seriam capa/.es de atingir o real na sua integi alidade
(pois, como diz o primeiro pressuposto visto acima, o real existe) e, ao
atingi-lo, seria capaz de representá-lo/apresentá-lo (pela “ciência” ) nessa
sua integral idade. E falamos acima que essa pretensão é paradoxal uma vez
que, no fundo, toda essa capacidade de atingir o objeto na sua pureza e na
sua integralidade, sem qualquer contaminação subjetiva (que é a verdadeira
meta da verdadeira ciência, de acordo com o positivismo), depende, na
verdade, dessa potente razão que, afinal, está na esfera do sujeito. Ou seja:
sena a razão um instrumento “neutro”, uma ferramenta asséptica e capaz
de isolar do objeto de análise, tomado na sua pureza, do próprio sujeito
racional. E esse isolamento e essa separação entre sujeito e objeto voltam a
ser tem atizadas no terceiro pressuposto, que será visto a seguir.
3.3.3. Há uma dualidade entre fatos e valores. Do mesm
modo que existe um a separação radical do objeto de um lado e o sujeito
de outro (com o diz o primeiro pressuposto), há também, de modo para­
lelo, u m a separação radical, uma verdadeira dualidade, entre os fatos de
um lado e os valores de outro. Os fatos pertencem à ordem do objeto; os
valores p ertencem à ordem do sujeito. No processo cognitivo, entende-se
que não existem valores no objeto bem como não se pode encontrar uma
instância fática com o sujeito.
É claro que no âmbito das ciências humanas (que são inventadas
pelo p ró p rio positivism o) o homem (que, na figura do “cientista” ou do
“filósofo” o cupa a função de sujeito do conhecimento) passa a ser tam ­
bém objeto do conhecim ento. A então jovem sociologia, por exemplo,
tem exatam ente com o objeto o homem como integrante da sociedade.
Mas, nesse caso (com o verem os logo a seguir), o hom em -objeto do saber
deverá ser tratad o com o “coisa”, como um “dado” - na famosa receita
que nos é dada p ela sociologia positivista de D urkheim - ou (para insis­
tirmos na term inologia adotada) deverá ser tratado como “fato” . Haverá,
portanto, na percepção do positivism o, um a radical diferença entre o ho­
mem sujeito de conhecim ento (cientista) e o hom em objeto de conheci­
mento (aquele que produz fatos sociais e é observável e quantificável).
Portanto, fatos e valores correspondem exatamente à separação
entre objetos e sujeitos; assim como existe uma enorme distinção entre
sujeito e objeto, h á igualm ente um fosso que separa fatos e valores. E per­
ceba-se que, p ara o positivism o, não há somente uma possibilidade de se-
48 Ricardo M arcelo F on seca

paração, mas, para além disso, há um a necessidade dessa separação, pois


não se pode fazer um conhecim ento adequado se não se separam fatos e
valores. A operação cognitiva que os aparta irá possibilitar que todos os
holofotes recaiam apenas nos fatos, no objeto. D essa form a com pleta-se o
ideal de um processo cognitivo perfeito para o p ositivista que é, como
dissemos, esgotar o objeto, refleti-lo na sua pureza. Tudo isso para que seja
possível, enfim, um conhecimento que represente/apresente o real.
Essa separação entre fatos e valores (que é correlativa à separação
entre sujeito e objeto) possibilita ao positivismo afirmai* (com o adiantam os há
pouco) que o ideal do saber é que ele seja sempre plenam ente objetivo. Esta
é, para essa corrente, a única maneira de elaborar um conhecim ento válido.
Se não se concentra exclusivamente no objeto (nos fatos), podem ocorrer
indesejados resquícios do sujeito (dos valores), o que com prom ete a “ cientifi-
cidade” do processo. Se fatos e valores são misturados, o processo de conhe­
cimento é contaminado com subjetividade. O conhecimento deixa de ser
objetivo já que a apreciação do objeto sofreu uma maquiagem de valores.
Todo esse aparato “epistemológico" de funcionam ento do positi­
vism o assumiu alguns contornos específicos nas recém -inventadas “ ciências
hum anas” (aqui compreendida sobretudo a sociologia, mas tam bém , suces­
sivam ente, a “ciência da história", a antropologia, psicologia etc.). Nestas
esferas, de fato, é possível vislumbrar decorrências destas prem issas epis­
tem ológicas aplicadas específicamente ao “hom em " tom ado enquanto ob­
jeto científico, de modo a ser possível falarm os em pressupostos do positi­
vism o nas ciências humanas - que constituem o meio do cam inho entre os
pressupostos “epistem ológicos” do positivism o e aqueles pressupostos
específicos do positivism o no conhecim ento histórico.

3.4 PRESSUPOSTOS DO POSITIVISMO NAS


CIÊNCIAS HUMANAS

N esse ponto seguirem os os passos de M ichel Lõw y33, que pro­


cura m inudenciar o funcionam ento do p ositivism o no âm bito das ciências
hum anas, por m eio do que ele denom ina “premissas estrntiiradoras do
sistema” positivista no âm bito das ciências sociais. C ham am os a atenção
para o fato de que a com preensão dos pressupostos colocados pelo reteri-

33
Idem , p. 17 e ss.
liifiO'liKf;io I r ú ii( ;i ;i I lr,tó»i;i do IX o Ho 40

do au to r, o q u e a g o ra to m a m o s do e m p ré stim o , é d e p e n d e n te (o u polo
m enos é m u ito fa c ilita d a ) pelo a d e q u a d a c o m p re e n sã o doo c h a m a d o s
“pressupostos episf('molóyJcos”7 (jue a c a b a m o s do en u n ciar.
3.4.1. À socied a d e é regida por leis na lurais, etern a s, im u tá ­
veis, in d ep en d en tes da vontade e da açáo hum anas, e na vida social
reina um a h arm on ia natural. C o m o se vò, o p o n to d e p a r tid a p a r a a
d e m a r c a ç ã o d o m é t o d o d a s c iê n c ia s p a ra o p o s itiv is m o é a e x is tê n c i a d e
um n a tu r a li s m o n a s o c i e d a d e , q u e é c a lc a d o s o b re le is im u tá v e i s e e t e r ­
n as. A s s im c o m o a n a tu r e z a s e ria re g id a p o r a lg u m a s le ís i n v a r ia n t e s
(c o m o a lei d a g r a v i d a d e o u d o m o v im e n to da te rra em to r n o d o s o l ) , q u e
in d e p e n d e m d a v o n ta d e e d o d e s e jo d o h o m e m , ta m b é m a s o c i e d a d e é
d o ta d a d e le is in v a r iá v e i s , “ n a tu r a is ” , q u e e s c a p a m a q u a lq u e r fo r m a d e
c o n d ic i o n a m e n t o h u m a n o .

O s p o s itiv is ta s a c re d ita v a m n a s leis a b s o lu ta s em re la ç ã o a s o c i e ­


d a d e . li x is ti r ia m , a s s im , re g ra s in v a riá v e is de fu n c io n a m e n to d a s s o c i e d a ­
d e s, c o m o in v a r iá v e l é a “ lei d a g r a v id a d e ” , p o r e x e m p lo , h is so , in c lu s iv e ,
q u e to r n a p o s s ív e l a c ie n tif lc id a d e n a s c iê n c ia s h u m a n a s . D e s c o b r in d o a s
le is q u e r e g e m a s o c ie d a d e , s e g u n d o os p o sitiv ista s, p o d e m o s to r n a r o s e u
e s tu d o a lg o tã o s e g u r o q u a n to sã o s e g u ra s as c iê n c ia s n a tu r a is (a fís ic a , a
q u ím ic a a b io lo g ia ) d e um m o d o g e ra l. P e rc e b a -se , p o rta n to , q u e o p o s i t i ­
v is m o u n e , c m u m p rim e iro m o m e n to , a n a tu re z a e a s o c ie d a d e , e m b o r a
is so fiq u e a in d a m e l h o r d e m a r c a d o no se g u n d o p re s s u p o s to .

3.4.2. A sociedade pode ser episternologicamente assim ilada


pela n atureza, sendo estudada pelos mesmos métodos e processos das
ciências naturais. S e e x is te m leis in v a riá v e is ta n to na n a tu re z a q u a n to n a
s o c ie d a d e , a s o c ie d a d e p o d e se r e stu d a d a da m e sm a m a n e ira q u e s ã o e s t u d a ­
das as c iê n c ia s n a tu r a is , o u se ja , a p a rtir d o s m e s m o s m é to d o s e d o s m e s m o s
p ro c e s s o s q u e s ã o ali u tiliz a d o s . T a n to n u m c a so q u a n to n o o u tro , o “ o b je to ”
(q u e e x is te e q u e p o d e s e r re p r e s e n ta d o /a p re s e n ta d o p e lo s a b e r) é q u e d e v e
ser b u s c a d o p e lo c ie n tis ta . D o m e s m o m o d o q u e um c ie n tis ta n a tu ra l s e co­
loca n u m a p o s iç ã o d e “ e x te r io r id a d e ” c o m re la ç ã o a um fe n ô m e n o fís ic o , a
um a re a ç ã o q u ím ic a o u a u m a re s p o s ta b io ló g ic a em um e x p e r im e n to d e
la b o ra tó rio , ta m b é m a s s im o c ie n tis ta so cial d e v e se c o lo c a r “ d e fo r a ” d o
o b jeto q u e e le a n a lis a , a in d a q u e tal o b je to se ja o p ró p r io h o m e m . O m o d o
c o m o o c ie n tis ta n a tu ra l a b o rd a s e u “ o b je to ” (s e ja e le u m a s u b s ta n c ia m in e ­
ral ou um ra to d e la b o r a tó r io ) n ã o d e v e s e r su b s ta n c ia l m e n te d iv e r s a d o
m o d o c o m o c ie n tis ta s o c ia l a b o rd a o se u (o h o m e m n a s o c ie d a d e p re s e n te
ou p a ss a d a ). N u m m o d o e n o u tro , p o r s e r “ e x te r io r” a o su je ito , o o b je to d e v e
ser tra ta d o c o m o “ c o is a ” . T o m a s e n tid o a q u i a a firm a ç ã o d e D u rk h e im o
Ricardo Marcelo Ronscca
50

fundador o expoente da sociologia positivista - presente no clássico As re-


oras do método sociológico, no sentido de que “... a primeira regra e a
wais fundamental é a de considerar os fatos sociais como coisas... Coime,
de tato, proclamou que os fenômenos sociais selo fatos naturais submetidos
a leis naturais. Com isso, ele implicitamente reconheceu o seu caráter de
. • ~ 7 r ~ . „34
coisas: pois nao na senão coisas na natureza ' .
Portanto, existe uma homogeneidade epistemológica entre ciências
humanas e ciências naturais, segundo o positivismo. As ciências humanas,
assim, nascem a partir do modelo epistemológico das ciências naturais.
3.4.3. As ciências naturais e sociais devem limitar-se às ex
plicações causais dos fenômenos de forma objetiva, neutra, livre de
juízos de valores ou ideologias, de noções prévias e preconceitos.
Note-se, antes de tudo, como a compreensão desse pressuposto depende
fundamentalmente da aceitação daqueles pressupostos “epistemológicos"
do positivismo. Somente na medida que se separa o objeto do sujeito
(primeiro pressuposto epistemológico), tomando esse objeto, isolado do
sujeito, como passível de ser espelhado no conhecimento (segundo pres­
suposto epistemológico) e, na mesma medida que se separam fatos e va­
lores (terceiro pressuposto epistemológico), é que se toma viável a crença
na possibilidade ilimitada de um conhecimento objetivo que esteja livre
de juízos de valores e ideologias, sob pena de ser contaminado.
Trata-se, aqui, do princípio da neutralidade axiológica das ciências
humanas, ou seja, no princípio de que se pode fazer a ciência do homem
(como também ciência natural) deixando os valores de lado. Sendo a
axiologia o estudo dos valores humanos, falar em princípio da neutrali­
dade axiológica da ciência significa acreditar na possibilidade do conhe­
cimento científico ser elaborado sem qualquer intromissão valorativa. A
função do sujeito deve se limitar a captar os fatos (segundo um procedi­
mento metodologicamente controlado: o método positivista), de modo
objetivo, deixando-se os valores de lado.
Pois bem: a partir destas premissas do positivismo nas ciências
humanas (que pressupõem a existência de “leis sociais", que acreditam
numa homologia metódica entre ciências naturais e ciências sociais e que
apostam firmemente na neutralidade axiológica do conhecimento cientí­
fico), pode-se finalmente deduzir de modo consequente alguns pressu­
postos do positivismo na história.

34
Idem, p. 26.
Introdução Teórica à História do Hiivilo 51

3.5 O P O S IT IV IS M O NA HISTÓ RIA E SE US


PRESSUPOSTOS

É exatamente o historiador alemão Leopold von Rankc o rnais


representativo autor daquilo que aqui está se chamando “história positi­
vista \ e sobre quem se falará a seguir - que formula em modo mais ou
menos explícito alguns postulados teóricos daquela que deveria ser a
k‘história científica” por excelência e exatamente sobre os quais vai se
constituir o terreno onde vai brotar boa parte da produção historiográfica
das décadas seguintes (e também do século seguinte). Tais postulados,
como se poderá verificar, podem ser considerados com uma aplicação
dos pressupostos do positivismo na epistemología e nas ciências humanas
(antes já vistos), com vistas a formar um saber historiográfico e a formar
a “ciência da história”. Sigamos então os passos de Ranke, na leitura que
foi dada por M artin e Bourdé35, para caracterizar os pressupostos do po­
sitivismo na história. São eles:
3.5.1. Não há nenhuma interdependência entre o sujeito co­
nhecedor (que é o historiador) e o objeto do conhecimento (que é o fato
histórico); por hipótese, o historiador escapa a qualquer condiciona­
mento social, o que lhe permite ser imparcial na percepção dos aconte­
cimentos. O que se pode ver aqui neste primeiro pressuposto? Em primei­
ro lugar, que há um a separação radical entre o sujeito e o objeto. O objeto,
a matéria-prima, aquilo pelo qual se deve prestar atenção em relação ao
conhecimento histórico são os fatos históricos. E por hipótese o historiador
escapa a qualquer condicionamento social, o que significa nada mais que o
fato de que ele deve aplicar o princípio da neutralidade axiológica para
atingir a “im parcialidade” requerida a todo historiador - e é claro que para
isto deve este m esm o historiador aceitar a separação entre fatos e valores,
devendo-se ater apenas aos fatos deixando os (seus) valores de lado.
Fica claro, por outro lado, que além do débito que este pressu­
posto tem para com aquele da exterioridade do objeto com relação ao
sujeito, é igualm ente perceptível, na base dessa afirmação rankeana, a
estrita separação (dualidade) entre fatos (os fatos históricos, aquilo que
afinal deve ser “conhecido”) de um lado, e dos valores (aquela instância
subjetiva que é axiologicam ente carregada - isto é, o historiador), de

35 BOURDÉ, Guy; MARTIN, Hervé. As Escolas Históricas. S/l: Publicações


Europa América, s/d,. p. 114.
. . R h .I h I*' M . t l . r l . » I OIV *'« -1

tn;i•,,> j \ i.ito. cst.ís vhiiís entidades que sáo concebidas corno oníologi-
v.m unk ^cp.nadas. dc\cm assim perm anecer a fim de que o historiador
vsvijcitor atinja os fatos históricos (objeto) de m odo “ im parcial .
3 .5 . 2 . A H istória existe em si, o b jetiv am en te, tem m esm o um a
dada form a, um a e stru tu ra definida que é d ire ta m e n te acessível ao
conhecim ento. Mais uma vez se observa com este pressuposto eloquente
como, para o positivismo, a história existe em si e que a história com o ob­
jeto do saber (como passado histórico a ser reconstruído) existe indepen-
dentemente da percepção que o sujeito, o historiador, dá a este objeto. A o
vislumbrar até mesmo uma forma e uma estrutura no objeto (no caso, o
passado histórico), leva-se o pressuposto da exterioridade do real até as
últimas consequências. E a segunda parte deste pressuposto rem ete ao fato
do conhecimento ser representação do real: de fato estas determ inadas
“ formas e estruturas” do passado histórico são consideradas com o sendo
diretamente acessíveis ao conhecimento. Ou seja: já que existe - em m odo
perfeitamente delimitado, cristalino e definido - esta configuração histórica
em si mesma, é consequente a conclusão no sentido de que toda esta es­
trutura histórica (real, identificável) pode ser, toda ela, captada pelo saber.
Assim, se o saber “objetivo” (aquele livre dos resquícios axiológicos do
sujeito) tem a vocação de ser um espelho fiel do próprio objeto (lem brem o-
nos mais uma vez da paisagem e do espelho), o conhecimento histórico (ou
“ saber histórico” ou “ciência da histórid\ pouco im porta a term inologia),
para a corrente positivista, tem a capacidade de espelhar o “passado histó­
rico” de modo fiel (desde que, é claro, sejam seguidos corretam ente os
passos “científicamente” recomendados).
3.5.3. A relação cognitiva é conforme um modelo mecanicista.
O historiador registra o fato histórico de maneira passiva, como o es­
pelho reflete a imagem do objeto. Este pressuposto explicita a cham ada
“teoria do reflexo”, cunhada por Ranke - além de explicitar, com o se pode
notar facilmente, toda a discussão epistem ológica do positivism o. A borda a
ideia de que o passado histórico, como objeto de análise da nossa relação
de conhecimento, tem apenas que ser refletido, cabendo ao historiador
desempenhar nesse processo apenas um a função m ecânica. O historiador
não deve pretender “recriar” a paisagem que lhe está adiante (o passado),
mas, pelos passos metodológicos aconselhados, fazê-lo refletir fielm ente,
fazer com que a realidade se apresente e tudo isto sem a interferência sub­
jetiva, sem a interferência dos valores deste historiador. V oltando ainda
uma vez àquela metáfora já tantas vezes repetida, o historiador, ao invés de
ser o “pintor” da paisagem que lhe afronta, deve ser tão-som ente aquele
Introdução Teórica à História do Direito 53

que segura um grande espelho (função mecânica, passiva, não criativa),


devendo tão-som ente garantir que se opere esse reflexo de modo fiel, de
modo a não evidenciar nenhuma “distorção” no objeto.
3.5.4. Incumbe ao historiador não julgar o passado nem
truir seus contemporâneos mas simplesmente dar conta do que real­
mente se passou. Ressalta aqui a opção metodológica (mais do que isso, a
necessidade) de se estabelecer, no confronto do historiador com o passado
histórico, a radical separação entre valores e fatos, a aplicação estrita do
princípio da neutralidade axiológica, sob pena de inquinar a pesquisa histó­
rica com a m ácula da subjetividade e, dessa forma, tom á-la um saber não
“científico” . O historiador deve ater-se tão-somente aos fatos, deixando de
lado seus valores. E atendo-se somente aos fatos, o historiador, para o po­
sitivismo, terá aberto as vias para descrever aquilo que “realmente se pas­
sou”. Percebe-se, portanto, que a verdade histórica (“aquilo que realmente
se passou ”) é a m eta do conhecimento histórico positivista, é um objetivo
que pode ser atingido (ao menos idealmente) se a pesquisa, do ponto de
vista m etódico, não “ceder”, sobretudo às tentações subjetivistas.

3.6 A “HISTÓRIA POSITIVISTA” E SEU CONTEXTO


HISTÓRICO E TEÓRICO

D epois desse traçado que, para chegar às características (os


“pressupostos”) da história positivista, teve que antes passar pelas pre­
m issas epistem ológicas do positivismo e pelos pressupostos do positi­
vismo nas ciências hum anas, convém indicar, ainda que brevem ente, o
contexto histórico e teórico em que surgiu e desenvolveu-se esta “história
tradicional” . Com isso pretende-se, ao menos em parte, explicar o “m ol­
de” onde se encaixam as características desta historiografia antes relacio­
nadas, bem com o m ostrar como essa forma específica de abordagem do
passado hum ano, m algrado as críticas que lhe possam ser feitas hoje,
constituiu, na época, um a instigante novidade metodológica.
Como já acenamos alguns itens acima, falar em “positivismo histó­
rico” ou “história tradicionar já pressupõe, evidentemente, um recorte bem
delimitado na realidade historiográfica e requer uma homogeneização de
uma determinada produção e de alguns métodos. A historiografia do séc.
XIX, com efeito, verificou até mesmo uma certa multiplicidade metodológi­
ca, com a emergência de autores talentosos, metodologicamente inovadores
54 Ricardo M arcelo l onscca

c ao mesmo tempo impassíveis de serem reduzidos a uma única vertente


teórica. Não se pode dizer, portanto, que a historiografia oitocentista seja um
bloco monolítico “positivista". Longe de ser unicam ente preocupada com
aspectos políticos, militares e diplomáticos, como muitas vezes se diz, a
historiografia do séc. X IX contempla muitos cultores da história religiosa, da
historia sociocultural etc. Peter Burke'"* assinala o exem plo de Edward
Gibbon (com seu Declínio e Queda do Império Romano) , que articula à
narrativa de acontecimentos políticos um novo tipo de história sociocultural.
Também servem de exemplo Jules M ichelet e Jacob Burckhardt, que escre­
veram mais ou menos na mesma época (1865 e 1860, respectivam ente) suas
histórias sobre o Renascimento, que cultuavam uma visão de história m ais
ampla que os seguidores da história política'*: enquanto o prim eiro defendia
uma história que se poderia denominar hoje como “da perspectiva das clas­
ses subalternas", o segundo interpretava a história como um cam po onde
interagiam as forças do Estado, da Religião e da Cultura. Tem os ainda o
exemplo de Fustel de Coulanges que no seu clássico A Cidade Antiga (de
1864) privilegiava a história da religião, da família e da m oralidade em de­
trimento da história política09. Mesmo M arx e Engels tam bém ofereciam um
paradigma histórico que em muito se afastava da historiografia política e
factual. Para encerrar estes exemplos, há que se citar o historiador alem ão
Gustav Schmoller, o inglês W illiam Cunningham e o francês H enri Hauser,
todos eles corifeus de uma historiografia do tipo econômica36378940. Tal m ultipli­
cidade temática, aliás, é resultado de todo o florescer de um a “Nova Histó-
ria” que iniciou desde o séc. XVIII. E foi esse florescer que de certo m odo
foi estancado pelo importante advento do movimento historiográfico lidera­
do por Leopold von Ranke, em meados do séc, XIX, que trouxe um novo
padrão metodológico à historiografia. Aqui, pode-se dizer, nasce o que cha­
mam os de “história tradicional (ou história positivista).
Esta “história fradicionaF, história “ rankeana” ou sim ples­
m ente “história positivista ” é que se to m ará h egem ônica na historiografia
europeia do séc. X IX , m orm ente na A lem anha e na F rança. P ode-se dizer

36 BURKE, Peter. A Escola dos “Annales” (1929-1989): a revolução francesa da


historiografia. 3. ed. São Paulo: Unesp, 1991. p. 18-19.
37 Com publicação no Brasil: GIBBON, Edward. Declínio e queda do império
romano. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
38 BURKE, Peter. A Escola de “annalles”, p. 18-19.
39 Idem, p. 19.
40
Idem , p. 18-19.
Introduyao I c ó lic a à História cio Direito 55

que o áp ice de seu p re stig io o correu entre 1880 e 1930, ao m enos na


França41, M as seu s refle x o s no B rasil tam bém foram significativos, e são
sentidos até hoje.
C o m o d ito, L e o p o ld v o n R an k e é o expoente deste novo enfo­
que m e to d o ló g ic o . D e v e -se m ais u m a v ez ressaltar, todavia, que R anke,
do p o n to de v is ta te ó ric o , era um personagem m uito com plexo, já que
trazia c o n sig o p e sa d a m e n te as influências da escola h istó rica (de onde
proviria a g ra n d e v alo riz a ç ã o dos “perso n ag en s” e dos “n o m es” n a n arra­
ção h is tó ric a ) e so b retu d o do rom antism o alem ão, do qual m uitos autores
o c o n sid e ra m u m do s ep íg o n o s42. G eralm ente ele é visto com o o in iciador
de u m a v ira g e m h isto rio g rá fic a im portante, que p assa da “ crô n ica” n a r­
rativa p a ra o “re g istro ” docum ental. É aclam ado com o o prim eiro for-
m u la d o r de u m a te o ria séria da crítica das fontes históricas e, enfim ,
com o o a u to r de u m a verd ad eira “revolução copernicaná ’ n a h isto rio g ra ­
fia do séc. X IX 43. E, de fato, R anke foi um personagem im p o rtan te no
p ro c e sso de p ro fissio n a liz a ç ã o da H istória e um ator central, dentro do
fu ro r d is c ip lin a r cien tificista do séc. X IX , em transform ar a H istó ria em
u m ra m o re sp e ita d o do saber acadêm ico. R anke busca, com seu re c e itu á ­
rio, d ar se rie d a d e acadêm ica e científica à H istória. T anto que o seu p ri­
m eiro g ra n d e m an d am en to é efetuar um a revolução das fontes. D e fato,
p a ra o h is to ria d o r alem ão as fontes a serem usadas pelo h isto riad o r têm
que ser u n ic a m e n te oficiais, docum entais, pois desse m odo p reten d e-se
a tin g ir u m a c erta “seg u ran ça” no seu uso e m anejo, escapando das cren ­
ças, das estó rias, e de outros recursos com um ente utilizados p o r m uitos
que se p ro c la m a v a m “h isto riad o res” . H á, assim, um a verd ad eira obsessão
p elo s d o c u m e n to s oficiais, estatais, públicos, de cartórios, po rq u e estes
d o c u m en to s re v elariam , sem desvios ou enganos (e de m odo direto) os
fatos (co m o visto acim a, p ara o positivism o o cientista deve se ater rigoro­
sam ente aos fatos, aos objetos). Tudo isso, entre outras coisas, profissionali­
za o o fício do h isto riad o r, que academ icam ente passa a ser visto com o
aquele q ue se en ca rre g a da bu sca dessa “verdade h istó rica” . C om Ranke,
afinal de co n tas, in au g u ra-se, num certo sentido, aquilo que podem os
cham ar de “historiografia profissionaF m oderna.

41 B O U R D É , Guy; M A R T IN , Hervé. As escolas históricas, p. 112.


42 Vide, por exem plo, CASSIR ER, Emst. Storia delia filosofia moderna: il pro­
blema delia con oscen za nella filosofia e nella scienza (lí 1. I sistemi poslhegelia-
ni, tom o prim o). Torino: Einaudi, 1976.
BURKE, Peter. O mundo como teatro: estudos de antropologia histórica. Lis­
boa: D ifel, 1992. p. 223-234.
56 Ricardo M arcelo Fonseca

Este modelo “ rankeano” cruzou fronteiras e tam bém fixou raízes


na academia francesa, que desenvolveu, sob aquela inspiração teórica, sua
própria corrente historiográfica tradicional: a “ escola metódica”, estabele­
cida em tom o da fundação da “ revista histórica”, em 1876, por G. M onod
e G. Fagniez44. Os pilares da “ escola metódica” não diferem muito dos
pressupostos rankeanos. Ela reclam ava total isenção do pesquisador e total
independência com relação a qualquer religião, doutrina ou partido. Con­
clamava a um trabalho rigoroso junto às fontes dos arquivos e adotava uma
teoria do conhecimento em que a relação entre o sujeito (o historiador) e o
objeto (o docum ento) não é explicitada. Buscava-se o virtual “apagamen-
to,? do historiador por detrás dos textos produzidos45. Estes pressupostos
tiveram seguidores influentes nos círculos universitários franceses, dentre
os quais se destacaram Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos, que,
juntos, definiram as regras da disciplina histórica (na visão da “escola m etó­
dica”) num a obra que se tom ou o guia para toda uma geração de historiado­
res: Introdução aos estudos históricos, que teve sua primeira edição em
1898. E im portante citar também, nesse contexto francês, a presença de
E m est Lavisse, que coordenou o projeto de composição de importante obra
denom inada História da França da época galo-romana à Revolução,
concebida em 1890, que se orientou estreitamente pelos vetores indicados
p ela Revista Histórica46.
Todavia, apesar da importância da obra de Leopold von Ranke
para a disciplina histórica, há aqueles, como Peter Burke, que apreciam o
im pacto da sua obra (e de seus seguidores além do Reno) pelo lado negativo:
de fato, a valorização da história política e o desprezo pelos outros setores de
investigação (o que culm inou com o já mencionado “estancamente” da mu-
tiplicidade m etodológica até então existente no séc. XIX), tom a a suposta
“revolução copernicana” operada por Ranke no âmbito historiográfico uma
verdadeira “contrarrevolução” - pois a rigidez de seus pressupostos tiraria o
espaço de um a historiografia feita ao estilo de um Burckhardt, um Coulan-
ges, um M ichelet etc. - o que, na verdade, faria dele, usando as palavras de
Burke, um reacionário na evolução da historiografia47.
Polêm icas à parte - e aqui fazem os u m a ligação do que foi visto
antes com aquilo que se desenvolverá a p artir de agora - , se tom arm os

44 BOURDÉ, Guy; MARTIN, Hervé. As escolas históricas, p. 97-98.


45 Idem, p. 102.
46 Idem, p. 105-107.
47 Idem.
I n tr o d u j o I coi ion à llisioi u do Dnvih
57

todos aqueles pressupostos teóricos antes assiimhulos (em particular


aqueles teíeieutes a histoiiah íesultara, de lato, unía historiografía com
algumas earaetenstieas nuus ou menos definidas; sn á unía historia cen­
trada sobre os tatos e, dentre esses latos, serao os eventos políticos, mili­
tares e diplomáticos aqueles considerados com efetiva "dignidade históri­
ca". Daqui deriva a grande tendencia dessa forma de ía/er historia a pri­
vilegiar os grandes ev entos e os grandes personagens do passado (e aqui
mais urna vez é de se notar a influência que Ranke traz da “Escola histó­
rica" alema). Tudo isso, como se pode prever, implicará num certo ocaso
de urna historia do tipo “cultural", ou “religiosa", ou “social’', ou mesmo
"económica". Está historia positivista será urna historia que, exatamente
por acreditar que os fatos podem ser isolados do sujeito que os confronta
(o historiador) e podem ser percebidos em seus contornos precisos, terá a
capacidade de descrever a verdade sobre os fatos históricos (que a este
ponto constituem, para o positivismo, a própria Historia), pois a análise
do objeto pode ser assimilada pela ciência (aquela ciência que é metodo­
logicamente bem informada - isto é, a ciência positivista) sem que haja
qualquer perda ou redução: o saber histórico tem a capacidade de repro­
duzir fielmente os fatos históricos. É por isso que esse tipo de história
não raro assume contornos de “história universal”, “história geral” ou
outras pretensões totalizantes do gênero, pois a potência do saber (ali­
mentado pelo otimismo científico do séc. XIX) dá também aos historia­
dores a impressão de poder abarcar todo o passado humano. E, sobretudo,
será uma historiografia que se pretende “objetiva” e “neutra”, uma histo­
riografia que segue o princípio da ‘neutralidade axiológica’ das ciências
humanas, pois ela acredita que qualquer influxo de subjetividade conta­
minará o objeto e, portanto, invalidará a pesquisa.
Pois bem: uma vez enunciados, ainda que de modo muito gené­
rico, os contornos essenciais de uma historiografia rankeana (que aqui
definimos como “positivista”), é chegado o momento de afrontar alguns
dos problemas mais centrais desse tipo de abordagem.

3.7 ALGUNS PROBLEMAS NA ABORDAGEM


POSITIVISTA

E claro que muito poderia ser dito a respeito das implicações


desta “história positivista” ou a respeito dos seus limites e de seus impas-
s xs' Ricardo Marcelo í?onseca____________________________

sos. Av|u¡ nào é o lugar pnra intentar um discurso exaustivo a este propósi­
to. lodavia, algumas das críticas centrais a esse m odo “ran k ean o ” de vis­
lumbrar o passado serào aqui tecidas, até porque boa p arte d a historiografia
subsequente constrói suas alternativas a partir das críticas que são formula­
das a essa "história tradicional”. Assim sendo, nos lim itam os a apontar três
problemas, aqui considerados centrais, da abordagem positivista da histó­
ria: o modo pouco matizado como se dá a relação sujeito-objeto; o pressu­
posto (tomado de modo absoluto) da necessidade de um a neutralidade axio-
logica no conhecimento; o excessivo valor dado ao evento singular na sua
abordagem, com as consequências que daí derivam.
Para o positivismo, a primeira questão acim a m encionada - a re­
lação exeessivamente linear e simplista que é estabelecida entre sujeito e
objeto demonstra, paradoxalmente, que na verdade essa corrente teórica
nào coloca de um modo sério o problema do sujeito e do objeto. E isso
porque entre sujeito e objeto efetivamente há um problem a - e dos mais
complexos. O positivismo escapa desse dilema, ignorando esse aspecto
central da discussão do conhecimento. Exatamente por isso é que, nesse
sentido, o positivismo pode ser considerado uma forma de dogm atism o48,
pois o dogmático, em termos de teoria do conhecim ento, é exatamente
aquele que ignora o difícil problema do conhecimento, deixando-o de lado
ou eolocando-o “debaixo do tapete”. De fato, para o positivism o este pro­
blema simplesmente não é colocado pois, ali, há uma espécie de autoevi-
dência do objeto, que poderia ser apreendido pelo sujeito de um modo
com pleto e definitivo - o que é muito tributário, como já dissem os, de uma
certa forma do séc. XIX de encarar a questão do saber e da ciência. O su­
jeito (historiador) teria uma espécie de consciência absolutam ente autóno­
ma e potente o suficiente para, a partir de uma perspectiva completamente
externa ao objeto (o passado histórico), percebê-lo na sua integralidade e
conhecê-lo nessa sua exterioridade - de modo que o historiador será capaz
de conhecer o passado - parafraseando Ranke - "como ele foi \
Todavia, as coisas se apresentam de um m odo um tanto mais com­
plexo. Afinal, o passado histórico não se apresenta como um espetáculo di­
ante de um observador submisso e neutro, mas implica, até certo ponto,
numa construção do próprio sujeito (historiador)49. O historiador do direito

s HRSSKN, Johannes. Teoria do conhecimento. São Paulo: Martuo F«1: c


1999. p. 29-30.
I1HSPANHA, Antônio M. História das instituições: épocas mcd:e\ui e
na. Coimbra: Almedina, 1982. p. 7.
Introdução Teórica à História do Direito 59

português António Manuel Hespanha, a respeito dessa questão epistemoló­


gica, disse com pertinência que a primeira das estratégias a ser adotada

deve ser a de instigar uma forte consciência metodológica no meio dos


historiadores do direito, problematizando a concepção ingénua segun­
do a qual a narrativa histórica não é senão o relato a-problemático,
corrido e fluido daquilo que “realmente aconteceu Porque, de facto,
os acontecimentos históricos não estão aí, independentes do olhar do
historiador, disponíveis para serem descritos. Eles são criados pelo
frabalho do historiador, o qual selecciona a perspectiva, constrói ob-
jectos que não têm uma existência empírica50

O segundo dos problemas diz respeito à questão da neutralidade


axiológica do historiador diante do seu “objeto”, o passado. E, com o já
vimos, esse problem a é resolvido facilmente pelo positivism o n a esteira do
esquem atism o que sofre a dualidade sujeito-objeto: na m edida em que su­
jeito e objeto são realidades tão facilmente distinguíveis e separáveis para
efeitos do processo cognitivo, a objetividade dos fatos pode igualm ente ser
apartada da subjetividade dos valores, de modo que a efetiva “ciência” vai
ser centrada unicam ente sobre os fatos e seu caráter objetivo.
O problem a da neutralidade absolutamente não é sim ples de ser
resolvida. A esse respeito Boaventura de Souza Santos, p or exem plo, faz
um a distinção entre, de um lado, a “objetividade” (que é u m a m eta a ser
seguida, pois é corolária da honestidade que todo pesquisador deve te r no
processo cognitivo) e, de outra, a “neutralidade” (que não seria n u n ca al­
cançável, ao m enos não naqueles moldes im aginados pelos positivistas do
séc. X IX )51. Já E ric H obsbaw m , analisando o delicado p roblem a do “ en­
gajam ento” do historiador, diferencia aquele terreno em que se p ode afir­
mar sobre a veracidade de fatos, de um lado (que são evidências que in d e­
pendem do historiador) e o terreno em que os fatos são escolhidos e com ­
binados (que são operações que não podem ser com preendidas sem um
sujeito-historiador que as execute - e, logo, sem um grau, m aio r ou m enor,
de carga subjetiva)52. D e qualquer m odo, a par da discussão sobre essa

50 HESPANHA, António M. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio. 3.


ed. S/l: Europa-América, 2003. p. 24.
51 SANTOS, Boaventura de Souza. Crítica da razão indolente: contra o desper­
dício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000.
52 HOBSBAWM, Eric. Sobre história: ensaios. Tradução de Cid Knipel Moreira.
São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 140.
Ricardo M arcelo f onseca

questão. e tranquila a convicção no sentido de que aqueta cren ça dos cien­


tistas sociais oitocentistas (incluindo-se os historiadores) no sen tid o de que
e impossível produzir um conhecim ento asséptico e livre de quaisquer
"j u í z o s de valor ou ideologias5’ não pode m ais ser sustentada. A p resen ça
decisiva do sujeito no processo de conhecim ento (que escolhe o tem a ob ­
jeto da pesquisa, recorta e especifica a abordagem , escolhe os m é to d o s e
seleciona um específico modo de exposição) não autoriza a cren ça n a o b ­
jetividade intocada de um objeto de saber. N em seria n ecessário in g re ssa r
em discussões ligadas à psicanálise (a carga inconsciente do sujeito, que,
aqui. não pode ser vislumbrado como um a unidade coerente e in cin d ív el)
ou à filosofias mais recentes como a de Foucault (que coloca a n u as re la ­
ções entre "sab er' e “poder”5j) para demonstrar como o conhecim ento n ã o
é um resultado “puro” de uma operação que busca “refletir” o objeto, m as
um processo complexo no qual o sujeito interfere decisivam ente n a ‘co n s­
trução* do resultado final de uma pesquisa científica.
Já o valor dado aos eventos ou fatos na abordagem histo rio g ráfi-
ca (o terceiro dos problemas abordados), que é típico da “ historiografia
positivista\ traz consigo, também, suas consequências nocivas. Sendo os
"fatos" o insumo básico desta historiografia, e sendo colocada de lado a
questão da subjetividade (como as indagações de quem e por que são
escolhidos determinados fatos, e por que outros são preteridos) a “h istória
positivista” tende a distanciar-se da dinâm ica histórica efetiva, p ro ced en ­
do a um conhecimento presentista ou retrospectivo. C om efeito, não raro
essa historiografia se caracteriza por ser aquela que “projecta sobre o
passado categorias sociais e mentais do presente, fazendo do devir histó­
rico um processo (escatológico) de preparação da actualidade”*54.
Com isso, podemos identificar um a consequência direta deste
procedimento que reduz a realidade histórica a um encadeam ento dos fa­
tos: trata-se justam ente da necessária exclusão que tal opção produz. É que
na medida em que a história é vista como um a sequência linear e h arm ôni­
ca de fatos, que se encadeiam de m odo lógico no tem po, está-se elaboran­
do, na verdade, uma lógica da exclusão de todas as perspectivas e p o ssibi­
lidades históricas, ocorridas ou frustradas, m as que acabaram ficando ao
largo do projeto que regeu o encadeam ento dos fatos eleitos. Em outras

Sobretudo em FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola,


1996; FOUCAULT, Michel. A microfísica do poder. 8. ed. Tradução de R o­
berto Machado. São Paulo: Graal, 1989.
54 HESPANHA, António Manuel (Org.). Justiça e iitigiosidade: história e pros­
pectiva. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993. p. 51.
Introdução teorica ã 11istoria do Direito 61

palavras, e elaborado um conhecimento histórico intrinsecamente ligado a


uma lógica que e própria do historiador que redige tal história e que, por
sua vez. nào pode ser dissociada de todo um código de valores, de preocu­
pações teóricas etc., em verdade pertencentes à época do historiador (e não
à época estudada). A linearidade construída desta forma, assim, torna-se
uma deform ação grave do passado pelo filtro desta lógica da exclusão (do
presente). Com o lembra Hespanha. a partir desse procedimento, “o pre­
sente è imposto ao passado; mas, para além disso, o passado é tornado
prisioneiro de categorias, problemáticas e angústias do presente, perden­
do sua própria espessura e especificidade, a sua maneira de imaginar a
sociedade. de arrumar os temas. de pôr as questões e de as resolver”55.
A lém disso, é de se frisar que a escolha dos dados pelo historiador positi­
vista para preencherem o caminho da história não é explicitamente m otiva­
da. com o tam bém não o é a recusa em abordar outros fatos ou outras abor­
dagens. D este m odo, como uma época histórica não pode ser apreendida
em sua totalidade pelo conhecimento, o critério positivista de escolha dos
dados que preencherá nossa visão sobre tal época (pretensamente de m odo
“definitivo”) fatalm ente não deixará espaço para determinações e cam inhos
outros que não sejam aqueles pertencentes à linearidade. A riqueza e ines­
gotabilidade do real são reduzidas a uma lógica aleatória, que acaba fican­
do presa a interesses que nunca são postos a nu pela sua própria m etodolo­
gia. T odavia, os interesses que conduzem a tal tipo de história certam ente
estão ligados ao presente: a lógica da exclusão que rege o discurso históri­
co positivista é um a lógica que não pertence à época estudada, m as sim aos
condicionantes tem porais do historiador^6.

3.8 O POSITIVISMO E A HISTÓRIA DO DIREITO

A pós a breve explicação do procedim ento cognitivo do p o siti­


vism o e após a análise do funcionam ento do positivism o no conheci­
m ento da história, um estudante que já conhece os m anuais ju ríd ico s das

55 H ESPANH A, António M. Cultura Jurídica Européia, p. 21-22.


Como diz H ESPANHA, “Esta teoria do progresso linear resulta frequente­
mente de o obsei’vador 1er o passado desde a perspectiva daquilo que acabou
por acontecer. Deste ponto de vista, é sempre possível encontrar prenúncios e
antecipações para o que se veio a verificar. Mas normalmente perde-se de vista
tanto todas as outras virtualidades de desenvolvimento, como as perdas que a
evolução que se veio a verificar o rig in o u Ç Idem, p. 21)
O-
Ricardo Marcelo Fonseca

disciplinas dogmáticas poderá facilmente perceber: aquela tradicional


"itnroduçào hisroricii' (às vezes chamada, num modo peculiarmente
bacharelista. “<\scorço histórico"), que inevitavelmente antecede a abor-
danem "propriamente dita" do tema dogmático (seja ele de direito civil,
direito penal, direito do trabalho, direito comercial etc.) tem no “positi­
vismo histórico" a sua inspiração teórica, ainda que o jurista que escreveu
essa introdução (no mais das vezes jejuno em história, e mais ainda em
teoria da história) nem se dê conta disso. A inspiração positivista das
"introduções históricas" que, quase como um rito acadêmico, povoam os
manuais da dogmática jurídica (e também outras obras não manualísti-
cas). vem, ao menos no caso brasileiro, do próprio ambiente cultural cir­
cundante - que é impregnado das premissas positivistas - ou então de um
certo mal-entendido, cujas raízes históricas certamente podem ser busca­
das no modo como a formação dos juristas se deu em nosso país, que
insiste em acreditar que a história é iun saber para diletantes, uma abor­
dagem que pode ser feita de modo mais ou menos intuitivo e tateante. Há
uma estranha impressão difusa de que “reconstituir o passado” seja uma
operação automática e simples. O que ocorre, na verdade, é que esse “es­
corço histórico” acaba ingressando (ás vezes sem perceber) num emara­
nhado de dificuldades teóricas que são típicas do positivismo.
E tais dificuldades não são inocentes: uma abordagem histórico-
jurídica de inspiração positivista (como o faz a maioria dos manuais),
além de executar um desserviço à disciplina da história do direito (ao
menos àquela que é executada com um pouco de seriedade), acaba por
resultar numa série de funestas consequências teóricas e práticas que não
são desprezíveis.
Tais consequências são acentuadas entre outros por António M.
Hespanha, que nos lembra que, a par desse procedimento positivista aca­
bar por distanciar-se do passado que é (ou deveria ser) objeto do estudo e
aproximar-se da lógica do presente (como visto acima), a historiografia
jurídica positivista serve de combustível para uma glorificação da positi­
vidade jurídica vigente. E isto ocorre de duas formas básicas. Por primei­
ro, tal história do direito cumpre um papel legitimador do direito presente
ao pretender provar que determinadas características do discurso jurídico
- como Estado, família ou o princípio de que os contratos devem ser
cumpridos ponto por ponto - pertencem à “natureza das coisas’07. Os
institutos contemporâneos são assim “naturalizados” e tidos como o re-

57
Idem, p. 18.
Introdução T eó rica à H istória do D ireito 63

sultado da tradição. Os conceitos (hauridos da “história”) adquirem vali­


dade transtemporal por serem legitimados pela tradição . A história, em
suma, toma-se a justificadora do presente através de uma suposta de­
monstração de que o presente foi o caminho “natural” do processo histó­
rico. Em segundo lugar, tal procedimento historiográfico cumpre papel
legitimador na medida em que vislumbra a linearidade histórica como
algo que conduz, de modo necessário, ao progresso (no caso, o progresso
jurídico). Trata-se de uma concepção evolucionista da história do direito,
que percebe o devir histórico como um processo onde há um necessário
acréscimo de valores, de virtudes etc., a culminar num ápice jurídico: o
direito de hoje. Afinal, “também o direito teria tido a sua fa se ju ven il de
rudeza. Contudo, o progresso da sabedoria humana ou as descobertas de
gerações sucessivas de grandes juristas teriam empurrado o direito, p ro ­
gressivam ente, p a ra o estado em que hoje se encontra; estado que, nessa
perspectiva da história representaria um apogeu”5859. Assim, no primeiro
caso o presente jurídico é naturalizado, é visto como a única possibilida­
de histórica que o direito passado poderia ter tomado; no segundo caso o
presente jurídico é vislumbrado como resultado de um progresso natural,
onde o direito vigente seria o ápice. Por ambos os lados, o direito atual é
colocado, por meio desse enviesado discurso ‘histórico’, no pedestal mais
alto, digno da época histórica mais “avançada” que existiu (que seria - ai
de nós! —a época atual).
Estas formas de glorificação da positividade jurídica vigente
podem ser muito bem representadas em duas grandes “linhas temáti­
cas” que são típicas da historiografia jurídica positivista: a “história
das fontes” e a “história da dogmática”. De fato, estas duas linhas ser-

58 H espanha dá um exemplo da falsa continuidade que está por detrás desta crença:
“O conceito de família, embora use o mesmo suporte vocabular desde o direito
romano (familia), abrangia, não apenas parentelas muito mais vastas, mas
também não parentes (como os criados ou os escravos [fam uli]) e até os bens
da “casa”. O conceito de obrigação como “vínculo jurídico” aparece com o di­
reito romano; mas era entendido num sentido materialístico, como uma vincu-
lação do corpo do devedor à dívida, o que explicava que, em caso de não cum­
primento, as consequências caíssem sobre o corpo do devedor ou sobre sua li­
berdade (prisão por dívidas). A palavra “Estado ” (status) era utilizada em re­
lação aos detentores do poder (status rei romanae, status regni); mas não con­
tinha em si as características conceituais do Estado (exclusivismo, soberania
plena) tal como nós o entendemos” . (HESPANHA, António M. P a n o ra m a his­
tórico d a c u ltu ra ju ríd ic a eu ro p éia, p. 19)
59 Idem.
64 Ricardo M arcelo F on seca

vem com o um a luva à co n secu ção de u m a co n c e p ç ã o “n a tu ra liz a d o ra ”


do direito atual ou então de u m a co n c e p ç ã o im b u íd a d a n o ção de
‘•progresso” dentro da h istó ria do d ireito . E n q u a n to a p rim e ira (h istó ­
ria das fontes) descrev e a p u ra e sim p les e v o lu çã o das n o rm a s ju r íd i­
cas ed itad as pelo E stado - aqui in c lu íd a p rin c ip a lm e n te a lei, a se g u n ­
da (h istó ria da dogm ática) d escrev e a e v o lu çã o das d o u trin a s e c o n ­
ceito s utilizad o s pelos ju rista s p a ra ex p o r o d ireito p o r eles c o n sid e ra ­
do v ig e n te 60.
T ais concepções têm u m su b strato com um : co n c e b e r q u e o
p assad o ju ríd ic o é form ado e x c lu siv am en te p o r aqu ilo que o le g isla d o r
fa z (no p rim eiro caso) ou p o r aq u ilo que os d o u trin ad o re s ju ríd ic o s
p en sa ra m e escreveram (no segundo caso), sendo que os d em ais a s­
p ecto s da vid a social são so len em en te ig n o ra d o s61, fican d o o d ireito ,
nas p alav ras de C oelho, com o u m a in stân cia h ip o sta sia d a 62, com o alg o
que p u d esse ser concebida e ex p licad a de um m odo tra n s-h istó ric o ,
in d ep en d e n te das vicissitu d es do devir. C om o bem o bserva H esp an h a,
p o r detrás de tais postu ras está em butida, em verdade, um a noção do
que é o direito: enquanto que a h istó ria restrita das fo n tes v islu m b ra o
d ireito com o um sistem a de norm as, a h istó ria restrita da do g m ática c
c o n ceb e com o um sistem a de v alo res, de m odo que o d ireito é um a
o rd em co n stitu íd a e p erfeita antes m esm o de sua ap licação e/ou in te r­
p re ta ç ã o , já que este cam po é im p ertin en te e d isp en sáv el p ara a h is tó ­
ria do d ire ito 63. E, sob retu d o , p o d e-se o b serv ar que essas fo rm as de
c o n c e b e r o direito são trib u tá ria s de um a e straté g ia te ó ric a que é pre-
sentista , e, p o r ser escrav a do p rese n te , co m ete o su p rem o p ecad o p a ra
u m h isto ria d o r: o anacro n ism o . A fin al, e ain d a com v árias re se rv a s, só
p o d e m o s c o n sid erar que a h istó ria do d ireito se re d u z a um a m era se ­
q u ên cia le g islativ a (com o q u er a h istó ria das fo n tes) q u an d o ig n o ra ­
m o s o fato de que a lei se im p ô s co m o fo n te ún ica e e x c lu siv a so m en te
há p o u co m ais de du zen to s anos (o u seja: com um p ro c e sso que tev e
in ício com a R ev o lu ção F ra n c e sa e o m o v im e n to c o d ific a d o r64) e,

60 HESPANHA, António M. História das instituições... Op. cit., p. 11.


61 HESPANHA, António M. H istória das instituições, p. 11.
6" COELHO, Luiz Fernando. Teoria crítica do direito. 2. ed. Porto Alegre: Sér­
gio Fabris, 1991. p. 25 e ss.
HESPANHA, António M. História das instituições, p. 12.
Vide, a este propósito, os já clássicos estudos de Paolo Grossi sobre a noção de "Ab­
solutismo Jurídico'’, como conceito que representa o início da época da sedução peia
Introdução T córk.i à História do Direito 65

quando ig n o ra m o s q ue ao assim co n ee b c m io s. pro jetam o s as nossas


m isérias p re s e n te s (o n o sso leg alism o e estatalism o <lo d ireito ) para
todo o p a ss a d o c o m o se este p assa d o não fosse m uito m ais rico do
que a lim ita d a im a g in a ç ã o ju ríd ic a m o n ista atual supòe. í)a m esm a
form a só p o d e m o s c o n c e b e r o p assad o do direito com o um a seq u ên cia
de te o ria s ju r íd ic a s in te rlig a d a s de m odo su cessiv o (co m o q u e r a h istó ­
ria da d o g m á tic a ) se ig n o ra rm o s o rico e litig io so co n te x to em que
um a te o ria se im p õ e à o u tra (ou o rico contex to em que d iv e rsa s m e n ­
ta lid a d e s ju r íd ic a s — m u ita s v ezes rad icalm en te d iv ersas das n o ssa s -
c o n v iv em e n tre si), b e m co m o o fato de que, às v ezes, o p re v a le c e r de
um a te o ria s o b re a o u tra é “ c o n stru íd a ” a posteriori , e p o r ra zõ es que
p e rte n c e m à ló g ic a de te m p o s p o sterio res àqueles em que a q u ela te o ria
era s u p o s ta m e n te e x p e rim e n ta d a .
E n fim , essas estratégias histórico-jurídicas ignoram que o p a s­
sado do d ireito dev e sofrer u m esforço de com preensão que é com plexo e
que d ev e re s p e ita r as profundas especificidades do passado - que não
p ode ser co n sid e ra d o com o um m ero “presente imperfeito” , ou u m "pre­
sente ainda não completo ” .
U m e x e m p lo im p o rtan te e concreto desse tip o de p ro c e d i­
m e n to u tiliz a d o p o r esta h isto rio g ra fia ju ríd ic a p o sitiv ista (e x e m p lo
que n o s é d a d o , m a is u m a vez, p o r H espanha) p o d e ser fa c ilm e n te
id e n tific a d o n o p riv ilé g io d esm ed id o dado à cate g o ria “ E sta d o ” e a
te n d ê n c ia a v is lu m b rá -lo de m odo apartado da “ so cied ad e c iv il”
(co m o se fo s s e o se u o p o sto ). Ig n o ra-se com o essa “ d ic o to m ia ” p e r­
te n c e m u ito m a is ao s te m p o s p resen tes que aos tem p o s p a ssa d o s (v e ja -
se c o m o e s s a d iv is ã o p e rd e sen tid o no “ antigo re g im e ”) e, a p a rtir daí,
outras fa ls a s o p o s iç õ e s a p a re c e m e p erm eiam o d iscu rso h is tó ric o j u ­
rídico: o d ire ito p riv a d o e o d ireito p ú b lico , o in teresse p a rtic u la r e o
bem c o m u m , a c o n s titu iç ã o m a te ria l e a c o n stitu ição fo rm a l, o fato e a
no rm a e tc .65. N ã o o b sta n te , a h isto rio g ra fia que aqui se c ritic a - p re sa
à “id e ia d a s e p a r a ç ã o ”66 e n tre estas in stân cias d ico tô m ic a s, ad v in d a de
um a e sp é c ie d e c u lto ao E sta d o - p ro je ta em tem p o s m u ita s v ezes bem

lei e a redução do direito nos códigos, sobretudo presentes em GROSSI, Paolo.


Assolutismo giurìdico e diritto privato. Milano: Giuftrè, 1992.
HESPANHA, A ntonio M. Para uma história institucional do Antigo Regime. In:
HESPANHA, A ntonio M. (Org.). Poder e instituições ita Europa do Antigo
Regime: colectànea de textos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984. p. 27-29.
66
Idem , p. 37-3 8 .
Ricardo M arcelo Fonseca
66

rem otos tais conceituações e d istinções. O p assad o , assim , é v isto sob


as lentes de um form alism o ju rid ic ista pró p rio do E stad o M o d ern o e a
partir dos dilem as po r ele enfrentados para sua in stitu cio n aliza ção . A
dinâm ica própria e com plexa dos entes político s na h istó ria é d eix ad a
de lado, colocando-se o Estado com o o grande dem iu rg o da in stân cia
jurídica, com o se nunca tivesse havido um d ireito in d ep en d e n te do
poder político estatal67. E com o se o direito e o po d er p o lític o sem p re
tivessem tido o m esm o tipo de relação de dependência, a m esm a fo r­
ma de correlação. E ssa form a de “ atem poralism o" do d ireito, p ara u sar
outra expressão de H espanha68, precisa ser enquadrado na h istó ria: é
preciso historicizar a história do direito.

<'1 Só para citar um importante estudo que cita a experiência histórica medieval
(entre tantas outras que poderiam ser citadas, veja-se GROSSI. Paolo. Un diritto
senza Stato (la nozione di autonomia come fundamento della costituzione giuri­
dica medievale. In: Quaderni Fiorentini per la Storia de Pensiero Giuridico
Moderno. XXV (1 ^ 6 1 p. ZeT.
UI SP-WHA. Antonio M Panorama histórico da cultura jurídica europei*
p. 36
1

ESC O LA DOS “A N N A L E S” E
HISTO R IA DO D IR EITO

‘Isso de querer ser


exatamente aquilo que a gente é
ainda vai nos levar além ”.
Paulo Leminski

T entar traçar a “epistemología” da Escola dos “Armales” , tam ­


bém conhecida entre nós como Escola Francesa, é algo que certam ente os
seus integrantes não aprovariam. É que uma das características típicas do
m ovim ento foi justam ente repudiar qualquer modelo filosófico prévio
que pudesse engessar a liberdade de abordagens na busca da “história
to tal” . Paul R icoeur diz, a este respeito, que esta historiografia

... é tradicionalmente de uma desconfiança sem tréguas quanto àfilosofia,


que identifica de bom grado com filosofia da história de tipo hegeliano,
confundida, por comodidade, com as especulações de Spengler ou de
Toynbee. (...) E a razão pela qual não encontramos, nas obras mais preo­
cupadas com metodologia , uma reflexão comparável à da Escola Alemã do
início do século e à do atual positivismo lógico e seus adversários de língua
inglesa sobre a estrutura epistemológica da explicação em história .

C om efeito, como nos lem bram Bourdé e M artin, os historiado­


res franceses sem pre foram desconfiados a respeito de sistem atizações

69
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1 9 9 4 .1.1, p. 137.
68 Ricardo Marcelo Fonseca

redutoras, dada a sua consciência da extraordinária com plexidade dos


fenôm enos sociais7071. Entretanto, isto não significa que eles não sejam
detentores de uma dada epistem ologia (em bora esta não tenha jam ais sido
explicitada de m odo sistem ático), já que tais historiadores, nas palavras
de François Dosse,

são portadores de uma concepção de história, portanto de uma filo­


sofia, legível nos conceitos fundadores de sua abordagem histórica.
Se o essencial de seus escritos dão destaque à metodologia histórica,
abandonando toda a teoria da história, não escapam à regra e o em­
pirismo que defendem já é uma escolha e uma concepção particular
de história1].

Partindo, pois, do pressuposto de que existem determ inadas


prem issas m etodológicas adotadas pelos historiadores da E scola dos
“Armales”, buscarem os neste texto descortiná-las, atentando p ara as m ar­
cas m ais características de sua produção.

4.1 A HISTÓRIA DO MOVIMENTO

T alvez a maneira mais apropriada de abordar a Escola Francesa


(e seus integrantes certamente estariam de acordo com isto) é averiguando
a sua própria historicidade. De modo didático, Peter B urke divide o m ovi­
m ento em três períodos distintos72: um a prim eira fase - que se estende de
1929 até 1945 - quando a “escola” era pequena, radical e subversiva, con­
duzindo um a “guerra de guerrilhas” contra a história tradicional (que eles
de certo m odo hom ogeinizam , para m elhor com batê-la). N este período
sobrelevam -se as figuras dos fundadores do m ovim ento, Lucien Febvre e
M arc Bloch. H á um a segunda fase - que vai de 1945 (um ano após a morte
de B loch) até 1968 - quando o m ovim ento efetivam ente se transform a em

70 BOURDÉ, Guy; M ARTIN, Hervé. Op. cit., p. 142.


71 DOSSE, François. A história em migalhas: dos “A nnales” à “Nova História”.
São Paulo: Ensaio, 1992. p. 61.
72 José Carlos Reis vislumbra ainda que a partir de 1988, em vista de um tournant
critique, há
o início de uma quarta fase que se dispõe a pensar “novos métodos”
e “novas alianças” para o conhecim ento histórico. REIS, José Carlos. Escola de
Annales: a inovação em história. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 125 e ss.
lnfmilti<,;lo IW tiicaa 11islorui <lo D iicilo (O

“escola" (com determinados conceitos próprios e métodos i n o v a d o r e s ) .


Neste período os “Annales" se estabelecem como grupo “hegemónico” n o
cenário intelectual francês, ao mesmo tempo em que estendem suas fron­
teiras para além da França, ocupando as principais cátedras universitárias e
tendo com o o mais significativo representante Fernand Braudel. Por lim,
há uma terceira fase que na classificação mencionada se inicia em 1%<S,
ano em que Braudel deixa a direção da revista publicada pelo grupo, e vai
até nossos dias que é mareada pela profunda fragmentação e diversidade
temática e até mesmo metodológica. I: neste último período que surge um
outro movimento dentro do movimento dos “Annales", intitulado “M m /
H istó ria " . As principais figuras deste período sào Jacques Fe (íotl,
(íeorges Duby, Fmmanuel Fe Roy Ladurie, dentre outros \
Mas, afinal, como surgiu este movimento? Alguns historiadores,
desde as primeiras décadas do séc. XX, manifestam uma reação às premis­
sas m etodológicas da “escola metódica” representante da história positi­
vista na França. Inconformados com o “estahlishnw nt" académico entào
vigente, estes professores intentam proceder uma “revolução" na historio­
grafia74: à atenção única dada aos documentos escritos e aos testemunhos
voluntários (decretos, cartas etc.), por parte da “história tradicional", eles
propõem um aproveitamento das fontes nâo escritas e dos testemunhos
involuntários (com o séries estatísticas, \estigios arqueológicos etc ); à en­
tronização do acontecimento, do fato e do “tempo curto”, respondem com
a ênfase na repetição, nas permanências e nas tendências; a príon/açào dos
fatos políticos, militares e diplomáticos, opõem eles um acento na análise
da economia, da sociedade e da cultura; enquanto que os integrantes da
“história tradicional" são vacilantes em empenhar-se no debate e raramente
arriscam uma interpretação, eles sào por excelência partidários de uma
história que pretende “compreender" e “problemali/ar" \
Neste ambiente, destacam-se dois historiadores que, juntamente
com A. Oolin. fundam a revista que simboli/a o mov imento e tomam-sc
seus editores: Lucien Febvre e Marc Bloch. A revista, que emprestará seu
nome à própria escola, se intitulara Les Annales d*Histoire Economique
et Sociaie, e o primeiro numero começa a circular em janeiro de 192976.

BURK.F. Peter. A Escola O p c i t .. p. 12-13.


4 O livro de Burke intitulado A escola dos Annales. já indicado na nota anterior,
tem como subtítulo justamente **A revolução francesa da historiografia
BOI KOI . Ouv; MARTIN, Hene. O p. c it., p. 115
Bl RM . IVtei \ Escola O p ci r. . p. 33
70 Ricardo M arcelo Fonseca

Tanto Febvre quanto Bloch tinham um a sólida form ação interdis­


ciplinar. Form avam , em Estrasburgo (onde se conheceram e lecionaram
desde 1920 até a década de 30) parte de um grupo em que integravam figu­
ras com o o psicólogo Charles Blondel e o sociólogo M aurice Halbwachs.
Por outro lado, foram im portantes m arcos teóricos na form ação destes
historiadores o filósofo e antropólogo L évy-B ruhl e o geógrafo Vidal de La
B lache (este últim o particularm ente no caso de Febvre) e o sociólogo
Émile D urkheim (particularm ente no caso de B loch)77. A m bos também
com partilhavam das ideias de Henri B err (fundador de A revista de Sínte­
se) e François Sim iand, que atacavam firm em ente a “ escola metódica”
francesa78. P or fim, se diziam descendentes teóricos de Jules Michelet
(historiador do séc. X IX que propugnava pela “historia total”), a ponto de
Febvre saudá-lo com o “pai fundador da Escola dos “Anuales ””79.
M esm o antes da fundação da revista, M arc B loch já havia p u ­
blicado o seu clássico Os reís taumaturgos80, que tinha um a tem ática
m u ito diversa da dos historiadores “tradicionais” . Era, como ele mesmo
cham ou, a “ historia de um milagre”81, e se dedicava a estudar a dimensão
m ág ica da autoridade m onárquica, especialm ente em face da crença no
p o d er de cura do rei, pelo simples toque, do m al das escrófulas. A lém de
d esviar a tem ática usual da historia (vez que esta obra pode ser conside­
rad a com o urna inspiradora da “psico-história” e da “historia das m enta­
lid ad es”, que só m ais tarde apareceriam ), B loch fez uso daquilo que
B raudel anos m ais tarde cham aría de “ longa duração”, já que seu estudo
p reten d eu abarcar um período que vai do séc. X II ao séc. X V III. Mais
tarde, B lo ch iria desenvolver suas prem issas teóricas e se tom aria, com
elas, o m aio r m edievalista de seu tem po, ao publicar, nos anos trinta, sua
obra m ais conhecida: La sociéte féodale82.
O utro exem plo do radical rom pim ento com a historiografia an­
terior foi dada p o r Febvre em sua obra m áxim a, Le problème de

77 Idem, p. 25-26.
78 BOURDÉ, Guy; MARTIN, Hervé. Op. cit ., p. 120.
79 RANCIÈRE, Jacques. Os nomes da história: um ensaio de poética do saber.
São Paulo: Educ/Pontes, 1994. p. 51.
80 BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio,
França e Inglaterra. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
81 Idem, p. 45.
82 Traduzido para o português: BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa: 70,
s/d.
Introdução Teórica à H istória do D ireito 2]_
Pincroiyance au XVTe siècle: la réligion de Rabelais (O problem a da
incredulidade no séc. XVI: a religião de Rabelais83). E ste livro, ju n ta ­
m ente com “Os Reis Taum aturgos de B loch, foi o p rincipal insp irad o r
da história do m ental. A tem ática central da obra é a d em o n stração da
im possibilidade de se colo ca r o problem a da descrença no séc. X V I (já
que diversos autores, com o L efranc, intentam dem onstrar que R abelais
seria, já n esta época, um livre p en sad o r ateu). P ara F ebvre o ateísm o no
séc. X V I im p licav a apenas um desvio com relação à relig ião oficial, que,
por seu lado, o cu p av a todas as esferas da vida q uotidiana das pesso as: ela
controlava os b atism o s, os casam entos, os enterros, im p u n h a p re scriçõ es
alim entares e in terd ito s sexuais, fixava o calendário dos dias de trab alh o
e dos feriad o s e tc .84. D entro deste sistem a o ateísm o é in co n ce b ív el.
A ssim , os g racejo s aparentem ente heréticos que ornam os ro m a n c e s de
R abelais (esp ecialm en te “ Gargântua” e “ Pantagm eF ) nada m ais são,
conform e d e m o n stra Febvre, do que fam iliaridades anódicas freq u e n te s
nos d iscu rso s dos franciscan o s da época, que não podem ser to m a d a s de
nenhum m o d o co m o ateias. Em sum a. Febvre critica os h isto ria d o re s que
o p reced e ram n este aspecto por um im perdoável anacro n ism o : ler um
texto do séc. X V I com os olhos de um hom em do séc. X X S\
A p ó s a segunda grande guerra e com o d e sa p a re c im e n to de
M arc B loch nos cam pos de concentração nazistas em 1944. F eb v re e n ­
xerga em m u ito s de seus discípulos, lais com o R oben M androu e C liarles
M ozaré o “ e sp írito ” dos “ A nu ales” e \ e neles as íiguras dos c o n tin u a d o ­
res do m o v im en to . E ntretanto, o legitim o sucessor de I ebvre na c o n d u ­
ção d esta no v a h isto rio g rafia era fe rn a n d B raudel.
B raudel estu d o u historia na S orbonne e lecionou de 1923 a 1932
na A rgélia. N esta época descobre o M editerrâneo com o um gran d e tem a
historiográfico, que seria objeto de seu grande li\ro . C o n h ece neste p eríodo
Lucien F ebvre que se tom a seu am igo, e que o convence a tran sfo rm ar o
tema de sua tese en tão em g estação de *Ví p u i nica m ed iterrá n ica d e F elipe
IT para “ (9 m ed iterrâ n eo na época dc F elipe m u d an ça esta, aliás,
que bem rev ela a tô n ica dos trab alh o s p o sterio res de B rau d el. E ntre 1935

Iraduçào recente publicada no Brasil: FEBVRE. Lucien. O problem a da in­


credulidade no século XVI: a religião de Rabelais. Tradução de M ana L u ca
M.u hado São Paulo: Com panhia das Letras. 2009.
B< >1 Kl>! . ( »u\. M ARTIN, H er\é. Op c..r . p 123.
Lu
y./t p i es
72 Ricardo Marcelo Fonseca

e 1937, foi contratado para lecionar na Universidade de São Paulo, perío­


do que ele mais tarde definiu como “o mais feliz de sua vida”*1.
Paradoxalmente as dores da segunda guerra mundial acabaram
sendo profícuas para Braudel. Embora tenha perm anecido preso em qua­
se todo o período do conflito num campo perto de Lubeck, foi o mo­
mento quando ele finalmente pôde rascunhar sua tese de doutorado, utili­
zando-se quase que unicamente de sua prodigiosa m em ória, em vista da
impossibilidade de recorrer às bibliotecas8788. A ssim surge sua obra máxi­
ma: O mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Felipe II (a
tese foi defendida em 1947 e publicada em 1949), livro considerado
como obra prim a até mesmo pelos seus críticos, que am pliou as possibi­
lidades do gênero em que foi escrito e transform ou de m odo decisivo a
visão do historiador sobre o tempo e o espaço 899 1(do m odo como veremos
0
mais adiante). A obra de Braudel tomou uma envergadura ainda maior
com a publicação de sua monumental Civilização material, economia e
capitalismo, sécs. XV - XVIII, em 198090 91.
B raudel não foi som ente o mais im portante historiador fran­
cês de to d a um a época (desde a m orte de Febvre em 1956 até a sua
p ró p ria em 1985), m as tam bém o mais poderoso, já que ocupou alguns
dos m ais im portantes postos acadêm icos no período. T ornou-se pro­
fessor no “Collège de France” em 1949 e desde então passou a acu­
m ular, ao lado de Febvre, a função de diretor do “Centre de Recher-
ches Historiques ” na “Ecole Pratique des Hautes É t u d e s Em 1956

87 BURKE, Peter. A escola... Op. cit., p. 46.


88 Idem, p. 46.
89 Idem , p. 54-56.
90 Este livro, que teve uma publicação limitada (em um volume) em 1960, é com­
posta de três volumes com os seguintes subtítulos: “as estruturas do cotidiano”,
“os jogos das trocas” e “o tempo do mundo”. Há uma tradução para o portu­
guês: BRAUDEL, Femand. Civilização material, economia e capitalismo:
sécs. XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes.
91 Este livro de Braudel sofreu uma crítica - ao nosso ver corretíssima - do histo­
riador do direito espanhol Francisco Tomás y Valiente: a de omitir solenemente
o direito da cena histórica moderna (fato contraditório com a pretensão progra­
mática de uma “história total”). TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. La huella
del derecho y del Estado en el último libro de F. Braudel. In: GROSSI, Paolo (a
cura di). Storia sociale e dimensione giuridica: strumenti di indagine e ipotesi
di lavoro (atti dell’incontro di Studio, Firenze, 26-27 aprile 1985). Milano:
Giuffré, 1986. p. 245-274.
I n t r o d u jo I ró iic.'i à I lisló ii;» do I ) indi o 73

to rn a -se o d ir e to r e íe tiv o dn re v ista d o s “ A n n n lc s,,,,2i q u e désele 1946


n u id o u d e n o m e , p a s s a n d o a se c h a m a r " A m ía le s lu (m o m ia s. S o c ia le s.
C irilisations". N a su a d ire ç ã o , o m o v im e n to e sua re v ista m a n tiv e ra m -
se h e g e m ô n ic o s na a c a d e m ia fra n c e sa , p a ss a n d o in c ó lu m e s s o b re o
“frisson" e s ír n tu r a lis ta d o s a n o s 5 0 q\
T o d a v ia , a c o e s ã o q u e a e sc o la d e tin h a q u a n d o e s ta v a s e n d o
re g id a p e la b a tu ta d e F e rn a n d B ra u d e l g ra d a tiv a m e n te se e s b o r o a a
p a rtir d e 1 9 6 8 , q u a n d o d o a fa s ta m e n to d o g ra n d e p r o f e s s o r da d ir e ç ã o
da re v is ta . N e s ta é p o c a o m o v im e n to p a ss a a se c a r a c te r iz a r p o r u rn a
g ra n d e v a r ie d a d e te m á tic a , m e to d o ló g ic a e id e o ló g ic a , q u e b r a n d o a
re la ç ã o d e c o n tin u id a d e h a v id a e n tre as é p o c a s d e F e b v re e B lo c h e a
de B r a u d e l. O d e s e n v o lv im e n to d e sta n o v a p e r s p e c tiv a c u lm in a r á c o m
o la n ç a m e n to d e u rn a n o v a d e n o m in a ç ã o p a ra o m o v im e n to , q u e r e i ­
v in d ic a , p o r s e u la d o , a d e s c e n d ê n c ia le g ítim a c o m o s “ A r m a l e s é a
“N ova H isto ria ” .
Segundo Dosse, este “ nome controlado ” foi lançado no mercado
em 1978 por algumas grandes figuras do movimento (entre os quais Ja-
cques Le Goff e Roger Chartier), mas alguns textos publicados na Re­
vista “M agazine Littéraire ” em abril de 1977 já traziam o mote do mo­
vimento929394. As principais características desta nova fase são um diálogo,
por parte de alguns epígonos do movimento, com o marxismo (princi­
palmente Michel Vovelle95 e Pierre Vilar96) e um desenvolvimento cres­
cente do interesse pela historia das mentalidades (onde se destacam
Robert Mandrou97, Philippe Ariés98, Jacques Le Goff99, Georges Duby100,
Alain Corbin101, entre outros).

92 Idem,p. 56-57.
93 D O SSE, François. Op. cit., p. 251. Diz o autor: “ao desafio de Claude Lévi-
Strauss, nos anos 50, os “Annales”, com Fernand Braudel, conceituaram a lon­
ga duração como linguagem capaz de unificar as ciências sociais
94 Esta coletânea de textos, dentre os quais se encontra um a m esa redonda com
Jacques LE GOFF; Emmanuel LE ROY LADUR1E; Paul VEYNE; Philippe
ARIÈS; Michel de CERTEAU, foi publicada em português em LE GOFF, Jacques
et alii. A Nova História. Lisboa: 70, 1986. Ver tam bém LE G OFF, Jacques
(Org.). A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
95
V.g. V O V ELLE, M ichel. Ideologia e mentalidades. São Paulo: Brasiliense,
1987.
% Rg. V ILA R , Pierre. A guerra da Espanha. Rio de Janeiro: Paz e T erra, 1989.
97
V.g. M A N D R O U , Robert. Magistrados e feiticeiras na França do século
XVII. São Paulo: Perspectiva, 1979.
R ic a rd o M arcelo Fonseca
74

Segundo Peter Burke9891002, esta geração tem um itinerário intelec­


tual que va i “do porão ao sótão” ou, utilizando-se da term inologia mar­
xista. da base econômica à superestrutura. A s esp ecificid ad es desta pro­
dução histoviográfíca encontram-se ju stam en te n o en tu siasm o com a his­
toria das mentalidades e com o im aginário social, com um a aproximação
da disciplina com a antropologia (o que abre o cam p o de abordagens para
o que passou a se chamar “micro-história” 103104), bem co m o urna certa re­
conciliação com a política, com a form a n arrativ a e com o fa to 10 - inad­
mitidos de qualquer modo pelos fundadores do m o v im e n to - embora
evidentemente num contexto totalm ente diverso dos u tiliz a d o s pela “his­
toria tradicional”. François Dosse, em prestando u m a e x p ressão de Pierre
Nora, denomina esta última perspectiva, com certo d esg o sto , de “historia
em m igalhas” (é este justam ente o título de seu liv ro so b re a Escola dos
“A rm ales”), urna historia em que explodem d iv ersas temporalidades
(económ icas, políticas, mentais etc.) independentes en tre si e que renun-

98 Kg. ARJÈS, Philippe. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: Francisco


Alves, 1989. 2 v.
99 Kg. LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval.
Lisboa: 70, 1990;_______ . Os intelectuais na Idade M édia. Lisboa: Gradiva,
1984.
100 Kg. DUBY, Georges. O ano mil. Lisboa: 70, 1986.________ . O domingo de
Bouvines. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993._________. As três ordens: ou o
imaginário do feudalismo. Lisboa: Estampa, 1982.
101 Kg CORBIN, Alain. Saberes e odores. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
102 BURKE, Peter. A escola... Op. cit., p. 81-109.
103 O termo foi inicialmente aplicado para caracterizar a produção do historiador
italiano Carlo GINZBURG, em especial os seus livros: GINZBURG, Carlo. O
queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela in­
quisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1 9 8 7 ._________ . Os andarilhos do
bem: Feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Compa­
nhia das Letras, 1988. Há também a instigante obra do colega de Ginzburg na
revista “Microstorie”: LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um
exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2000. Mas o exemplo original deste tipo de abordagem pode ser dado com o li­
vro: LE ROY LEDURIE, Emmanuel. Montaillou, povoado occitànico: 1294-
1324. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
104 Exemplo do retomo à abordagem política e à forma narrativa (bem como, em
ambos os exemplos de modo centralizado num fato ou numa vida), pode ser
dado, respectivamente, com dois livros de um mesmo autor: DUBY, Georges. O
domingo... Op. cit.;________ . Guilherme Marechal: ou o melhor ca\ aleiro do
mundo. Rio de Janeiro: Graal, 1987.
Introdução Teórica à História do Direito 75

ciam a um a visão de globalidade (a “história síntese” de Bloch e Febvre).


A tônica passa a ser fazer inúm eros recortes disciplinares provisórios a
partir de diversas práticas e diversos objetos históricos105, fazendo com
que a história deixe de ser a “líder federativa do mercado comum das
ciências humanas” e passe a ser apenas um mineiro que passa a trazer os
materiais para as dem ais ciências sociais106.

4.2 AS PRINCIPAIS LINHAS DOS “ANNALES”

A p esar das inúm eras inflexões e rupturas no discurso da E scola


entre os anos 30 e 80, o próprio D osse reconhece ser possível, entretanto,
traçar algum as características comuns desta corrente historiográfica ao
longo de todo o seu desenvolvim ento107*. Em face disto, em vista do p ro ­
pósito deste trabalho em restaurar o instrumental metodológico da E scola
para, após, fazê-la dialogar com a história do direito, cum priría a partir
deste m om en to ten tar colocar as principais linhas dos “Armales” , as suas
(para u sar um term o que lhe é caro) permanências.
U m a das m arcas principais da Escola dos “A nnales”, desde o
seu p rincípio, foi o abandono das formas tradicionais de “contar” a histó ­
ria. E o que com um ente é conhecida como a passagem da “ história nar-
ração” p ara a “ história problema ” . Desde os fundadores Febvre e Bloch
se pode (com o reação direta à “ história tradicionaF) perceber este traço:

O historiador, p a ra Marc Bloch e Luden Febvre, não pode se con­


tentar em escrever sob o ditado dos documentos, deve questioná-los,
inseri-los em uma problemática. Contra a história-relato de Langlois
e Seignobos, preconizam a história problema, matriz teórica da con-
ceituação futura de história estrutural. O recorte histórico não se
articula mais segundo os períodos clássicos, mas perante os proble­
mas p o sto s em evidência e dos quais se busca a solução. A afirmação
de uma história-problem a é o elemento essencial do paradigm a dos
Annales desde 1929 (...)m .

Iíb DOSSE, François. Op. cit., p. 252-259.


106 Idem , p. 252.
107 Idem, p. 250.
!íl* Idem, p. 76.
76
Ricardo Marcelo Fonseca

Nota-se como a problematização do objeto de estudo procura tor­


ná-lo operacional, útil, sem os resquícios de erudição vazia que os historia­
dores deste movimento enxergam na história tradicional. A história não pode
ser passadista, mas deve estar com um olho no presente, pois o ontem e o
hoje estão indissoluvelmente ligados. E Braudel quem afirma que “não c o
presente em grande parte a presa de um passado que se obstina em sobrevi­
ver, e o passado, por suas regras, diferenças e semelhanças, a chave indis­
pensável para qualquer compreensão séria do tempopresente?”m .
E sta problem atizaçao do discurso histórico evidentem ente tem
diversos pilares que a tom am possível. U m deles é o novo ap ro v eita­
m ento das fontes de pesquisa. P eter B urke enfatiza que o grande m érito
de R anke teria sido sua exposição das lim itações das fontes narrativas
(crônicas) e sua ênfase na necessidade de buscar a história escrita em
registros oficiais. E ntretanto, segundo Burke, o preço desta contribuição
foi a negligência de outros tipos de evidência:

O período anterior à invenção da escrita fo i posto de lado como “p ré -


história ”. Entretanto, o movimento da “história vista de baixo ” p o r
sua vez expôs as limitações deste tipo de documento. Os registros ofi­
ciais em geral expressam o ponto de vista oficial. Para reconstruir as
atitudes dos hereges e dos rebeldes, tais registros necessitam ser su­
plem entados p o r outros tipos de fon teuo.

O próprio M arc Bloch, num livro que escreveu para se tom ar uma
resposta ao m anual de Langlois e Seignobos sobre a ciência da história, as­
severa que : “Por detrás dos traços sensíveis da paisagem, dos utensílios e
das máquinas, por detrás dos documentos escritos aparentemente mais gla­
ciais e das instituições aparentemente mais distanciadas dos que as elabora­
ram, são exactamente os homens que a história pretende a p re en d er 1
D e fato: com a E sco la dos “A rm ales” a história passa a fazer uso
das m ais variadas fontes (que vão desde diários de a d o lescen tes 10 112 até
9

109 BRAUDEL, Femand. Civilização material, economia e capitalismo: séculos


XV-XVIIL São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 10.
110 BURKE, Peter (Org.). A escrita... Op. cit ., p. 13.
111 BLOCH, Marc. Introdução à história. 5. ed. S/l: Publicações Europa-América,
s/d. p. 28.
É o que faz Alan Macfarlane para reconstituir o que ele chama de história do
casamento e do amor entre 1300 e 1840. In: M ACFARLANE, Alan. História
do casamento e do amor. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
Introdução Teórica à História do Direito 77

vestígios arqueológicos). Além disso, um dos instrumentos mais utiliza­


dos, e que foi aplicado com entusiasmo especialmente nos anos 50 e 60
(embora tenha servido de lastro para a história das mentalidades dos anos
70) foi a história quantitativa ou história serial. Inicialmente utilizada no
campo econôm ico (particularm ente na história dos preços, especialmente
por E m est L abrousse), a utilização das estatísticas pretendeu dar mais
objetividade às conclusões. O livro Esquisse du mouvement des prix et
des revenus em France ao XVIIIe siècle, de Labrousse, publicado em
1933, causou profunda influência na historiografia francesa por mais de
cinquenta a n o s113, e procurou empreender um rigoroso estudo quantitati­
vo da econom ia francesa do séc. XVIII, e, entre muitos gráficos, tabelas e
dem onstrações de ciclos econômicos, demonstrou como a crise das co­
lheitas e da econom ia em geral no final dos anos 80 do séc. X VIII foi
um a p ré-co n d ição im portante para a eclosão da revolução francesa114. A
história qu an titativ a dá ensejo a uma importante linha de pesquisa, à his­
tória dem o g ráfica, e m ais tarde vai invadir inclusive os domínios da his­
tória social e do m ental.
N ota-se com o esta tendência também se articula com o abandono
da história política. O u melhor: com a reação à ideia (típica da “história tra­
dicional”) de que a história era essencialmente política. Para os integrantes
do m ovim ento dos “Armales” “tudo tem história” (as produções sobre as
m entalidades e im aginário social bem o demonstram). Daí percebermos uma
explosão tem ática notável, com abordagens tão inusitadas como a m orte115,
o m e d o 116, a linguagem 117, a impotência118, as lágrimas119, e isto sem falar
nas originais abordagens de Michel Foucault que causaram profundo im­
pacto na historiografia francesa. E evidente que este novo vetor teórico abre
um a via, antes inexistente, para a “história vista de baixo” a “história dos
vencidos”, que não tinham lugar numa perspectiva eminentemente política,
que é o “ locus ” dos “grandes” por excelência.

1,3 BUR K E, Peter. A escola... Op. cit., p. 67.


114 Idem, p. 68.
1,5 ARIÈS, Philippe. Op. cit.
116 D E L U M E A U , Jean. A história do medo no ocidente: 1300-1800. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
BUR K E, Peter. A arte da conversação. São Paulo: Unesp, 1995.
118 DARM O N, Pierre. O tribunal da impotência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
11 * V IN C E N T -B U FF A U L T , Anne. História das lágrimas. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1988.
Rii ímlo M;m elo Fonseca

O que os historiadores dos “ Antifilcs’4* procuram evitar, pois ^ t


ahorda i:cm que pode ser sintetizada pela frase ele Sir John Seeley, catedráij
cp de historia cm ( ambridge na época vitoriana: “história é política paSH(i
ihi e historia presente"'20. E esta reação, que foi a princípio visceral
por pane dos fundadores do movimento (com o forma ele reação e de com.
bate a “história tradicional"), acabou sendo m inorada pela “Nova História”
como ja vimos através dos exemplos de obras de G eorges Duby.
A estas novas temáticas e às novas fontes que passam a ser utili­
zadas, corresponde uma nova e original abordagem sobre o tempo, que
corresponde também a uma reação à form a de encarar a temporalidade
por parle da “história tradicional’’. Corno diz D osse,

Um dos incidentes essenciais dessa orientação do discurso dos


Annales para o econômico, para a vida m aterial e p a ra a geografia, é
a lentidão da duração. O tempo breve dos regimes e dos reinos foi
substituído pelo tempo longo. O historiador tende a privilegiar aquilo
que dura, aquilo que se repete para poder estabelecer os ciclos lon­
gos, as tendências seculares. Essa Nova H istória rompe, portanto,
também nesse plano com a história historicizante, puramente factual,
que ainda domina no início do século X X (...)Ul.

Mas apesar da presença desta noção na obra dos fundadores, é


Femand Braudel quem vai dar maior rigor a esta nova abordagem. No
seu “Mediterrâneo”, Braudel decompõe a história em três planos desdo­
brados: um tempo geográfico, um tempo social e u m tem po individual,
ou, se se preferir, em história estrutural, conjuntural e factual. Em suas
palavras, existe “... à superfície, uma história dos acontecimentos, que se
inscreve no tempo curto...; a meia encosta, uma história conjuntural que
segue um ritmo mais lento...; em profundidade, uma história estrutural
de longa duração, que põe em causa séculos” m .
Assim, a história dos acontecim entos seria o nivel mais pobre
do discurso histórico, “ uma agitação de superfície (...) Uma história com
oscilações breves, rápidas e nervosas”1201123, seriam som ente “ espumas nas

120 A p u d BURKH, Peter (Org.). A escrita... O p. v i t ., p. 10.


121 DOSSE, François. O p. cit., p. 82. A
122 BRAUDEL, Femand. Escritos sobre a histôria, p. 112 e 119, apud BOURDE
Guy; MARTIN, Hervé. O p. cit., p. 131.
123
Idem , p. 130.
Introdução Teórica à História do Direito 79

ondas do mar da história” 124. A conjuntura seria o tempo médio, o tempo


da história social, o espaço de décadas, Já a “longa duração”, ou nível
estrutural, seria correspondente às correntes marítimas, invisíveis da su­
perfície mas decisivas na explicação da história, “uma história quase
imóvel, a dos homens e suas relações com o meio que o rodeia; uma
história lenta de passar e de transformar, feita muitas vezes de regressos
insistentes, de ciclos sempre recomeçados” 125.
C om o se vê, Braudel insiste na existência de uma “geo-história”
muito lenta e m uito decisiva como recurso explicativo. Esta influência,
que já se m ostrou im portante nas obras de Febvre e Bloch (em especial
pela influência do geógrafo Vidal de La Blache126127), assume uma posição
central nas obras de Braudel:

A geografia lhe permite valorizar a longa duração, minorar o peso do


homem como ator da história ao substitui-lo por um sujeito espacial,
no caso em foco, o Mediterrâneo transformado na condição de sujeito
da história: “a geografia é o meio por excelência para diminuir a
velocidade da história” (BRAUDEL, F. Magazine littéraire, p. 18,
nov. 1984). Em sua tripartição temporal, Fernand Braudel pode as­
sim ter acesso à história quase imóvel, para ele primordial, em uma
arquitetura na qual a geo-história se identifica, portanto, com uma
duração muito longa121.

C olocada, pois, como o suporte da “longa duração”, Braudel


traça o program a da geo-história da seguinte maneira:

Colocar os problemas humanos tal como os vê divididos no espaço


e se possível cartografados, uma geografia humana inteligente;...
colocá-los no passado tendo em conta o tempo; destacar a geo­
grafia desta perseguição das realidades actuais a que se aplica
unicamente ou quase, obrigá-la a repensar, com os seus métodos e
o seu espírito, as realidades passadas. Da tradicional geografia
histórica à maneira de Longnon, voltada quase que exclusivamente
ao estudo das fronteiras de Estado e de circunscrições administra-

124 BURKE, Peter (Org.). A escrita... Op. cit., p. 12.


125
BRAUDEL, Fernand. O mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de
Felipe II, apudBOmiyÉ, Guy; MARTIN, Hervé. Op. cit., p. 129.
126 DOSSE, op. cit, p. 79.
127 Idem,p. 137.
80
Ricardo Marcelo Fonseca

tiras sem preocupação da terra , do clim a, do solo, das plantas e


dos animais.... fazer uma autêntica geografia humana retrospecti­
va; obrigar os geógrafos (o que seria relativam ente fá cil) a presta­
rem mais atenção ao tempo e os historiadores (o que seria mais
difieil) a inauietarem-se mais com o espaço (M ed iter râ n eo , 2. ed.,
U 2, p. 295) .

E esta ligação com a geografía não p o d e ser encarada como


algo específico dentro da m etodologia dos “A n n a le s”, m as deve ser
inserido num esforço (que é o cerne do pró p rio m ovim ento) em ser
m ultidisciplinar, abrangendo o campo da histó ria p a ra diversas áreas.
M ais do que isto, estes historiadores buscaram um a “h istó ria total”, ou
"história síntese”, que penetrasse em todos os dom ínios das ciências
hum anas. Peter Burke, ao final de seu estudo sobre a historiografia
francesa, conclui que esta é inclusive a m aior contribuição do grupo
dos "A nnales” 128129. Muito embora D osse 13013(e tam bém C iro Flamarion
C ardoso1-51) façam reservas à autodenom inada “N o v a H is tó r ia ”, que
perdeu a perspectiva humanista globalizante, e v oltou-se a análises de
"m icro-história” sempre com conclusões parciais, o fato é que ao me­
nos a prim eira e a segunda geração da Escola F rancesa tinham como
m ote principal o debate ininterrupto com as dem ais ciências sociais132,
a derrubada das fronteiras entre elas, de m odo a ser instituída uma
reflexão que sobreleve o pensamento espaço-tem poral. A história im­
portaria as problemáticas das diversas ciências hum anas buscando
um a interpretação globalizante, sintética, que fosse capaz de dar conta
de toda a realidade com que o historiador estivesse se defrontando. A
compartim entalização estreita do saber era condenada, com o se pode
notar por este trecho que é tão emblemático para a escola quanto ins­
pirador para os demais cientistas sociais (com o o ju rista, por exem­
plo), escrito por Lucien Febvre em seus “ com bates pela história” (p.
32): “H isto ria d o res, sejam geógrafos. Sejam ju r is ta s tam bém , e so­
ciólogos, e p sic ó lo g o s”133.

128 BOURDÉ, Guy; MARTIN, Hervé. Op. cit., p. 129.


129 BURKE, Peter. A escola... Op. cit., p. 126.
130 Op. cit., p. 252.
131 CARDOSO, Ciro Flamarion. História e paradigmas rivais. In: CARDOSO, Ciro
F.; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Op. cit., p. 16.
lj2 Idem, p. 8.
lj3 Apud BURKE, Peter. A escola... Op. cit., p. 12.
Introdução Teórica à História do Direito 81

A busca do homem na história (e da história no homem), na


mais ampla acepção que o termo pode suscitar, é o objetivo da Escola dos
“Annales”, que de fato trouxe aos historiadores todo um instrumental de
análise absolutamente renovador e fecundo. Como diz Nilo Odália, num
trecho que serve de avaliação do movimento, e que também pode servir
de fecho para este item,

Graças sobretudo à obra realizada pela Escola dos Anuales, de llloeh


e Febvre até os seus mais recentes representantes, o historiador pode
retomar seu trabalho de reconstrução do passado no interior dc
um novo contexto, qualitativamente diferente, liberto das cadeias
do finalismo e franqueado à contribuição de todas as ciencias hu­
manas, dando condições para que a história possa ser o privile­
giado terreno comum da vasta empreitada em que se consubstan­
cia a busca do homeif ^.

4.3 OS “ANNALES” E A HISTÓRIA DO DIREITO: AS


DIFICULDADES DO DIÁLOGO INICIAL

Apesar da exortação de Luden Febvre feita aos historiadores,


acima mencionada, no sentido de que eles também devem “ser juristas", e
malgrado a busca nas duas primeiras gerações da escola de “Annales”
pela “História total”, o fato é que a maioria esmagadora dos historiadores
franceses deste movimento (seja feita a exceção necessária a Marc Bloch)
praticamente não deu a atenção ao objeto “direito”. Houve, em realidade,
uma dificuldade de diálogo e um estranhamento que impediram, ao longo
do séc. XX, que se consumasse esta conexão.
Esta é também a avaliação de António Manuel Hespanha*1*’5, que
também busca compreender os porquês de tal distanciamento. E que os
“Annales” surgiram justamente como reação a uma história política (de
cunho positivista) com a qual a história do direito sempre parecia se
identificar. E suas metas de superação do factualismo positivista, estorço

134 O D Á L I A , N i l o . O s a b e r e a h i s t ó r i a : G e o r g e s D u b y e o p e n s a m e n to h is to r io -
g r á fic o c o n t e m p o r â n e o . S ã o P a u lo : B r a s ilie n s e , 1 9 9 4 . p. 2 0 - 2 1 .

I If S P A N M A , A n t ô n i o M . N o v a H is tó r ia e h istó r ia d o d ir eito . In V ó r tic e


C o im b r a , v. 4 6 , n. 4 7 0 - 4 7 2 , p. 17 , a b r .ju n . 1 9 8 6 .
R ü \m lo M arcelo l'on seca
8:

in terdisciplinar. rig o r teó rico e p re o c u p a ç ã o com o p resen te sem dúvida


al Ruma se opõem à tu d o o que se fa /ia etn term o s de h isto ria do direito
ate entào. E, de fato, o in v en tário das d iv e rg e n c ia s e sp e c ific a s existentes,
ao m enos a p rin cip io , en tre o o ficio do h isto ria d o r do d ire ito (ao m enos o
h isto riad o r do d ireito tradicional) e a p e rsp e c tiv a da E scola fra n c e sa
foram p o r ele assin alad a s: em p rim eiro lugar, é de se lem b ra r que a h isto ­
ria dos “ A n u ales" su rg e p re c isa m e n te co m o u m a re açào à persp ectiv a
factu al e p o lítica da h isto ria — sem p re cen trad a no E stad o e, p o r reflexo,
no direito. N esta p o stu ra o d ireito é sem p re en ca ra d o de m o d o elitista e
in d iv id u alizan te, com o v ezo teó rico (já assin a la d o q u an d o se talo u sobre
o “p o sitiv ism o h istó ric o ") de red u zir a histo ria do d ireito à h istoria das
n o rm as ou das co n stru çõ es do u trin árias sobre estas n o rm a s1,0.
E m segundo lugar, é de se o b serv ar que se o q u an titativ ism o
(q u e é u m dos m otes centrais dos “A rm ales") p o r natureza apura “ ta to s"
(p o is só eles é que po d em ser quantificáveis), tal pro ced im en to nao teria
esp aço n u m a tal histo ria do direito. E que os ju rista s trad icio n alm en te
ap artam o “fato ” da “n o rm a”, com o se fossem realidades abso lu tam en te
estan q u es, d ivorciadas e in dependentes entre si. A ssim , apenas a historia
so cial (que apura e utiliza os fatos) poderia fazer uso deste p rocedim ento
b á sico d esta corrente, de m odo que a historia do direito (som ente p reo cu ­
p a d a com n o rm as) estaria im possibilitado de u tilizar tal re c u rso 136137.
E m terceiro lugar, a histo ria tradicional (do direito) sem pre se
o cu p o u b asicam en te da “ curta d u ração ” - tais com o inovações legislati­
vas ou “ d esco b ertas” doutrin ais, sem pre relegando as “estruturas" ou
“p e rm a n ê n c ia s” . Q uan d o dava atenção a esta linha da “ longa du ração ” o
fazia in v en tarian d o as “trad içõ es ju ríd ic a s” com longa renitência no tem ­
p o, u tiliz a n d o -se de u m p ro ced im en to linear e p rogressivo de m odo a
ju s tific a r a existên cia presente de um a dada tradição, e não outra. A lém
disso, n ão é raro que tal p o stu ra p o sitiv ista credite a um a obra ou a um
autor os m érito s p e la d u ração desta “ in flu ên cia” 138.
E m quarto lugar, o fato do p ró p rio enq u ad ram en to institucional
da história do direito e star co n fin ad o às facu ld ad es de direito e restringir­
se a fins e objetivos estritam ente ju ríd ico s não ajudava a interloeuçào com
os historiadores sociais. D e fato, os propósitos das pesquisas historiográli-

136 H ESPANH A, A ntónio M. Nova História c... Op. cif., p. 18.


137 Idem, p. 18-19.
138
Idem , p. 19.
Introdução T eórica à H istória do D ireito 83

cas do d ire ito p a re c ia m e sta r lim itad o s à in terpretação histó rica das n or­
m as ou à d e m o n stra ç ã o de co m o o direito atual é resultado lógico e coe­
rente da h i s t ó r i a .
F in a lm e n te , em q u in to lu g ar se p o d e n o tar com o ju sta m e n te em
v irtu d e da lin e a rid a d e h a rm ô n ic a do discu rso h isto rio g ráfico ju ríd ico
tra d ic io n a l, de su a a p a re n te co n tin u id ad e e sua id en tid ad e g enealógica
e sta b e le c id a e n tre o d ire ito p assa d o e o d ireito p resen te, o trân sito pelas
searas te ó ric a s da h is tó ria do d ireito acab av a ex igindo u m req u isito b ási­
co: q u e o " h is to ria d o r” do d ireito fosse tam b ém u m ju r is ta 14® (ou, co lo ­
ca n d o d e u m m o d o ta lv e z ain d a m ais apropriado, ex ig ia que o ju rista
tiv e sse p e n d o re s h istó ric o s).
P a o lo G ro ssi v ai n a m esm a linha: aduz ser co m p reen sív el este
e s tra n h a m e n to j á qu e, n u m a p rim eira aproxim ação, em suas p alav ras, a

h is to r io g r a fia ju r íd ic a (tradicional) encarna-se ... num gru po de


p e s q u is a d o r e s chartistes, dom inados p e lo culto p o s itiv is ta e ta lv e z
a té fo r m a lis ta do docum ento escrito, con tabilistas da h istó ria lig a ­
d a à fo rm a s, Fórm ulas, nomes, liturgias, dados sem alma, qu ase
f a b r ic a n te s d e som bras, distantes de uma h istória fe ita de carn e e
d e m en ta lid a d es, com o aquela preten d id a p e lo s p ro g ra m a s in ova­
d o r e s d e F e b v re e B locn .

4.4 OS “ANNALES” E A HISTÓRIA DO DIREITO: UM


ENORME CAMPO DE CONEXÕES

T o d a v ia , lo g o após b u scar as razões deste distan ciam en to , o


h is to ria d o r d o d ire ito italia n o acrescenta: “mas aquilo que não consegui­
mos sinceram ente entender é a desconfiança programática e geral com
relação ao ju ríd ico , o fato dele ser apagado do rol das ciências sociais, a
sua condenação ao exorcismo mais humilhante: o silêncio. Quando se13940

139 Idem , p. 20.


140 Idem.
141 G R O SSI, Paolo. Storia sociale e dim ensione giuridica. In: GROSSI, Paolo (a
cura di). Storia sociale e dim ensione giuridica: strumenti di indagine e ipotesi
di lavoro (atti d e ll’incontro di Studio, Firenze, 26-27 aprile 1985). Milano Giu­
li ré, 1986. p. 10-11.
V
S4 Ricardo M arcelo Fonseca

constata que ¡hirte da novclle histoire' maneja instrumentos que são


intrinsecamente j u r í d i c o s . .
E aqui está o ponto: se a divergência de posturas pode explicar
os m otivos do afastam ento inicial entre a h istoriografía ju ríd ic a (sobretu­
do de m atiz m ais tradicional) e o m ovim ento h istoriográfíco francês, não
se pode, por outro lado, ju stificar as razões p elas quais os historiadores
dos “ A rm ales" jam ais se aproxim aram do direito. A ssim , se tal divórcio
tem um a explicação, não tem razão de ser. M ais do que isto: esta incom ­
patibilidade, percebida a princípio, não pode e não deve im plicar num a
antipatia perene, já que um nam oro entre a disciplina que se ocupa espe­
cíficam ente do passado jurídico e a m etodologia dos “ A nnales” é efeti-
\ am ente possível. E m ais uma vez são H espanha e G rossi a dem onstrá-lo
de m odo induvidoso.
H espanha faz questão de frisar que a n ecessid ad e (ignorada
p elo s m ais form alistas) de observar o d ireito n a sociedade, estratégia
esta que “ domina a historiografia contemporânea a partir da École
des A nnales, leva a uma história do direito intimamente ligada à his­
tória dos diversos contextos (cultura, tradições literárias, estruturas
sociais , convicções religiosas) com os quais (e nos quais) o direito
fim ciona"XA~\
A o lado disso, há a necessidade de en fren tar o estudo do dis­
curso ju ríd ic o com o algo que possui um a estrutura histórica relativa­
m ente autônom a face às intenções dos sujeitos, e que é capaz de criar
co n ceito s, m odelos e m esm o instituições. E x atam ente por isto é que
p o d e (e deve) ser objeto de estudo a linguagem do direito. O enraiza­
m ento do discurso ju ríd ic o na p rática social, com o estabelecim ento de
relaçõ es com plexas e am bivalentes entre eles, é algo que não pode ser
ig norado pela histó ria do direito. T odo este cam po de discussões
abrange desde a persp ectiv a “arq u eo ló g ica” de F o u c a u lt14213144, que p rivi­
legia as articulações discu rsiv as e de sab er com o constituintes das
práticas e até dos sujeitos, até o que se vem cham ando de “ história
social da linguagem ” , que enfatiza a histó ria do “ falar” , a história da

142 ¡dem, ibidem.


143 HESPANHA, António M. Panorama histórico da cultura jurídica européia
S/l: Europa-América, 1997. p. 23.
144 Articulada sobretudo em FOUCAULT, M ichel. As palavras e as coisas.
Op. cif.
Introdu ção te ó r ic a à H istoria ilo D ireito 85

c o m u n ic a ç ã o , p o n d o cm e v id e n c ia a im p o rtâ n c ia da lin g u a g e m n a v id a
c o tid ia n a , p re s e n te e p a s s a d a ,4\ A c o rre la ç ã o d e ste e n fo q u e co m a
“ H isto ria N o v a " e a c e n tu a d a p o r H e sp a n h a :

T f u i l c o n sta ta r que as linhas de orien tação d esta e stra tég ia de in­


vestig a çã o se encontram no cerne dos tem as preferen cia is da N ova
H istoria: o recuo relativam en te ao m anifesto e a p ro c u ra do im pensa­
d o d o s d iscu rso s: o desm ascaram en to das estratégias de p o d e r (dis­
fa r ç a d a s p e la c a p a “científica ”, “ te ó r ic a ”, “d e sc ritiv a ”); a p e sq u isa
d a s co n tin u id a d es discu rsivas (a “língua " dos ju rista s) sob a p ro fu n ­
d a in ven ção c otidian a (a sua “lin gu agem ”); o relevo conferido à fu n ­
ç ã o v ic a ria n te d a p ersu a sã o sub-lim inar ( “in cu lca çã o ”) em d e tri­
m en to da violência. Todos estes tem as se encontram no universo te ó ­
ric o q u e a N o v a H istória reivin dica*146.

U m a s e g u n d a e s tra té g ia de in v e s tig a ç ã o d a h is tó ria d o d ire ito


v in c u la d a à “ N o v a H i s t ó r i a ” , se g u n d o H e sp a n h a , d iz re s p e ito às n o v a s
fo rm a s d e a b o r d a g e m c o m re la ç ã o à q u e stã o do p o d e r. O re v ig o ra -
m e n to d a h is tó r ia p o lític a n a ú ltim a fa se dos “ A n n a le s ” (o q u e d e u ,
n e s te p o n to , u m a o rie n ta ç ã o de p e sq u isa d iv e rsa d a q u e la u s a d a p e lo s
f u n d a d o r e s d o m o v im e n to , to ta lm e n te a v e sso s à p o lític a ) tr a z c o n s e ­
q u ê n c ia s im p o r ta n te s p a ra o d ire ito . E q u e o p o d e r, a q u i, é v is to d e
fo r m a d e s c e n tr a d a , n ã o n e c e s s a ria m e n te c o lig a d a ao “ E s ta d o ” fa z e n d o
c o m is to q u e as p e rs p e c tiv a s de a n á lise p o lític a p o ss a m se m u ltip lic a r.
A q u i s ã o im p o r ta n te s ta n to os c o n c e ito s g ra m sc ia n o s de “ d ir e ç ã o ” e
“ d o m í n io ” ( is to é: a d e m a rc a ç ã o d a e x is tê n c ia de re la ç õ e s d e p o d e r
ta n to d e n tr o d a in s tâ n c ia b u ro c rá tic a e sta ta l - a “ s o c ie d a d e p o lític a ” -
q u a n to d e n tr o d o s a p a re lh o s p riv a d o s de h e g e m o n ia - “ a s o c ie d a d e
c iv il” ) q u a n to o c o n c e ito fo u c a u ltia n o d e “ d is c ip lin a ” (c o m o o s m e io s
de s u je iç ã o e x is te n te s n u m a d a d a so c ie d a d e e q u e se fa z e m im p o r p e ­
los m e c a n is m o s “ c a p ila r e s ” d e p o d e r, e n ã o p e lo s e s ta ta is ). O im p o r ­
ta n te é q u e s ã o d e s c o r tin a d o s n o v o s o b je to s e n o v o s p ro b le m a s p a r a a
h is tó ria d o d ir e ito : as r e la ç õ e s ju r íd ic a s n ã o fic a m a d s trita s a o s p r o ­
b le m a s e x is te n te s e n tr e o s ú d ito e o E s ta d o , ta l c o m o c o n c e b e a d o u ­
trin a ju r íd i c a tr a d ic io n a l. A e s tru tu r a d ifu s a , a s s is te m á tic a e p lu r a lis ta

l4> B U R K E . Peter. A a r te da co n v ersa çã o . Op. cit., p. 9. Sobre este tem a ver tam ­
bém B U R K E , Peter; PO R T E R , R oy (O rgs.). H istó ria so c ia l d a lin g u a g e m . São
Paulo: U n esp/C am b rid ge, 1997.
H E S P A N H A , A n tó n io M. N o v a H istó ria e... Op. cit., p. 30.
R icard o M a r c e lo F o n s e c a
86

das ordens jurídicas históricas é colocada a nu147. O Estado é destituí­


do do trono de único foco de poder, que pode agora ser identificado
em vários lugares na sociedade: nas prisões, na família, nas polícias,
nas fábricas, nos parlamentos etc.148. Nas palavras de Hespanha,

As novas abordagens desvendam a autonomia do funcionamento polí­


tico das burocracias, os desafios do poder que se jogam na espessura
do meio administrativo. O paradigma “estatal” ignorava o mundo
político e jurídico informal ou “ilegal”, ou seja, o mundo do direito
das comunidades rurais ou marginalizadas, os processos de composi­
ção informal dos conflitos, os mecanismos “jurídicos” e “políticos”
de corrupção (encarada como sistema alternativo de organização e
de distribuição de po d er/49.

Já Paolo Grossi, na mesma esteira, assevera que “o isolamento


está às nossas costas ” 150. Existem muitos aspectos nos quais o jurista
pode ser até mesmo o interlocutor privilegiado do historiador (ligado aos
“annales”), com uma série de escolhas de fiando comuns, entre as quais se
pode inventariar ao menos três : em primeiro lugar, usando as belas pala­
vras de Grossi, a

desconfiança com relação ao évenementiel, por aquilo que sucede no rá­


pido vórtice do quotidiano. Ojurídico não se enraiza no quotidiano, nun­
ca se exaure na superfície de uma realidade, mas é sempre a ponta flori­
da de uma radicação profunda, que procura nas profundezas de uma ci­
vilização. O sofisma parcial do advogado, a construção artificiosa do
doutor, a lei insensata do tirano são a máscara simiesca do direito, são a
sua epifania aberrante e monstruosa, que nada tem a dividir com aquele
harmônico ordenamento do social radicado no costume e nos seus valo­
res, para o qual o direito confia o seu vulto mais autêntico151.

Vale dizer: o historiador do direito deve - tanto quanto os histo­


riadores franceses o fazem - confiar nos substratos mais profundos nos

147 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralism o Jurídico: fundam entos de uma nova
cultura do direito. São Paulo: A lfa-Ô m ega, 1994. p. 23 e ss.
148 H ESPANHA, Antônio M. Nova história e... Op. cit., p. 30-31.
149 Idem, p. 32-33.
150 GROSSI, Paolo. Storia sociale e dimensione giuridica, p. 12-13.
151 Idem, p. 14-15.
Introdução Teórica à História do Direito 87

quais se insere a realidade jurídica, compreendendo como a superfície é o


nível m ais pobre de análise da compreensão da realidade152*.
Em segundo lugar o jurista, tanto quanto o historiador dos “árma­
les" deve estar atento à longa duração. Usando as palavras insubstituíveis de
Grossi, “ Esse é o tempo real do direito, porque é o tempo dos estratos pro­
fundos, do uivei mais estável, onde o ius tem suas raízes, onde o moto é o
movimento imóvel das geleiras, onde se fundam valores, costume, mentali-
dades"x~~\ E o que efetivamente faz Grossi em sua introdução do livro
L’ordine giuridico medievale, quando aponta para a necessidade de enfo­
car as “experiências jurídicas”, termo emprestado do filósofo do direito itali­
ano Giuseppe Capograssi e que indica uma abordagem histórico-jurídica
sempre assentada em tempos longos, em permanências15415. E aqui é interes­
sante notar como o terreno das “mentalidades”, tão caro à escola francesa, é
recuperado de modo explícito por Grossi, ao mesmo tempo em que sua
compreensão é vinculada aos “tempos longos”, já que no livro antes citado
sobre a Ordem Jurídica Medieval coloca-se como tarefa maior “penetrar
naquele terreno secreto, naquela rede escondida (...) descendo ao espaço
árduo, arriscado mas compensador, das mentalidades’’’155.
Por fim, em terceiro lugar, cedendo espaço mais uma vez à rica
linguagem grossiana,

o incômodo com relação a uma cronologia desenraizada e, ao lado


disso, o incômodo pelo ídolo de origem, a particular atenção, o con­
trário, pelo momento sincrònico. Ligado como é aos valores irrepetí-
veis de uma civilização, o universo do jurista é marcado pelos confins
da experiência que nela ocorrem. Aos seus olhos, o problema da
“continuidade ”, velho e nunca suprimido vício da historiografia p o ­
sitivista, tem o odor de formalismo no modo esquemático e superficial
como f o i tradicionalmente colocado I56.

152 Para aprofundamento desta noção do “jurídico”, vide GROSSI, Paolo. Pri­
meira lição sobre direito. Tradução de Ricardo Marcelo Fonseca. São
Paulo: Forense, 2006.
5 GROSSI, Paolo. Storia sociale e dimensione giuridica, p. 15.
b4 GROSSI, Paolo. L ’ordine giuridico medievale. Roma/Bari: Laterza, 1995.
p. 22 e ss. Vide também, a este respeito, GROSSI, Paolo. Primeira lição so­
bre direito.
155 GROSSI, Paolo. L ‘ordine giuridico medievale, p. 6.
156 GROSSI, Paolo. Storia sociale e dimensione giuridica, p. 16.
88 Ricardo M arcelo Fonseca

Em suma: a Escola de “Annales” tem muito a dialogar com o


historiador do direito (e a recíproca também é verdadeira157) 158, na busca
e construção de novos domínios de investigação, novos instrumentos de
pesquisa e na detecção de novos problemas.

157 C o m o , a liá s , n o ta J a c q u e s L e G o f f n u m re c e n te liv ro de e n tre v is ta s n o q u al


la m e n ta n ã o te r se d a d o c o n ta do u n iv e rso ju r íd ic o a n te s do q u e o fez: L E
G O F F , J a c q u e s . A lia ricerca del m edioevo. R o m a /B a ri: L a te rz a , 2 0 0 3 .
p. 12 0 - 1 2 1 .
158 O m e sm o Ja c q u e s L e G o ff, c o n v id a d o n o c o n g re s so flo re n tin o “Storia soci­
ale e dimensione giuridica ” , ao fin a l d o s d e b a te s, te m p a la v ra s fin a is in te ­
re s sa n te s no q u e d iz re s p e ito à re la ç ã o d o s h is to ria d o re s co m os h is to ria d o ­
res do d ireito : “Si j e suis ici p o u r dire mon ignorance, j e suis aussi pour dire
que je désire un dialogue dans certains conditions avec les historiens du
droit. (...) Ce qui tout à fa it vrai, comme l ’a dit Je professeus Hespanha,
c ’est que les historiens ont peu r des historiens du droit, et si j ’analysais la
peur que j ’ai eue et que j ’ai encore a u jo u rd ’hui ici, j e crois que se serait
intéressant po u r nos propos, d ’un poin t de vue scientifique, mais je ne suis
pas isi pour confesser mes états d ’âm e”. L E G O F F , Ja c q u e s. In : G R O S S I,
P ao lo . Storia sociale e d im en sion e giu rid ica, p. 4 4 9 -4 5 0 .
5

M A TE R IA L ISM O H ISTÓ R IC O E
HISTÓRIA DO D IR EITO

“en la lucha de clases


todas las armas son buenas
piedras
noches
poemas
Paulo Leminski

5.1 DELIMITANDO O TEMA

Evidentemente que o título deste texto não corresponde à pretensiosa


empreitada de dissecar o marxismo ou mesmo o marxismo na história (ou a
história no m arxism o). M era tentativa neste sentido certamente não passaria
de um esforço de reflexão, por mais completo que fosse.
O m arxism o é um tem a por demais controverso e perigoso de
ser abordado - o que deve redobrar a cautela de quem dele se ocupa - por
duas razões básicas: prim eiro porque para muito além de um mero estu­
dioso das ciências sociais e de um marco nas reflexões das ciências hu­
manas, M arx é um pensador político, cujas ideias (ou algum uso delas)
serviram de esteio p ara m ovim entos sociais e políticos de muita impor­
tância em todo o m undo nos últim os cem anos; segundo porque discutir
“m arxism o” é algo que não existe: discute-se um determinado “marxis­
mo”, um a determ inada leitura de Marx. É que as leituras e interpretações
sobre este autor são tão variadas - às vezes até mesmo opostas - que
qualquer apropriação do ideário de Marx seria uma tarefa temerária.
90 Ricardo M arcelo F on seca

Q u er se d em arcar aqui, assim , a m o d esta p reten são deste tópico:


nu m p rim eiro m om ento , ap resen tar alg u m as ideias de M arx dentro de
u m a d eterm inada leitura. Isto é: não se q u er aqui e n fren tar todo o plexo
tem ático do autor ou ap resen tar um a av aliação geral sobre sua obra ou
sobre suas ideias (o que seria m uito difícil e estaria além das pretensões
deste texto); ao contrário , p reten d e-se c en trar a a ten ç ão nos tópicos refe­
ren tes á reflex ão m arx ista sobre a histó ria, ev id e n te m e n te que sem querer
d izer com isto que existe em M arx u m a te o ria d a h istó ria estanque, diver­
sa de u m a te o ria sociológica, ou de u m a te o ria eco n ô m ica. Apenas quer
se b u sc a r os prin cip ais conceitos o peracionais de M a rx sobre a história,
a p o n ta n d o as linhas m estras de seu esforço de c o m p reen são do passado
h u m a n o . Já n u m segundo m om ento, a ideia é q u e stio n a r algum as premis­
sas do u so que se faz da obra de um influente h is to ria d o r m arx ista do séc.
X X - E d w a rd T hom pson - no que se refere à p ecu liar, rica e original
a p ro p ria ç ã o feita p o r ele (sem pre dentro das q uadras do m arxism o) com
re la ç ã o ao objeto direito. Isso se ju stific a n a m e d id a em que o uso
thompsoniano da noção de direito acabou p o r te r u m en o rm e sucesso na
h is to rio g ra fia brasileira (m as não só), especialm ente q u an d o esta se de­
fro n to u sobre tem as que envolvem a escravidão (so b retu d o aqueles estu­
d o s q u e se utilizam prim ariam ente das leis escrav istas e dos processos de
lib e rd a d e ). E creio que alguns com ponentes d este u so m erecem um a re­
fle x ã o u m tan to m ais acurada.

5 .2 M A R X IS M O E H IS T O R IO G R A F IA

É inquestionável a centralidade da h istó ria, co m o cam po de ob­


serv ação e com o parte do m étodo no sistem a de com preensão geral da
so ciedade, dentro da reflexão m arxista. N ão foi p o r acaso que em seu
livro A id eo lo g ia A lem ã, M arx e E ngels escrev eram a frase emblemática
(em bora depois a tenham riscado do m an u scrito original): “Conhecemos
uma única ciência, a ciência da história ” 159.
M as para iniciar o m odo com o o m arxism o se relaciona com a
história, talvez seja interessante prim eiram ente esquadrinhar o funciona-

159 M A R X , Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia Alemã. São Paulo: Hucitec,


1987. p. 23. Esta citação acabou sendo suprimida do manuscrito original pelos
autores.
ÜT
In tro d u çã o T eó r ica à H istória do D ireito 91

mento do m o d e lo e p is te m o ló g ic o d o m a rx ism o p e ra n te u m a re la ç ã o
muito in trin cad a: a re la ç ã o e n tre o su je ito e o c o n h e c im e n to . M u ito ao
inverso de te o ria s c o m o o p o sitiv ism o , p o r e x em p lo , q u e c o n c e b e m o
sujeito de u m a fo rm a to ta lm e n te p a ssiv a , de m o d o q u e o c o n h e c im e n to
lhe é todo e x tem o (o o b jeto te m u rn a ex terio rid ad e que o afasta irrem e d ia­
velmente do su je ito ), b e m c o m o d e m o d o d iv e rso das te o ria s id e a lista s
que lim itam ao su je ito to d o o a sp e c to a tiv o n o p ro c e sso de c o n h e c im e n to ,
o m arxism o p ro c e d e a u m a m e d ia ç ã o d ia lé tic a en tre o su je ito e a q u ilo
que é co n h ecid o . T ra ta -s e d a m e d ia ç ã o d a praxis , q u e e n se ja o q u e C iro
Flam arion C a rd o so c h a m a d e teoria modificada do reflexo160. K a rl M a rx
explicitou b e m e s ta te o r ia e m su a s Teses sobre Feuerbach. N a te s e II
pode-se le r o se g u in te :

A q u e stã o d e sa b e r se ca b e ao pensam ento humano um a v e r d a d e o b ­


j e t i v a não é um a qu estão teórica, m as prática. É na p r á x is qu e o h o ­
m em d e v e d e m o n stra r a verdade, isto é, a realidade e o p o d e r, o c a ­
r á te r terre n o d e seu pensam ento. A disputa sobre a re a lid a d e ou n ão
re a lid a d e d o p e n sa m e n to isolado da p rá x is é uma questão p u r a m e n te
e s c o lá s tic a 16 .

E s ta te o r ia te m u m a co n seq u ê n c ia im ed iata n o e stu d o d a h is tó ­


ria: u m a v e z q u e o s p ro c e s so s p a ssa d o s n ão p o d em se tra n sfo rm a r, n ó s o s
conhecem os a tra v é s d e tra n sfo rm a ç õ e s co n stan tes de suas im a g e n s c o n ­
secutivas, e m fu n ç ã o d as m u d a n ç a s que in terv êm n a p rá x is s o c ia l162. Is to
quer sig n ific a r, a ss im , q u e a h isto rio g ra fia m a rx ista é atu a n te n a re a lid a ­
de, se q u er p a rtic ip a tiv a : a p e rc e p ç ã o de fato res e n c o n trá v e is n o p a s s a d o
orienta a p rá x is s o c ia l c o m re la ç ã o à in terv en ção n a s estru tu ra s p re s e n te s ,
de form a q u e, n e s te se n tid o , e x iste u m a v in c u la ç ã o en tre o p a s s a d o e o
presente.
Q u a n to a e ste p a rtic u la r - q u e é cen tral n a c o m p re e n sã o d a h is ­
toriografia m a rx is ta - P ie rre V ila r a d u z co m p ro p rie d a d e que

... é tam bém um a h istó ria m ilitante. E ao m esm o tempo, diretam ente
ou p o r alusões, é um a h istória da atualidade. N isso ela se coloca no

160 CARDO SO , Ciro Flam arion S. H istória e paradigmas rivais. In: C A R D O SO ,


Ciro Flam arion; V A IN F A S , R onaldo. Op. cit., p. 5.
161 In: M A R X , Karl; E N G E L S , Friedrich. Op. cit., p. 12.
162 CARDO SO , Ciro F. S. H istória e paradigm as... cit., p. 5.
92 Ricardo Marcelo Fonseca

oposto da historia positivista, que pretende ser objetiva e requer um


distanciamento temporal’ terminando a reduzir a historia a mera cu­
riosidade em face do passado, deliberadamente “insignificante”,
Toda narração de eventos, toda análise de causas, pelas suas inevitá­
veis escolhas, encobre uma ideologia, pouco nociva quando é decla­
rada, perigosa quando é oculta163.

Assim, como teoria revolucionária que é, a visão marxista da


história, dentro do processo de conhecimento, também cumpre uma fun­
ção de transformação do presente.
Mas isto não significa que esta historiografia seja relativista ou
então subalterna com relação a uma prioridade política revolucionária: é
a própria teoria do conhecimento marxista que enfatiza a práxis como
mediação necessária entre o sujeito e objeto do conhecimento. Além dis­
so, o marxismo se esforça em partir de pressupostos concretos e reais
para iniciar a reflexão histórica. De fato, o ponto de partida de Marx e
Engels em seu livro A ideologia Alemã - livro em que, nas palavras de
Vilar, o problema da história como ciência é verdadeiramente enfrenta­
do 164 - é a própria natureza: segundo nossos autores toda a historiografia
deve partir dos fundamentos naturais e de sua modificação no curso da
história pela ação dos homens16516. Desta forma, chega-se a um a das ideias
centrais desta teoria: a história dos homens passa a se diferenciar da dos
animais e da natureza a partir do momento em que eles (os homens) co­
meçam a produzir seus meios de vida. É a produção e a transformação da
natureza pelo trabalho que é a marca fundamental da evolução do gênero
humano através dos tempos. Existe, assim, um primado da produção.
Dizem Marx e Engels em A Ideologia Alemã que “pode-se distinguir os
homens dos animais pela consciência, pela religião ou por tudo que se
queira. Mas eles próprios começam a se diferenciar dos animais tão logo
começam a produzir seus meios de vida”16 .
A história, a partir daí, se transforma num “processo de vida
ativo”, tomando-se compreensível. É que, como diz M arx em outro texto,
“na produção social da própria existência, os homens entram em rela-
ções determinadas, necessárias e independentes de sua vontade; estas

163 VILAR, Pierre. Marx e a história. In: HOBSBAWM, Eric J. (Org.). História do
marxismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 119.
164 Idem, p. 100.
165 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Op. cit., p. 27.
166 Idem.
Introdução T eórica à História do Direito 93

relações d e p r o d u ç ã o c o rre sp o n d em a um grau determ in a d o d e d e se n ­


volvim ento d e su a s f o r ç a s p r o d u tiv a s m a te ria is” 161.
A ssim , é d entro do processo produtivo que aparecem dois dos
principais co n ceito s d a lógica histórica m arxista: relações de pro d u ção e
forças pro d u tiv as. O prim eiro deles deve ser com preendido em conexão
com as relaçõ es sociais que os hom ens estabelecem entre si p ara p ro d u z i­
rem e d iv id irem os ben s e serviços que produzem ; não são sim plesm ente
forças m ateriais, m as são hum anas. Já o segundo conceito (forças p ro d u ­
tivas) deve ser defin id o com o o conjunto das fontes de energia (com o a
madeira, o carvão e o petróleo, por exemplo), das m atérias-prim as (ferro
ou borracha, p o r exem plo) e das máquinas, além dos conhecim entos cientí­
ficos e técn ico s e os trabalh ad o res1 .
E m cad a época existem determinadas forças p ro d u tiv as a que
correspondem dadas relações de produção. E a m aneira com o se d á a
conexão entre um e outro determ ina o modo de produção que está p re ­
sente em cada época histórica. Isto é: o modo de produção é p recisam en te
o conceito que unifica as relações sociais de produção presentes em u m a
determ inada época com o grau de desenvolvim ento histórico das fo rças
produtivas então presentes. D esta síntese existe um a dada estru tu ra h is tó ­
rica, relativam ente duradoura e com características (na pro d u ção e n as
relações sociais que daí advém) específicas.
M odo de produção talvez seja o conceito central dentro da a n á ­
lise histórica do m arxism o. É um a estrutura determ inada e determ inante,
exprime um todo social, em seu sistem a de funcionam ento e d esen v o lv i­
m ento16718169. Segundo B raudel, o gênio de M arx está precisam ente no fato
dele fabricar verdadeiros m odelos sociais (os m odos de produção) a p a rtir
da longa d u ração 170.
E m su a v isão dialética, M arx e E ngels cap taram a d in â m ic a
própria dos m o d o s de pro d u ção . V erificaram com o existe um g érm en
de m udança in trín se c a em sua estrutura, a p artir ju sta m e n te das m o d i­
ficações n a p ró p ria base pro d u tiv a, na infraestru tu ra (en ten d id a esta
como o c o n ju n to das relaç õ e s pro d u tiv as bem com o das forças de p ro -

167 MARX, K. Prefácio à Contribuição à crítica da Economia Política. In: M ARX,


K.; ENGELS, F. História. Op. cit., p. 233.
168 BOURDÉ, Guy; MARTIN, Hervé. Op. cit., p. 154.
169 Idem, p. 156.
170 Apud BOURDÉ, G.; MARTIN, H. Op. cit., p. 156.
94 Ricardo Marcelo Fonseca

dução presentes em dada sociedade). Marx explica este processo da


seguinte forma:
Em certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas mate­
riais da sociedade entram em contradição com as relações de produ­
ção existentes, ou, o que não é mais do que sua expressão jurídica,
com as relações de propriedade no seio das quais elas haviam se des­
envolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que
eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma
época de revolução social. A transformação que se produziu na base
econômica transtorna mais ou menos lenta ou rapidamente toda a
colossal superestrutura171.

Quantos modos de produção existem em Marx? Esta questão, ao


contrário do que fizeram muitos, não se presta a uma leitura simplista, já
que os modos de produção nunca foram fixados de maneira precisa. Nos
“Princípios de uma Crítica da Economia Política”, de 1858, Marx aduz a
existência de uma comunidade tribal, enquanto que na “ Crítica da Eco­
nomia Política”, do mesmo ano, ele faz menção a um “modo de produ­
ção asiático”, todos eles não presentes no elenco anteriormente feito em
A ideologia Alemã (escrita entre 1845 e 1846)172. Isto demonstra como
Marx estava pronto para rever os seus modelos e modificar os caracteres
dos modos de produção em função dos progressos do conhecimento da
história173. Exatamente por isto é que não tem sentido a leitura etapista e
necessária dos modos de produção, como se a sua sequência fosse sempre
estanque e necessária.
Feita esta advertência, cabe relacionar os modos de produção
“clássicos”, por assim dizer, da história do Ocidente e que constituem o
cerne da explicação histórica da Europa Ocidental para Marx e Engels: o
primeiro modo de produção é o antigo ou escravista - vigente na sua
forma mais pura na Grécia Clássica e na Roma Republicana - caracteri­
zado pelas relações escravistas de produção; o segundo é o modo de pro­
dução feudal - melhor caracterizado no Ocidente Medieval - caracteriza­
do pelas relações de produção servis; e o terceiro é o modo de produção
capitalista ou burguês moderno - vigente na Europa do séc. XIX, quando
viviam os autores ora em questão - caracterizado pelas relações de pro-

171 MARX, K. Prefácio à contribuição... Op. cit., p. 233.


172 BOURDÉ, G.; MARTIN, H. Op. cit., p. 157.
173 Idem,p.\51.
Introdução Teórica à História do Direito 95

dução calcadas no trabalho assalariado174. Como se vê, existe um a se­


quência histórica no O cidente, levada pela próprio movimento dialético
da realidade, que transform a a base produtiva, alterando com isto também
as relações de produção.
C om o se viu, as contradições da vida m aterial da sociedade
alteram a b ase p ro d u tiv a, alterando tam bém a superestrutura (en ten d i­
da esta com o o conjunto de representações dos hom ens tais com o a
religião, a ciência, a m oral etc.). A qui surge um a outra questão b ásica
da histo rio g rafia m arxista: o prim ado da infraestrutura sobre a su p e r­
estrutura. O u, em outros term os, para M arx e Engels não é a c o n sc iê n ­
cia dos h om ens que determ ina o seu ser, mas, ao inverso, é o seu ser
social que d eterm in a a sua consciência175. Esta questão foi to m ad a p o r
muitos com o um verdadeiro determ inism o econôm ico, com o u m a re ­
lação de p rim azia necessária da infraestrutura sobre a su p erestru tu ra,
como num a relação de reflexo. Não obstante tal leitura e fetiv am en te
ter sido feita p o r inúm eros historiadores (especialm ente aqueles d o u ­
trinados pelas cartilhas do m arxism o-leninism o), um a in terp re tação
dialética das indicações de M arx e E ngels 176 propõe um a v isão m en o s
m ecânica, m ostrando a estruturação relativam ente autônom a de cad a
uma das esferas, de dupla im plicação. Vale dizer: m uito em b o ra h a ja
uma p reem inência ontológica da infraestrutura, isto não sig n ifica u m
m ecanicism o entre as esferas económica e ideológica. C ada u m a d elas
guarda características e especificidades próprias, in fluenciando em
níveis diferenciados no todo social.
Pode-se sustentar (e muitos o fazem) que mesmo os fundadores
do m aterialism o histórico, muito embora acentuassem o peso da esfera
econômica, em nenhum momento aderiram a um a visão do tipo m ecani-
cista. Ao escreverem seus textos (em especial A Ideologia Alemã), sua
grande preocupação era combater as concepções filosóficas (especial­
mente a dos jovens hegelianos de esquerda, como L. Feuerbach, B.
Bauer, M. Stim er) que colocavam aspectos “espirituais” como preem i­
nentes na explicação da realidade, motivo pelo qual a ênfase na esfera
produtiva deveria ser acentuada. Isto não implicaría, pois, num a pura e

174 Idem, p. 157.


175 MARX, K. Prefácio à contribuição... Op. cit., p. 233; MARX, K.; ENGELS, F.
A ideologia... Op. cit., p. 37.
176 Vide, por exemplo, HOBSBAWM, Eric. Sobre história: ensaios. Tradução de
CidKnipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 155 e ss.
96 R icard o M a r c e lo F o n s e c a

sim p les a lte ra ç ã o da e q u a ç ã o d o s jo v e n s h e g e lia n o s , o u , em outras pala­


vras, na su b stitu iç ã o d o “ e s p írito ” p e la “ e c o n o m ia ” c o m o chave da expli­
c ação h istó ric a , sob p e n a d e a b a n d o n o d a p r ó p r ia c o n c e p ç ã o dialética da
h isto ria q u e ta n to c a ra c te riz a v a s e u p e n s a m e n to . T a lv e z com o demons­
tra ç ã o d a p ro c e d ê n c ia d e sta a firm a ç ã o se p o s s a c ita r u m a carta dirigida a
C o n ra d S c h m id t p o r E n g e ls, o n d e e le a d u z q u e "... embora o modo mate­
rial de existência seja o prim um agens [causa prim eira], isso não exclui
que os territórios da idealidade p o r sua vez reajam sobre ele, tenham um
efeito reativo, ainda que secundário (..) N ossa concepção de história é,
no entanto, acima de tudo, um guia de estudo, e não um guindaste de
construção a hegelianismo”111.
O g ra n d e m é rito d a c o n c e p ç ã o m a r x is ta q u a n to a este ponto, as­
sim , fo i a d e fa z e r a a rtic u la ç ã o e n tre as in s tâ n c ia s d o to d o social, captan­
d o , d e sta fo rm a , a to ta lid a d e o n d e se in s c re v e a h is tó ria dos homens.
B u s c a n d o fu g ir do iso la m e n to d o s d iv e rso s fa to re s d e e x p licação , Marx e
E n g e ls p re te n d e m e x p lic a r e c o m p re e n d e r o to d o s o c ia l, reafirm ando, não
o b sta n te , a p re e m in ê n c ia (n ão m e c â n ic a ) d a e c o n o m ia .
E m su m a, a re fle x ã o de M a rx so b re a h is tó ria tom ou-se, sem
d ú v id a , u m p a trim ô n io te ó ric o in a lie n á v e l p a ra q u e m o lh a p a ra o Passa­
do. C o m o d iz H o b sb a w m ,

a influência d e M arx so b re o s h isto ria d o res, e n ão só os historiadores


m arxistas, baseia-se, contudo, tan to em su a te o r ia g e r a l (a concepção
m a te ria lista d a história), com se u s esfo rço s, ou p ista s, sobre a com­
p le iç ã o g e r a l do d esen vo lvim en to h istó r ic o hum ano (...) quanto em
su a s o b se rv a çõ e s c o n creta s re la tiv a s a a sp e c to s, p e río d o s e proble­
m as esp e cífic o s do p a s s a d o 11*.

O u , n a s p a la v ra s d e G e o ffre y B a r r a c lo u g h , “ a influência cres­


cente do marxismo deve-se principalm ente ao fa to de que oferecia a úni­
ca base verdadeiram ente satisfatória p a ra um ordenam ento racional dos
dados complexos da história da hum anidade”1191789

177 E N G E L S , F. Carta a C onrad S ch m id t (d e 0 5 .0 8 .1 8 9 0 ). In: MARX, K.»


E N G E L S , F. H istó r ia ... Op. c it ., p. 4 5 5 - 4 5 6 .
178 H O B S B A W M , Eric. S o b r e h is t ó r ia , p. 1 7 3 -1 7 4 .
179 B A R R A C L O U G H , G eo ffrey . T e n d e n c e s a c t u e lle s d e 1’histoire. P^js
Flam m arion, 1 980. p. 3 8 , citad a p or C A R D O S O , C iro F.; V A IN F A S , R onald
D o m ín io s d a h istó r ia , p. 7.
Introdução Teórica à História do Direito 97

5.3 C L A SS E S SO C IA IS E ID EO LO G IA

Para ajudar a aclarar esta breve análise da posição de Marx e


Engels sobre a história, não se pode deixar de referir, ainda que muito
brevemente, a dois conceitos que constituem a própria base da reflexão
marxista, e cuja aplicabilidade na análise histórica é fulcral: classes sociais e
ideologia.
Antes de tudo é importante ressaltar que o conceito de clas­
ses sociais não foi criado por Marx e Engels. Ele foi buscado na he­
rança do socialismo francês (Fourier, Proudhon, Blanc etc.) mas, evi­
dentemente, a ele foi dada uma utilização toda própria180. Por outro
lado, não houve uma elaboração estruturada de uma sociologia das
classes sociais por parte dos fundadores do materialismo histórico,
não obstante seja um conceito singularmente complexo181*. Optamos
aqui por abordá-lo sob o prisma histórico, tal como na leitura de
Edward Thompson:

Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de


acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na
matéria prima da experiência como na consciência. (...) Ademais, a
noção de classe traz consigo a noção de relação histórica. Como
qualquer outra relação, é algo fluido que escapa à análise ao tentar­
mos imobilizá-la num dado momento e dissecar sua estrutura. A mais
fina rede sociológica não consegue nos oferecer um exemplar puro de
classe, como tampouco um do amor ou da submissão. A relação pre­
cisa estar encarnada em pessoas e contextos reais. Além disso, não
podemos ter duas classes distintas, cada qual como um ser indepen­
dente, colocando-as a seguir em relação recíproca. Não podemos ter
amor sem amantes, nem submissão sem senhores rurais e campone­
ses. A classe acontece quando alguns homens, como resultado de ex­
periências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a
identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos
interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seusm .

180 BOURDÉ, G.; M ARTIN, H. Op. cit., p. 160.


Idem, p. 162.
182
THOMPSON, Edward P. A form ação da classe operária inglesa: a árvore da
liberdade. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 9-10.
98 Ricardo Marcelo Fonseca

A classe social é, pois, uma relação que se manifesta na socie.


dade civil183, em virtude da posição diversa (e até mesmo antagônica)
determinados grupos se colocam na produção. E, como relação que é, a
classe social também se define pela “ identidade de interesses” daqueles
que compõe estes grupos, identidade esta que é também conhecida como
consciência de classe.
Assim, resumindo, classe social pode ser definida tomando-se
em conta que é um conceito que pressupõe uma dupla referência a um
critério econômico - a posição com relação ao modo de produção, bem
como deve-se levar em conta também nesta definição um critério psico­
lógico e político - a tomada de consciência184.
Desta forma, quando se fala em classe social para o marxismo,
está se falando (ainda que implicitamente) em lutas de classes. E a histó­
ria, para Marx e Engels, não pode ser dissociada da luta de classes. Pode-
se perceber este fato pelas primeiras frases do célebre Manifesto Comu­
nista, de 1848: “A história de todas as sociedades que existiram até nos­
sos dias tem sido a história das lutas de classes. Homem livre e escravo,
patrício e plebeu, barão e servo, mestre de corporação e companheiro,
numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivi­
do numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada” 185.
Outro conceito importante para a historiografia marxista - tal­
vez mais problemático ainda - seja o de ideologia. E isto porque é um
termo equívoco dentro dos próprios escritos de Marx e Engels. Ora ele é
colocado na concepção de “falsa consciência”, no sentido de ser a repre­
sentação da realidade feita de forma invertida em vista do processo histó­
rico de vida em que os homens estão envolvidos186, ora é identificado
com a produção das ideias e das representações, ou seja, como parte (ou
subparte) das superestruturas, junto com a religião, as artes etc. e ora é
um conceito que engloba todas as representações produzidas pelas insti­
tuições políticas, jurídicas, religiosas e culturais, como se fosse o con­
junto de todas elas187.

183 O termo sociedade civil, aqui, é utilizado no sentido empregado pelo própno
Marx, como o conjunto das relações travadas pelas classes na infraestrutura,
como o palco da própria luta de classes na esfera da economia.
184 BOURDÉ, G.; MARTIN, H. Op. cit., p. 163-164.
185 MARX, K.; ENGELS, F. História... Op. cit., p. 365.
186 MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia... Op. cit., p. 37.
187 BOURDÉ, G.; MARTIN, H. Op. cit., p. 167-168.
Introdução T eórica à H istória do D ireito 99

A primeira das concepções foi objeto de uma maior elaboração


teórica por parte de Marx e Engels e é utilizada frequentemente pela his­
toriografía marxista. A ideologia, aqui, tem uma função típica de domi­
nação de classe, servindo como um verdadeiro “aparato” ou “aparelho”
de poder nas mãos da classe dominante. Em A Ideologia Alem ã existe
um trecho significativo - e que demonstra como a ideologia deve ser
analisada em conexão com o conceito de classe - onde se pode ler:

As idéias da classe dominante são, em cada época, as idéias domi­


nantes; isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade
é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem
à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo
tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com que elas se­
jam submetidas, ao mesmo tempo e em média, às idéias daqueles aos
quais faltam os meios de produção espiritual. As idéias dominantes
nada mais são do que a expressão ideal das relações materiais domi­
nantes, as relações materiais dominantes concebidas como idéias;
portanto, a expressão das relações que tornam uma classe a classe
dominante; portanto, as idéias de sua dominação188189.

Esta visão sobre a ideologia é tomada de empréstimo, já no séc.


XX (nos anos sessenta) por um dos teóricos mais influentes de seu tempo
na releitura do legado marxista: o filósofo francês Louis Althusser. Para
ele a ideologia, para além de mera representação mental, tinha também
uma estrutura, um substrato material, com uma função muito determinada
na estrutura de classes. No seu livro Pour M arx (A favor de M arx), ele
ensina que

... a ideologia é uma questão da relação vivida entre os homens e seu


mundo. (...) Na ideologia os homens na realidade exprimem, não a
relação entre eles e suas condições de existência, mas a maneira pela
qual vivem a relação entre eles e suas condições de existência: isto
pressupõe tanto uma relação real como uma relação imaginária, vivi­
da. A ideologia é, pois, a expressão da relação entre os homens e seu
mundo, isto é, a unidade (superdeterminada) da relação real e da re­
lação imaginária entre eles e suas condições reais de existência .

188 MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia... Op. cil., p. 72.


189 Apud HALL, Stuart et alii. Da ideologia: Althusser, Gramsci, Lukács,
Poulantzas. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. p. 111.
100 Ricardo Marcelo Fonseca

A ideologia aqui, em Althusser, é um sistem a de representações


que é fundamentado nas práticas da vida cotidiana, ao mesmo tempo em
que é vinculado às classes sociais em presença num a dada sociedade. Os
interesses que as “ideologias” representam de certo modo refletem de
modo relativamente autônomo a formação social estruturada na qual sur­
gem. É, pois, uma articulação social específica19019. E para Althusser tanto
a ideologia se constitui em prática diretamente ligada à vida material dos
homens que ela pode em dado momento se encarnar num a realidade em­
pírica: os aparelhos ideológicos de Estado: “Designamos aparelhos ide­
ológicos de Estado um certo número de realidades que se apresentam ao
observados imediato sob a forma de instituições distintas e especializa­
das”. (...) A partir do que sabemos, nenhuma classe pode duravelmente
deter o poder de Estado sem exercer simultaneamente a sua hegemonia
sobre e nos Aparelhos Ideológicos de Estado. Esta última nota per­
mite-nos compreender que os Aparelhos Ideológicos de Estado podem
ser não só o alvo mas também o local da luta de classes e por vezes de
formas renhidas da luta de classes191,\

5.4 O DIREITO NO MARXISMO E A LEITU R A DE E. P.


THOMPSON

Como se disse, os usos que foram feitos pelo marxismo não fo­
ram uniformes. Vão desde análises mais matizadas e dialéticas até a es­
quematismos mecânicos, deterministas e reducionistas. E na questão es­
pecífica da análise da esfera jurídica feita pelo marxismo, tomado natu­
ralmente de um modo bem geral, creio que infelizmente prevaleceu uma
visão mais restritiva do seu sistema de seu pensamento, por um certo
esquematismo e economicismo.
Talvez influenciado pela ênfase dada por M arx ao “ser” e não
nas “formas de consciência”, pelo protagonism o dado às forças pro­
dutivas e às relações de produção ao invés das formas de representa­
ção, em suma, ao acento maior dado à esfera da infraestrutura do que à

190 M cL e n n a n , Gregor; MOLINA, Victor; PETERS, Roy. A teoria de Althusser


sobre ideologia. Irr. HALL, Stuart et alii. Op. cit., p. 128.
191 ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa:
Presença, s/d. p. 43 e 49.
Introdução Teórica à H istória do D ireito 101

superestrutura, o d ireito m u ito fre q u e n te m e n te a p arece c o m o u m a e s ­


fera com pletam ente p assiv a , so b re d e te rm in a d a , que s im p le m e n te r e ­
vela o reflexo das fo rças so ciais d o m in an tes em u m a d e te rm in a d a é p o ­
ca. A p reem in ên cia o n to ló g ic a da e sfe ra ec o n ô m ic a , em M a rx , se
transforma, em leitu ras m u ito freq u en tes, em p u ro e sim p le s d e te rm i­
nismo econôm ico. A m atização h istórica com plexa e so fistic a d a , d e ­
monstrada por M arx sobretudo nas suas “obras h istó ric a s” (em esp e c ia l
no 18 Brum ário) p arecem te r sido d esp rezad as. N o c a so e s p e c ífic o do
modo de p ro d u ção cap italista, o d ireito então ap a re c e c o m o re s u lta d o
da form a de do m in ação bu rg u esa, estreitam en te v in c u la d o à su a p o lí ti­
ca e dela d ep endente. N ão se v islu m b ra p a ra o d ire ito , n e s ta v is ã o ,
qualquer espaço de autonom ia, de desv in cu lação , m ín im a q u e s e ja , d a s
forças sociais dom inantes. A quela frase co n stan te do “p r e f á c io ” d a
Contribuição à Critica da Economia Política, n o se n tid o d e q u e
relações jurídicas bem como as formas de Estado não podem ser ex­
plicadas por si mesmas (...) estas razões têm, ao contrário, suas raízes
nas condições materiais de existência ”192 foi le v a d a lo n g e d e m a is p o r
m uitos analistas.
Claro que com o que se afirm ou acim a não se e stá q u e re n d o ,
obviamente, defender a posição diam etralm ente oposta, o u seja, a d e q u e
o direito goza de com pleta autonom ia diante das dem ais esferas h is tó ric a s
com as quais (inextricavelm ente) convive e se relaciona. Se e stá a q u i a
dizer, apenas, que existe um a posição m ais dialética entre os d o is e x tre ­
mos (o da com pleta autonom ia do direito e a sua co m p leta d e p e n d ê n c ia
com relação à econom ia), posição esta que, ju stam en te, o b e d e c e e re s ­
peita a profunda historicidade da realidade analisada, que fre q u e n te m e n te
escapa a esquem atism os e conceptualizações que se p re te n d e m fe c h a d a s
e transtem porais.
E, percebendo o incom odo e estéril im passe n o qu al o d ireito
(como objeto de investigação) havia sido colocado é que surge, co m o
uma das alternativas possíveis, a obra do histo riad o r in g lês E d w a rd
Palmer T hom pson (1924-1993). Trata-se de h istoriador ed u cad o n a new
left inglesa (ao lado de nom es com o E ric H obsbaw m , C risto p h er H ill e
Raymond W illiam s), polêm ico, instigante e avesso a o rto d o x ia s193. M ili-

192 MARX, K.; ENGELS, F. História... Op. cit ., p. 232.


Para um apanhado biográfico, veja-se: PALMER, Bryan D. Edward Palm er
Thompson: objeções e oposições. Tradução de Klauss Brandini Gerhardt. São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
Ricardo M arcelo F o n seca
102

ta n te 194 e erudito, T h o m p so n a p a re c e c o m g ra n d e re le v o n a discussão


(e revisão) h isto rio g ráfica c e n tra n d o su a a te n ç ã o n a s fo rm a s de produ­
ção de cultura das classe d o m in a d a s, se n d o , p o r isto , o precursor de
urna form a de h isto ria cu ltu ra l de ra iz m a r x is ta 195 e ao m esm o tempo
um autor que busca escap ar da ê n fa se e c o n o m ic is ta d e a lg u n s dos dis­
cursos histo rio g ráfico s m arx istas. Isto é b a s ta n te c la ro , sobretudo, nos
seus estudos sobre a Formação da classe operária inglesa, na qual o
papel ativo das pró p rias classes d o m in a d a s n a c o n stru ç ã o do seu “fa-
zer-se” (“m a t e g ”), isto é, no seu p a p e l a u to -c o n s titu in te n o plano da
c u ltu ra, com o classe. T h om pson, p o r esta e p o r o u tra s ra z õ e s, é muito
celeb rad o n a h isto rio g rafía b ra sile ira a p a rtir d o s a n o s 80, quando se
in iciam suas traduções.
N o que diz respeito à discussão que nos in teressa m ais de perto,
ou seja, o papel exercido pelo direito (com o esfera cu ltu ral) na constru­
ção da sociedade, o livro que se transform a n u m a refe rê n c ia de análise é
o seu Senhores e caçadores196, lançado em 1975 e que é traduzido no
B rasil em 1987. Este livro aborda a cham ada “Lei negra de Waltharí\
editada em m aio de 1723 na Inglaterra, que estabelecia e tipificava uma
série de infrações, com a previsão de severas penas (inclusive a pena de
m orte) para quem caçasse nas florestas reais, p ara quem ferisse ou matas­
se gam os ou veados ou caçasse e pescasse clandestinam ente. É analisado
n este livro o m odo como vai se delineando um a n o ção m oderna de pro­
priedade, com o as terras vão sendo cada vez m ais subtraídas de formas
consuetudinárias de uso coletivo em detrim ento de u m a concentração nas
m ãos de alguns sujeitos. Trata-se de um livro rico, b em documentado e
interessantíssim o. Ao final da análise dos efeitos da lei (e aqui é que as
coisas com eçam a tom ar relevância p ara os no sso s propósitos),
T hom pson faz um excurso sobre o papel da lei o “domínio da lei”, en-

394 Além de militante no movimento dos trabalhadores (seu livro, em três volumes,
A formação da classe operária inglesa. Tradução de D enise Bottmann. São
Paulo: Paz e Terra, 1987; tomou-se referência internacional), no final da vida
tomou-se ativista contra a guerra fria e a ameaça do extermínio nuclear, como se
pode ver em THOMPSON, E. P. et alii. Exterminismo e guerra fria. Tradução
de Denise Bottmann. São Paulo: Brasiliense, 1985.
195 DESAN, Suzanne. Massas, comunidade e ritual na obra de E. P. Thompson e
Natalie Zemon Davis. In: HUNT, Lynn (Org.). A nova história cultural. Tra­
dução de Jefferson Luis Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1985. p. 63 e ss.
i% THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores: a origem da lei negra. Tradução de
Denise Bottmann. São Paulo: Paz e Terra, 1987.
Introdução Teórica à História do Direito 103

frentando v e lh o s p re c o n c e ito s p ro v e n ie n te s de um m arx ism o m ais tra d i­


cional com re la ç ã o ao d ire ito e p ro p o n d o u m a fo rm a de an álise o rig in al e
diversa co m re la ç ã o ao fe n ô m e n o ju ríd ic o .
B u sc a n d o d e ix a r p a ra trá s u m a leitu ra eco n o m icista e m ec â n ic a
da esfera ju ríd ic a , e le p ro p õ e u m a le itu ra diversa:

Assim, a lei (concordamos) pode ser vista instrumentalmente como media­


ção e reforço das relações de classe existentes e, ideologicamente, como
sua legitimadora. Mas devemos avançar um pouco mais em nossas defi­
nições. Pois se dizemos que as relações de classe existentes eram media­
das pela lei, não é o mesmo que dizer que a lei não passava da tradução
dessas mesmas relações, em termos que mascaravam ou mistificavam a
realidade. Muitíssimas vezes isso pode ser verdade, mas não é toda a
verdade. Pois as relações de classe eram expressas, não de qualquer ma­
neira que se quisesse, mas através das formas da lei; e a lei, como outras
instituições que, de tempos em tempos, podem ser vistas como mediação
(e mascaramento) das relações de classe existentes (como a igreja e os
meios de comunicação), tem suas características próprias, sua própria
história e lógica de desenvolvimento independentes, (p. 353)

E p ro s se g u e :

A retórica e as regras de uma sociedade são muito mais do que meras


imposturas. Simultaneamente podem modificar em profundidade o
comportamento dos poderosos e mistificar os destituídos de poder.
Podem disfarças as verdadeiras realidades de poder, mas ao mesmo
tempo podem refrear esse poder e conter seus excessos, (p. 356)
Insisto apenas no ponto óbvio, negligenciado por alguns marxistas
modernos, de que existe uma diferença entre o poder arbitrário e o
domínio da lei. (p. 357)

A lei, então, ap are c e com o "uma arena central de conflito ” (p.


355) ou um “espaço de conflito ” (p. 352), um a form a de m ed iar o ex ercí­
cio da força nas re laçõ es en tre as classes (p. 358). E m seu livro C o stu m e
em c o m u m 197, lê-se ig u alm en te que “o costume também pode ser visto
como um lugar de conflito de classes ” . (p. 95)

197
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre cultura popular tradi­
cional. Tradução de Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras,
1998.
104 Ricardo Marcelo Fonseca

É que - e aqui voltamos às páginas do livro Senhores e caça.


dores - “asformas e a retórica da lei adquirem uma identidade distinta
que , às vezes, inibem o poder e oferecem alguma proteção aos destituí­
dos de poder ’ (p. 358). Afinal, “ o direito pode ser retórico, mas não ne­
cessariamente uma retórica vazia ” (p. 354).
Como conclusão, arremata Thompson:

(se) supomos que o direito não passa de um meio pomposo e misti­


ficador através do qual se registra e se executa o poder de classe,
então não precisamos desperdiçar nosso trabalho estudando sua
história e suas formas. Uma Lei seria muito semelhante a qualquer
outra, e todas, do ponto de vista dos dominados, seriam Negras. 0
direito importa, e é por isso que nos incomodamos com toda essa
história, (p. 359)

5 .5 C O N T R A P O N T O S À L E IT U R A D E T H O M P S O N

E sta form a de abordagem da instância ju ríd ic a tev e enorme su­


cesso n o B rasil. Os estudos sobre a escravidão, em especial, a utilizaram
c o m abundância. A enorm e historiografia que, ao b u scar com o temática
u m a determ inada lei do séc. X IX, ao abordar a doutrina ju ríd ica do pas­
sado ou m esm o ao tem atizar os processos jud iciais de liberdade, inicia-se
com a advertência m etodológica no sentido de que será aproveitada a
ab o rd ag em de T hom pson sobre o direito, é por si só eloquente.
E aqui é que se pensa que pode ser que h aja algum as observa­
ções e m atizações interessantes e que podem v ir a contribuir para a re­
flexão deste referencial. Trata-se de, diante do assentim ento (quase con­
senso canônico) em to m o da leitura T hom psoniana sobre o papel do di­
reito, contribuir para problem atizar alguns pontos que podem levar a
algum as cautelas especiais - e portanto a um a m aior precisão - quanto à
utilização destas ferram entas conceituais.
N ão se quer, de nenhum m odo, retirar os m éritos evidentes desta
concepção, que efetivam ente dá vários passos adiante com relação aos
lim ites, para o manejo com o direito, de um a concepção mais ortodoxa e
dogm ática do m arxism o. Frisa-se aqui, com isso, que são interessantes e
válidas as observações de Thom pson sobre o direito, e seu uso certa-
Introdução Teórica à História do Direito 105

mente enriquece as pesquisas que adotam este referencial. De todo modo,


parece salutar e necessário continuar problematizando. Afinal, o próprio
Thompson, utilizando-se de uma humildade epistemológica que cabe ao
bom historiador, afirma: “Ignoro a validade transcultural que possam ter
estas reflexões”19*.
Sendo assim, levantamos três pontos que podem e devem ser le­
vados em conta e bem matizados previamente nas pesquisas que usam
este referencial:

a) E necessário levar em consideração o fato de que o contexto


inglês do séc. XVIII analisado por Thompson se dá num contexto da
“Common Law” substancialmente diverso do sistema dos países da Euro­
pa Continental e da America Latina, sobretudo a partir da emergência do
paradigma codificador liberal.
Como diz Van Caenegem, há, entre tantas outras diferenças
substanciais, uma enorme diversidade com relação ao papel central que
têm os juízes (e também os professores) - vistos como “oráculos do sis-
tema”19 8
199*neste modelo - que deve funcionar e se arranjar sem códigos.
Ademais, “na ausência de um código”, os juristas ingleses devem traba­
lhar “com as leis e a jurisprudência antiga e recente” . Aqui o papel do
precedente e do costume (tão utilizado por Thompson como base de sua
argumentação, sobretudo em Costumes em comum) é muito diferente,
senão mesmo inverso, daquele que ocorre em um sistema codificado (ou,
ainda que não codificado em algumas áreas, já tem ao menos um “proje­
to” de codificação - como é o caso do Brasil oitocentista, em vista do
claro da Constituição Imperial de 1824 - e que adota parâmetros típicos
do direito europeu continental).

b) De qualquer modo, mesmo que se abstraia do fato de que o


sistema inglês (objeto da pesquisa de Thompson) é qualitativamente di­
verso do nosso, e mesmo que tomemos como base de análise o contexto
da “Civil Law” (isto é, o direito da tradição europeia continental e latino-
americana, que centram-se na lei escrita e codificam seu direito), ainda
assim a discussão deve ser sensivelmente complexificada. E que há uma

198 THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores, p. 354.


199 CAENEGEN, Raoul C. Van. I sistemi giuridici europei. Bologna: Mulino,
2003. p. 57.
200
Idem , p. 52.
106 Ricardo M arcelo Fonseca

indubitável equivocidade da palavra “fez”, em contextos culturais e histó­


ricos tão distintos. “Lei” é um a daquelas “palavras viajantes”, cujo senti­
do e o im pacto variam tanto ao longo do tem po. H espanha, para o caso
português, chama a atenção para o fato de que m esm o em Portugal do
séc. X IX a lei era ainda um a fonte m inoritária e subordinada com relação
ao costum e e outras tantas, estando longe de deter a centralidade que
m uitos lhe projetavam neste período201. A lei passa a ser ressignificada
justam ente no contexto liberal e passa a jo g a r claram ente, a partir dali,
um outro papel na teoria das fontes. No Brasil isso é ainda mais proble­
m ático: o séc. XIX como uma época de transição, com o um a época na
qual o paradigm a “ legalista” (Hespanha) ou o “ absolutismo jurídico”
(G rossi) ainda está num momento problem ático e tenso de implementa­
ção202. A lei não tem o vigor e a eficácia que hoje nós possam os nela
vislum brar. Exemplo claro e emblemático pode ser dado pela chamada
“ Lei de Terras” de 1850, que buscava “ modernizar” as relações de pro­
priedade no Brasil, mas que tiveram pequeníssim o im pacto, como já foi
notado tanto por José Murilo de Carvalho 203 quanto por Sergio Said Staut
Junior204. Este último, em seu interessante estudo sobre a posse nos oito­
centos e que atentou e levou à sério a doutrina e a ju risprudência do perí­
odo, dem onstrou como a jurisprudência da seg u n d a m etade do séc. XIX
no B rasil na verdade pouco se referia a as vezes tão propalada e festejada
“Lei de Terras” (em detrimento do uso extensivo da doutrina inclusive
estrangeira, das Ordenações Filipinas e outros recursos próprios do di­
reito típico do “ ancien régime” que em grande m edida ainda vigorava no
B rasil nestes anos.
Com isso tudo, parece que falar em aplicação da "dei escravis­
ta ”, com o de qualquer outra lei brasileira do séc. X IX , pode ter um im­
pacto m enor do que se suspeita. Se já parece estranho o comentário de
T hom pson para quem “ a retórica da Inglaterra do séc. XVIII está satu-

201 HESPANHA, Antônio Manuel (Org.). Justiça e litigiosidade: história e pros­


pectiva.
202 Conforme demonstrado em FONSECA, Ricardo Marcelo; SEELAENDER,
Airton Cerqueira-Leite. História do direito em pespectiva: do antigo regime à
modernidade. Curitiba: Juruá, 2008.
203 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem/Teatro de sombras. 2.
ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará/UFRJ, 1996. p. 313 e ss.
204 STAUT JUNIOR, Sergio Said. A posse no direito brasileiro da segunda me­
tade do século XIX ao código civil de 1916. Curitiba (tese de doutorado;. Uni­
versidade Federal do Paraná, 2009.
Introdução Teórica à História do Direito 107

rada da noção de le r 205 (porque afinal o séc. XVIII é uma época clara­
m ente pré-legalista e, ademais, dentro das particularidades do contexto
inglês), a análise fica tam bém problem ática quando nos voltamos para o
contexto brasileiro.

c) C om o se viu, n a concepção de T hom pson o direito deixa


de ser visto com o instru m en to de força de um a classe. Isto é, como já
se disse e rep etiu , im p o rtan te passo p ara “lib erar” do direito as am ar­
ras d em asiad o restritiv as que o ligavam (de acordo com certa leitura
do m arx ism o ) com a econom ia. M as se o direito deixa de ser, em
T h o m p so n , m ero instru m en to da classe dom inante, continua sendo, de
q u alq u er m odo, um instrumento. A gora ele é arena de lutas, é espaço
do c o n flito , onde as classes podem dele dispor n a tram a histórica. É,
u san d o as p alav ras de T hom pson, “uma retórica” que, com o na espera
de u m b o m sofista (ocasionalm ente, um advogado abolicionista),
ev e n tu a lm e n te p ode tam bém servir aos propósitos da classe dom inada.
E claro que o direito, eventualmente (é a pesquisa empírica diante
de u m contexto determ inado que dirá sempre como isso ocorre) cumpre
este jo g o e desem penha estas funções nos conflitos históricos concretos.
É evidente - repita-se para não haver mal-entendidos - que o direito pode
ser eventualm ente instrumentalizado seja pelos dom inadores (o que é
m ais frequente) ou pelos dominados (menos frequente). Isto não autoriza,
po rém , que o direito seja definido e considerado, em toda circunstância
histó rica, com o m ero instrum ento. A espessura histórica do direito pare­
ce, de fato, ser m enosprezada.
N esta discussão, as palavras de Paolo Grossi são insubstituíveis:

o “jurídico ” não é somente um mecanismo de organização da reali­


dade, mas é pensado e construído em um nível menos empobrecedor;
é aliás expressivo não da qüotidianeidade, mas de raízes profundas,
sendo ligado aos valores essenciais de uma sociedade; é, enfim, essa
mesma civilização pulsante de uma comunidade histórica206

205 THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores, p. 354.


206 GROSSI, Paolo. Pensiero giuridico: appunti per uma voce enciclopedica. In:
Quaderni Fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, n. XVII,
a. 1988, p. 236-243, agora já em GROSSI, Paolo. História da propriedade e
outros ensaios. Tradução de Luiz Emani Fritoli e Ricardo M. Fonseca. Rio de
Janeiro: Renovar, 2006.
108 Ricardo M arcelo F o n seca

Ou ainda o seguinte passo de sua essencial Scienza giuridica


italiana, que fala da importância de se olhar a historicidade intrínseca do
discurso da ciência jurídica:

Algum desavisado arrancará as vestes protestando, indignado, que


isto é isolacionismo, o usual e perverso isolacionismo dos juristas. A
estes gostaríamos de responder que este é o único procedimento au­
ténticamente histórico, ou seja, capaz de atingir a real colocação da
reflexão jurídica no ambiente histórico que o gerou e o motivou.
Como disse outras vezes com muita convicção, o saber técnico é uma
espécie de saber confessório para os juristas, ou seja, é expressivo no
maior grau de cultura, ideologias, produção das idéias dos próprios
juristas. Em outras palavras, o instrumental técnico (...) revela com
incrível precisão tudo o que está por detrás do jurista e de suas fer-
ramentas207 . x 1

E isto vale como fecho: o direito visto como mero instrumento,


ou como “mera” técnica que, por ser assim, pode estar à disposição das
classes na “arena” de seu conflito, esvai-se de toda a carga de normativi-
dade (não formal, mas material, haurida historicamente). O vulto do di­
reito, que deve ser reconhecido na inextricável ligação com todos os ele­
mentos históricos que o rodeiam (e que deles são inseparáveis, constituti­
vos e por isso profundamente históricos), numa leitura como essa, pode
correr o risco de desaparecer como um desenho feito na areia.

207 GROSSI, Paolo. Scienza giuridica italiana: un profilo storico (1850-1959)-


Milano: Giuffré, 2000. p. XVI.
6

A HISTÓRIA NO DIREITO E A VERDADE


NO PROCESSO: O ARGUMENTO DE
MICHEL FOUCAULT

“o barro
toma aforma
que você quiser
você nem sabe
estarfazendo
o que o barro quer
Paulo Leminski

6.1 DIREITO E HISTÓRIA

Da mesma maneira que não se pode falar levianamente de “di­


reito”, sem tom ar preciso o que se quer dizer exatamente com isto, não se
pode também falar de “história” sem que um esclarecimento conceituai
sobre este termo seja requisitado. De fato, quando se fala em “direito”,
pode-se estar referindo a um conjunto de valores, a um conjunto de nor­
mas, a um sistema, a um campo de lutas etc. A interpretação a ser dada
vai depender de como o virtual interlocutor localiza o fenômeno jurídico
no plano teórico (ele pode ser um jusnaturalista, um juspositivista, um
sistêmico, um marxista, e assim por diante). Isto significa que antes de
pretender definir o direito, devemos perguntar: que direito? Qualquer
discussão teórica posterior depende deste esclarecimento prévio, que
Ricardo Marcelo F on seca
no

funciona desta forma como um pressuposto p ara que sejam colocados os


termos de um debate sobre “direito” .
Estão equivocados, portanto, aqueles que im aginam que o signi­
ficante "direito” contém somente um sentido. A queles que se iniciam nos
estudos jurídicos logo percebem (ou ao m enos devem perceber) como
esta simples palavra pode conter múltiplas (e às vezes até mesmo contra­
ditórias) interpretações.
O mesmo acontece com o term o “história”. O nosso senso co­
mum teórico costuma definir rapidamente o que significa esta palavra: se
não for uma ciência, um saber (no sentido de “a disciplina da história”,
ou “a história ensina que..”) certamente que ela vai significar o objeto
deste saber, que é precisamente o passado. Ou, em outros termos: neste
segundo sentido, a história seria o conjunto de eventos e fatos que com­
põe o passado humano, reconstituídos através de procedim entos contro­
lados (se não mesmo objetivos) deste controvertido ram o das ciências
humanas. A história seria assim definida rápida e tranquilamente, pois
parece haver pouco a ser discutido ante a certeza de que a história é, por
um lado, o ramo do conhecimento que se ocupa do passado, e, por outro,
ela é, afinal, o conjunto dos eventos que compõe este passado.
Uma reflexão mais detida, todavia, dem onstraria que as coisas
não se passam bem assim. Um filósofo “idealista” diria que os fatos e
eventos não têm uma materialidade exterior ao pensam ento, mas que
existem somente ideias destes fatos. Tudo o que tem os, para esta forma
de analisar o mundo, não passam de concepções m entais. A partir deste
tipo de reflexão, poderíamos então dizer que o passado (entendido como
o conjunto de eventos concretos e materiais) não existe; o que existem
são somente ideias ou representações sobre eles. A história, assim, não
existiria; havería apenas elaborações subjetivas sobre o passado, tomadas
possíveis através da consciência.
Por outro lado, se pensarmos no conceito de história como saber
(e não como objeto deste saber), e se o saber histórico, como dito no iní­
cio, seria “o conjunto de fatos” do passado humano, havería ainda outra
possibilidade teórica - sem precisar sermos necessariamente idealistas -
que consistiria simplesmente em duvidar dos critérios tradicionais de
escolha dos “fatos” que compõem o saber histórico. Sim, pois se o saber
histórico é a recolha de alguns eventos do passado humano, e, afinal de
contas, a cada minuto ocorrem simultaneamente milhões de fatos de or­
dem e natureza variadas, devemos perguntar que critérios justificam a
Introdução Teórica à História do Direito 111

escolha de alguns eventos para ingressarem na galeria da história, e não


de outros. Quais os meios de julgar que alguns fatos são “históricos” (ou
ao menos dignos de registro histórico) e outros não?
Se não nos contentarmos com a fácil resposta da história “tradi­
cional” (dita positivista ou historicista) de que são dignos de registro os
“grandes” eventos, nom es e datas, percebemos que a resposta ao questio­
namento do significado da história fica ainda mais difícil. E tudo isto para
não falarmos na possibilidade de simplesmente proscrever os fatos da
ciência da história (que seriam, nas palavras de Femand Braudel, uma
mera “agitação de superfície (...) de oscilações breves, rápidas e nervo­
sas”2^), substituindo-os, como fizeram Lucien Febvre e Marc Bloch
(como também, a rigor, toda a historiografia francesa educada pela Es­
cola dos “Armales”) pelas análises estruturais de longa duração, onde os
eventos perdem importância e dignidade. Afinal, para esta importante
corrente de historiografia francesa, o nível factual é o mais pobre dentro
da análise histórica, devendo ser privilegiadas as visões problematizantes
em termos de conjuntura e estrutura.
Até aqui se pode notar como aquela conclusão trivial de que a
história seria, afinal, a simples “reconstituição dos fatos do passado”
pode ser severamente questionada e duvidada por vários ângulos.
Esta discussão teórica não é ociosa. Elaborar a pergunta “o que é e
para que serve a história?”, é uma premissa fundamental para que possamos
ingressar em qualquer discussão teoricamente séria a respeito da história.

6.2 P R O B L E M A S NA ABORDAGEM DO PASSADO


JU R ÍD IC O

Trazendo isto para a específica discussão sobre o passado ju rí­


dico, as mesmas questões, dúvidas e ponderações teóricas devem ser co­
locadas. Isto é: antes de discutirmos a história deste ou daquele instituto
jurídico, se m ostra importante questionar o que se busca e o que se pre­
tende com uma indagação de natureza histórica e o que se pretende do
discurso historiográfico-jurídico. 208

208 BRAUDEL, Femand Escritos sobre a história, p. 112-119, apud BOURDÉ,


Guy; MARTIN, Hervé. As Escolas Históricas. S/l: Europa América, s/d. p. 131.
112 Ricardo M arcelo F on seca

D ependendo dos cam inhos teó rico s que forem objeto da opção
teórica (consciente ou inconsciente) d aquele que se d eb ru ça sobre o pas­
sado jurídico, as respostas dadas po d em ser m uito diversas. Pode-se fazer
a história do direito som ente p ara d em o n strar u m a eru d ição (geralm ente
vazia de sentido e de utilidade) sobre coisas velhas e em desuso, como
tam bém pretender indicar a trajetória (n orm alm ente de m odo linear) de
determ inados institutos ju ríd ico s desde a época antig a até o direito positi­
vado atual. O u ainda pode ser que nosso objetivo seja recu p erar o passa­
do do direito para fazer um belo introito (g eralm ente apelidado de “es­
corço histórico”) para adereçar a análise de u m in stituto da dogmática
ju ríd ica - que seria o efetivo “objeto” de reflexão. O u, finalm ente, nossa
pretensão pode ser sim plesm ente desvelar o sentido da n orm a (a fam osa e
im precisa mens legis), através da cham ada “interpretação histórica”, que
se revelaria um m eio (que se utiliza por excelência da experiência preté­
rita) de auxílio das disciplinas dogmáticas.
T odavia, aqueles que tom am o cam inho (e não são poucos) de
trilh ar esta alternativa teórica geralm ente não têm consciência de que tal
procedim ento é em regra m ontado com base n um a linearidade temporal
construída a posteriori, m ontada pelos condicionantes do tem po que se
debruça sobre o passado, e, por isso, que norm alm ente se mostra com­
pletam ente incom patível com a com plexidade do próprio passado para o
qual o estudo deveria ser fiel. De fato, o estudo linear da história do di­
reito, (que am ontoa tudo o que já passou num a superposição harmônica e
coerente de institutos jurídicos através tem po) acaba im pondo uma lógica
ao passado que em verdade lhe é estranha, ao m esm o tem po em que lança
sobre a época pretérita as questões, preocupações, valorações e ansieda­
des que pertencem ao presente (e ao cientista que produz um tal tipo de
conhecim ento).
C om isto, duas distorções graves geralm ente acontecem : a pri­
meira no próprio objeto de reflexão, que ao invés de ser fiel ao passado
sobre o qual ela deveria se deitar acaba dem onstrando um a induvidosa
em patia com o presente, como dizia B enjam ín209. E m outros termos, a
historiografia assim orientada constrói um discurso histórico distanciado
do passado e próxim o do presente, num a distorção da experiência huma­
na (no caso experiência jurídica) presidida por um a lógica que só toma
sentido no presente do historiador que elabora este discurso. A história do

209 BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. São
Paulo: Brasiliense, 1988. p. 224 e ss.
Introdução T eórica à H istória do Direito 113

fenômeno e o fenôm eno propriamente dito distanciam-se, compondo uma


ligação construída de modo artificial. A história aqui, pode-se dizer, tor­
na-se um enfeite do estudo (seja ela uma dissertação, uma tese ou um
manual), tom a-se um ornam ento, que no mais das vezes tem o seu lugar
garantido na escrita por razões meramente formais derivadas da tradição
da escrita acadêm ica do direito (“ deve-se fazer um capítulo histórico”),
mas sem operacionalidade teórica alguma.
N ão é incom um, efetivamente, notarmos nossos “historiadores”
do direito buscando os “precedentes” de inúmeras instituições jurídicas
atuais em épocas onde tais instituições pouco ou nada tinham em comum
com o m odo como elas são encaradas no presente, numa verdadeira sub­
versão de sentido que somente se presta para poder legitimar, pelo proce­
dim ento histórico, um a visão de mundo presente. António M. H espanha,
ao abordar este problem a da “falsa continuidade” dos institutos, exem pli­
fica com o o conceito de “obrigação” no direito romano envolvia um vín­
culo juríd ico m uito diverso da compreensão atual, já que a vinculação era
“m aterialística” com o próprio corpo do devedor. Da m esm a forma, a
noção de “fam ília” em Roma abrangia parentelas muito vastas, como
tam bém os não parentes e escravos (famuli) e até os bens da casa210. Isto
nos dem onstra como passado e presente não têm uma relação tão linear,
harm ônica e contínua quanto supõem a maioria de nossos m anuais e o
estabelecim ento de conexões diretas entre eles pode ser um procedim ento
um tanto tem erário.
A segunda distorção se dá justam ente na medida em que neste
discurso a experiência jurídica é apresentada como um desenrolar de
eventos que desem bocarão de modo natural e lógico no presente, de­
m onstrando os institutos jurídicos atuais como um resultado consequente
da experiência histórica. O direito atual é como que naturalizado pela
história, passando a ser legitimado pela própria tradição, que de modo
mais poderoso que qualquer outra racionalidade que se possa construir,
dem onstra com o o direito de hoje somente podería ser assim, e não de
outra form a. Isto é: baseado num a noção de progresso que lhe serve de
substrato, a história do direito seria capaz de demonstrar como o evolver
da dogm ática e das leis no tem po culm inou naquele que seria o direito
mais evoluído, m ais racional, mais moderno e mais científico e que, por
tudo isto, seria tam bém aquele que está mais isento de quaisquer críticas:

210 HESPANHA, Antônio Manuel. Panorama Histórico da Cultura Jurídica


Européia. Lisboa: Europa América, 1997. p. 19.
114 Ricardo Marcelo Fonseca

o direito atual. Em suma, este discurso histórico do direito (que aqui eu


chamaria de historicismo jurídico) acaba desem penhando a função de
justificar e legitimar o direito de hoje, contribuindo, em certa medida,
para imunizá-lo de críticas em prol de uma suposta “tradição histórica”.
Todos os problem as acima enunciados tam bém afetam de modo
particular a história do processo, ou a história do direito processual. De
maneira aleatória, institutos jurídicos que tinham um lugar especifica­
mente definido dentro dos quadros sociais, econôm icos, políticos e cultu­
rais de épocas passadas são correlacionados, num m odo im pressionante­
mente automático, com o direito atual. Form as “processuais” enquadra­
das em paradigmas completamente diversos são transpostos para a mo­
dernidade sem qualquer constrangimento. O direito vigente na Roma
antiga ou o direito canônico medieval são como que “revividos” no orde­
namento jurídico hoje vigente, sem que as sociedades que sustentavam
aquelas formas de ordenação tenham qualquer relação com a atual.
Com efeito, o “solucionar o caso concreto” dos pretores roma­
nos é definido como “jurisdição”', a estrutura política das “cidades-
-estado” gregas e romanas são facilmente homogeneizadas com a de um
“Estado M oderno”; a estrutura de legitimidade das leis no passado (em
Rom a ou na Idade Média), de fundo transcendental - seja cosmológico
ou teológico - passa a ter uma relação de homología com nossa dogmáti­
ca sistem ática moderna, fundada numa razão abstrata; o próprio modo de
desvelar a verdade num litígio qualquer - que em épocas pretéritas, de
acordo com a episteme ou o paradigma então vigentes, podería aparecer
como um a “revelação” ou como um “jo g o ” - aparece aqui como uma
evolução linear dos critérios empíricos da racionalidade laica, como se as
formas históricas anteriores fossem “bárbaras”, “pré-modemas”, “irracio­
nais”, e não simplesmente diferentes, historicamente diferentes, prove­
nientes de uma sociedade, de um tempo e de uma cultura diferentes. Não
se percebe, pois, que a definição do que é “ bárbaro” ou “ civilizado”,
“pré-moderno” ou “ moderno” e “ irracional” ou “ racional” faz parte de
um padrão classificatório radicalmente fincado no tempo e nas sociedade
atuais (com seu padrão de cientificismo fortemente etnocêntrico)211.
Tudo isto é possível e m uito frequente na nossa literatura ju ­
rídica, para não dizerm os que é o procedim ento teórico quase exclusi-

211 Vide, a respeito deste particular, DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação na


Idade da Globalização e da Exclusão. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 19-88.
Introdução Teórica à História do Direito 115

vo naquilo que se tem cham ado de tentativa de compreensão histórica


do direito212.
M as esta é apenas urna opção.
Tam bém é possível, todavia, outra opção teórica. Pode-se vis­
lum brar a história do direito como um saber voltado para o presente, ao
invés de fechar-se num passado que só tom a sentido em si mesmo. Pode-
se encarar o saber histórico-jurídico sobretudo como instrumento de aná­
lise e de com preensão, que respeite a efetiva lógica da mudança, das
contradições e das diacronias próprias do passado. Pode-se proceder a
uma análise interessada na inserção do direito na sociedade e na tarefa de
desvelar o seu sentido na lógica da mudança perm anente onde hoje vive­
m os, fazendo da disciplina um instrumento de crítica e desmascaramento
da ju rid icid ad e vigente, ao invés de ser dela um parceiro e cúmplice,
m uitas vezes de m odo inocentemente ingênuo. Pode-se ver a historia não
apenas com o u m a “introdução” ao estudo ou à análise que, após ser utili­
zada sem critério, não será retomada em nenhum outro m om ento posteri­
or da p esquisa: a historia pode (e deve) atravessar o próprio estudo, cons­
tituindo o seu cerne metodológico. A análise dos institutos, conceitos ou
teorias som ente pode ser efetivada a partir de sua inserção num dado
tem po, considerando todos os condicionantes sociais, econômicos, políti­
cos, m entais etc., que os circundam, delimitam e os condicionam.
P ara isto, contudo, é necessária uma revisão teórico-metodológica
na p ró p ria história do direito. E necessário proscrever as formas de análise
diletantes, que intuitivam ente recolhem eventos (geralmente de terceira
m ão) para, num procedim ento de montagem, imprimir-lhes um a coerência
tão falsa quanto arbitrária. E necessária um a reflexão sobre a natureza do
passado hum ano a fim de distanciar-se das falsas linearidades e continui­
dades que tanto infectam as abordagens históricas do direito, trazendo con­
sigo, com o vim os, consequências tão nefastas.
P ara isto é fundam ental revisitar (ou em m uitos casos visitar) os
padrões teóricos com que trabalham os a história, ao m esm o tem po que
buscar vias teóricas adequadas às diacronias e descontinuidades do pas­
sado ju ríd ico . A pós toda a identificação do problem a, é um esboço de
tentativa neste sentido que tentarem os alinhavar a seguir.

212 Vide, nesta linha, por todos, ao procurar entender o instituto da “arbitragem” na
história, FIGUEIRA JR., Joel Dias. Arbitragem, Jurisdição e Execução. 2. ed.
São Paulo: RT, 1999. p. 23 e ss.
116 Ricardo M arcelo Fonseca

6.3 A R ESPOSTA DE F O U C A U L T P A R A A HISTÓRIA

Ante a constatação de que a continuidade, a linearidade e os


anacronismos são as principais pragas que in festam os cam pos da historia
do direito, talvez um dos autores que m ais ten h a a nos dizer alguma coisa
seja o filósofo francés Michel Foucault.
Nascido em 1926 e morto precocem ente em 1984, traz em sua
vasta obra certas influências do estruturalism o (ao m enos na linha de
D umézil, pois a partir de certo m om ento rejeitou ferozm ente sua filiação
à Lacan e à Levi Strauss213) de N ietzsche e de G. C anguillem . Embora
sua posição nos quadros do conhecimento seja um p o u co controvertida
(pois ele transita entre a psicologia, a filosofia e a h istória) parece mais
adequado considerá-lo antes de tudo um filósofo da ciência preocupado
com as relações existentes entre os discursos, as p ráticas de poder e seus
efeitos sobre o sujeito. Deixou uma herança teórica rica e controvertida,
que é até hoje objeto de acesos debates, e que nos últim os anos ganhou
especial relevo em vista das discussões em to m o do “pós-m odem o” -
corrente com a qual Foucault é usualmente (e erroneam ente, a nosso ver)
identificado214.

213 ERIBON, Didier. Michel Foucault e seus Contemporâneos. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 1996. p. 140-146. Como exemplo da virulência com que Foucault
dizia recusar o estruturalismo em sua obra, vide a entrevista com Meienberg
dada em 1972. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos I: Problematização
do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria, Psicanálise. Rio de Janeiro: Forense Univer­
sitária, 1999. p. 258 e ss.
214 Pensamos que o enquadramento de Foucault na pós-m odem idade é um sério
equívoco que tem levado a leituras distorcidas de sua obra, quando não à irre­
fletida rejeição imediata de suas ideias. Como aqui não é o lugar para travar o
debate sobre o caráter “moderno” ou não, do pensamento de Foucault, vão al­
guns trechos desta querela: quem deu início a esta visão “pós-modema” de Fou­
cault foi HABERMAS, Jurgen. O Discurso Filosófico da Modernidade. Lis­
boa: Dom Quixote, 1990. Entre nós esta leitura foi compartilhada por MER-
QUIOR, José Guilherme. Foucault: ou o N iilism o de Cátedra. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1986 e, no nosso âmbito jurídico, por SCHIER, Paulo Ricardo.
Filtragem Constitucional: Construindo uma N ova Dogm ática Jurídica. Porto
Alegre: Sergio Fabris, 1999. N o plano oposto - vislumbrando Foucault como
um crítico da modernidade a partir da modernidade — vide ROUANET, Sérgio
Paulo. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. (es­
pecialmente p. 198 e ss. e 228 e ss.) e ARAÚJO, Inês Lacerda. Foucault e a
Crítica do Sujeito. Curitiba: UFPR, 2000.
Introdução Teórica à História do Direito 117

Se pudéssem os traçar em m uito rápidas linhas o seu projeto teó ­


rico215, diríam os que foi 1 ) o de relacionar as práticas epistêm icas e dis­
cursivas com o sujeito, que aparece em determ inado m om ento no pensa­
mento filosófico e científico (que enceta aquelas práticas discursivas)
como tem atizável; o hom em , pois, aparece com o sujeito do saber216. Em
outros term os: o intento é pro ced er a um a ontologia h istórica de nós
m esmos em relação à verdade através da qual nos constituím os em su­
jeitos de conhecim ento; 2 ) o de relacionar as práticas disciplinares que
objetivam e dividem o sujeito (tal com o ocorre com o louco e o preso),
que então aparece não som ente com o tem atizável pelo saber, m as com o
sujeitado pelo p oder217. E m outros term os: o intento é p ro ced er a um a
ontologia h istó rica de nós m esm os em relação ao cam po de p o d er através
do qual nos constituím os em sujeitos que atuam sobre os dem ais; e 3) o
de relacionar as práticas subjetivadoras do sujeito consigo m esm o, ou de
dem onstrar com o o sujeito é constituído de si p ara si m esm o através da
sexualidade, o que revela a ação do sujeito sobre si de m odo a constituí-
lo com o sujeito m oral218. E m outros term os: o intento aqui é o de p ro c e ­
der a u m a o n tologia histórica de nós m esm os em relação à ética através
da qual nos constituím os em agentes morais.
O cam po da história, dentro deste projeto, foi a todo m om ento
enfrentado e problem atizado. A partir das peculiaridades de sua teoria, a
form a de abordar o passado foi questionada de um m odo tal que a leitura
positivista (ou historicista) da história deveria ser, ainda m ais u m a vez,
questionada.
C om isto se quer referir, num prim eiro plano, ao abandono de
um a perspectiva antropologizante e m etafísica. F oucault quer dem onstrar
como os estudos sobre o hom em - e particularm ente a m aneira com o se

215 Aqui seguimos a análise de ARAÚJO, Inês Lacerda. Ob. cit.; ALVAREZ-
URIA, Femando; VARELA, Julia, no prefácio de FOUCAULT, Michel. Saber
y Verdad. Madrid: La Piqueta, 1991. p. 8.
216 Neste projeto, vide especialmente FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coi­
sas. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
217 Aqui, vide especialmente FOUCALT, Michel. Vigiar e Punir: História da Vio­
lência nas Prisões. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1987;________. A História da
Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978.
218 Esta etapa engloba principalmente os dois últimos volumes de sua “história da
sexualidade”: FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: o Uso dos Pra­
zeres. 5. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988;________. História da Sexualidade:
O cuidado de Si. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
118 Ricardo M arcelo F on seca

funda a análise da historia dos h o m en s h o je im p eran te - decorrem das


características de um terreno ep istem o ló g ico m u ito p re c iso e delimitado,
que teve o seu surgim ento num a época m u ito d e term in ad a, que ele chama
justam ente de "era da historia'”.
M as a própria com preensão d esta 66era da historia ” deve ser de­
vidam ente historicizada - e este é um dos p ro c e d im e n to s teóricos mais
característicos do nosso autor. A ssim , d ev em o s re tro c e d e r até o séc. XVI,
quando vigorava o que F oucault d en o m in av a de “ era da semelhançcT.
N esta época não havia distinção entre as p a la v ra s e as coisas. O mundo
era visto com o um a im ensa teia n a qual as p e sso a s ten tam estabelecer
relações de sim patia (ou antipatia) com as coisas, a fim de que elas fos­
sem identificáveis por analogias e sem elhanças. B u scav am -se sinais nas
coisas onde elas pudessem ser intelegíveis atrav és d estas analogias, sim­
patias etc.219. Segundo A raújo, "as marcas visíveis servem de sinais que
precisam ser decifrados e as palavras nada mais fazem do que duplicar
os sinais das coisas (...) Conhecer é adivinhar qual marca se assemelha a
outra marca visível deste mundo”220. C om o se p o d e notar, o modo de
vislum brar o m undo dentro deste contexto ep istêm ico era radicalmente
diverso daquilo que entendem os hoje com o “c o n h e c e r” : o olhar, o apre­
ender, o reter e o registrar o saber tin h am outro m a tiz que nós, hoje, não
reconhecem os com o nosso (por não reco n h ecê-lo c o m o “científico”).
Já a partir do séc. X V II o ocidente in g re ssa n a cham ada "era da
representação ”, quando se dá a diferenciação en tre as p alavras e as coi­
sas; a união anteriorm ente existente entre elas se ro m p e. A s palavras pas­
sam a ter a função de designar as coisas. T rata -se d a era da taxionomia
universalis, num im pulso classificatório sem p re c e d e n te s, onde tudo é
passível de fazer parte de um grande esq u e m a de classificação. Neste
m om ento, nas palavras de Foucault, “ as ciências trazem sempre comigo
o projeto mesmo longínquo de uma exaustiva colocação em ordem:
apontam sempre para a descoberta de elementos simples e de sua com­
posição progressiva”221. N esta época, co m o se p o d e suspeitar, o saber
adquire outra configuração - m u ito d iferen te d a an terio r, m as ainda dis­
tante da nossa - em que os m odos de c o m p re e n sã o d o conhecim ento ain­
da tem condicionantes esp ecificam en te m u ito d elim itad o s.

219 FOUCAULT, Michel. As palavras e as Coisas, p. 33 e ss.


220 ARAÚJO, Inês Lacerda. Ob. cit., p. 38.
221 FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas, p. 89-90.
Introdução Teórica à História do Direito 119

Finalmente, desta raiz teórica é que surge a “era da história” a


partir de finais do séc. XVffl. Esta é uma episteme (ou configuração de sa­
ber) em que o conhecimento não serve mais apenas para representar. Ele
mesmo se insere numa temporalidade, numa história. Segundo Araújo, o

rompimento com a representação ocorre quando a história passa a


ser a empiricidade que torna possível pensar três novas ciências, fi­
lologia, biologia e economia política, inaugurando a modernidade. O
ser é conhecido por ter uma história e a história é o modo de saber
que dá acesso ao ser. Não é sem razão que a figura fundamental de
Hegel aparece222.

E aqui, portanto, neste momento (e só neste momento), e dentro


desta configuração epistêmica que o homem aparece para o saber como
um objeto de conhecimento ao mesmo tempo em que sujeito de todo tipo
de conhecimento223. Não é à toa que é o pensamento kantiano que inau­
gura filosoficamente esta “era”. O sujeito passa a ser a um só tempo em­
pírico e transcendental, porque ao mesmo tempo em que é tematizado e
objetivado como aquele que fala, trabalha e vive, como alguém de carne
e osso em meio a situações concretas - e que, portanto, está inserido em­
piricamente de modo radical no mundo, ele e o seu saber, por outro lado,
são tam bém a medida de todos os saberes de modo transcendental. Ou
seja: o saber acerca do homem se colocará acima do mundo e do próprio
homem para poder defini-lo; descreverá grandes teleologías, a partir de
fora, para explicar as vicissitudes da história humana ou do espírito hu­
mano (vide Toynbee ou Hegel); buscará, em suma, fundamentos trans­
cendentais para definir o próprio empírico. A explicação do homem (que
se tom a a preocupação e o fundamento imediato do saber) se dá a partir
do próprio homem, mas não de um homem existente, e sim de um ho­
mem trans-histórico, um homem suposto. O positivismo, talvez mais do
que todas as teorias, é aquela que tenta dar ao empírico (o “objeto”) um
caráter transcendental (o “saber” é a representação fiel do “objeto”).
Como diz Foucault,

lá onde outrora havia correlação entre uma metafísica da representa­


ção e do infinito e uma análise dos seres vivos, dos desejos do homem

222 r
ARAÚJO, Inês Lacerda. Ob. cit., p. 42.
223 Idem, p. 45.
12 0 Ricardo Marcelo Fonseca

e das palavras de sua língua, vê-se constituirse uma analítica dafi.


nitude e da existência humana, e, em oposição a ela (mas numaposU
ção correlativa) uma perpétua tentarão de conseguir uma metafísica
da vida, do trabalho, da linguagem11.

Vale dizer: ao lado do reconhecimento da finitude do homem


concreto, que vive, trabalha e fala, há a busca transcendental do funda­
mento do saber do próprio homem. O homem, ao mesmo tempo que co­
nhece e em tal processo de conhecimento exerce uma transcendência, é
fruto de determinações empíricas que são as positividades da vida, do
trabalho e da linguagem224225.
Esta tensão entre o empírico e o transcendental é típico da “era
da história”, e é aqui que surge o sujeito, em meio a esta tensão, para o
saber científico, como particularmente é assim que ele surge para as re­
cém-nascidas ciências humanas.
É dentro deste contexto que fica compreensível a célebre e con­
trovertida afirmação de Foucault no sentido de que “o homem é uma in­
venção cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra
facilmente. E talvez o fim próximo”226. E que, para ele, existe um quadro
muito próprio - e bem delimitável e identificável - no qual as configura­
ções do pensamento possibilitaram pensar e tematizar o homem tal como
ocorreu no ocidente. Ao mesmo tempo, seria possível identificar configu­
rações de saber que prescindem do homem: é o terreno de onde brotam,
por exemplo, a etnologia, a linguística e a psicanálise, que não interro­
gam o próprio homem, mas a região que toma possível um saber sobre o
hom em 227. São estes saberes (chamados de contraciências) que demons­
tram que o sujeito, como tema do pensar, é precário e determinado histo­
ricamente. A partir daí é possível pensar na “morte do sujeito” (entendido
como morte de todo recurso transcendental e supra empírico de busca da
“verdade” sobre o homem), assim como Nietszche havia pensado na
“morte de Deus” (como a morte do conforto metafísico, a morte da ver­
dade como transparência plena e desvelamento do espírito puro228).

224 FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas, p. 333.


225 ARAÚJO, Inês Lacerda. Ob. cit., p. 49.
226 FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas, p. 404.
227 Idem, p. 395.
228 GIOACÓ1A JR., Oswaldo. Nietzsche: Perspectivismo, Genealogia, Transvalo-
ração. In: Revista Cult, n. 37, a. IV, p. 49.
Introdução Teórica à História do Direito 121

A pesar de estarmos até aqui somente nos referindo ao terreno do


saber em que se dão tais transformações, é necessário ponderar que Fou-
cault tam bém identifica 229 estas alterações epistêmicas e estas tranforma-
ções no âmbito do saber com relações de poder presentes em uma deter­
minada sociedade, já que para ele a “vontade de verdade” apoia-se sobre
um suporte institucional, que ao mesmo tempo reforça e reconduz um
conjunto de práticas230. Isto significa que para ele estas transformações
não ocorrem sozinhas e só ao nível da teoria; as transformações ocorrem
coligadas com determ inadas práticas de poder - que se encarnam em
instituições para poderem veicular seus efeitos. Os discursos e as práticas
são como que duas faces de uma mesma moeda, e cada um deles (ou os
dois juntos) opera efeitos muito precisos nas relações sociais que o ho­
mem estabelece com seus semelhantes. As práticas de exercício do poder,
com efeito, som ente se sustentam a partir de determinados discursos que
lhes dão efeitos de verdade. Como diz o próprio Foucault, “ a verdade
não existe fora do poder ou sem poder A verdade é deste mundo; ela
é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regu­
lamentados de poder ”231. E, de fato, o binômio saber-poder e seu caráter
indissociável são um a das características mais conhecidas da teoria fou-
caultiana.
E, enfim , levando-se em conta todas as considerações até aqui
expendidas, o que podemos retirar destas reflexões para o conhecimento
histórico e, de m odo específico para o conhecimento histórico-jurídico?
D e im ediato notamos, após o confronto com Foucault, a preca­
riedade do nosso saber. O nosso conhecer, que muitas vezes busca a
com preensão total do objeto, de modo altaneiro e dominador, nada mais é
do que um a determ inada forma de configuração do saber determinada e
determ inável no tem po. Seu surgimento pode ser relacionado com uma
série de conexões com determinados discursos e também com determina-

229 É necessário esclarecer que propositadamente não estão sendo levadas em conta
as diferentes abordagens e preocupações de Foucault ao longo de sua produção,
já que não é a intenção deste texto discutir a evolução do pensamento foucaul-
tiano, mas simplesmente obter um diagnóstico geral do autor, segundo nossa
leitura, sobre os problemas aqui enfrentados. Não se ignora, entretanto, que a
temática do poder surge em sua obra com mais vigor somente a partir dos anos
70.
230 FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1996. p. 17.
231 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 8. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
p. 12.
122 Ricardo Marcelo Fonseca

das estratégias de poder coligadas aos discursos - e nao, com o se suporia


hoje , a uma branda, inocente progressiva e isenta busca da “verdade”.
A final, como diz nosso autor, nas trilhas de N ietzsche, “não há uma na­
tureza do conhecimento, essência do conhecimento, condições uni­
versais para o conhecimento, mas que o conhecimento é, cada vez mais,
o resultado histórico e pontual de condições que não são da ordem do
conhecimento ”232. N ossa forma de pensar h erdada do séc. X IX , aliás, tem
um a tendência a dar um fundo transcendental p ara as vicissitudes empíri­
cas da existência humana, como vimos há pouco.
Pois é neste contexto que a presunção do conhecim ento histórico
positivista (e particularmente do “historicismo jurídico”), que a partir do
ponto de vista do presente posicionam-se de modo privilegiado para co­
nhecer o passado, se faz notar. Na medida em que seu procedim ento impli­
ca em hom ogeneizar o passado, compreendendo-o a p artir da inteligibili­
dade do quadro discursivo atual e da configuração do saber vigorante, sem
com preender a radical diversidade na forma de ver, conhecer e interpretar
o m undo passado, é que percebemos como os condicionantes de nossa
episteme determinam, delimitam e restringem nossa visão sobre as épocas
passadas. Percebem os o quão equivocado é inserir em épocas rem otas nos­
sos m odos de compreensão e julgam ento de nossos antepassados, já que
tais m odos de compreensão e julgam ento tão presos estão aos quadros do
discurso e das relações de poder que hoje vivenciam os. N otam os como o
estabelecim ento de continuidades e linearidades entre o ontem e o hoje,
sem as necessárias mediações, é um procedim ento arbitrário.
N este ponto surge o elogio da descontinuidade e da ruptura, ca­
tegorias tão estranhas aos historiadores de índole p o sitiv ista, e de modo
p articu lar aos “historicistas jurídicos ”. A final, segundo F oucault,

a história de um conceito não é, de forma alguma, a de seu refina­


mento progressivo, de sua racionalidade continuamente crescente,
de seu gradiente de abstração, mas a de seus diversos campos de
constituição e de validade, a de suas regras sucessivas de uso, a
dos meios teóricos múltiplos em que foi realizada e concluída sua
elaboração233.

232 FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Nau,


1996. p. 24.
~33 FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2000. p. 5.
Introdução Teórica à História do Direito 123

A descontinuidade, assim, sempre tão estigmatizada, passa ser


elemento im portante na análise histórica 234 com um triplo papel235: 1 )
passa a ser um a operação deliberada do historiador, que distingue os ní­
veis de análise, os m étodos que são adequados a cada um e as periodiza­
ções que lhes são convenientes; 2 ) é o resultado da descrição do historia­
dor, que passa a buscar os limites e os pontos de inflexão do processo; 3)
é um conceito sem pre explicitado, que assume forma e função específicas
de acordo com o dom ínio questionado.
A descontinuidade, assim, é “ao mesmo tempo instrumento e
objeto de pesquisa, delimita o campo de que é efeito, permite individuali­
zar os domínios”236. Os diversos campos, assim, ao invés de serem vistos
de modo contínuo e uniforme, passam a ser dotados de diversas historici­
dades (o social, o econômico, o cultural etc.), cada qual com seu solo
histórico delim itado237. Isto faz com que vejamos o evolver ju ríd ico de
um modo m ais delimitado por vários condicionantes, de um m odo des­
colado de um “grande progresso” humano geral, de um m odo recortado
por diversas estratégias de poder e sobretudo por diversas configurações
diferentes de saber, que sucessivamente lhe dão significados, papéis e
leituras absolutam ente distintas ao longo do tempo. Tudo isto, obvia­
mente, tom a tem erária a atitude daquele que hom ogeiniza o passado sob
a tábula rasa dos condicionantes do presente - tão radicalm ente diversos
daquilo que se observava no passado.
A ssim vemos Foucault delimitar um conhecimento que intenta
distanciar-se das pretensões transcendentais e metafísicas de sustentação
da explicação histórica; busca demonstrar a precariedade de nossas certe­
zas e de nossos próprios referenciais de análise sobre o hom em e, conse­
quentemente, sobre o seu passado; por fim, pretende colocar o pouco
usado e quase desconhecido componente metodológico da descontinui­
dade 238 na análise tem poral, acabando com as crenças na homogeneidade,
na linearidade e no progresso histórico.

234 Para uma análise mais detida do papel da descontinuidade em Foucault - e que,
em certa medida, contraria o que havia sido escrito em A arqueologia do Saber
- vide FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Ob. cit., p. 2 e ss.
235 FOUCAULT, Michel. A Arquelogia do Saber. Ob. cit., p. 10 e ss.
236 Idem, ibidem.
237 ARAÚJO, Inês. Ob. cit., p. 58.
238 No terreno da historiografia jurídica, o eminente professor Paolo Grossi, ao
analisar a historicidade da propriedade, afirmou que “la historia de la pertenen-
124 Ricardo Marcelo Fonseca

6.4 FOUCAULT, A HISTÓRIA E O PROCESSO

Sabe-se que Foucault sempre achou que entre as práticas sociais


em que a análise histórica permite localizar de modo mais claro as novas
fornias de subjetividade estão as práticas jurídicas239. Todo este interesse
no tema do direito, aliás, acabará desembocando na pesquisa que resultou
num de seus livros mais conhecidos (e certamente o mais conhecido entre
os juristas), que é Vigiar e Punir: a História da Violência nas Prisões.
Todavia, existe uma outra obra que, a nosso ver, é capaz de
melhor adequar a utilização dos pressupostos teóricos foucaultianos até
aqui referidos especificamente nos litígios jurídicos. Trata-se de um livro
(que na realidade é um conjunto de conferências proferidas no Rio de
Janeiro em 1973) que discute os parâmetros históricos de aferição da
verdade nos processos judiciais na história. Constitui-se este estudo, por­
tanto, de certo modo, uma pesquisa de história do direito, em que o mé­
todo de Foucault se coloca em ação na compreensão do processo (ou,
melhor colocando, na compreensão das diversas subjetividades que per­
mitiram diversos critérios de verdade ao longo do tempo) e que, por esta
razão, toma-se o grande guia metodológico do historiador do direito fou-
caultiano: é o livro A Verdade e as Formas Jurídicas.
A preocupação central do livro é demonstrar, através da forma
pela qual os homens eram julgados em função dos atos que haviam co­
metido, como se sucederam diversas formas de subjetividade e diversas
formas de saber ao longo da história do ocidente - o que denota que as
relações do homem com a verdade, dentro de um processo judicial, são
muito mais complicadas do que as reconstituições históricas pueris que
nossos manuais podem supor. A fórmula, então, pode ser assim resumida:
diversas formas de processo, diversas formas de subjetividade, diversos
critérios de aferição da verdade.
Foucault narra, por exemplo, que na Grécia arcaica (a Grécia de
Homero) a forma de resolver um dado conflito entre dois guerreiros - e

cia y de las relaciones ju r íd ic a s so b re las c o sa s e stá n ecesariam ente marcada


p o r una profunda d isco n tin u id a d '. In: GROSSI, Paolo. La Propiedad y Ias
Propiedades: un Análisis Histórico. Madrid: Civitas, 1992. p. 67 (agora tradu­
zido em português: GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios.
Rio de Janeiro: Renovar, 2006).
239 FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas, p. 11.
Introdução Teórica à História do Direito 125

estabelecer com quem estava a “razão” - consistia numa disputa regula­


mentada, num desafio entre eles (em que um deles deveria ser capaz de
demonstrar que poderia jurar diante dos deuses que não fez isto ou aquilo).
Não havia juiz, sentença, inquérito ou testemunho. Deste modo, confia-se o
encargo de decidir não a quem disse a verdade (no modo por nós hoje en­
tendido), mas à luta, ao desafio, ao risco que cada um vai correr240. Não se
faz apelo àquele que viu, à testemunha que presenciou o acontecimento;
não se o convoca, e nenhuma pergunta lhe é feita, pois há somente contes­
tação entre os adversários. Trata-se de uma maneira singular de produzir a
verdade jurídica que não passa por depoimentos de quem tenha visto, não
passa por testemunhas, mas por uma espécie de jogo, de prova, de desafio
que é lançado de um adversário contra o outro241.
Este modo “grego arcaico” de aferição da verdade jurídica con­
viveu, entretanto, com outras formas de “revelação” da verdade, como a
história de Édipo (na tragédia de Sófocles) nos faz notar. Com efeito, ali
havia tam bém uma forma mágica, mas ao mesmo tempo religiosa, políti­
ca e jurídica de montar um quadro “verdadeiro” sobre o que ocorreu: é a
palavra do oráculo ou da divindade, que enunciam sob a forma de pres­
crição ou profecia, num olhar etemo e indefectível sobre o mundo24 . Na
tragédia de Édipo esta forma é demonstrada pelo momento em que o adi­
vinho cego Tirésias, quando procurado por Edipo, que anseia saber quem
matou Laio, o antigo rei, obtém do oráculo a resposta “Foste tu quem
matou Laio”243. Trata-se da verdade revelada, já previamente inscrita e
escrita, e que independe de qualquer verificação empírica.
Já no direito germânico da Alta Idade Média (no momento em
que tais formas de solucionar litígios entram em contato com o império
romano) se vê um certo renascer de algumas das formas de aferição da
verdade no litígio que eram encontradas na Grécia Arcaica. Aqui também
há o “jogo da prova”; não há uma “ação pública” ou ninguém encarrega­
do da acusação: existe somente o acusador e o acusado. Há dois persona­
gens centrais neste drama, e não três. A resolução do conflito se dava
através de uma continuação da luta entre indivíduos. O processo aqui é
somente uma ritualizacão da luta entre os contendores. O direito é uma
forma regulamentada de se fazer a guerra entre os indivíduos e não, como

240 Idem, p. 53.


241 Idem, p. 32.
242 Idem, p. 39.
243 Idem, p. 34-35.
126 Ricardo M arcelo F on seca

se poderia supor hoje, o m odo de se alcançar a ju stiç a ou a paz244. Como


diz Foucaull, “ entrar no domínio do direito significa matar o assassino,
mas matado segundo certas regras”245. M as h á tam bém neste sistema a
possibilidade da transação, quando os litigantes recorrem de comum
acordo a um árbitro que vai estabelecer u m a so m a em dinheiro que cons­
tituirá o resgate da paz. Com o se vê, n este sistem a regulado basicamente
pela luta e pela transação, não há lugar p a ra u m “ju iz ” que busque a ver­
dade ou procure saber qual dos litigantes fala a v erdade. “ Uma pesquisa
da verdade nunca intervém em um sistema deste tipo”246.
Finalm ente, lá pelo séc. X II a Id ad e M é d ia assiste à invenção
de novas form as de ju stiç a e de p ro ced im en to s ju d ic iá rio s. E sta “inven­
ção ” - é necessário frisar - está ligada às fo rm as e às condições de pos­
sibilidade do saber que não estão ligados sim p le sm e n te ao resultado de
um “progresso de racionalidade”, m as foram re su lta d o s de uma trans­
form ações na estrutura política que to m o u p o ssív e is e necessárias estas
transform ações247. Isto é: o aparecim ento de u m a n o v a form a de esta­
b elecim ento da verdade (e de todas as práticas ju d ic iá ria s daí derivadas)
estão ligadas à relações de poder m uito d eterm in ad as, e é à luz de tais
relações que a transform ação na abordagem da “v e rd a d e ju ríd ica” deve
ser apreciada. N ão é o “progresso da razão o u o refin a m e n to do conhe­
cim ento” que pode dar conta do ap arecim ento de u m a certa racionalida­
de no inquérito248.
É isto, pois, que repentinam ente aparece n o ocidente: o Inqué­
rito. O Inquérito é um a form a de saber situada n a ju n ç ã o de um tipo de
poder e de certo núm ero de conteúdos de c o n h ecim en to s249. As novas
form as de saber que eclodem p rincipalm ente a p a rtir do Renascimento -
que valorizam a verificação, a observação e a e x p licação dos fenômenos
baseados na apreciação racional dos m esm o s j á se assen tam sobre outro
substrato epistêm ico e político. P ouco m ais tard e , sintom aticam ente, sur­
girão os prim eiros pilares da ciência m o d ern a (séc. X V I), o empirismo
filosófico m oderno etc.

244 Idem , p. 56-57.


245 Idem , p. 57.
246 Idem , p. 58.
247 Idem, p. 62 e 73,.
248 Idem, p. 73.
249 Idem, p. 77.
Introdução Teórica à História do Direito 127

T rata-se da em ergência de um saber que é melhor compreendido


quando vislum bram os a crise do saber alquímico250. A alquimia era uma
forma de ver o m undo tipicam ente medieval, que tinha como modelo a
prova (tal com o funcionava este modelo judiciário no âmbito medieval,
como foi visto h á pouco), pois o alquimista não é aquele que quer saber o
que se passa e quer descobrir a verdade; ele é aquele que realiza uma luta
- onde ele é ao m esm o tem po litigante e espectador - entre forças sobre­
naturais (o b em e o m al, a luz e a sombra) e, deste confronto, emergirá a
revelação. O saber da alquimia, como se vê, entra em crise (e desaparece)
quando as form as de saber baseadas no inquérito (na verificação) tom am-
se hegem ônicos. N ão h á mais espaço para formas de saber baseadas no
confronto entre forças sobrenaturais quando novas práticas de poder en­
cetam o saber m oderno.
T udo isto tom ará possível a emergência, a hegemonia e em
pouco tem po a absoluta exclusividade das formas de abordar a verdade
calcadas n a verificação e no testemunho. A verdade é definida como
aquela que pode ser verificada e provada. Aquele que viu o evento e pode
sobre ele testem unhar é um a fonte de saber muito mais eficaz que o
alquim ista ou o oráculo, que vão simplesmente revelar a verdade; o sis­
tem a em que um terceiro (estranho às partes litigantes) ocupe a posição
racional de apreciação das evidências sobre o litígio é um modo de atin­
gir a verdade m ais eficaz (do ponto de vista das novas práticas e estraté­
gias políticas e econôm icas vigentes) do que deixar a solução da contenda
a um a p ro v a ou a um duelo entre as partes.
É, enfim , neste contexto (epistêmico e político) que o surgi­
mento do inquérito se dá. Com ele, surgem uma série de características
que lhe são correlatas e lhe dão as suas condições de funcionamento: 1) a
justiça passa a ser não mais a mera contestação entre os indivíduos con­
tendores; eles não terão mais o direito de resolver entre si seus litígios e
nem de escolher um árbitro que lhes seja comum, pois deverão submeter-
se a um poder exterior a eles que se impõe como poder político e poder
judiciário251. 2) A parece a noção de “infração” em substituição à noção
de “dano” de um a das partes à outra. A infração não se confunde com um
dano com etido por um indivíduo contra o outro, mas representa um ata­
que à própria lei, ao próprio poder público que institui a regra legal. A
infração é o conceito que perm ite a esta “esfera pública” então nascente

250 Idem,p. 76-77.


251
Idem, p. 65.
128 Ricardo Marcelo Fonseca

confiscar todo o procedimento judiciário “privado252. 3) Como decorrên


cia destas características, aparecerá um personagem novo - também es.
tranho aos litigantes e estranho à “vítima” (ou seu parente) que antes se
encarregava da acusação - que se apresenta como representante de um
poder lesado, como o “dublador” da vítima, aquele que fala por ela, que
tem o direito exclusivo de manifestar-se por ela253. Trata-se da figura do
“procurador” (antecedente de nosso Ministério Público), que representa o
poder público objeto da infração. 4) Como coroamento de todas estas
transformações (e também como sua condição de possibilidade) surge,
afinal, a figura do soberano, da figura pública que se apropria da jurisdi­
ção e que, um pouco mais tarde, vai se constituir no Estado Moderno254

6.5 PARA FINALIZAR

O que no item precedente foi um resumo muito breve e superfi­


cial de algumas das principais ideias de Foucault no livro A Verdade e
as Formas Jurídicas. Outros momentos importantes deste estudo foram
propositadamente deixados de lado, como, por exemplo, o aparecimento
de uma nova episteme que possibilitará o surgimento do exame, que, no
séc. XIX, substitui o inquérito.
Com o recorte que foi feito, todavia, já podemos dispor de algumas
conclusões que são, ao mesmo tempo, importantes para o historiador do
direito e perturbadoras para o processualista moderno, mas que, de qualquer
modo, servem a ambos: a lição histórica de que as maneiras de conceber o
saber, as maneiras de pensar o direito e os modos de conhecer a verdade
jurídica eram, no passado, radicalmente diferentes do que são hoje. Nosso
processo moderno é o resultado histórico de uma transformação que perme­
ou os discursos e as práticas judiciárias no início da modernidade. E é fun­
damental notar que tais transformações (e suas características teóricas intrín­
secas) não nos foram somente legadas deste passado em vista de seu peculiar
brilhantismo conceituai, ou por terem contado com o aval dos nossos ante­
passados; a verdade vai sendo revelada a partir de interdições, proibições,
estratégias e interesses muitas vezes escusos e não revelados.

252 ¡dem, p, 66.


253 ídem, ibidem,
254 Idem, p. 67.

la
Introdução Teórica à História do Direito 129

F o u c a u lt re a lm e n te id en tifica duas histórias da “v erd ad e”255256:


uma d elas é aq u e la q u e a h istó ria das ideias (e, podem os dizer, a h istó ­
ria das id eias ju r íd ic a s tra d ic io n a l) nos vem legando. T rata-se da h istó ­
ria que “ se corrige a partir de seus próprios princípios de regulação ” ,
é a h istó ria qu e e sta b e le c e o co n ceito “ sobre hu m an o ” e tran scen d en tal
de “v e rd a d e ” e, a p a rtir d ele, d efine a trajetó ria da v id a h u m an a no
passado de a c o rd o co m a ad eq u ação desta trajetó ria com este conceito
de “v e rd a d e ” . A o u tra h istó ria da verdade, porém , é aq u ela que se vai
buscar n o s v á rio s lu g a re s so ciais em que ela se form a, onde ex iste um
certo n ú m e ro de su b je tiv id a d e s, de certos dom ínios de ob jeto e de
certos tip o s de sab er. A v erd ad e é buscada a p a rtir de su a “ história
oculta”2 6, a p a rtir de sua face m uitas vezes não d em o n strad a e, a tra ­
vés d e sta h is tó ria , é p o ssív e l identificar diversas form as, an tes n ão
p erc e b id a s, de su b je tiv id a d e ju ríd ica.
P o d e se r que esta abordagem seja considerada p e lo le ito r j u ­
rídico e x c e ss iv a m e n te n iilista (em bora não creia que seja e x a ta m e n te
este o p o n to 257). P o d e se r tam bém que o leitor acredite que este m o d o
d e sc o n tín u o d e c o n c e b e r o conhecim ento acabe m inando as p o s s ib ili­
dades de c o n stru ç ã o de um conhecim ento fundado em c ritério s u n iv e r-

255 Idem ,p. 11.


256 Im p o ssív e l, n e ste p a sso , deix ar de citar N ietzsche: “E também um sentido
restrito ( ..) que o homem quer somente a verdade: deseja as consequências
da verdade que são agradáveis e conservam a vida; diante do conhecimento
puro, sem consequências, ele é indiferente, diante das verdades talvez p e r ­
niciosas e destrutivas ele tem disposição até mesmo hostil (..) Somente p o r
esquecim ento p o d e o homem alguma vez chegar a supor que possu i uma
‘verdade ’ no grau acim a designado. Se ele não quiser contentar-se com a
verdade na fo rm a da tautologia, isto é, com os estojos vazios, comprará
eternamente ilusões p o r verdade ”. (N IE T Z S C H E , Friedrich. S obre a V erd a­
de e a M entira no Sentido Extra M oral. In: Os P en sad ores. São P aulo: N ova
Cultural, 1991. p . 3 2 -3 3 )
7 Inevitável ev o car Nietzsche mais uma vez: “Não caímos, justamente com isto,
na suspeita de uma oposição, de uma oposição entre o mundo em que até agora
nos sentíamos em casa com nossas venerações - em virtude das quais, talvez,
tolerávamos viver —e um outro mundo, que somos nós próprios: urna inexorá­
vel, radical, profundíssima suspeita sobre nós mesmos, que se apodera de nós,
europeus, cada vez mais, cada vez pior, e facilmente poderia colocar as gera­
ções vindouras diante deste terrível ou-ou: 'ou abolir vossas venerações, ou -
vós mesmos!’ Este último seria o niilismo; mas o primeiro não seria também...
o niilismo? Esse é nosso ponto de interrogação(N IETZSCH E, F. A Gaia
Ciência. In: Os Pensadores, ob. c it, p. 171)
13 0 R icardo M arcelo Fonseca

sais, com o pretendia o ideal kantiano. Pode ser ainda que o leitor
acredite que esta leitura faz com que “ sab er” - sem pre envolto numa
auréola de pureza teórica e de santidade de intenções - fique inaceita-
velm ente estigm atizado pelas im purezas provenientes das relações de
“poder". Pode ser. M as um a leitura radical da m odernidade ju ríd ic a tal
com o esta que M ichel F oucault nos lega é adequada - ainda que seja
pelo choque do contraste - para que o ju rista e o historiador do direito
tenham algum as das suas convicções (m uitas delas bem antigas e se­
d im entadas) quebradas. É que o cam po do direito tem sido, p ara boa
parte dos teó rico s de nossa área, o campo das respostas convictas, das
certezas e da arrogância epistêm ica. Trata-se, pois, de inserir, com
F o u cau lt, um pouco de questionam entos, de dúvidas e de hum ildade
dian te da contingência do saber.
7

M IC H E L FO U C A U L T E O D IS C U R S O
H IS T Ó R IC O -JU R ÍD IC O : E S T A D O E P O D E R

“passa e volta
a cada gole
urna revolta ”.
Paulo Lemìnski

“A humanidade não progride lentamente, de combate em combate,


até uma reciprocidade universal, na qual as regras substituiriam,
para sempre, a guerra; ela instala cada uma dessas violências em um
sistema de regras, e prossegue assim de dominação em dominação. ”
(FOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história)

“Trata-se de redescobrir o sangue que secou nos códigos, e, por con­


seguinte, não, sob a fugacidade da história, o absoluto do direito; não
reportar a relatividade da história ao absoluto da lei ou da verdade,
mas, sob a estabilidade do direito, redescobrir o infinito da história,
sob a fórmula da lei, os gritos de guerra, sob o equilíbrio da justiça, a
dissimetria das forças”. (FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade)

7.1 O “P R O J E T O ” F O U C A U L T IA N O

D ifícil é tentar definir aquilo que, de um m odo um tanto im preci­


so, poderia se cham ar de “projeto ” da obra de M ichel Foucault. E m prim ei-
132 Ricardo M arcelo F onseca

ro lugar, porque o próprio Foucault, como se sabe, tem um trajetória plena


de importantes deslocamentos e rupturas. A pesar da tendencia que o filoso,
fo francês sempre demonstrou em “ esquematizar” sua produção a partir de
alguma diretriz comum (procedimento que, porém , percorreu diversos
“fios condutores” de acordo com a época em que ele se debruçava sobre
seu próprio trabalho258), o fato é que o conjunto de problemas abordados
por Foucault variou bastante entre os anos 60 e 80. Em segundo lugar,
seria perigoso pensar num projeto em Foucault diante de um a certa tendên­
cia, hoje bastante frequente e aderente ao gosto p or m odism os intelectuais,
em enxergar Foucault como elaborador de um a “grande teoria” ou, pior
ainda, como elaborador da resposta, aquele que receita o “grande remé­
dio”. Não há em Foucault “o grande rem édio”, como não há a “grande
teoria”. Aliás, ele rejeita expressamente essa pretensão. Como diz Alfredo
Veiga-Neto, ele é um grande estimulador, não um “g u ra”259.
E se ele não é um salvacionista, tam bém não é o formulador de
uma “grande teoria” que seja apta a substituir outra “meta narrativa”.
Nada seria, aliás, mais contrário ao desenho geral da sua obra. Na verda­
de ele quis ser usado como “caixa de ferramentas”, com o instrumento de
trabalho, como ele teve oportunidade de esclarecer em entrevista conce­
dida em 1975, quando afirma que

todos os meus livros (...) podem ser pequenas caixas de ferramentas.


Se as pessoas quiserem mesmo abri-las, servirem-se de tal frase, tal
idéia, tal análise como de uma chave de fenda, uma chave inglesa,
para produzir um curto circuito, desqualificar, quebrar os sistemas de
poder, inclusive, eventualmente, os próprios sistemas que meus livros
resultaram... pois bem, tanto melhor260

Por isso, parece ter razão Bourdieu ao dizer que “a obra de


Foucault é uma longa exploração da transgressão, da ultrapassagem do

258 Chartier observa como Foucault, de modo recorrente, inscrevia os seus textos já
produzidos em uma organização sistemática (que, todavia, foi variando ao longo do
tempo), buscando dar conta da lógica de uma trajetória de pesquisa: CHARTIER,
Roger. A beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Tradução de
Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Universidade/UFRGS, 2002. p. 183.
259 VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault & a educação. 2. ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2005. p. 18-19.
260 FOUCAULT, Michel. Entrevistas. Tradução de Vera Portocarrero e Gilda
Gomes Carneiro. Roger Paul Droit (Org.). Rio de Janeiro: Graal, 2006. p. 52.
Introdução Teórica à I Ustòria do D ireito
133

limite social, que se liga indissoluvelmente ao saber e ao poder”261, o que


nos coloca, portanto, em sérias dificuldades se resolvermos visl umbrar na
teoria de Foucault um “ corpus” coerente que esteja apto a dar respostas
igualmente coerentes para os problemas do real.
Com todas estas cautelas, porém, arriscaria aduzir (seguindo o
próprio Foucault, consoante alguns textos do final de sua vida) que se há
um ponto de interesse geral no “projeto” de sua obra, esse ponto é o sujei­
to. Certam ente visto de diferentes maneiras ou, melhor dizendo, sendo
abordado a partir de diferentes pontos de referência. Sob este ponto de
vista, poder-se-ia definir tal “projeto” como: 1) o de relacionar as práticas
epistêmicas e discursivas com o sujeito, que aparece em determinado m o­
mento do pensam ento filosófico e científico (que enceta aquelas práticas
discursivas) como tematizável; o homem, pois, aparece como sujeito do
saber (aqui tem os a ontologia histórica de nós mesmos em relação à verda­
de através da qual nos constituímos em sujeito de conhecimento); 2) o de
relacionar as práticas disciplinares que objetivam e dividem o sujeito (tal
como ocorre com o preso, por exemplo), que então aparece não somente
como tem atizável pelo saber, mas como sujeitado pelo poder (aqui temos a
ontologia histórica de nós mesmos em relação ao campo de poder através
do qual nos constituímos em sujeitos que atuam sobre os demais); e 3) o de
relacionar as práticas subjetivadoras do sujeito consigo mesmo, ou de de­
monstrar como o sujeito é constituído de si para si mesmo através da sexua­
lidade, o que revela a ação do sujeito sobre si de modo a constituí-lo como
sujeito moral (aqui temos a ontologia histórica de nós mesmos em relação
à ética através da qual nos constituímos em agentes morais)262.
Como se sabe, embora um tanto arbitrária, tal esquematização segue
um certo percurso intelectual do próprio Foucault ao longo dos anos 60 (quan­
do Foucault se debruça sobretudo sobre a questão do saber dentro do projeto
que então era chamado “arqueologia”), dos anos 70 (quando Foucault acresce
à sua análise a dimensão do poder, dentro de um projeto então chamado de
“genealógico”) e, finalmente, dos anos 80, quando nosso filósofo preocupa-se
com as práticas de autoconstituição do sujeito (dentro de um projeto que então
chamado de “ ético”, em vista do acréscimo - agora explícito - do tema da
liberdade e da relação do sujeito consigo mesmo e com os outros).

261 Apud VEIGA-NETO, Alfredo. Op. cit., p. 17.


262 FONSECA, Ricardo Marcelo. Modernidade e contrato de trabalho: do sujeito
de direito à sujeição jurídica. São Paulo: LTr, 2002. p. 90-91; ALVAREZ-
URIA, Fernando; VARELA, Julia. In\ Prefácio de FOUCAULT, Michel. Saber
y verdad. Madrid: La piqueta, 1991. p. 8.
134 Ricardo M arcelo F onseca

7.2 FOUCAULT E A HISTORIA

Se traçar as linhas gerais de um “projeto” geral foucaltiano não é


fácil o mesmo problema surge se tentamos apreender uma “teoría da his­
toria" em Foucault. Considerando tudo o que já foi levantado no item ante­
rior, já fica muito evidente a dificuldade de encontrar um “receituário” do
filósofo francés aos historiadores do ponto de vista teórico e metodológico.
Assim - e sendo verdadeiro que em Foucault não se encontra exatamente
um “método” de trabalho, sobretudo nos moldes em que o positivismo e o
marxismo nos habituou a enxergar, mas sim trilhas, pistas e indicios de um
modo de operar - permanece realmente problemático elaborar a “teoria
foucaultiana da historia” ou o discurso da historia em Foucault.
Por esta razão é que falar das contribuições de Foucault para a
análise do discurso histórico jurídico é até certo ponto arriscado. Apesar
de todo o impacto que sua obra produziu nos métodos dos historiadores
franceses (sobretudo a partir dos anos 60, com a publicação de seuA
arqueologia do saber265), não deixa de ser ele um filósofo em territorio
que lhe é até certo ponto estranho (o territorio do historiador). Apesar
disso, porém, como diz Margareth Rago, na obra de Foucault

encongase uma defesa declarada da Historia, ao longo de sua obra,


urna tentativa de oferecer-lhe saídas, uma proposta de autonomização,
visando libertá-la de um determinado conceito de Historia que implica
procedimentos envelhecidos e cristalizadores, presos às idéias de conti­
nuidade, necessidade e totalidade e àfigura do sujeitofundador263264.

A partir desta constatação seria possível, de modo muito esque­


mático, aduzir algumas das contribuições essenciais de Foucault ao co­
nhecimento histórico, contribuições estas que poderiam também ser apli­
cadas à generalidade da historia do direito no Brasil, ao menos do modo
como vem sendo majoritariamente elaborada.
Em primeiro lugar - numa atitude bastante polêmica com as teorias
do séc. XIX (sobretudo o positivismo, o marxismo e a fenomenología) - há

263 FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 6. ed. Tradução de Luiz Felipe


Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
264 RAGO, Margareth. Libertar a história. In: RAGO, Margareth; ORLANDI, Luiz
B. Lacerda; VEIGA NETO, Alfredo (Orgs.). Imagens de Foucault e Deleuze:
ressonâncias nietzchianas. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p. 256-257.
Introdução Teórica à H istória do Direito
135

um questionamento bastante eloquente de Foucault sobre o estatuto do real.


Volta-se à pergunta: o que é o real a ser analisado pelo conhecimento históri­
co? Rejeita-se, portanto, aquele pressuposto epistemológico positivista segun­
do o qual a realidade simplesmente “existe” e existe independente do sujeito, e
pode ser abordada e conhecida diretamente, dependendo tão-somente de uma
intervenção mecânica do historiador que teria, assim, acesso ao real sem maio­
res mediações, produzindo um conhecimento que teria possibilidade de repre­
sentar este real com fidelidade (ou espelhar o real). Isso permite para o histo­
riador positivista, ao falar de seu ofício, afirmar com confiança que sua meta é
descrever o passado “tal como ele realmente aconteceu” (fíase de Leopold
Von Ranke). Ora, para Foucault isso não é possível: os discursos e também as
práticas que envolvem os discursos só podem ser compreendidos a partir da
sua historicidade. Não se compreende um discurso (ou uma prática) fora do
tempo em que eles são produzidos e do tempo em que eles circulam. N um a
determinada episteme existem determinados discursos substancialmente diver­
sos de outros discursos, que para serem compreendidos necessitam ser enqua­
drados dentro dos parâmetros de sua própria episteme. Não existe em Fou­
cault, assim, um discurso que seja trans-histórico, que atravesse todas as épo­
cas e seja umversalmente válido. Portanto dizer o que é o real será um a afir­
mação que, já num primeiro momento, irá depender da apreciação específica
do modo como funciona cada uma das regras de produção de conhecimento
que presidem cada configuração discursiva diferente na história. Como diz o
próprio Foucault, num texto bastante citado intitulado A poeira e a nuvem :

É preciso desmistificar a instância global do real como totalidade a


ser restituída. Não há “o ” real do qual se iria ao encontro sob a con­
dição de falar de tudo ou de certas coisas mais “reais ” que as outras,
e que falharíamos, em benefício de abstrações inconsistentes, se nos
restringíssemos a fazer aparecer outros elementos e outras relações.
Seria preciso, talvez, interrogar também o princípio, com frequência
implicitamente admitido, de que a única realidade a que a história
deveria aspirar é a própria sociedade. Um tipo de racionalidade, uma
maneira de pensar, um programa, uma técnica, um conjunto de esfor­
ços racionais e coordenados, objetivos definidos e perseguidos, ins­
trumentos para alcançá-lo etc., tudo isso é algo do real, mesmo se
isso não pretende ser a própria “realidade”, nem “a ” sociedade in­
teira. E a gênese dessa realidade, do momento em que nela fazemos
intervir os elementos pertinentes, é perfeitamente legítima265.

FOUCAULT, M ichel. D itos & E scritos IV (E stratég ia, p o d er-sab er). T radu­
ção de V era L úcia Avellar Ribeiro. Manoel Barros da Motta (Org.). Rio de Ja­
neiro: Forense, 2003. p. 329.
136 Ricardo M arcelo F onseca

Obviamente que tal atitude teórica abala a noção de progresso


que caracteriza tantas concepções de historia historicistas/positivistas - e
particularmente inúmeras concepções da historia do direito que apresen­
tam a atualidade como o ápice da reflexão jurídica ou cume da produção
legislativa - rompendo com uma hierarquia im plícita entre os tempos
históricos com o qual nosso ambiente teórico está tão habituado.
Automaticamente - e essa é uma segunda contribuição do pen­
samento foucaultiano para a história - o conceito de verdade é afetado de
um modo radical. O ícone da busca da verdade (num sentido forte), pró­
prio sobretudo do pensamento oitocentista, sofre um abalo importante.
Não haverá nenhuma verdade transcendental, já que Foucault
quer se livrar de toda a transcendentalidade e de toda referência metafísi­
ca na abordagem que faz do homem, em sua radical historicidade. Por
isso, a verdade não deve ser desprendida dos critérios de sua produção
(Foucault falará, a este propósito, numa “política da verdade”2 6). Só se
explica a verdade (ou o que se entende como tal em determ inada época) a
partir dos critérios - profundamente datados - em que ela é forjada. Toda
a verdade provém de um discurso que tem regras m uito delimitadas (e
nada metafísicas) para a sua produção.
Em outras palavras, para se entender o que é válido ou verdadei­
ro em determinada época, há que se historicizar os critérios de busca
desta validez (e desta verdade), há que se perquirir as regras de funcio­
namento que são específicas de um determinado discurso para se definir
o que é, assim, válido/verdadeiro. Foucault polem iza, portanto, contra as
tentativas de “etemização” dos conceitos - e, portanto, da “etemização”
das instituições e das formas de se apropriar os discursos. E aqui há um
sinal importante para os juristas, na medida em que o conhecimento do
direito em geral, na busca da estabilidade, tende fortemente a “eternizar”
conceitos e instituições. O jurista, de fato, tem, em geral, uma dificuldade
em relativizar/enquadrar seus conceitos, tendendo a gravá-los com uma
trans-temporalidade, como se tivessem sido forjados fora de um tempo-
espaço determinado. Esta é uma observação a que o historiador do direito
deve estar atento. De fato, se tomarmos a grande dualidade teórica mo­
derna na abordagem do direito (que são as concepções jusnaturalista e

266 FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Nau,


1996. p. 23, como também em FOUCAULT, Michel. Sicurezza, territorio, po­
polazione: corso al Collège de France (1977-1978). Paris: Seuil/G al limarci,
2004. p. 14.
Introdução Teórica à H istória do Direito 137

juspositivista), perceberemos claramente esta tendência, em am bas as


correntes, de “desistoricizar’' conceitos e instituições para o fim de ins­
crevê-los numa “trans-historicidadc” , numa “eternidade” que é tida com o
dada. O jusnaturalism o, de um lado, na sua tendência própria de buscar
regras estáveis, eternas e imutáveis para o estabelecim ento dos valores
jurídicos (no jusnaturalism o moderno tais critérios são tirados de um a
razão dom inadora e que é capaz de deduzir o jurídico e o ju sto ) é o
exemplo em blem ático de um a tentativa de abstrair o direito da história. O
juspositivism o não é diferente, sobretudo se vislum bram os as pretensões
dos prim eiros codificadores modernos (antes de todos, N apoleão) em
fazer o “livro dos livros”, um “código eterno”267268, que inscrevesse e fix as­
se para sempre os ditames de uma razão tida com o infalível, com o bem
dem onstra um a iconografia muito comum do séc. X IX , n a qual N apoleão
aparece escrevendo na pedra seu código, ao m esm o tem po em que rece­
bia a coroação do deus Cronos... A sua crença na durabilidade e até
m esmo na eternidade estava presente naquele m om ento fu n d ad o r (fato
hoje ainda repetido - mas noutro contexto epistêm ico - p o r aq u ele s que
fazem o elogio desmedido da “segurança jurídica”).
Como se pode notar, com a relativização da noção de “v erdade”
(ao menos naquele sentido forte que lhe dá a noção de verdade com o cor­
respondência), de imediato notamos, com Foucault, a precariedade do nosso
saber. Seu surgimento pode ser relacionado com um a série de conexões
com determinados discursos e também com d e te rm in a d a s estratégias de
poder coligadas aos discursos - e não, como frequentem ente se supõe, a
uma branda, inocente, progressiva e isenta busca da “verdade” . A final,
como diz nosso autor, nas trilhas de Nietzsche, “não há uma natureza do
conhecimento, uma essência do conhecimento, condições universais para o
conhecimento, mas que o conhecimento é, cada vez mais, o resultado histó­
rico epontual de condições que não são da ordem do conhecimento"10*.
Tudo isso faz com que consequentemente cheguem os a um a te r­
ceira im portante consequência do olhar foucaultiano sobre a história: a
tentativa de liberar o conhecimento histórico de toda a tentativa de u n i­
versalização e totalização. Foucault nunca vai buscar o sentido da história

267 Expressão de CAPPELLIM, Paolo. Il codice eterno. La Forma-Codice e i suoi


destinatari: morfologie e metamorfosi di un paradigma della modernità. In:
CAPPELLINI, Paolo; SORDI, Bernardo (a cura di). Codici: una riflessione di
fine milennio (atti dell’incontro di studio, Firenze, 26-28 ottobre 2000). Milano:
Giufffè, 2002. p. 11-68.
268 FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas, p. 24.
138 Ricardo Marcelo Fonseca

(com o se ele estivesse inscrito no cosm os, n a v o n tad e de Deus ou nos


princípios im utáveis da razão hum ana). P o r ex em p lo , ele está menos pre-
ocupado com a uhistória da violência nas prisões ” (com o, um tanto de­
sastradam ente, foi atribuído o subtítulo n a v ersão brasileira de seu livro
V ig ia r e P u n ir) do que com as p ráticas de v ig ilân cia e aprisionamento
em determ inadas épocas, de acordo co m m u ito d eterm inadas regras dis­
cursivas, ou m esm o tentar explicar com o o ap risio n am en to foi possibili­
tado por certas práticas políticas e discursivas. O u seja, para usar uma
expressão do nosso filósofo, é m enos a h istó ria de u m a prática racional
do que a história da racionalidade de u m a p rática. P ara Foucault, só
existem práticas e discursos entrelaçados em u m a determ inada época
histórica, m otivo pelo qual ele recusa to d a b u sca de u m a transcendentali-
d ade que não esteja ligada à radical h istoricidade d este m undo.
Isso implica, como se pode notar, no abandono de um a perspecti­
v a antropologizante e metafísica que busque no hom em (ou em determina­
das características tidas como “ essenciais”, “ eternas” e “trms-históricas”)
a dedução do seu “ser histórico”. Ao contrário, F oucault quer demonstrar
com o os estudos sobre o homem - e particularm ente a maneira como se
funda a análise da história dos homens hoje im perante - decorrem das ca­
racterísticas de um terreno epistemológico muito preciso e delimitado, que
teve seu surgimento num a época muito determ inada, que ele chama justa­
m ente de “era da história’ . Foucault, a esse respeito, disse que

No se trata en absoluto de componer una historia global - que rea­


gruparia todos sus elementos en torno a un principio o a umaforma
única - sino de desplegar más bien el campo de una historia general
en la que se podría describir la singularidad de las prácticas, eljuego
de sus relaciones, laforma de sus dependências. Y es en el espacio de
esa historia general em donde se podría circunscribir como disciplina
el análisis histórico de las prácticas discursivas*270

Finalm ente, um a quarta consequência da análise foucaultiana da


historia é o acento que ele dá às categorias da ruptura e da descontinuida-
de - exatamente de m aneira oposta ao m odo com o se comporta o “modus
operandi” do positivism o/histori cism o e de um certo marxismo. Quando

A este respeito vide FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueolo­


gia das ciências humanas. 6. ed. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo:
Martins Fontes, 1992. p. 231 e ss.
FOUCAULT, Michel. Saber y Verdad, p. 65.
Introdução Teórica à História do Direito 139

se vislumbra a história como uma sucessão de epistemes , isto está a signi­


ficar que existem determinadas regras que presidem o discurso que não
são necessariamente redutíveis à outra epis teme, ou, dito de outro modo,
não será automática a compreensão da passagem e da continuidade de
uma época à outra (quando nelas existirem critérios diversos de produção
de discurso e de “veridição”), do mesmo modo como uma determinada
cidade descoberta por uma escavação arqueológica tem critérios de orga­
nização diferentes daquela cidade que foi construída acima da antiga.
Como diz Foucault,

a história de um conceito não é, de forma alguma, a de seu refina­


mento progressivo, de sua racionalidade continuamente crescente, de
seu gradiente de abstração, mas a de seus diversos campos de cons­
tituição e de validade, a de suas regras sucessivas de uso, a dos meJos
teóricos múltiplos em que fo i realizada e concluída sua elaboração .

A descontinuidade271272, assim, frequentemente tão estigmatizada,


passa a ser um elemento importante na análise histórica com um triplo
papel273: 1) passa a ser uma operação deliberada do historiador, que dis­
tingue os níveis de análise, os métodos que são adequados a cada um e as
periodizações que lhes são convenientes; 2) é o resultado da descrição do
historiador, que passa a buscar os limites e os pontos de inflexão do pro­
cesso; 3) é um conceito sempre explicitado, que assume forma e função
específicas de acordo com o domínio questionado.

271 FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber, p. 5.


272 Num conhecido texto chamado “Nietzsche, a genealogia e a história” Foucault
aduz, nas sendas abertas pelo filósofo alemão citado no título do seu artigo, o
seguinte: “É preciso destruir tudo aquilo que o jogo apaziguante dos reconhe­
cimentos permitia. Saber, mesmo na ordem histórica, não significa ‘reencon­
trar9e sobretudo não significa ‘nos reencontrarmos\ A história será ‘efetiva9à
medida que reintroduzir o descontínuo em nosso próprio ser. Ela dividirá nos­
sos sentimentos: dramatizará nossos instintos; multiplicará nosso corpo e o
oporá a ele mesmo. Ela não deixará debaixo de si nada que tivesse AAa estabi­
lidade asseguradora da vida ou da natureza: não se deixará levar por nenhuma
obstinação muda na direção de um fim milenar. Ela irá esvaziar aquilo sobre o
que se costuma fazê-la repousar, e se obstinará contra sua pretensa continuida­
de. Porque o saber não é feito para compreender; ele é feito para cortar
FOUCAULT, Michel. Ditos & escritos (IV): arqueologia das ciências e história
dos sistemas de pensamento, p. 272.
273 FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber, p. 10 e ss.
140 Ricardo Marcelo Fonseca

A descontinuidade, assim, passa a ser “ ao mesmo tempo instru­


mento e objeto de pesquisa, delimita o campo de que é efeito, permite
individualizar os dominios”214. Os diversos cam pos, ao invés de serem
vistos de modo continuo e uniforme, passam a ser dotados de diversas
historicidades (o social, o económico, o cultural etc.) cada qual com seu
solo histórico delimitado274275. Isto faz com que possa ser possível vislumbrar
o envolver jurídico de um modo mais delimitado p or vários condicionantes,
de um modo descolado de um “grande progresso” hum ano geral, de um
modo recortado por diversas estratégias de poder e p o r diversas configu­
rações diferentes de saber, que sucessivamente lhe dão significados, pa­
péis e leituras absolutamente distintas ao longo do tem po. Tudo isso,
obviamente, toma temerária a atitude daquele que hom ogeiniza o passado
sob a tábula rasa dos condicionantes do presente - tão radicalmente di­
versos daquilo que se observava no passado27627.
N essa linha, o próprio Foucault adverte, em A Arqueologia
do Saber:

Denunciaremos, então, a história assassinada, cada vez que em uma


análise histórica - e sobretudo se se trata do pensamento, das idéias ou
dos conhecimentos - virmos serem utilizadas, de maneira demasiado
manifesta, as categorias da descontinuidade e da diferença, as noções de
limiar, de ruptura e de transformação, a descrição das séries e dos limi­
tes. Denunciaremos um atentado contra os direitos imprescindíveis da
história e contra ofundamento de toda historicidade possível211.

7.3 A IDEIA DE “SOCIEDADE DE SEGURANÇA” E A


HISTÓRIA DO DIREITO PÚBLICO

Uma vez estabelecidos alguns traços gerais e genéricos das


contribuições de Michel Foucault para a história, este ensaio dá agora o

274 Idem, ibidem.


275 ARAÚJO, Inès. Foucault e a crítica do sujeito. Curitiba: UFPR, 2000. p. 58.
276 FONSECA, Ricardo Marcelo. A história no direito e a verdade no processolo
argumento de Michel Foucault. In: Gênesis: Revista de Direito Processual Civil.
Curitiba, a. V, n. 17, p. 578, 2000.
277 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber, p. 16.
______________________ Introdu ção T e ó ric a à H istó ria do í Jireifo j4 1

passo m ais o u sad o (e m ais específico): buscar as c o n trib u içõ es cie


Foucault para a h istó ria do d ireito a partir da análise da noção da “ so cie­
dade de se g u ra n ç a ” * presen te so b retu d o no seu curso p ro ferid o no
CoIIcgc de Francc em 11>77-1 intitulado S e g u ra n ç a , território e
p o p u la ç ã o , c que teve ed ição para a língua francesa rcccn tcm en te fem
2004. pela S eu il/G allim ard . D e m odo m ais específico, aqui se buscara
pinçar algum as co n trib u iç õ e s específicas (ou talvez pistas, imigths) que 3
conceptualização acerca da “ sociedade de segurança*' traz para a an alise
da form ação dos ap arato s ju ríd ico -p o lítico s a partir da virada do finai do
séc. X V III até in ício s do séc. X X (período denom inado p o r m u ito s de
liberal). E m sum a, trata-se de verificar o m odo com o esta cate g o ria fou-
caultiana afeta fo rm as tradicionais de se encarar o E stado de d ire ito lib e ­
ral, em blem aticam en te representado pelas fonnas políticas assu m id a s nos
países eu ro p eu s (e, de m odo peculiar, nos países latin o -a m e ric a n o s),
principalm ente n o p erío d o oitocentista.
O p ro b le m a político que aqui é colocado p o r F o u cau lt d ev e se r
inserido no co n ju n to dos seus estudos encetados a respeito do p o d er.
Como se sabe, F o u cau lt separa (às vezes até m esm o parecen d o co n tra p o r)
duas g randes espécies de poderes: o soberano (ou legal, ou ju ríd ic o ) e o
disciplinar. O p rim eiro é aquele com 0 qual os juristas estão h ab itu a d o s a
operar: é o p o d e r que, de m odo em blem ático, encam a-se na figura de um
Estado soberano; é a concepção de poder que encontra sua origem na
ideia h o b b esian a de um pacto que se apropria dos poderes p rivados, p acto
este que seq u estra das m ãos dos particulares, por consenso dos seus p a r­
tícipes, as form as de poderes que antes lhes eram assegurados no “ estado
de natureza” ; é o poder, assim , que só pode se identificar com o so b e ra ­
no; é a concepção que enxerga o poder como algo que sobrepaira os in d i­
víduos e que atua a p artir de cima, num sentido descendente; é o poder
que, uma vez estabelecido pelo pacto, é entendido com o o fim da guerra
(vez que a instituição da lei civil significa a instituição dos critérios que
garantem a paz); é o po d er que veta, proíbe e tam bém , eventualm enre,
pode produzir a m orte; é o poder que, em regra (sobretudo no see. \ I \ ) ,
estabelece os lim ites negativos da atuação dos particulares. Ja o segundo
(0 poder disciplinar) é aquele que não pode se encarnar numa figura polí­
tica específica, já que ele está presente na soeiedude e nào e encontrado
apenas na “esfera p ú b lica” ou nas mãos do soberano; c uma ideia de po- 278

278 Vide a respeito da temática da governamentalidade em Foucault. O llCíNO LA,


Sandro (Org.). Governare la vila: un seminário sui corsi di Miche! Foucault a!
Collège de France (1977-1979). Verona: Ombre Corte, 2006.
142 Ricardo M arcelo Fonseca

der que, na verdade, insere o soberano numa teia de estratégias de poder


dentro das quais ele tem uma participação importante, mas nunca exclu­
siva; é a concepção de poder que investiga como instituições e saberes
(práticas e discursos), entrelaçados, produzem efeitos de poder sobre
corporal idades específicas, moldando-as, examinando-as, classificando-
-as, e que não tem um sentido ou uma direção específica, pois atua em
rede; é o poder que significa o prosseguimento da guerra (como diz Fou­
cault, invertendo Clausewitz, “a política é a continuação da guerra por
outros meios”279); é um poder que atua tam bém de modo positivo, cons­
truindo e moldando subjetividades e que, antes de qualquer outro efeito,
busca gerir a vida; é o poder que, além de estabelecer vetos e interdições,
estabelece padrões positivos de atuação aos corpos, de forma a enquadrá-
los em uma norma2*°.
Em suma, para Foucault existe um poder jurídico ou soberano e
existe outro normalizador (no sentido de fazer adequar a uma norma, um
padrão) que, no caso do poder disciplinar (que é um a espécie de poder
normalizador), atua sobre as individualidades corpóreas. Esta atuação
disciplinar (estudada exemplarmente por Foucault no caso das prisões,
dos hospitais psiquiátricos etc.) é que, a partir de um aparato institucio­
nal-discursivo, molda corpos a um determinado padrão (disciplinando-os
e docilizando-os), forjando subjetividades.
A partir destes marcos é que a ideia de “sociedade de seguran­
ça” pode ser introduzida. Os chamados “dispositivos de segurança” (típi­
cos da “sociedade de segurança”) são aqueles que Foucault já denomina­
ra em alguns escritos pouco anteriores de dispositivos biopolíticos281.
Vale dizer, é aquele conjunto de estratégias norm alizadoras que aparecem

279 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina


Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 5.
280 Sobre poder disciplinar, vide sobretudo FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir:
história da violência nas prisões. 5. ed. Tradução de Ligia M. Ponde Vassallo.
Petrópolis: Vozes, 1987; FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade, p. 27-
48 e também o curso do Collège de France recentemente traduzido ao portu­
guês: FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico. Tradução de Eduardo Bran­
dão. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 25 e ss. E para uma discussão mais
ampla sobre a noção de norma, vide EWALD, François. Foucault, a norma e o
direito. Tradução de António Fernando Cascais. Lisboa: Vega, 1993.
“81 Sobretudo em FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade, p. 285-315 e
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. 12. ed
Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquer­
que. Rio de Janeiro: Graal, 1997. p. 127-149.
Introdução Teórica à H istória do Direito 143

em dado m om ento histórico para dar conta da questão da “população”


que emerge no séc. XVIII. Ou seja: não se trata mais aqui de normalizar
corpos (com o no caso do poder disciplinar), mas sim de normalizar po­
pulações, ou conjuntos populacionais tomados em seus marcos biológi­
cos. A parecem para o poder, assim, questões como a mortalidade, morbi-
dade, natalidade etc. O problem a da gestão da vida (das doenças, da ve­
lhice, da infância, m as tam bém dos fluxos nas cidades, da gestão dos
trânsitos e dos acessos) coloca-se então como questão central para a polí­
tica. Trata-se, portanto, do surgimento de outra tecnologia de poder (pa­
ralela, e não substitutiva, da tecnologia disciplinar), também de natureza
norm alizadora. O poder jurídico ou soberano, segundo Foucault, irá pro­
gressivam ente se defrontar com tal forma da gestão da vida, muitas vezes
incorporando, nos âmbitos político e legal, estratégias de origem norma-
lizadoras/biopolíticas.
U m dos exemplos trazidos por Foucault pode ser esclarecedor:
aquele referente ao modo como diferem as “estratégias” no confronto
com o problem a das doenças ao longo do tempo, o que demonstra diver­
sas form as de “governo” . O primeiro modelo é aquele referente ao modo
de gestão dos leprosos, que era regido substancialmente por um aparato
jurídico de leis e regulamentos (além de um aparato ritual e religioso), de
m odo que se criava um a distinção binária entre quem era leproso e quem
não o era. A qui se estava diante de um sistema tipicamente legal. O se­
gundo m odelo era aquele da peste (sécs. XVI e XVII), quando novos
m ecanism os foram introduzidos: aqui são seguidos objetivos e técnicas
diferentes, subdividindo-se o território ou uma cidade, submetendo-as a
uma regulam entação que indique, por exemplo, quando se pode entrar ou
sair, o com portam ento a ser seguido em casa, como e quando se pode
sair, a alim entação e o comportamento a ser observado em casa, as proi­
bições de contatos, as obrigações de se apresentar a um inspetor regular­
mente etc. A qui se está diante de um sistema tipicamente disciplinar.
Finalmente, o terceiro modelo é o da varíola (a partir do séc. XVIII)282,
no qual o problem a central não é impor uma disciplina (ainda que os me­
canismos disciplinares não desapareçam), mas criar mecanismos para
controlar quantas pessoas (e em que idade, e em quais condições) são
afetadas pela doença, bem como qual a taxa de mortalidade, os riscos

Poder-se-ia ainda acrescer, hoje, em parte, o modelo da AIDS, tal como demons­
trado com competência por GUANDALINI JUNIOR, Walter. A crise da socie­
dade de normalização e a luta jurídica pelo biopoder. o licenciamento compul­
sório de patentes retrovirais. Curitiba: Dissertação (Mestrado em Direito), 2006.
144 Ricardo Marcelo Fonseca

derivados na inoculação, quais as probabilidades de m orte e infecção etc


A questão, assim, não é a da exclusão (caso da lepra) ou de quarentena
(como no caso da peste), mas tem em vista os riscos de epidemias e a
promoção das campanhas médicas graças às quais procura-se acabar com
os fenômenos endêmicos ou epidêmicos. A qui se está diante de um
sistema calcado em mecanismos de segurançcr 5.
Em suma, Foucault vai m ostrando como, no funcionamento
destas diversas estratégias, “a lei veta, a disciplina prescreve e a segu­
rança, sem vetar ou prescrever, dotando-se eventualmente de algum ins­
trumento de interdição ou de prescrição, tem a função essencial de res­
ponder a uma realidade de maneira tal a anulá-la ou limitá-la ou freá-la
ou regulá-la”284. Nota-se, pois, a emergência de uma nova tecnologia de
poder, com novos mecanismos e novos objetivos, e que não vai se aplicar
“sobre o eixo soberano-súdito, que exige a submissão total e passiva do
segundo com relação ao primeiro” (eixo este completamente familiar e
basicamente único objeto de atenção do observador-jurista), mas sim
mecanismos que vão se aplicar sobre processos "naturais ou, também,
simplesmente como elementos cia realidade"2**5. Neste caso (como tam­
bém naqueles como os da organização das cidades ou no trato com o
problema da escassez286), trata-se de unia estrategia que coloca em pri­
meiro plano um foco absolutamente novo que passa a ser prioritariamente
as populações, e não mais as individualidades. Como diz Foucault, “ay
indivíduos são pertinentes só como instrumento. e<mio passagem, como
condição para obter alguma coisa no nivel da ¡><>pidação"^jl.
Aparece, então, este personagem ilimitado e e.uranlio para a teo­
ria jurídica: a população. Trata-se de um A sm , ' ajeito coletivo de todo
>o — ;culos precedentes 1 que
estranho ao pensamento jurídico e / uditi <<
então “ revela-se aqui em toda a sua cumple mas P e com suas cesuras”™.
E, mais, a questão do governo das populaçde _ir arcce como "algo profun­
damente diferente do exercício de uma Soberania que aspira a descer nos
detalhes mais minuciosos dos comportam entos individuais”, demonstrando

FOUCAULT, Michel. Sicurezza, territorio, popolazione: corso al College de


France, p. 20-21.
~84 Id e m , p. 47.
“8> Id e m , p. 57
"86 Id em , p. 21 e ss.
*87 Idem, p. 43.
288 j j
Idem, p. 43.
Introdução T eórica à H istória do D ireito 145

que se está, de fato, como diz Foucault, diante de “duas economias do po­
der que me parecem radicalmente diferentes”289. As relações entre a esfera
do individual e do coletivo (que para o pensamento jurídico geralmente são
remissíveis aos níveis do público x privado, Estado x sociedade) aqui são
recompostas e rearticuladas: as relações de governo mostram-se complexas
e multilaterais, onde o Estado, enquanto ente soberano e portador exclusivo
do exercício do poder em determinado território (como repete a teoria cria­
da no séc. X IX ) não é mais simplesmente o articulador consciente e alta­
neiro das form as de gestão na consecução de seus objetivos, mas será, de
modo m uito central, o agente no qual perpassam mecanismos de segurança
que detém (por detrás das noções como “bem comum” e “interesse públi­
co”) estratégias, técnicas e mecanismos muito voltados a governar as po­
pulações, em setores como a sua mortalidade, morbidade, nos seus fluxos,
na gestão da infância e da velhice etc. A vida (no seu marco biológico) é
tom ada com o centro de preocupação da govemamentalidade, e isto é um
dado que os juristas costumam ignorar.
C om o se percebe, a partir do séc. XVIII (quando a questão da
população surge para o saber e os chamados dispositivos de segurança
são progressivam ente utilizados como estratégia de governo) existe uma
dim ensão de norm alização e de gestão da vida que convive e perpassa os
m ecanism os “puram ente” jurídicos. Na verdade, uma apreciação atenta
chegaria à conclusão que as estratégias jurídicas passam a ser cada vez
menos im unes à atuação de formas normalizadoras, de modo que a ins­
tância ju ríd ica passa a cumprir o papel cada vez mais frequente de vei-
culador dos dispositivos de segurança e passa a ser um dos meios privile­
giados de fazer funcionar e fazer incidir tais mecanismos.
M areio A lves da Fonseca percebe com muita precisão esta im­
bricação, que passa a ser a marca do funcionamento do direito sobretudo
a partir do séc. X IX :

D este modo, a imagem de um direito normalizado-normalizador, em


Foucault, se integra p o r diversas formas jurídicas, como, p or exemplo,
decretos administrativos, medidas de segurança, decisões judiciárias,
arbimagens que dispõem acerca de realidades complexas como o p a ­
p e l e as funções dos órgãos públicos em face das necessidades das so­
ciedades, as condições segundo as quais se desenvolvem as atividades
produtivas dos indivíduos no interior de um determinado grupo, os
problem as de seguridade social, de regime de trabalho, de saúde pú-
289
I d e m , p. 58.
146 Ricardo Marcelo Fonseca

blica, de segurança e violência etc. (...). Diversos domínios do direito


podem , então, ser pensados em suas implicações com os mecanismos
de normalização como hiopoder, particularmente aqueles de direito
administrativo, do direito do trabalho, do direito previdenciário, do
direito ambiental, dos direitos coletivos etc 290.

A ideia de governo, assim, deve merecer um redimensiona­


mento pelos juristas que a tratam de modo puramente formal e ligado às
fornias de representação política291. O tema da governam entalidade é,
como Foucault nos faz notar, muito mais amplo do que o tratamento es­
tritamente jurídico que se dá ao tema do governo. E são justamente estas
fecundas reflexões do filósofo francês sobre a questão do governo dos
outros (tema que, na obra de Foucault, precede às várias análises dos
anos 80 sobre o governo de si) é que abrem perspectivas interessantes
não só à análise sobre o poder ao jurista, mas também ao historiador do
direito que busca entender o funcionamento do Estado desde os inícios da
modernidade. O historiador francês Paul Veyne, num texto muito conhe­
cido em que se debruça sobre a obra de Foucault (e sua pertinência ao
historiador), estava atento a este particular:

Em vez de acreditar que existe uma coisa chamada “os governantes ”


relativamente à qual os governados se comportam, consideremos que
os “governados”podem ser tratados seguindo práticas tão diferentes,
de acordo com as épocas, que os ditos governados não têm senão o
nome em comum. Pode-se discipliná-los, isto é, prescrever-lhes o que
devem fazer (se não há nada prescrito, eles não devem se mexer);

290 FO NSECA, Mareio Alves da. As imagens do direito em Michel Foucault. In:
CALOM ENI, Tereza Cristina B. (Org.) M ichel F oucault: entre o murmúrio e a
palavra. Campos: Faculdade de Direito de Campos, 2004. p. 176-177.
291 O próprio Foucault, numa entrevista concedida em 1984, demonstra estar bem
ciente dos dois planos (não excludentes, mas complementares) de análise do
problema das várias formas de governo que presidem a história política recente:
se você tenta analisar o poder não a partir das liberdades, das estratégias e
da governabilidade, mas a partir da instituição política, só poderá encarar o
sujeito como sujeito de direito. Temos um sujeito que era dotado de direitos ou
que não o era e que, pela instituição da sociedade política, recebeu ou perdeu
direitos: através disso, somos remetidos a uma concepção jurídica do sujeito.
Em contrapartida, a noção de governabilidade permite, acredito, fazer valer a
liberdade do sujeito e a relação com os outros, ou seja, o que constitui a pró­
pria matéria da ética”. {In: FOUCAULT, Michel. Ditos & escritos V: ética, se­
xualidade, política. Tradução de Elisa Monteiro e Inés Autran Dourado Barbosa.
Manoel Barros da M otta (Org.). Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 286)
Introdução Teórica à H istória do Direito 147

pode-se tratá-los como sujeitos jurídicos: certas coisas são proibidas,


mas, no interior desses limites, eles se movimentam livremente; pode-
se explorá-los, e foi o que fizeram muitas monarquias (...)292.

A análise do poder, do governo e da forma assum ida pelo as­


sim cham ado “estado liberaF do séc. XIX, a partir destas prem issas,
m erece um im portante ajuste. D e fato, norm alm ente vislum bram os este
período com o aquele em que o Estado está m uito ausente (principal­
mente se com parado às form as de atuação do “welfare State” do séc.
XX), proclam ando liberdades que são voltadas essencialm ente aos indi­
víduos. O m odelo inaugurado pela R evolução Francesa de 1789 é visto
com o aquele que pretende instituir “a sociedade civil dos indivíduos, e
a sociedade dos indivíduos politicamente ativos, na sua autonomia de
subjetividades distintas do estado, e a este precedente, que impõem
respectivamente a presunção geral de liberdade e a presença de um
poder constituinte em si já estruturado”293. Os E stados do séc. X IX
en frentam a questão da unidade política invocando a suprem acia da lei,
en ten d id a com o proveniente da nação (que estava representada no p a r­
lam ento), a qual inclusive o Estado deveria estar subm etido. A ssim o
“Estado de direito” oitocentista resolve o problem a da autoridade e do
poder, p ro c lam an d o que a única fonte de autoridade (ao qual ele m esm o
dev eria o b ed ecer) era a lei - o que foi consagrado e legitim ado p o r j u ­
ristas do p e río d o com o o alem ão Georg Jellinek e o francês R ay m o n d
C arré de M a lb e rg 294.
O ra, diante do que já foi colocado aqui é de se no tar com o, de
um lado, o p ro b lem a da população está tam bém a orientar a ação dos
governos e a delim itar os exercícios das liberdades de um m odo bem
m ais elo q u en te do que se im agina. A quele E stado estruturado (segundo a
doutrina da “teoria geral do estado” do séc. X IX ) a partir da ideia do
im pério da lei e da soberania do E stado que assenta sua autoridade na
tripartição dos p o d eres sofre aqui um tem peram ento: as form as de gover-
namentalidade e de gestão das populações está m uito além de um Estado
absenteísta e que só se co ncentra nos indivíduos. A lei, p o r outro lado,

292 VEYNE, Paul. Como se escreve a história. 3. ed. Tradução de Alda Baltar e
Maria Auxiliadora Kneip. Brasília: UNB, 1995. p. 154.
293 FIORAVANTI, Maurizio. Appunti di storia delle costituzione moderne: le
libertà fundamentali. Torino: Giappichelli, 1995. p. 37.
294
BERCOVICI, Gilberto. As possibilidades de urna teoria do Estado. In: Revista
de História das Idéias. Coimbra: Faculdade de Letras, v. 26, p. 10-11, 2005.
148 R icardo M arcelo F onseca

deixa de se m ostrar como instrumento único e exclusivo da gestão políti­


ca: as m ais diversas formas de regulamentação (típicas dos mecanism os
de segurança), que são muitas vezes infralegais e outras vezes até mesmo
estão à m argem do sistema clássico de fontes do direito, cum prem e
cum priram um a função central nas formas de gestão da vida a partir do
final do séc. X VIII. A ideia pura de um “Estado legislativo” n a cham ada
“era liberal” , assim, parece se esfumaçar um pouco diante das inúm eras
form as de govem am entalidade emergentes nos saberes e práticas norm a­
lizadoras do período.
E m bora muito indiciárias, estas observações de F oucault sobre a
problem ática do governo, especialmente quando transplantadas p ara os
m odelos do séc. XIX, acabam sendo tremendam ente instigantes ao dis­
curso histórico-jurídico e em especial ao discurso da história do direito
público m oderno: indicam pistas importantes (que certam ente deverão ser
exploradas de m odo acurado nas fontes respectivas) para rever m odelos e
observar com m ais atenção as formas de governo desse passado cuja h e­
rança ainda nos é tão vital, certamente contribuindo tam bém , quem sabe,
para a “ ontologia histórica de nós mesmos” enquanto governados por
m ecanism os ainda não com pletam ente desvelados pelo discurso jurídico
m ais tradicional.
8

W ALTER BENJAM IN,


A TEM PORALIDADE E O DIREITO

“você pára
a fim de ver
o que te espera
só uma nuvem
te separa
das estrelas
Paulo Leminski

8.1 O LEGADO

É rica e com plexa a herança teórica de W alter Benjam in. Cer­


tam ente poucos autores ligados à chamada “Escola de Frankfurt” tem
uma singularidade tão grande ou são tão difíceis de enquadrar num molde
ou num esquem a teórico estanque.
E isto se dá, em parte, pela apropriação que seus intérpretes dele
fizeram, que enxergam diversos “Benjamins”. Existe o Benjam in um
tanto m ístico, principalm ente a partir da leitura feita pelo seu amigo
Scholem, p ara quem aquele autor sempre teve como pano de fundo de
toda a sua obra a teologia, que seria o único meio transform ador; temos o
Benjamin m arxista da leitura de Brecht, que pretendia “salvá-lo” do ide­
alismo; tem os o B enjam in lido por A dorno, que, por seu lado, se esforça­
va para “salvá-lo” do “marxismo vulgar”295.

295 ROUANET, Sergio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia


das Letras, 1987. p. 110.
150 R icardo M arcelo F o n se ca

A isto se junte tam bém a form a sui generis de B enjam ín passar


suas ideias, às vezes por m eio de aforism os, às vezes em form a ensaística,
às vezes rigorosam ente racional, que fazem com que u m a apropriação
‘‘oficial” do pensam ento benjam iniano seja v irtu alm en te impossível
(além de indesejável).
Somado a isto ainda existe um a enorm e variedade tem ática em seu
pensam ento, que faz com que seja difícil classificá-lo quer com o sociólogo
da literatura, quer com o filósofo296. Isto podem os checar ao notarm os que
existe desde o B enjam in crítico da cultura (que analisa as consequências da
perda da aura nas m anifestações artísticas, especialm ente nas suas refle­
xões sobre a fotografia e o cinema); tam bém tem os o B en jam in crítico
literário, em suas clássicas análises da obra de Proust, K afk a e sobretudo
B audelaire; tem os ainda o Benjam in que se debruça sobre a paisagem ur­
bana, com o olhar de ‘‘flaneur”, com um a atualíssim a crítica da paisagem
urbana, analisando as inovações introduzidas em Paris da segunda metade
do século passado por Haussmann; ou se quiser tem os tam b ém o Benjam in
que escreve com um a seriedade enorme a assuntos de ex trem a banalidade,
com o, por exemplo, a arte de esconder ovos de P ásco a297. T em os final­
m ente - e é aqui que quero centrar a atenção - o B enjam in que reflete es­
pecificam ente sobre as formas de narração.

8.2 A N A R R A Ç Ã O E A E X P E R IÊ N C IA

A qui se tom a im portante situar a discussão de B e n jam in sobre a


narração (seja ela a narração literária ou a n arração h istó rica). A narração
tem um papel fundam ental na própria constituição do sujeito, a importân-

296 Publicação sobre o seu pensamento enfoca-o sobretudo com o filósofo, como se
pode notar pelo próprio título: BENJAMIN, Andrew; O SBO R N E , Peter. A filo­
sofia de W alter Benjamin. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
297 Vide BENJAMIN, Walter. Walter Benjamin: sociologia. Flávio Kothe (Org.). São
Paulo: Ática, 1985. p. 37-43, 219-240, Coleção grandes cientistas sociais. BENJA­
MIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica arte e política. 3. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1987. p. 36-49, 137-164, 165-196; BENJAMIN, Walter. Obras esco­
lhidas III: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasili­
ense, 1989; BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura, documentos de barbá­
rie. Sel. e apres. Willi Bolle. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1986. p. 188-189. E para
uma rica leitura das “teses sobre o conceito de história”, que inclui um original en­
quadramento da obra benjaminiana, vide LOWY, Michael. W alter Benjamin -
aviso de incêndio. Uma leitura das teses “sobre o conceito de história. Tradução de
Wanda Nogueira Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2005.
In tro d u ç ã o T e ó rica à H istó ria do D ireito 151

cia “da retomada salvadora da palavra de um passado que, sem isso,


desapareceria no silêncio e no esquecimento”19*. A ssim , no conflito
existente, de um lado entre o final das form as seculares de transm issão e
de com unicação e do fim da narração em particular, e de outro entre a
afirm ação enfática da necessidade p olítica e ética de rem em oração, é que
todo o pano de fundo sobre a reflexão benjam iniana sobre a narração (e a
história em p articu lar) é form ada.
A discussão sobre a narração e as mudanças na sua estrutura inter­
na se relacionam , assim, com a discussão benjam iniana da alteração n a per­
cepção da “ experiência” . O conceito de “experiência” é muito im portante em
Benjam in e tem conexão com a sua preocupação em analisar a questão da
narração histórica. Paralelam ente ao fato de que a obra de arte, na m oderni­
dade (que é a era de sua “reprodutibilidade técnica”), vem sofrendo um a
transform ação no processo de perda da aura (o que se m anifesta sobretudo no
cinem a e na fotografia) se percebe que as formas tradicionais de “experiên­
cia” vêm sendo perdidas no mundo moderno. Aqui B enjam in distingue a
“experiência” - entendida como tradição coletiva, enquanto algo que encon­
tra raízes rem otas, tais como a tradição dos provérbios, do “contar” um a
história de pai para filho, da transmissão da sabedoria dos velhos para os
m ais novos - da sim ples “vivência”, muito mais fugaz, desapegada e desen­
raizada e que progressivam ente vai substituindo a primeira. A qui se poderia
fazer um a analogia com o processo que W eber chamou de “ desencanta­
mento do mundo ” (sem querer identificar as ideias dos dois pensadores a
respeito, bem diversas entre si), quando as esferas axiológicas com o o direi­
to, a religião e a ética se tom am autônomas, independentes entre si e m ais
sofisticadas. N esta fase, quando a “experiência” dá lugar à “vivência” , as
pessoas perdem tam bém a sua capacidade de “contar” histórias.
E ste p ro cesso - descrito por B enjam in - tem um a relação com a
grande ênfase que então se dá (na época do advento das grandes cidades)
com o surgim ento, p o r exem plo, dos rom ances policiais. A qui o p erso n a­
gem principal (o detetive), em m eio a um em aranhado de acontecim entos
aparentem ente d esconexo s e no caos da realidade - que é onde se insere o
crime com etido - d escobre os elos aparentem ente inexistentes e estabele­
ce conexões im previstas, dando sentido aos fatos ao desvendar o delito.
Ou então - ainda dentro deste contexto de passagem da “ experiência”
para a “viv ên cia” - observa-se u m a n o v a e inusitada valorização dos inte­
riores das casas p ela arquitetura, visto que a casa to m a-se o refugio con- 298

298 G AGNEBIN, Jeanne Marie. H istória e narração em W alter B enjam in. São
Paulo: Perspectiva, 1994. p. 3.
152 R ic ard o M a rc e lo F o n se c a

tra o m undo hostil e anônim o. É que o in d iv íd u o b u rg u ê s sofre de uma


desperso n alização g en eralizad a e te n ta re m e d ia r esta situ ação com uma
apropriação pessoal de tudo o que lhe p e rte n c e n a e sfera privada: sua
fam ília, seus objetos pesso ais, seus m ó v eis, suas fo to g rafias nos porta
retratos, suas p inturas escolhidas e p en d u rad as n a p a re d e 2" .
C om o desapossam ento do indivíduo d a su a v id a pública, que não
pode m ais ser apropriada por ter perdido o sentido trad icio n al (declínio da
“ experiência”), ele tenta deixar a sua m arca nos objetos pessoais, como nas
iniciais bordadas no lenço. A figura do colecionador tam b ém é emblemáti­
ca n a filosofia de B enjam in, pois é aquele que ten ta estab elecer um a or­
dem , u m a lógica aos objetos, tirando-os de sua singularidade e da descone­
x ão em que se encontram na m odernidade. “Habitar é deixar rastros” , diz
B en jam in no seu P a ris, c a p ita l do século X IX 29300. E n ão é p o r acaso que o
velu d o é um dos m ateriais preferidos desta época (séc. X IX ): os dedos do
proprietário deixam nele com facilidade a sua m arca301.

8.3 N A R R A Ç Ã O , T E M P O R A L ID A D E E H IS T Ó R IA

É dentro deste processo de transform ação das form as de percep­


ção da própria realidade que B enjam in se propõe a an alisar a alteração
das form as da narração na m odernidade, e, de m odo esp ecífico p ara o que
aqui interessa, as especificidades da narração h istó rica e da p ró p ria histó­
ria. E n este ponto é necessário retom ar um dos seus tex to s m ais conheci­
dos, intitulado teses “sobre o conceito de história” , ou “teses sobre filo­
sofia da história” . Este texto riquíssim o e controvertido, rev elad o r de um
B enjam in ao m esm o tem po pessim ista e revolucionário, esperançoso e
desesperado, utópico e m elancólico, foi escrito entre agosto de 1939 e
fevereiro de 1940, e constitui seu últim o trabalho sendo p o r m uitos con­
siderado com o seu testam ento teórico.
E neste texto é ainda possível dem arcar dentro da discussão so­
bre a história um a outra tem ática que, aliás, form a o próprio ceme da
análise benjam iniana sobre a redenção/resgate do passado: a visão de
tem poralidade. Em Benjam in, esta noção rom pe com a ideia corrente

299 Idem , p . 6 8 .
300 Apud, G A G N E B I N , J. M . Op. cit., p. 68.
301 Idem, ibidem.
Introdução Teórica à H istória do Direito 153

sobre o tempo (e que era comum ao historicismo e ao que ele chama de


concepção de progresso da social democracia alemã).
Para apreciar esta questão, é interessante relembrar um fato
histórico emblemático - que é citado por Benjamín em suas teses 302 - e
que pode servir como um bom exemplo do que ele pretende com sua
visão sobre a temporalidade. Trata-se de um episódio que ocorreu na
revolução de julho de 1830 na França (que derrubou pela segunda vez a
monarquia dos Bourbon). Com o anoitecer do primeiro dia de batalha, em
vários pontos de Paris os revolucionários atiraram nos relógios das torres,
de forma independente e não predeterminada. Este fato - que para
Benjamín é carregado de significados - demonstra o desejo de ruptura
com um tem po mecânico, com a temporalidade dos relógios, bem como a
necessidade revolucionária de inaugurar um novo calendário e um a nova
forma de encarar a passagem do tempo, numa irrupção e numa quebra de
uma continuidade que seja aparentemente tranquila303.
Benjamín aqui está querendo se referir a uma noção de temporali­
dade que é comum tanto aos historicistas alemães (que adotavam do ponto
de vista metodológico uma historiografía que chamaríamos hoje de “histori-
cisto” ou um tanto impropriamente de “positivista”) e a ideia do progresso
que era próprio das esquerdas da época (a social democracia alemã).
O tom desta crítica comum (o que se nota em várias partes das
teses) se dá principalmente pelo impacto que o acordo entre Hitler e Sta-
lin (em agosto de 1939) causou nas esquerdas. Elas (as esquerdas) viram
aquelas forças que eram consideradas como as únicas que poderiam deter
a expansão do nazismo e do fascismo se aliando com este inimigo, fazen­
do com eles um pacto de não agressão.
Este acordo, na interpretação de Benjamín, tinha como substrato
uma determinada ideia de temporalidade (e mais específicamente uma
ideia de progresso) própria de uma certa esquerda. Era a ideia de que os
eventuais retrocessos não passavam de percalços da classe operária, que
inevitável, fatal e inexoravelmente deveria acabar por vencer, já que esta
era a própria lei da história. Esta leitura do processo histórico - influencia­
da pelo marxismo stalinista então oficial - acabava por entender que o
movimento operário tinha uma predestinação (que era independente de
sua ação) para se impor na história, nos moldes de uma interpretação

302 T r a ta -s e d a t e s e X V . In: B E N J A M I N , W. Obras escolhidas: m a g ia ... cit., p . 2 3 0 .


303 L O W Y , M i c h a e l . M e s s i a n i s m o e r e v o l u ç ã o . In: N O V A E S , A d a u t o ( O r g .) . A
crise da razão. S P /R J : C i a d a s L e t r a s /F u n a r t e , 1996. p. 3 9 5 .
154 R icardo M arcelo F onseca

etapista dos modos de produção. Esta postura, em últim a análise, era car­
regada de um conform ism o que, segundo B enjam ín, era extrem am ente
corruptor para o m ovim ento dos trabalhadores. D izia ele que “ nada foi
mais corruptor para a classe operária do que a idéia de que ela nadava
a favor da corrente”304. E ra a ideia do progresso no seio do movimento
operário, um progresso que na verdade era ilusório, que com prom etia a
sua ação política e que estava de braços dados com um a noção de tem po­
ralidade que deveria ser condenada.
E sta visão tinha o m esm o substrato daquela adotada pelo histo­
ricism o. N este campo, B enjam ín critica a ideia (que é própria de Leopold
von R anke) de proceder a um a reconstituição do passado “ como ele de
fato fo i ”, ou à ideia (própria de Fustel de Coulanges) de que o historiador,
ao reconstituir um a época histórica, deve esquecer tudo o que sabe sobre
fases posteriores da história (como se pode ler n a tese 7). Ele critica os
historiadores que fazem da sua m atéria-prim a os fatos (com o os histori-
cistas o fazem de um m odo geral), e traçam a tram a histórica estabele­
cendo nexos causais necessários entre estes fatos. Para Benjam ín este tipo
de história, que culm ina num a historiografia do tipo universal, se afasta
do passado que ela pretende examinar. E isto porque é um a história que
na verdade atribui um sentido a posteriori aos eventos e principalm ente
porque estabelece um encadeam ento e um a determ inada lógica ao even­
tos que lhes é externo. Os fatos se conectam de um a m aneira fácil no jogo
das causas e consequências. Em outras palavras, este tipo de história es­
tabelece um a certa linearidade, um a harm onia e um a coerência que são
estranhas à própria época que está sendo estudada.
E a linearidade é sem pre pertencente a um discurso histórico
posterior ao evento que ele busca relatar. A lógica que é im pressa por tal
historiador é estranha ao passado, já que a época pretérita, quando vivida
- qualquer época que seja - se m ostra com plexa, dialética, rica de virtua­
lidades, e im possível de ser apreendida p o r conexões sim ples, tal como o
este discurso historicista quer fazer crer que é.
Por tais razões, este discurso linear não passa de, com o nos diz
H espanha, um a postura que projeta sobre o passado as categorias mentais
e sociais do presente, fazendo do devir histórico um processo (escatológi-
co) de preparação da atualidade305. A ssim , cada vez m ais este discurso

304 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia... c i t p. 227.


305 HESPANHA, Antônio M. Justiça e litigiosidade: história e prospectiva. Lis­
boa: Calouste Gulbenkian, 1993. p. 51.
Introdução Teórica à História do Direito 155

historiográfico se divorcia do próprio passado sobre o qual ele quer se


debruçar, produzindo um estudo que nada mais é do que um “ clone” do
presente, cheio de valores políticos e ideológicos próprios deste presente.
Evidentemente que isto não significa defender uma postura de
neutralidade axiológica do conhecimento histórico: significa somente
demonstrar o “pecado” do historiador que, por exemplo, tenta compreen­
der a época medieval ou antiga considerando que o homem deste período
fosse dotado dos mesmos princípios e dos mesmos valores do homem
contemporâneo. Tal distorção - própria tanto de muitas historiografias
ditas “ reacionárias” quanto das “revolucionárias” - se dá, por exemplo,
quando se enxerga numa insurreição de escravos ocorrida há dois mil
anos uma típica manifestação primitiva da revolução proletária.
E esta forma aparentemente lógica, coerente, linear e harm ônica
de se encarar a temporalidade - que na verdade se revela como profun­
damente aleatória, já que opta, por motivos às vezes mascarados, por
determinadas conexões, e não por outras que poderíam ser possíveis -
tem como consequência natural ser excludente. Na medida em que a cena
histórica, para tom ar uma expressão de Benjamin, é tida como UNA e
como Única, na medida em que o passado é apresentado como um qua­
dro já pronto e definitivamente pintado, são excluídas quaisquer outras
perspectivas históricas pensáveis que acabaram por não se impor, de ca­
minhos que poderíam ser traçados, e mesmo de outras conexões que p o ­
deríam ter sido feitas naquela mesma lógica do encadeamento de fatos. A
tem poralidade linear representa um tempo vazio e homogêneo, onde só
existe lugar para a soma (encadeada) de fatos como se o tempo fosse um
receptáculo com forma e tamanho bem definidos. H á uma exclusão de
todas as virtualidades históricas e todas as experiências passadas que não
foram registradas ou que foram frustradas, e somente há espaço, em tal
historiografia, para os sucessos históricos.
Quer dizer: o efeito básico do discurso harmônico e linear é ser ex­
cludente, e ele é excludente exatamente porque é harmônico e linear. Com
isto o passado real e efetivo acaba sendo praticamente todo ele encoberto e
velado, todo ele ainda por vir à tona, já que o discurso historiográfico fez
uma opção por uma determinada linha de explicação que excluiu toda uma
infinidade de outras. No caso do “'positivismo/historicismo”, como se sabe,
foi uma opção pelos fatos políticos, militares e diplomáticos.
E toda essa exclusão a que o discurso historiográfico procede no
conhecimento histórico na verdade reflete a exclusão que existe na pró­
156 R icardo M arcelo F o n se c a

p ria realidade histórica, que é feita de um p ro cesso contínuo de conflitos,


de lutas e de exclusões.
Com isto se chega a um a conclusão fundam ental: a ideia de que a
historiografia fundada neste tipo de tem poralidade e que tem como base esta
linearidade excludente, nada mais é do que um a m anifestação no âmbito da
cultura e do conhecimento de um processo Real de exclusão, o reflexo de
um a realidade que acabou por se impor na base do relegar algumas perspec­
tivas para que outras se impusessem, o reflexo de um a im postura histórica
vencedora, sobre os pés da qual se encontra uma perspectiva histórica venci­
da: é o que B enjam ín entende como história dos vencedores.
P ara B enjam in o método historicista estabelece um a inequívoca
em p atia com o vencedor, pois para ele “a? que num dado momento domi­
nam são os herdeiros de todos os que venceram antes”306 e a empatia
co m o vencedor beneficia sempre estes dom inadores. N ota-se deste modo
p o rq u e p ara B enjam in não há um m onum ento de cultura que também não
seja u m m onum ento de barbárie. Para ele a cultura está im pregnada desta
ló g ic a da exclusão, deste legado dos dom inadores, desta im posição histó­
ric a vio len ta e a ruptura com este legado e uma im posição revolucionária.
A qui se percebe, portanto, como a tarefa dc fundar uma nova
tem poralidade, para Benjamin, tem um duplo aspecto: um teórico - na
m ed id a em que visa suplantar uma concepção de conhecimento histórico
q u e n a verdade se afasta cada vez mais da realidade passada que pretende
e stu d ar - e político - na medida em que a ruptura com a perspectiva histo-
riográfica tradicional (que é a historia da exclusão) significa romper com a
p ró p ria perspectiva dos dominadores e com a história dos vencedores.
N um a de suas teses Benjam in tenta descrever o “ anjo da histó­
ria ” com o sendo retratado por Paul Klee, e. que pelo seu caráter repre­
sen tativ o da história como violência, como dom inação e com o catástrofe,
m erece transcrição:

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um


anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente.
Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas.
O anjo da história deve ter este aspecto. Seu rosto está dirigido ao
passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma
catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína, e
as dispersa aos seus pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os

306
BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia... cit., p. 225.
In tro d u ç ã o T e ó ric a à H is tó ria do D ireito 157

mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso


e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fe ­
chá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao
qual vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu.
Essa tempestade é o que chamamos progresso307.

C om o se n o ta, p a ra B en jam ín , com o aliás ele pró p rio aduz ao


fim da tese 7, trata-se de esco v ar a h istó ria a c o n trap elo 30 .
E , afinal, qual a id eia sobre tem p o ralid ad e que é co lo cad a p o r
B e n ja m ín p a ra d ar lu g ar a esta n o ção de tem p o ralid ad e linear, excludente
e ab ra ç a d a co m a no ção de p ro g resso ?
E u m a noção que, em prim eiro lugar, rom pe com a im agem geo­
m étrica da linha (ascendente) e com a ideia do tem po com o algo onde podem
se arm azenar dados, eventos e acontecimentos. O passado, para B enjam ín, só
p o d e se m ostrar ao presente num m om ento em que for visado p o r ele. E xpli­
cando m elhor: só num determinado m om ento em que o presente vivenciar o
que B enjam ín denom ina de “instante de perigo ”, no m om ento em que houver
u m a exigência presente de rem emoração, um a necessidade de redenção do
passado, é que este passado pode se revelar. O u seja: o passado se revela
quando é invocado pelo presente. N as palavras do próprio B enjam ín “ articu­
lar historicamente o passado... significa apropriar-se de uma reminiscência,
tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialista his­
tórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta... ao sujeito his­
tórico”309. O passado, assim, não pode ser considerado u m a cena pronta e
acabada, m as, ao contrário, ele dificilm ente se deixa fixar. "... (o) passado
perpassa, veloz. ... só se deixa fixar como imagem que relampeja irreversi­
velmente, no momento em que é reconhecido”310 e será irrecuperável sem que
se sinta visado pelo presente. A história é com posta de “um tempo saturado
de ‘agoras *’311, e cada u m destes “agoras” deve estar apto a fazer detonar o
“continuum” da história, e estar apto a irrom per n a tem poralidade e interrom ­
p e r a continuidade supostam ente “tranquila” da historiografia oficial. Ao
invés de apresentar um a im agem “eterna” do passado, o historiador com pro­
m etido com a história dos vencidos faz do passado um a experiência única312.

307 Idem, p. 226.


308 Idem, p. 225.
309 Idem, p. 224.
310 Idem, ibidem.
311 Idem, p. 229.
312 Idem, p. 231.
158 R icardo M arcelo P onscca

Tentando resumir e sim plificar esta visão benjam iniana, pode­


mos dizer que para Benjamín (e isto está anotado na tese 3) nada está
perdido para a história. Hlc diz que som ente a hum anidade completa­
mente redimida poderá apropriar-se totalm ente de seu passado e somente
para a humanidade redimida o passado é citável em cada um dos seus
momentos. E para isto a tem poralidade não pode ser considerada como
algo linear, acabado, coerente, mas sim com o algo que som ente se apre­
senta quando visado pelo presente, no m om ento em que o presente invo­
ca a sua redenção. Trata-se de um instante em que o tem po relampeja
fugazm ente (e só relampeja porque o presente p ressen tiu o índice do pas­
sado que o im pelia à redenção e pôde despertar nele as centelhas da espe­
rança313314). É um momento preciso de conexão entre p assad o e presente
que, segundo J. M. Gagnebin, transforma tanto passado quanto presente,
já que “ transforma o passado porque esse assume uma form a nova, que
poderia ter desaparecido no esquecimento; transforma o presente porque
este se revela como sendo a realização possível dessa promessa anterior,
que poderia ter-se perdido para sempre, que ainda pode se perder se não
a descobrirmos, inscritas nas linhas do atual"3U. E u m a tarefa (também
em preendida por Proust, na análise que dele faz B enjam ín) que “não con­
siste em reencontrar o passado em si - que talvez fosse bastante insosso
— mas a presença do passado no presente e o presente que já está lá,
prefigurado no passado, ou seja, uma semelhança profunda, mais forte
do que o tempo que passa e que se esvai sem que possamos segurá-lo"315.
Trata-se, enfim, de uma tarefa de envergadura ética e política: a
tarefa da rememoração. E a rem emoração aqui no sentido da busca de
algo mais concreto do que o contingente, o superficial, do que a vivência;
busca-se a própria experiência, naquela distinção, aqui já frisada, empre­
endida por Benjamín. Como ele aduziu no seu texto A im agem de
P ro u st, “um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na
esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites,
porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois"316. Mas
a conexão estabelecida entre passado e presente não é voltada para uma
espécie de “restauração” de um passado idílico, m as sim à transformação

313 Idem, p. 224.


314 GAGNEBIN. Jeanne Marie. Prefácio. In: BENJAM1N. W. Obras escolhidas:
magia... cit., p. 16.
31:> Idem, p. 15-16.
316 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia... cit.. p. 37.
Introdução Teórica à História do Direito 159

de um presente, com um a atitude revolucionária portanto, com vistas ao


futuro. É um a teoria historiográfíca revolucionária, definida como reto­
mada e rem emoração salvadoras de um passado esquecido, perdido, re­
calcado ou negado517 que enfatiza a intensidade do tempo histórico com a
sua virtualidade de poder fazer explodir o tempo cronológico que é pró­
prio da perspectiva dos dominadores317318.

8.4 HISTÓRIA E DIREITO

C om a adoção de tais pressupostos, existem diversas conse­


quências destas noções para o direito e, mais especificamente, para as
formas de encarar a temporalidade do direito.
Em prim eiro lugar, pode-se colocar a necessidade imperiosa de se
recusar e denunciar um a forma de encarar o passado jurídico tal como
existe em grande parte das “introduções históricas” dos manuais jurídicos,
quando o passado do direito é colocado exatamente como um a cena tida
como única e una, onde geralmente se lê, por exemplo, que o direito do
trabalho teria surgido de um processo natural, pacífico e linear de evolução
das relações de trabalho, de modo que a instância jurídica vai como que se
acom odando “naturalm ente” entre estas relações. Quase que todos os m a­
nuais trabalhistas, para citar outro exemplo, ao descreverem o movimento
dos trabalhadores, ignoram o papel do anarco sindicalismo brasileiro do
início do século, sempre apresentado-o como uma fase “preliminar” do
movimento operário, ou mesmo com um movimento de inconsequentes
baderneiros, sem se aperceber da importância deste veio ideológico na
constituição de direitos dos trabalhadores, que foi praticamente a única
inspiração ideológica do operariado no Brasil por quase três décadas319. Ou
veja-se então o caso dos manuais de direito comercial, que no mais das
vezes são feitos de m odo a apresentar a história das relações de comércio
hoje existentes com o o coroamento de toda uma formação econômica
(também “harmoniosa e pacífica ”), como que fingindo inexistir neste
campo toda um a realidade conflitiva e violenta entre mercados, grupos e

317 GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração... cit.. p. 2.


318 Idem, p. 10.
319 FONSECA, Ricardo M.; GALEB, Maurício. A greve geral de 17 em Curitiba:
resgate da memória operária. Curitiba: Ibert, 1996.
160 Ricardo M arcelo Fonseca

pessoas, e ignorando que na verdade o processo histórico se faz com lutas,


avanços e recuos, no bojo de urna enorme complexidade histórica.
Nestes casos a “trama histórica” é tecida de modo a resultar numa
historiografía hannónica, coerente, lógica e concatenada, ignorando a verda­
deira complexidade com que os fenômenos vão se apresentando no tempo,
num campo onde na verdade o único instante de efetiva harmonia está na
forma como esta própria historiografia descreve todos estes processos.
E isto faz com que o direito atual seja visto sim plesm ente como
um resultado natural, lógico e inevitável do processo histórico, quando na
verdade toda uma série de outras virtualidades históricas derrotadas ou
nào eleitas pela historiografía oficial estão latentes n a nossa realidade.
Q uer dizer: a história do direito (que seja evidentem ente orientada meto­
dologicamente por esta noção de temporalidade) acaba cum prindo a triste
tarefa de justificar e legitimar o direito atual.
Em segundo lugar deve-se desconfiar de qualquer explicação histó­
rica do direito que apresente o passado jurídico ocidental como uma tran­
quila justaposição (ou soma) das tradições do direito rom ano, do direito ca­
nônico e do direito germânico. Este tipo de interpretação está de braços da­
dos com a linearidade antes referida, ignorando a óbvia complexidade em
que o direito hoje vigente acabou por se impor historicamente .
Disso que se disse até aqui se extrai um a terceira conclusão im­
portante: já que a história do direito não é (ou pelo m enos não pode ser) um
instrumental legitimador e justificador do direito vigente, ela tampouco pode
ser considerada como um método que se presta unicam ente à tarefa auxiliar
de encontrar o “sentido das normas”, por meio de um a “interpretação histó­
rica”320321. E isto, dentre outras razões, porque a história do direito não é só a
história das leis: há, de fato, um nível “inferior” ao nível legislativo em que o
direito regula as situações concretas e se transform a em “vida” (como nas
sentenças, na atividade dos advogados, nas decisões dos órgãos administra­
tivos, na doutrina etc.)322. Além disto, existe toda um a gam a de recursos
regulativos “pluralistas” e não oficiais totalm ente estranhos à lei. Por outro

320 FONSECA, Ricardo M. Notas sobre a construção de um discurso historiográfi-


co jurídico. Jn: Revista da Faculdade de Direito. Curitiba, 28 (28): 1994-1995,
p. 254-255.
321 W1EACKER, Franz. História do direito privado moderno. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 1980. p. 3-4.
322 HESPANHA, António M. História das instituições: épocas medieval e moder­
na. Coimbra: Almedina, 1982. p. 18.
Introdução Teórica à H istória do Direito 161

lado, a lei mesma não pode ser tomada como objeto privilegiado de análise
histórica em vista de um fato singelo: no mais das vezes (e isto fica mais real
quanto mais se distancie da modernidade) existe uma distância sensível entre
o direito legislado e o direito praticado323.
Uma quarta consequência importante para o direito a partir deste
novo enfoque historiográfico já acenada acima: estar atento às infindáveis
fonnas regulativas que fazem parte do passado jurídico, onde a lei se impôs
como meio privilegiado muito recentemente. Isto é: impõe-se o reconheci­
mento do profiando pluralismo jurídico imperante em todo o passado jurídi­
co, num trabalho de relativização do monismo jurídico do ponto de vista
histórico e sociológico. A história, aqui, no dizer de Hespanha, cumpre a
função de produzir um conhecimento crítico e distanciado dos mecanismos
legislativos, reduzindo o efeito ideológico que consiste em crer tanto na sua
predom inância quanto na sua inevitabilidade, dando subsídios para pensar o
direito em sua dinâmica histórica real324. Isto implica em considerá-lo como
fora desta “linha” coerente e harmônica, que resulta inevitavelmente no di­
reito presente e na falsa ideia da legislação como única via histórica possível.
N ão se está querendo dizer que se tenha que se fazer um resgate
para o presente de formas arcaicas de regulamentação jurídica. Como diz
H espanha, é um a idealização supor que um direito primitivo seria a sede
do igualitarism o, da harm onia e da justiça. Pelo contrário, os processos
de constrangim ento comunitário são muitas vezes ordens opressivas e
sufocantes, que reproduzem muitas vezes os desequilíbrios locais de po­
der. M as a relativização do direito legal serve como um instrumental de
análise im portante para criticar a ordem jurídica vigente (monista) de
modo a capacitar a diagnosticar sua crise, através de uma proposta de
“redimensionamento da legalidade”, colocando em seus devidos termos a
evidência de que a lei é apenas uma das formas de controle social325.

8.5 C O N C LU SÃ O

A tem poralidade benjaminiana, portanto, rompe com a perspec­


tiva tem poral e historiográfica que compactua com o discurso dos vence-

323 HESPANHA, António M. História das ... cit.9p. 21.


324 HESPANHA. António M. Justiça e litigiosidade... cit., p. 29.
325 Idem, p. 28.
162 Ricardo Marcelo Fonseca

dores. B usca um a noção de rem em oração radical de um passado - através 1


da im plosão da tem poralidade tran q u ila d a h istó ria oficial - para que as '
vozes dos vencidos sejam reapropriadas.
As consequências para a co m p reen são do direito não são negli­
genciáveis, especialm ente considerando que p a ra o ju rista a história qua­
se sem pre cum priu o papel p ouco digno de leg itim ad o r e justificador da
norm atividade presente. A ru p tu ra com a lin earid ad e da historiografia
tradicional do direito significa reav iv ar o p ró p rio discurso crítico sobre a
form ação da instância juríd ica, além de im p licar n u m a importante relati-
vização de dogm as até hoje assentes entre os operadores do direito (tal
com o a inevitabilidade da lei, ou a inev itab ilid ad e de sua forma e seu
m odo de aplicação etc.).
A época presente dem onstra a existência de um a série de “mo­
mentos de perigo ” . A crise de legitim ação do E stado (agravada pelo fato
de que o próprio Estado, na sua atuação adm inistrativa, se tom a um dos
m aiores responsáveis pelo aviltam ento do sistem a jurídico), bem como
sua crescente incapacidade de dar conta do ponto de vista normativo a
to d a a gam a em ergente de relações sociais e econôm icas novas, bota a
sua própria essência em cheque. O direito, na tradição do nosso modelo
m onista, vem a reboque. U m certo discurso que se apressa em extrair
conclusões convenientes de todo este m om ento de transform ação global
aponta para a destruição do Estado e do D ireito. E justam ente nestes
“momentos de perigo ” que o esforço de reflexão deve se socorrer da ex­
plicação histórica para buscar a solução de seus im passes. É neste mo­
m ento que um pensam ento radical, crítico e transform ador deve impor o
seu espaço.
L em brando pela últim a vez as palavras de Benjam ín, estejamos
atentos que precisam ente neste m om ento - quando se deve estar atento às
im agens do passado, quando o passado dirige um apelo à nossa frágil
força m essiânica - é que a nossa geração e as p recedentes devem marcar
o seu encontro. E este apelo não pode ser rejeitado im punem ente326.

BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia... cit., p. 223.


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IN D IC E A L F A B E T IC O

• A lguns problem as na abordagem positivista.................................................................... 57


• A m biência histórica do positivism o...................................................................................39
• «A nnales». E scola dos «annales» e história do direito.................................. ............... 67
• «A nnales». Principais linhas dos «Annales».................................................................... 75
• «A nnales» e a história do direito: as dificuldades do diálogo inicial........................... 81
• «A nnales» e a história do direito: um enorme campo de conexões..............................83
• A proxim ação ao conteúdo da história do direito............................................................. 24

c
• C iências hum anas. Pressupostos do positivismo nas ciências h u m a n a s................... 48
• Classes sociais e ideologia................................................................................................... 97
• C onclusão..................................................................................................................................161
• Contrapontos à leitura de T hom pson..................................................................................104

• Definição. H istória do direito: um esforço de definição............................................... 33


170 Ricardo Marcelo Fonseca

• Direito. História e direito................................................................................................. 159


• Direito. História no direito e a verdade no processo: o argumento de Michel
Foucault............................................................................................................................... 109
• Direito Público. Ideia de «sociedade de segurança» e a história do direito público. 140
• Direito. Walter Benjamin, a temporalidade e o direito................................................. 149
• Direito e História.................................................................................................................109
• Direito no marxismo e a leitura de E. P. Thompson...................................................... 100
• Discurso histórico-jurídico. Michel Foucault e o discurso histórico-jurídico:
Estado e Poder.....................................................................................................................131

• E. P. Thompson. Contrapontos à leitura de Thompson................................................. 104


• E. P. Thompson. Direito no marxismo e a leitura de E.P. Thom pson.........................100
• Epistemologia. Pressupostos epistemológicos do positivismo.....................................43
• Escola dos «annales» e história do direito.....................................................................67
• Estado. Michel Foucault e o discurso histórico-jurídico:Estado e Poder....................131
. Experiência. Narração e a experiência........................... 150

. Foucault, a história e o processo.......................................................................................124


• Foucault e a história........................................................................................................... 134

• História. Direito e H istória.............................................. 109


• História. Foucault, a história e o processo..... ......................... 124
• História. Foucault e a história........................................ .134
Introdução Teórica à História do Direito 171

. História. Narração, temporalidade e história................................................................152


• História. Positivismo na história e seus pressupostos................................................. 51
• História. Resposta de Foucault para a história............................................................. 116
. História do direito. «Armales» e a história do direito: as dificuldades do diálogo
inicial................................................................................................................................ 81
• História do direito. «Armales» e a história do direito: um enorme campo de
conexões........................................................................................................................... 83
• História do direito. Delimitando o tema................................................................ ......89
• História do direito. Materialismo histórico e história do direito.................................89
• História do direito. Pensar a história do direito: a questão do método...................... 26
• História do direito. Positivismo e a história do direito................................................ 61
• História do direito. Positivismo, «historiografia positivista» e história do direito... 39
• História do direito. Uma primeira aproximação ao conteúdo da história do
direito............................................................................................................................... 24
• História do direito público. Ideia de «sociedade de segurança» e a história do
direito público.................................................................................................................140
• H istória do direito: um esforço de definição...............................................................33
• História do movimento.................................................................................................. 68
• História e direito..............................................................................................................159
• «História» e o percurso subjacente a este livro...........................................................30
• História no direito e a verdade no processo: o argumento de Michel Foucault....... 109
• História no direito e a verdade no processo: o argumento de Michel Foucault.
Para finalizar................................................................................................................... 128
• «História positivista» e seu contexto histórico e teórico.......................................... 53
• Histórico. Ambiência histórica do positivismo........................................................... 39
• Histórico. «História positivista» e seu contexto histórico e teórico.......................... 53
• Histórico do direito. Escola dos «annales» e história do direito................................67
• Historiografia. Marxismo e historiografia................................................................... 90
• «Historiografia positivista». Positivismo, «historiografia positivista» e história do
direito................................................................................................................................ 39

• Ideia de «sociedade de segurança» e a história do direito público........................... 140


172 Ricardo Marcelo Fonseca

• Ideologia. Classes sociais e ideologia....................................................................... ^


• Introdução: pensar o fazer para não fazer sem pensar............................................... 2j

• Legado................................................................................................................................... 149

• M arxismo. Direito no marxismo e a leitura de E. P. T hom pson................................. 100


• M arxism o e historiografia..................................................................................................90
• M aterialismo histórico e história do direito..................................................................... 89
• Metodologia. «História» e o percurso subjacente a este livro......................................30
• Metodologia. Pensar a história do direito: a questão do m étodo................................. 26
• Metodologia. Teoria e metodologia: esclarecimentos necessários............................. 29
• M ichel Foucault. História no direito e a verdade no processo: o argum ento de
M ichel Foucault.................................................................................................................. 109
• M ichel Foucault. História no direito e a verdade no processo: o argum ento de
M ichel Foucault. Para finalizar......................................................................................... 128
• M ichel Foucault. Resposta de Foucault para a história............................ 116
. Michel Foucault e o discurso histórico-jurídico: Estado e P o d er................................131
• Movimento. História do movimento.................................................................................68

• Narração e a experiência........................................... ................ 150


• Narração, temporalidade e história.............................. ................... 152
• Nota prévia.............................................. ..... 17
_____________Introdução Teórica à História do Direito 173

• Passado jurídico. Problemas na abordagem do passado jurídico............................... 111


• Pensamento. Introdução: pensar o fazer para não fazer sem pensar.......................... 21
• Pensar a história do direito: a questão do método.........................................................26
• Poder. Michel Foucault e o discurso histórico-jurídico: Estado e Poder...................131
• Por que história do direito?............................................................................................... 21
• Positivismo. A lguns problemas na abordagem positivista...........................................57
• Positivismo. A m biência histórica do positivismo......................................................... 39
• Positivismo. «História positivista» e seu contexto histórico e teórico....................... 53
• Positivismo. Pressupostos do positivismo nas ciências humanas............................... 48
• Positivism o e a história do direito................................................................................... 61
• Positivism o e «positivism os»............................................................................................ 40
• Positivism o, «historiografia positivista» e história do direito..................................... 39
• Positivism o na história e seus pressupostos................................................................... 51
• Pressupostos. Positivismo na história c seus pressupostos.......................................... 51
• Pressupostos do positivism o nas ciências humanas..................................................... 48
• Pressupostos epistem ológicos do positiv ismo................................................................ 43
• Principais linhas dos «A nnales»....................................................................................... 75
Problemas na abordagem do passado jurídico............................................................... I ] |
Processo. Foucault, a história e o processo...................................................................... 124
Processo. História no direito e a verdade no processo: o argumento de Michel
Foucault..................................................... ............................................................................ 109
Processo. História no direito e a verdade no processo: o argumento de Michel
Foucault. Para finalizar.........................................................................................................128
«Projeto» foucaultiano.......................................................................................................... 131

Referências.............................................................................................................................163
Reflexão. Introdução: pensar o fazer para não fazer sem pensar................................2 1
Resposta de Foucault para a história........... .....................................................................11°
174 R ic ard o M arcelo F o n se ca

s
• «Sociedade de segurança». Ideia de «sociedade de segurança» e a história do
direito p úblico....................................................................................................................... 140

• T em poralidade. Narração, tem poralidade e história..................................................... 152


• Tem poralidade. W alter Benjam in, a tem poralidade e o direito..................................149
• T eoria e m etodologia: esclarecim entos necessários......................................................29

u
• U m a prim eira aproxim ação ao conteúdo da história do direito..................................24

• V erdade. História no direito e a verdade no processo: o argum ento de Michel


F o u c a u lt.................................................................................................................................. 109
• Verdade. História no direito e a verdade no processo: o argum ento de Michel
Foucault. P ara finalizar........................................................................................................128

w
• W alter B enjam in, a tem poralidade e o direito................................................................^
Biblioteca de Historia do Direito

OBRAS JÁ EDITADAS:
1. História do direito em perspectiva: do antigo regime à modernidade
- Ricardo Marcelo Fonseca eAirton Cerqueira Leite Seelaender (orgs.)
2. Hércules confundido: sentidos improváveis e incertos do constitu­
cionalismo oitocentista - o caso portugês - António Manuel Hespanha
3. Introdução Teórica à História do Direito - Ricardo Marcelo Fonseca
4. Judiciário e Cidadania na Constituição da República Brasileira -A n -
drei Koerner
5. A Política perdida: ordem e governo antes da modernidade - António
Manuel Hespanha

PRÓXIMOS LANÇAMENTOS:
6. Soberania, representação, democracia: ensaios de história do pensa­
mento jurídico - Pietro Costa
7. Paixões do jurista: am o r, m em ória, melancolia, imaginação - Carlos
Petit (org.)
8. História do direito p úblico: estudos e conferências - Airton Cerqueira
Leite Seelaender
9. A Constituição econômica brasileira: história e política - Filomeno
Moraes

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