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Paolo Cappellini
Catedrático de Historia do Direito da
Università degli Studi di Firenze
SUMÁRIO
NOTA PR F M A ...... J?
cani,ocs pili»! nao uni iiiis toniuçoes siinpliliuulonis (jnc certos resgates
históricos do lincilo Ululo la/eni anula ho|e, ;io iiic/, iii() tempo ern que
aponta alguns instrum entos il;is correntes liisloi iopràlicas diselliidas que
podem sor litcis un abordagem do passado jurídico. Assim, a finalidade é
antes descritiva do algum as lornias loóricas do ahordar o passado do que
prospcctiva do soluções, estratégias ou receitas. Nilo c finalidade do livro
“ensinar” ninguém a fazer história do direito, c por isso a discussão teórica
do algum as osoolas que são propriamente historiográfico-jurídicas (discus
são que poderia ser útil, mas deveria ser feita em outra sede) não é objeto
desse livro, que tem eseopos muito mais estreitos. Por tudo isso, esse é um
livro destinado aos estudantes ou ao profissional ou estudioso do direito
que eom eee agora a interessar-se no estudo da história jurídica.
D e todo m odo, em bora a finalidade da obra seja de fato modesta,
acredito que a m eta para a qual pretende contribuir tenha lá sua im portân
cia: creio verdadeiram ente que a consolidação de uma história do direito
didática e cientificam ente sólida no Brasil só pode ser feita a partir do m o
m ento em que seja definitivam ente deixada de lado essa visão tradicional,
m u seo ló g ica e reducionista do passado e se adquira consciência de que
co m p reen d er o passado é uma operação complexa que tam bém deve ser
avaliada internam ente, ou seja, a partir do ângulo teórico-m etodológico. Se
a leitura dessas páginas de algum modo contribuir para isso (quem sabe
p o ssib ilitan d o novos voos) o autor se considerará satisfeito.
#####
E ste liv ro foi g estado lentam ente. D esde que cursei a faculdade
de h istó ria sem p re tiv e enorm e afinidade com a “teoria da h istó ria” e não
foi um a caso que, vários anos depois, tivesse escrito m inha dissertação de
m estrad o (em 1997) no territó rio da “teoria da histó ria do d ireito” . M uita
coisa aco n te c e u d esd e então, m as a preocupação com a reflexão teórica
sem pre se m an te v e em tu d o o que vim fazendo a p artir dali. A reunião
dos tex to s que com p õ em este livro é, então, de certa m aneira, um teste
m unho de um certo percu rso .
E, com o em todo percurso, cruzei com muitas pessoas que, nesta
discussão da teoria da história do direito, foram-me cruciais. Daí a necessi
dade de alguns registros. O prim eiro deles, institucional, ao CNPq, que vem
financiando m inhas pesquisas. Para com eçar com os registros pessoais, devo
dizer, p o r ju stiça, que foi A na M aria B urm ester quem me introduziu neste
continente, quando eu era ainda estudante. Luiz Fernando Coelho, Celso
«>0 Ricardo Marcelo Fonseca
o sen magnífico direito), c não será som ente tim saber passado que só
sen e pura ser observado na medida em que se pode ser espelhado e re
fletido nos institutos jurídicos vigentes, buscando justificar, dessa forma
nem sempre convincente, a sua atual existencia. De fato, infelizmente o
direito romano (que é urna disciplina im portantíssim a na formação do
jurista, e que desafortunadamente vem sendo crescentem ente desvalori
zada na formação dos jovens bacharéis) é m uitas vezes ensinado como se
fosse um complemento ao estudo do direito privado vigente, uma espécie
de demonstração de como o direito atual, afinal de contas, soube apro
veitar muito bem o velho legado latino.
Dessa forma, se excetuarmos esse aproveitam ento duvidoso que
se faz do direito romano, pouca coisa sobra de todo o passado histórico
no trabalho intelectual que fazem os juristas na com preensão do direito.
Geralm ente a idade média é solenemente desprezada com o o “período
negro" da história do ocidente - e que nada tem a nos ensinar de útil - e
toda a conflitualidade que caracteriza a m odernidade desde seus primor
dios é vista como um processo raso e tranquilo em que a razão vai se
im pondo até chegar placidamente na sofisticação da elaboração jurídica
moderna. E isso pra não falar do modo como se ignoram as especificida
des da história brasileira (iniciada por um processo de conquista e de
exploração, pela eliminação dos índios e pela m ancha da escravidão, que
deixou mais sinais nas nossas instituições e em nosso direito do que se
pode inicialmente suspeitar) na compreensão do direito.
Certamente existem razões históricas p ara isso (que o presente
trabalho, todavia, não tem a intenção de enfrentar). D e todo modo, esse
cenário demonstra como é necessário perquirir as razões da presença ou
da ausência da história do direito como saber no ensino jurídico. Mas
convém desde logo avançar na direção da com plexidade que um questio
namento sobre a história do direito pode suscitar.
5
Vide capítulo 6.
2(y Kiciirdo Marcelo Fonseca
D iante desta situação, de fato parece-nos que urna das prim eiras
tarefas é justam ente rediscutir os pressupostos teóricos e m etodológicos
desta disciplina, de modo a capacitá-la a enfrentar discussões históricas
* relevantes, alterando o foco onde tradicionalmente os holofotes teóricos
se dirigem. Afinal, nas palavras de Hespanha, a “ adopção pela historio
grafia jurídica de um modelo metodológico cientificamente fundado re
presenta, por sua vez, a aquisição de um novo sentido para esta discipli
na no quadro das disciplinas sociais e jurídicas - não um sentido apolo
gético, não um sentido mistificador, mas um sentido libertador”12
14 De próxima publicação.
FONSECA, Ricardo Marcelo. Positivismo, a “história positivista” e a história
do direito. In: Argumenta. Fundinopi, v. 10, p. 143-166, 2009.
32 Ricardo Marcelo Fonseca
publicado em 200016, busca uma análise mais recortada sobre sua análise
do processo e seu papel dentro das diversas “epistemes”; já o segundo,
publicado em 200617, partindo de uma avaliação mais geral das contri
buições do filósofo francês para o conhecimento histórico, termina por
abordar suas contribuições específicas para a análise histórica dos apara
tos públicos do séc. XIX. Finalmente, sobre Walter Benjamín, reproduz-
se o texto Walter Benjamín, a temporalidade e o direito, publicado em
199918, e que foi resultado da participação em um evento, no ano ante
rior, sobre A Escola de Frankfurt e o direito.
Como se percebe, os textos foram concebidos e escritos em
épocas diferentes. Isto pode explicar certas repetições ocasionalmente
ocorridas e algumas diferenças de tons, ênfases e abordagens. Embora a
reunião de todos estes textos, em princípio, possa parecer um mosaico (de
temas, de tempos e mesmo de etapas e maturidades diferentes do próprio
autor), creio que sua junção agora pode, como dito antes, desempenhar
uma função útil para a tarefa (que continuo achando crucial) de pensar
em termos teóricos a história do direito.
HISTÓRIA DO DIREITO:
UM ESFORÇO DE DEFINIÇÃO
“a história fa z sentido
isso li num livro antigo
que de tão ambíguo
faz tempo se foi na mão de algum amigo
logo chegamos à conclusão
tudo não passou de somenos
e voltaremos à costumeira confusão
Paulo Leminski
que se adota. Sendo uma área que oscila entre mais de um camp0
conhecimento, a própria definição disciplinar da história do direito? ^
se mostrar bastante controversa. Mas um critério aparentemente vá|°?
consiste em considerar como efetivamente histórico-jurídicos os estud °
que centram as suas problemáticas de análise (suas hipóteses, seu “0^
jeto", para usar uma expressão hoje epistemológicamente gasta)
questões efetivamente jurídicas. Ou seja, o direito ocuparia o centro da
preocupação teórica destes estudos, e não seria um mero instrumento de
analise. Como exemplos de usos “instrumentais” do direito (e quep0r.
tanto não seriam rigorosamente estudos histórico jurídicos), temos as
análises nas quais a semântica do direito (seus conceitos, sua doutrina) é
"utilizada” por determinado estudo para problematizar uma questão mais
extema ao direito (como a política, a sociedade, a filosofia) ou então
quando fontes jurídicas (sobretudo processos judiciais no passado) são
usadas como meios para resolver e compreender questões que não são
centralmente jurídicas (inquisição ou escravidão, por exemplo). Toman
do ainda mais explícitos os exemplos: se um sociólogo trabalha com
problemáticas como “liberdade” ou “democracia”, ou então se um histo
riador baseia todo o seu esforço de compreensão sobre um dado período
da escravidão brasileira em fontes judiciais, tais fatos, por si sós, não
transformam estes estudos em “história do direito”. Ao contrário, quan
do a problemática da pesquisa centra-se, de modo não instrumental, em
analisar o passado de questões como “codificação”, “constitucionalis
mo”, “liberdades” (para citar apenas alguns exemplos), e as estratégias
de investigação levam em conta, em grande medida (embora não exclu
sivamente), uma compreensão e análise interna destas fontes (seja elaa
lei, a doutrina ou o costume no passado, por exemplo), estamos diante de
um estudo de história do direito. Tomando claro o que se quer dizer
pode-se, por exemplo, tomar uma análise de uma lei para um estudo que
seja pertencente à história social ou econômica (exemplificando: anali
sar-se instrumentalmente a Lei de Terras de 1850 para compreender uma
etapa da história fundiária brasileira), ou para uma análise que seja histo-
riográfico-jurídica (continuando o exemplo: toma-se a Lei de Terras de
1850 para compreender como o direito interveio na modernização da
ideia de propriedade moderna no Brasil).
E claro - repete-se - que esta é uma distinção precária, o quee
normal ocorrer numa disciplina que transita por vários saberes. E é ^
critério - esclareça-se - que não quer caminhar de modo algum em dfi'
ção a um “encastelamento” da disciplina na área do direito e seu co®e
5
__ lntroJuyao Teóricii ;i I listona do Direito 35
quente isolam ento com relação às áreas afins (corno a história em geral, a
filosofía, a sociologia etc.). Panto c assim que existem nomes que traba
lham em faculdades de história ou ciencia política (e não dc direito) que
podem ser legitim am ente considerados historiadores do direito. Se o his
toriador do direito nao navega por outras áreas e se isola apenas no saber
ju ríd ico , ele corre o risco efetivo de produzir uma historiografía jurídica
pouco arejada e até m esm o estéril. Apesar de tudo isso, o critério apre
sentado é cap az de divisar práticas de pesquisa, modos de atuação de
investigação e, sobretudo, um a atitude com relação ao “objeto” de análise
- o “ d ireito ” - b astan te distintos. E tais distinções não parecem ociosas.
A p re o c u p a ç ã o com a história do direito, no âm bito europeu,
nào é re c e n te . B a sta lem b rar (dentre tantos outros exem plos possíveis) o
e sfo rç o d a c h a m a d a “escola culta do direito” (ou “humanismo jurídi
co ” ), n o séc. X V I, n a controvérsia com os juristas m edievais, em “histo-
ric iz a r” o le g a d o rom ano. M as é no séc. X IX que a história do direito
(c o m o p ra tic a m e n te todas as ciências hum anas) busca ganhar um esta
tu to b a s ta n te esp ecífico e “ científico” enquanto área do saber. E claro
q u e ta is e sfo rç o s n ão são “n eutros” ou isolados das circunstâncias histó
ric a s q u e os en v o lv em . Tem -se, de um lado, nos oitocentos, o uso da
h is tó ria d o d ire ito com o m eram ente justificadora dos resultados da
d o g m á tic a (c o m o oco rria no seio da pandectística alem ã - usus moder-
nus pandectaruní)\ de outro, com as revoluções burguesas, a histo rio
g ra fía ju r íd ic a in sistia n a naturalidade na nova ordem , em contraponto à
irre m e d iá v e l h isto ric id a d e da ordem social e p olítica pré-
r e v o lu c io n á r ia 19. D e q u alq u er m odo, a história do direito desde então é
d is c ip lin a q u e c o m p u n h a os currículos das faculdades de direito da E u
ro p a e q u e, p o rta n to , desem p en h av a um papel im portante na form ação
dos ju r is ta s (m a lg ra d o suas fortes oscilações na sua m etodologia e nos
seus c o m p ro m isso s te ó rico s e ideológicos).
S eja co m o for, ao longo do séc. X X (sobretudo a partir dos anos
60), esp e c ia lm e n te n o âm bito europeu, a historiografia jurídica buscou
en fren tar suas crises e dilem as m etodológicos e avançou significativa
m en te em ou tra direção. A utores com o A ntônio M anuel H espanha (Por
tu g al) e P ao lo G rossi (Itália), para ficar apenas com exem plos em blem á
ticos, acab aram p o r dem o n strar uma outra função para a historiografia
ju ríd ic a : n ão m ais co n stru ir retrospectivam ente uma “ linha do tem po” do
direito (geral ni en te eom com eço na an tig u id ad e rem ota, ou então, aon^
nos. desde a época romana clássica), eom a finalidade mal disfarçada de
colocar o presente num ponto de chegada inevitável de todo utn processo
de preparação e "lapidação" histórica; não m ais isolar a historiografía
jurídica numa função m eram ente "in tro d u tó ria” (e, em certo sentido, ser*
vil) eom relação à dogmática jurídica.
Ao contrário, o estudo do passado do direito passa a importar
justam ente para, ao dem onstrar as profundas diferen ças existentes entre
experiencias jurídicas do passado e da atualidade, te r a capacidade de
relativizar o presente, contextualizar o atual, "desnaturalizando-o” e co-
locando-o na contingência e na provisoriedade h istó rica a que ele perten
ce. A análise do passado do direito passa a servir para, ao afirmar a histo
ricidade que é ínsita ao direito (que não é, portanto, algo que sobrepaira
de modo isolado da realidade ou que é m ero “efeito ” da economia ouda
política), demonstrar aos juristas das áreas da "do g m ática jurídica” (civi
listas, penalistas, processualistas etc.) que seus saberes, para serem bem
m anejados, dependem fundamentalmente de u m a responsável análise
diacrônica. Não mais uma mera e anacrônica "introdução histórica” -
habitual nos manuais e mesmo nos trabalhos m ais acadêmicos - que
acentue principalmente as continuidades e perm anências (frequentemente
de modo artificial) ao longo do tempo, mas, ao contrário, a história do
direito passa a demonstrar que uma análise teórica de qualquer dos “ra
mos do direito” deve ser atravessada pela história (visto que os conceitos
e instituições jurídicas são, eles mesmos, em bebidos de historicidade) e
sua boa compreensão depende de sua inscrição tem poral.
Em outros termos, a história do direito p assa a ter uma fimçào
crítica, desmistificadora do formalismo ju ríd ico que busca sempre “iso
lar” o direito de seu tempo, funcionando desse m odo como “consciência
crítica” dos demais juristas20.
No Brasil, ao contrário da Europa, a disciplina "história do di
reito” é relativamente recente nas faculdades jurídicas. Desde as funda
ção das primeiras faculdades de direito no Brasil, em 1827, até o final do
Império, esta disciplina não estava incluída nos currículos. Foi somente
com a proclamação da república e com a cham ada " Reforma Benjamín
C o n s t a n no final do séc. XJX, que ela surge na fonnação dos juristas
POSITIVISMO, “HISTORIOGRAFIA
POSITIVISTA” E HISTÓRIA DO DIREITO
“tudo dito,
nada feito,
fito e deito
Paulo Leminski
eido com o o fu ndador dessa corrente de pensam ento), que seria um a espé
cie de p o sitiv ism o filosófico (do qual. de m odo curioso, o ch am ad o “posi
tivismo h i s t ó r i c o do qual adiante se com entará, irá se afastar em vários
aspectos). E xiste um positiv ism o sociológico, que é aquele de Em ile
D urkheim (que, tam bém paradoxal m ente, m ais tarde inspirou grandem ente
alguns histo riad o res trem en d am en te “ antipositivistasA com o M arc Bloch).
N o âm bito ju ríd ico , qu an d o se fala em “positivismo ” , pen sa-se em prim eiro
lugar (nào sem certa controvérsia, aliás) na Escola da E xegese francesa,
integrante do m o v im en to do positivism o juríd ico , com o consta na co n h eci
da obra do filó so fo italiano N orberto B obbio2223. M as um a pesq u isa acurada
veria p o u co s reflex o s do positivism o filosófico nesse âm bito ju ríd ic o - até
porque esse “p o sitiv ism o ju ríd ic o ” é, em certa m edida, até m esm o an terio r
ao ch am a d o “positivismo filosófico ” de Comte.
E ssa falta de diálogo ou, às vezes, até m esm o u m a a u sên cia de
g en ealo g ia en tre essas várias form as de positivism o, tam bém é m arcad a
no âm b ito do co n h ecim en to histórico: aquilo que com um ente se co n h ece
com o “positivismo histórico ” (leia-se, o m odo de se fazer h istó ria a p artir
do m o d e lo de L e o p o ld vo n R anke, de quem falarem os m ais d etid am en te
ad ian te), tin h a u m a declarad a aversão aos grandes m o d elo s filo só fico s
criados n o séc. X IX , incluindo-se nesses m odelos filosóficos as a b straçõ es
de A u g u sto C om te! A partir daqui, alguns autores inclusive c h eg am a
sustentar a im p ro p ried ad e de se denom inar a história “ rankeand\ que
tam b ém é c o n h e c id a com o “história tradicionar22 de histó ria p o sitiv ista.
É o caso de R o n a ld o V ain fas 2425e de H elio R ebello C ardoso Jr. que, co m
razão, d e m o n stra m com o essa discussão é um p ouco m ais m a tiz a d a do
que p arece a p rin cíp io . C om efeito, percebe-se que a h istó ria “rankeana” é
carregada d e in flu ên cias um tanto heterodoxas, já que aquilo que v iria a
ser ch am ad o n a A lem an h a de “positivismo históricó> \ acab o u se em be-
29
GIDDENS, Anthony. Studies in social and political theory. Londres: Hutchin
son, 1980; apud SANTOS, Boaventura Souza. Introdução a uma ciência pós-
moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989. p. 52.
M Ricardo Marcelo Forneça
33
Idem , p. 17 e ss.
liifiO'liKf;io I r ú ii( ;i ;i I lr,tó»i;i do IX o Ho 40
do au to r, o q u e a g o ra to m a m o s do e m p ré stim o , é d e p e n d e n te (o u polo
m enos é m u ito fa c ilita d a ) pelo a d e q u a d a c o m p re e n sã o doo c h a m a d o s
“pressupostos episf('molóyJcos”7 (jue a c a b a m o s do en u n ciar.
3.4.1. À socied a d e é regida por leis na lurais, etern a s, im u tá
veis, in d ep en d en tes da vontade e da açáo hum anas, e na vida social
reina um a h arm on ia natural. C o m o se vò, o p o n to d e p a r tid a p a r a a
d e m a r c a ç ã o d o m é t o d o d a s c iê n c ia s p a ra o p o s itiv is m o é a e x is tê n c i a d e
um n a tu r a li s m o n a s o c i e d a d e , q u e é c a lc a d o s o b re le is im u tá v e i s e e t e r
n as. A s s im c o m o a n a tu r e z a s e ria re g id a p o r a lg u m a s le ís i n v a r ia n t e s
(c o m o a lei d a g r a v i d a d e o u d o m o v im e n to da te rra em to r n o d o s o l ) , q u e
in d e p e n d e m d a v o n ta d e e d o d e s e jo d o h o m e m , ta m b é m a s o c i e d a d e é
d o ta d a d e le is in v a r iá v e i s , “ n a tu r a is ” , q u e e s c a p a m a q u a lq u e r fo r m a d e
c o n d ic i o n a m e n t o h u m a n o .
34
Idem, p. 26.
Introdução Teórica à História do Hiivilo 51
tn;i•,,> j \ i.ito. cst.ís vhiiís entidades que sáo concebidas corno oníologi-
v.m unk ^cp.nadas. dc\cm assim perm anecer a fim de que o historiador
vsvijcitor atinja os fatos históricos (objeto) de m odo “ im parcial .
3 .5 . 2 . A H istória existe em si, o b jetiv am en te, tem m esm o um a
dada form a, um a e stru tu ra definida que é d ire ta m e n te acessível ao
conhecim ento. Mais uma vez se observa com este pressuposto eloquente
como, para o positivismo, a história existe em si e que a história com o ob
jeto do saber (como passado histórico a ser reconstruído) existe indepen-
dentemente da percepção que o sujeito, o historiador, dá a este objeto. A o
vislumbrar até mesmo uma forma e uma estrutura no objeto (no caso, o
passado histórico), leva-se o pressuposto da exterioridade do real até as
últimas consequências. E a segunda parte deste pressuposto rem ete ao fato
do conhecimento ser representação do real: de fato estas determ inadas
“ formas e estruturas” do passado histórico são consideradas com o sendo
diretamente acessíveis ao conhecimento. Ou seja: já que existe - em m odo
perfeitamente delimitado, cristalino e definido - esta configuração histórica
em si mesma, é consequente a conclusão no sentido de que toda esta es
trutura histórica (real, identificável) pode ser, toda ela, captada pelo saber.
Assim, se o saber “objetivo” (aquele livre dos resquícios axiológicos do
sujeito) tem a vocação de ser um espelho fiel do próprio objeto (lem brem o-
nos mais uma vez da paisagem e do espelho), o conhecimento histórico (ou
“ saber histórico” ou “ciência da histórid\ pouco im porta a term inologia),
para a corrente positivista, tem a capacidade de espelhar o “passado histó
rico” de modo fiel (desde que, é claro, sejam seguidos corretam ente os
passos “científicamente” recomendados).
3.5.3. A relação cognitiva é conforme um modelo mecanicista.
O historiador registra o fato histórico de maneira passiva, como o es
pelho reflete a imagem do objeto. Este pressuposto explicita a cham ada
“teoria do reflexo”, cunhada por Ranke - além de explicitar, com o se pode
notar facilmente, toda a discussão epistem ológica do positivism o. A borda a
ideia de que o passado histórico, como objeto de análise da nossa relação
de conhecimento, tem apenas que ser refletido, cabendo ao historiador
desempenhar nesse processo apenas um a função m ecânica. O historiador
não deve pretender “recriar” a paisagem que lhe está adiante (o passado),
mas, pelos passos metodológicos aconselhados, fazê-lo refletir fielm ente,
fazer com que a realidade se apresente e tudo isto sem a interferência sub
jetiva, sem a interferência dos valores deste historiador. V oltando ainda
uma vez àquela metáfora já tantas vezes repetida, o historiador, ao invés de
ser o “pintor” da paisagem que lhe afronta, deve ser tão-som ente aquele
Introdução Teórica à História do Direito 53
sos. Av|u¡ nào é o lugar pnra intentar um discurso exaustivo a este propósi
to. lodavia, algumas das críticas centrais a esse m odo “ran k ean o ” de vis
lumbrar o passado serào aqui tecidas, até porque boa p arte d a historiografia
subsequente constrói suas alternativas a partir das críticas que são formula
das a essa "história tradicional”. Assim sendo, nos lim itam os a apontar três
problemas, aqui considerados centrais, da abordagem positivista da histó
ria: o modo pouco matizado como se dá a relação sujeito-objeto; o pressu
posto (tomado de modo absoluto) da necessidade de um a neutralidade axio-
logica no conhecimento; o excessivo valor dado ao evento singular na sua
abordagem, com as consequências que daí derivam.
Para o positivismo, a primeira questão acim a m encionada - a re
lação exeessivamente linear e simplista que é estabelecida entre sujeito e
objeto demonstra, paradoxalmente, que na verdade essa corrente teórica
nào coloca de um modo sério o problema do sujeito e do objeto. E isso
porque entre sujeito e objeto efetivamente há um problem a - e dos mais
complexos. O positivismo escapa desse dilema, ignorando esse aspecto
central da discussão do conhecimento. Exatamente por isso é que, nesse
sentido, o positivismo pode ser considerado uma forma de dogm atism o48,
pois o dogmático, em termos de teoria do conhecim ento, é exatamente
aquele que ignora o difícil problema do conhecimento, deixando-o de lado
ou eolocando-o “debaixo do tapete”. De fato, para o positivism o este pro
blema simplesmente não é colocado pois, ali, há uma espécie de autoevi-
dência do objeto, que poderia ser apreendido pelo sujeito de um modo
com pleto e definitivo - o que é muito tributário, como já dissem os, de uma
certa forma do séc. XIX de encarar a questão do saber e da ciência. O su
jeito (historiador) teria uma espécie de consciência absolutam ente autóno
ma e potente o suficiente para, a partir de uma perspectiva completamente
externa ao objeto (o passado histórico), percebê-lo na sua integralidade e
conhecê-lo nessa sua exterioridade - de modo que o historiador será capaz
de conhecer o passado - parafraseando Ranke - "como ele foi \
Todavia, as coisas se apresentam de um m odo um tanto mais com
plexo. Afinal, o passado histórico não se apresenta como um espetáculo di
ante de um observador submisso e neutro, mas implica, até certo ponto,
numa construção do próprio sujeito (historiador)49. O historiador do direito
57
Idem, p. 18.
Introdução T eó rica à H istória do D ireito 63
58 H espanha dá um exemplo da falsa continuidade que está por detrás desta crença:
“O conceito de família, embora use o mesmo suporte vocabular desde o direito
romano (familia), abrangia, não apenas parentelas muito mais vastas, mas
também não parentes (como os criados ou os escravos [fam uli]) e até os bens
da “casa”. O conceito de obrigação como “vínculo jurídico” aparece com o di
reito romano; mas era entendido num sentido materialístico, como uma vincu-
lação do corpo do devedor à dívida, o que explicava que, em caso de não cum
primento, as consequências caíssem sobre o corpo do devedor ou sobre sua li
berdade (prisão por dívidas). A palavra “Estado ” (status) era utilizada em re
lação aos detentores do poder (status rei romanae, status regni); mas não con
tinha em si as características conceituais do Estado (exclusivismo, soberania
plena) tal como nós o entendemos” . (HESPANHA, António M. P a n o ra m a his
tórico d a c u ltu ra ju ríd ic a eu ro p éia, p. 19)
59 Idem.
64 Ricardo M arcelo F on seca
<'1 Só para citar um importante estudo que cita a experiência histórica medieval
(entre tantas outras que poderiam ser citadas, veja-se GROSSI. Paolo. Un diritto
senza Stato (la nozione di autonomia come fundamento della costituzione giuri
dica medievale. In: Quaderni Fiorentini per la Storia de Pensiero Giuridico
Moderno. XXV (1 ^ 6 1 p. ZeT.
UI SP-WHA. Antonio M Panorama histórico da cultura jurídica europei*
p. 36
1
ESC O LA DOS “A N N A L E S” E
HISTO R IA DO D IR EITO
69
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1 9 9 4 .1.1, p. 137.
68 Ricardo Marcelo Fonseca
77 Idem, p. 25-26.
78 BOURDÉ, Guy; MARTIN, Hervé. Op. cit ., p. 120.
79 RANCIÈRE, Jacques. Os nomes da história: um ensaio de poética do saber.
São Paulo: Educ/Pontes, 1994. p. 51.
80 BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio,
França e Inglaterra. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
81 Idem, p. 45.
82 Traduzido para o português: BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa: 70,
s/d.
Introdução Teórica à H istória do D ireito 2]_
Pincroiyance au XVTe siècle: la réligion de Rabelais (O problem a da
incredulidade no séc. XVI: a religião de Rabelais83). E ste livro, ju n ta
m ente com “Os Reis Taum aturgos de B loch, foi o p rincipal insp irad o r
da história do m ental. A tem ática central da obra é a d em o n stração da
im possibilidade de se colo ca r o problem a da descrença no séc. X V I (já
que diversos autores, com o L efranc, intentam dem onstrar que R abelais
seria, já n esta época, um livre p en sad o r ateu). P ara F ebvre o ateísm o no
séc. X V I im p licav a apenas um desvio com relação à relig ião oficial, que,
por seu lado, o cu p av a todas as esferas da vida q uotidiana das pesso as: ela
controlava os b atism o s, os casam entos, os enterros, im p u n h a p re scriçõ es
alim entares e in terd ito s sexuais, fixava o calendário dos dias de trab alh o
e dos feriad o s e tc .84. D entro deste sistem a o ateísm o é in co n ce b ív el.
A ssim , os g racejo s aparentem ente heréticos que ornam os ro m a n c e s de
R abelais (esp ecialm en te “ Gargântua” e “ Pantagm eF ) nada m ais são,
conform e d e m o n stra Febvre, do que fam iliaridades anódicas freq u e n te s
nos d iscu rso s dos franciscan o s da época, que não podem ser to m a d a s de
nenhum m o d o co m o ateias. Em sum a. Febvre critica os h isto ria d o re s que
o p reced e ram n este aspecto por um im perdoável anacro n ism o : ler um
texto do séc. X V I com os olhos de um hom em do séc. X X S\
A p ó s a segunda grande guerra e com o d e sa p a re c im e n to de
M arc B loch nos cam pos de concentração nazistas em 1944. F eb v re e n
xerga em m u ito s de seus discípulos, lais com o R oben M androu e C liarles
M ozaré o “ e sp írito ” dos “ A nu ales” e \ e neles as íiguras dos c o n tin u a d o
res do m o v im en to . E ntretanto, o legitim o sucessor de I ebvre na c o n d u
ção d esta no v a h isto rio g rafia era fe rn a n d B raudel.
B raudel estu d o u historia na S orbonne e lecionou de 1923 a 1932
na A rgélia. N esta época descobre o M editerrâneo com o um gran d e tem a
historiográfico, que seria objeto de seu grande li\ro . C o n h ece neste p eríodo
Lucien F ebvre que se tom a seu am igo, e que o convence a tran sfo rm ar o
tema de sua tese en tão em g estação de *Ví p u i nica m ed iterrá n ica d e F elipe
IT para “ (9 m ed iterrâ n eo na época dc F elipe m u d an ça esta, aliás,
que bem rev ela a tô n ica dos trab alh o s p o sterio res de B rau d el. E ntre 1935
92 Idem,p. 56-57.
93 D O SSE, François. Op. cit., p. 251. Diz o autor: “ao desafio de Claude Lévi-
Strauss, nos anos 50, os “Annales”, com Fernand Braudel, conceituaram a lon
ga duração como linguagem capaz de unificar as ciências sociais
94 Esta coletânea de textos, dentre os quais se encontra um a m esa redonda com
Jacques LE GOFF; Emmanuel LE ROY LADUR1E; Paul VEYNE; Philippe
ARIÈS; Michel de CERTEAU, foi publicada em português em LE GOFF, Jacques
et alii. A Nova História. Lisboa: 70, 1986. Ver tam bém LE G OFF, Jacques
(Org.). A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
95
V.g. V O V ELLE, M ichel. Ideologia e mentalidades. São Paulo: Brasiliense,
1987.
% Rg. V ILA R , Pierre. A guerra da Espanha. Rio de Janeiro: Paz e T erra, 1989.
97
V.g. M A N D R O U , Robert. Magistrados e feiticeiras na França do século
XVII. São Paulo: Perspectiva, 1979.
R ic a rd o M arcelo Fonseca
74
O próprio M arc Bloch, num livro que escreveu para se tom ar uma
resposta ao m anual de Langlois e Seignobos sobre a ciência da história, as
severa que : “Por detrás dos traços sensíveis da paisagem, dos utensílios e
das máquinas, por detrás dos documentos escritos aparentemente mais gla
ciais e das instituições aparentemente mais distanciadas dos que as elabora
ram, são exactamente os homens que a história pretende a p re en d er 1
D e fato: com a E sco la dos “A rm ales” a história passa a fazer uso
das m ais variadas fontes (que vão desde diários de a d o lescen tes 10 112 até
9
134 O D Á L I A , N i l o . O s a b e r e a h i s t ó r i a : G e o r g e s D u b y e o p e n s a m e n to h is to r io -
g r á fic o c o n t e m p o r â n e o . S ã o P a u lo : B r a s ilie n s e , 1 9 9 4 . p. 2 0 - 2 1 .
cas do d ire ito p a re c ia m e sta r lim itad o s à in terpretação histó rica das n or
m as ou à d e m o n stra ç ã o de co m o o direito atual é resultado lógico e coe
rente da h i s t ó r i a .
F in a lm e n te , em q u in to lu g ar se p o d e n o tar com o ju sta m e n te em
v irtu d e da lin e a rid a d e h a rm ô n ic a do discu rso h isto rio g ráfico ju ríd ico
tra d ic io n a l, de su a a p a re n te co n tin u id ad e e sua id en tid ad e g enealógica
e sta b e le c id a e n tre o d ire ito p assa d o e o d ireito p resen te, o trân sito pelas
searas te ó ric a s da h is tó ria do d ireito acab av a ex igindo u m req u isito b ási
co: q u e o " h is to ria d o r” do d ireito fosse tam b ém u m ju r is ta 14® (ou, co lo
ca n d o d e u m m o d o ta lv e z ain d a m ais apropriado, ex ig ia que o ju rista
tiv e sse p e n d o re s h istó ric o s).
P a o lo G ro ssi v ai n a m esm a linha: aduz ser co m p reen sív el este
e s tra n h a m e n to j á qu e, n u m a p rim eira aproxim ação, em suas p alav ras, a
c o m u n ic a ç ã o , p o n d o cm e v id e n c ia a im p o rtâ n c ia da lin g u a g e m n a v id a
c o tid ia n a , p re s e n te e p a s s a d a ,4\ A c o rre la ç ã o d e ste e n fo q u e co m a
“ H isto ria N o v a " e a c e n tu a d a p o r H e sp a n h a :
l4> B U R K E . Peter. A a r te da co n v ersa çã o . Op. cit., p. 9. Sobre este tem a ver tam
bém B U R K E , Peter; PO R T E R , R oy (O rgs.). H istó ria so c ia l d a lin g u a g e m . São
Paulo: U n esp/C am b rid ge, 1997.
H E S P A N H A , A n tó n io M. N o v a H istó ria e... Op. cit., p. 30.
R icard o M a r c e lo F o n s e c a
86
147 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralism o Jurídico: fundam entos de uma nova
cultura do direito. São Paulo: A lfa-Ô m ega, 1994. p. 23 e ss.
148 H ESPANHA, Antônio M. Nova história e... Op. cit., p. 30-31.
149 Idem, p. 32-33.
150 GROSSI, Paolo. Storia sociale e dimensione giuridica, p. 12-13.
151 Idem, p. 14-15.
Introdução Teórica à História do Direito 87
152 Para aprofundamento desta noção do “jurídico”, vide GROSSI, Paolo. Pri
meira lição sobre direito. Tradução de Ricardo Marcelo Fonseca. São
Paulo: Forense, 2006.
5 GROSSI, Paolo. Storia sociale e dimensione giuridica, p. 15.
b4 GROSSI, Paolo. L ’ordine giuridico medievale. Roma/Bari: Laterza, 1995.
p. 22 e ss. Vide também, a este respeito, GROSSI, Paolo. Primeira lição so
bre direito.
155 GROSSI, Paolo. L ‘ordine giuridico medievale, p. 6.
156 GROSSI, Paolo. Storia sociale e dimensione giuridica, p. 16.
88 Ricardo M arcelo Fonseca
M A TE R IA L ISM O H ISTÓ R IC O E
HISTÓRIA DO D IR EITO
5 .2 M A R X IS M O E H IS T O R IO G R A F IA
mento do m o d e lo e p is te m o ló g ic o d o m a rx ism o p e ra n te u m a re la ç ã o
muito in trin cad a: a re la ç ã o e n tre o su je ito e o c o n h e c im e n to . M u ito ao
inverso de te o ria s c o m o o p o sitiv ism o , p o r e x em p lo , q u e c o n c e b e m o
sujeito de u m a fo rm a to ta lm e n te p a ssiv a , de m o d o q u e o c o n h e c im e n to
lhe é todo e x tem o (o o b jeto te m u rn a ex terio rid ad e que o afasta irrem e d ia
velmente do su je ito ), b e m c o m o d e m o d o d iv e rso das te o ria s id e a lista s
que lim itam ao su je ito to d o o a sp e c to a tiv o n o p ro c e sso de c o n h e c im e n to ,
o m arxism o p ro c e d e a u m a m e d ia ç ã o d ia lé tic a en tre o su je ito e a q u ilo
que é co n h ecid o . T ra ta -s e d a m e d ia ç ã o d a praxis , q u e e n se ja o q u e C iro
Flam arion C a rd o so c h a m a d e teoria modificada do reflexo160. K a rl M a rx
explicitou b e m e s ta te o r ia e m su a s Teses sobre Feuerbach. N a te s e II
pode-se le r o se g u in te :
... é tam bém um a h istó ria m ilitante. E ao m esm o tempo, diretam ente
ou p o r alusões, é um a h istória da atualidade. N isso ela se coloca no
163 VILAR, Pierre. Marx e a história. In: HOBSBAWM, Eric J. (Org.). História do
marxismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 119.
164 Idem, p. 100.
165 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Op. cit., p. 27.
166 Idem.
Introdução T eórica à História do Direito 93
5.3 C L A SS E S SO C IA IS E ID EO LO G IA
183 O termo sociedade civil, aqui, é utilizado no sentido empregado pelo própno
Marx, como o conjunto das relações travadas pelas classes na infraestrutura,
como o palco da própria luta de classes na esfera da economia.
184 BOURDÉ, G.; MARTIN, H. Op. cit., p. 163-164.
185 MARX, K.; ENGELS, F. História... Op. cit., p. 365.
186 MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia... Op. cit., p. 37.
187 BOURDÉ, G.; MARTIN, H. Op. cit., p. 167-168.
Introdução T eórica à H istória do D ireito 99
Como se disse, os usos que foram feitos pelo marxismo não fo
ram uniformes. Vão desde análises mais matizadas e dialéticas até a es
quematismos mecânicos, deterministas e reducionistas. E na questão es
pecífica da análise da esfera jurídica feita pelo marxismo, tomado natu
ralmente de um modo bem geral, creio que infelizmente prevaleceu uma
visão mais restritiva do seu sistema de seu pensamento, por um certo
esquematismo e economicismo.
Talvez influenciado pela ênfase dada por M arx ao “ser” e não
nas “formas de consciência”, pelo protagonism o dado às forças pro
dutivas e às relações de produção ao invés das formas de representa
ção, em suma, ao acento maior dado à esfera da infraestrutura do que à
394 Além de militante no movimento dos trabalhadores (seu livro, em três volumes,
A formação da classe operária inglesa. Tradução de D enise Bottmann. São
Paulo: Paz e Terra, 1987; tomou-se referência internacional), no final da vida
tomou-se ativista contra a guerra fria e a ameaça do extermínio nuclear, como se
pode ver em THOMPSON, E. P. et alii. Exterminismo e guerra fria. Tradução
de Denise Bottmann. São Paulo: Brasiliense, 1985.
195 DESAN, Suzanne. Massas, comunidade e ritual na obra de E. P. Thompson e
Natalie Zemon Davis. In: HUNT, Lynn (Org.). A nova história cultural. Tra
dução de Jefferson Luis Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1985. p. 63 e ss.
i% THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores: a origem da lei negra. Tradução de
Denise Bottmann. São Paulo: Paz e Terra, 1987.
Introdução Teórica à História do Direito 103
E p ro s se g u e :
197
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre cultura popular tradi
cional. Tradução de Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras,
1998.
104 Ricardo Marcelo Fonseca
5 .5 C O N T R A P O N T O S À L E IT U R A D E T H O M P S O N
rada da noção de le r 205 (porque afinal o séc. XVIII é uma época clara
m ente pré-legalista e, ademais, dentro das particularidades do contexto
inglês), a análise fica tam bém problem ática quando nos voltamos para o
contexto brasileiro.
“o barro
toma aforma
que você quiser
você nem sabe
estarfazendo
o que o barro quer
Paulo Leminski
D ependendo dos cam inhos teó rico s que forem objeto da opção
teórica (consciente ou inconsciente) d aquele que se d eb ru ça sobre o pas
sado jurídico, as respostas dadas po d em ser m uito diversas. Pode-se fazer
a história do direito som ente p ara d em o n strar u m a eru d ição (geralm ente
vazia de sentido e de utilidade) sobre coisas velhas e em desuso, como
tam bém pretender indicar a trajetória (n orm alm ente de m odo linear) de
determ inados institutos ju ríd ico s desde a época antig a até o direito positi
vado atual. O u ainda pode ser que nosso objetivo seja recu p erar o passa
do do direito para fazer um belo introito (g eralm ente apelidado de “es
corço histórico”) para adereçar a análise de u m in stituto da dogmática
ju ríd ica - que seria o efetivo “objeto” de reflexão. O u, finalm ente, nossa
pretensão pode ser sim plesm ente desvelar o sentido da n orm a (a fam osa e
im precisa mens legis), através da cham ada “interpretação histórica”, que
se revelaria um m eio (que se utiliza por excelência da experiência preté
rita) de auxílio das disciplinas dogmáticas.
T odavia, aqueles que tom am o cam inho (e não são poucos) de
trilh ar esta alternativa teórica geralm ente não têm consciência de que tal
procedim ento é em regra m ontado com base n um a linearidade temporal
construída a posteriori, m ontada pelos condicionantes do tem po que se
debruça sobre o passado, e, por isso, que norm alm ente se mostra com
pletam ente incom patível com a com plexidade do próprio passado para o
qual o estudo deveria ser fiel. De fato, o estudo linear da história do di
reito, (que am ontoa tudo o que já passou num a superposição harmônica e
coerente de institutos jurídicos através tem po) acaba im pondo uma lógica
ao passado que em verdade lhe é estranha, ao m esm o tem po em que lança
sobre a época pretérita as questões, preocupações, valorações e ansieda
des que pertencem ao presente (e ao cientista que produz um tal tipo de
conhecim ento).
C om isto, duas distorções graves geralm ente acontecem : a pri
meira no próprio objeto de reflexão, que ao invés de ser fiel ao passado
sobre o qual ela deveria se deitar acaba dem onstrando um a induvidosa
em patia com o presente, como dizia B enjam ín209. E m outros termos, a
historiografia assim orientada constrói um discurso histórico distanciado
do passado e próxim o do presente, num a distorção da experiência huma
na (no caso experiência jurídica) presidida por um a lógica que só toma
sentido no presente do historiador que elabora este discurso. A história do
209 BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. São
Paulo: Brasiliense, 1988. p. 224 e ss.
Introdução T eórica à H istória do Direito 113
212 Vide, nesta linha, por todos, ao procurar entender o instituto da “arbitragem” na
história, FIGUEIRA JR., Joel Dias. Arbitragem, Jurisdição e Execução. 2. ed.
São Paulo: RT, 1999. p. 23 e ss.
116 Ricardo M arcelo Fonseca
215 Aqui seguimos a análise de ARAÚJO, Inês Lacerda. Ob. cit.; ALVAREZ-
URIA, Femando; VARELA, Julia, no prefácio de FOUCAULT, Michel. Saber
y Verdad. Madrid: La Piqueta, 1991. p. 8.
216 Neste projeto, vide especialmente FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coi
sas. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
217 Aqui, vide especialmente FOUCALT, Michel. Vigiar e Punir: História da Vio
lência nas Prisões. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1987;________. A História da
Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978.
218 Esta etapa engloba principalmente os dois últimos volumes de sua “história da
sexualidade”: FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: o Uso dos Pra
zeres. 5. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988;________. História da Sexualidade:
O cuidado de Si. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
118 Ricardo M arcelo F on seca
222 r
ARAÚJO, Inês Lacerda. Ob. cit., p. 42.
223 Idem, p. 45.
12 0 Ricardo Marcelo Fonseca
229 É necessário esclarecer que propositadamente não estão sendo levadas em conta
as diferentes abordagens e preocupações de Foucault ao longo de sua produção,
já que não é a intenção deste texto discutir a evolução do pensamento foucaul-
tiano, mas simplesmente obter um diagnóstico geral do autor, segundo nossa
leitura, sobre os problemas aqui enfrentados. Não se ignora, entretanto, que a
temática do poder surge em sua obra com mais vigor somente a partir dos anos
70.
230 FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1996. p. 17.
231 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 8. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
p. 12.
122 Ricardo Marcelo Fonseca
234 Para uma análise mais detida do papel da descontinuidade em Foucault - e que,
em certa medida, contraria o que havia sido escrito em A arqueologia do Saber
- vide FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Ob. cit., p. 2 e ss.
235 FOUCAULT, Michel. A Arquelogia do Saber. Ob. cit., p. 10 e ss.
236 Idem, ibidem.
237 ARAÚJO, Inês. Ob. cit., p. 58.
238 No terreno da historiografia jurídica, o eminente professor Paolo Grossi, ao
analisar a historicidade da propriedade, afirmou que “la historia de la pertenen-
124 Ricardo Marcelo Fonseca
la
Introdução Teórica à História do Direito 129
sais, com o pretendia o ideal kantiano. Pode ser ainda que o leitor
acredite que esta leitura faz com que “ sab er” - sem pre envolto numa
auréola de pureza teórica e de santidade de intenções - fique inaceita-
velm ente estigm atizado pelas im purezas provenientes das relações de
“poder". Pode ser. M as um a leitura radical da m odernidade ju ríd ic a tal
com o esta que M ichel F oucault nos lega é adequada - ainda que seja
pelo choque do contraste - para que o ju rista e o historiador do direito
tenham algum as das suas convicções (m uitas delas bem antigas e se
d im entadas) quebradas. É que o cam po do direito tem sido, p ara boa
parte dos teó rico s de nossa área, o campo das respostas convictas, das
certezas e da arrogância epistêm ica. Trata-se, pois, de inserir, com
F o u cau lt, um pouco de questionam entos, de dúvidas e de hum ildade
dian te da contingência do saber.
7
M IC H E L FO U C A U L T E O D IS C U R S O
H IS T Ó R IC O -JU R ÍD IC O : E S T A D O E P O D E R
“passa e volta
a cada gole
urna revolta ”.
Paulo Lemìnski
7.1 O “P R O J E T O ” F O U C A U L T IA N O
258 Chartier observa como Foucault, de modo recorrente, inscrevia os seus textos já
produzidos em uma organização sistemática (que, todavia, foi variando ao longo do
tempo), buscando dar conta da lógica de uma trajetória de pesquisa: CHARTIER,
Roger. A beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Tradução de
Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Universidade/UFRGS, 2002. p. 183.
259 VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault & a educação. 2. ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2005. p. 18-19.
260 FOUCAULT, Michel. Entrevistas. Tradução de Vera Portocarrero e Gilda
Gomes Carneiro. Roger Paul Droit (Org.). Rio de Janeiro: Graal, 2006. p. 52.
Introdução Teórica à I Ustòria do D ireito
133
FOUCAULT, M ichel. D itos & E scritos IV (E stratég ia, p o d er-sab er). T radu
ção de V era L úcia Avellar Ribeiro. Manoel Barros da Motta (Org.). Rio de Ja
neiro: Forense, 2003. p. 329.
136 Ricardo M arcelo F onseca
Poder-se-ia ainda acrescer, hoje, em parte, o modelo da AIDS, tal como demons
trado com competência por GUANDALINI JUNIOR, Walter. A crise da socie
dade de normalização e a luta jurídica pelo biopoder. o licenciamento compul
sório de patentes retrovirais. Curitiba: Dissertação (Mestrado em Direito), 2006.
144 Ricardo Marcelo Fonseca
que se está, de fato, como diz Foucault, diante de “duas economias do po
der que me parecem radicalmente diferentes”289. As relações entre a esfera
do individual e do coletivo (que para o pensamento jurídico geralmente são
remissíveis aos níveis do público x privado, Estado x sociedade) aqui são
recompostas e rearticuladas: as relações de governo mostram-se complexas
e multilaterais, onde o Estado, enquanto ente soberano e portador exclusivo
do exercício do poder em determinado território (como repete a teoria cria
da no séc. X IX ) não é mais simplesmente o articulador consciente e alta
neiro das form as de gestão na consecução de seus objetivos, mas será, de
modo m uito central, o agente no qual perpassam mecanismos de segurança
que detém (por detrás das noções como “bem comum” e “interesse públi
co”) estratégias, técnicas e mecanismos muito voltados a governar as po
pulações, em setores como a sua mortalidade, morbidade, nos seus fluxos,
na gestão da infância e da velhice etc. A vida (no seu marco biológico) é
tom ada com o centro de preocupação da govemamentalidade, e isto é um
dado que os juristas costumam ignorar.
C om o se percebe, a partir do séc. XVIII (quando a questão da
população surge para o saber e os chamados dispositivos de segurança
são progressivam ente utilizados como estratégia de governo) existe uma
dim ensão de norm alização e de gestão da vida que convive e perpassa os
m ecanism os “puram ente” jurídicos. Na verdade, uma apreciação atenta
chegaria à conclusão que as estratégias jurídicas passam a ser cada vez
menos im unes à atuação de formas normalizadoras, de modo que a ins
tância ju ríd ica passa a cumprir o papel cada vez mais frequente de vei-
culador dos dispositivos de segurança e passa a ser um dos meios privile
giados de fazer funcionar e fazer incidir tais mecanismos.
M areio A lves da Fonseca percebe com muita precisão esta im
bricação, que passa a ser a marca do funcionamento do direito sobretudo
a partir do séc. X IX :
290 FO NSECA, Mareio Alves da. As imagens do direito em Michel Foucault. In:
CALOM ENI, Tereza Cristina B. (Org.) M ichel F oucault: entre o murmúrio e a
palavra. Campos: Faculdade de Direito de Campos, 2004. p. 176-177.
291 O próprio Foucault, numa entrevista concedida em 1984, demonstra estar bem
ciente dos dois planos (não excludentes, mas complementares) de análise do
problema das várias formas de governo que presidem a história política recente:
se você tenta analisar o poder não a partir das liberdades, das estratégias e
da governabilidade, mas a partir da instituição política, só poderá encarar o
sujeito como sujeito de direito. Temos um sujeito que era dotado de direitos ou
que não o era e que, pela instituição da sociedade política, recebeu ou perdeu
direitos: através disso, somos remetidos a uma concepção jurídica do sujeito.
Em contrapartida, a noção de governabilidade permite, acredito, fazer valer a
liberdade do sujeito e a relação com os outros, ou seja, o que constitui a pró
pria matéria da ética”. {In: FOUCAULT, Michel. Ditos & escritos V: ética, se
xualidade, política. Tradução de Elisa Monteiro e Inés Autran Dourado Barbosa.
Manoel Barros da M otta (Org.). Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 286)
Introdução Teórica à H istória do Direito 147
292 VEYNE, Paul. Como se escreve a história. 3. ed. Tradução de Alda Baltar e
Maria Auxiliadora Kneip. Brasília: UNB, 1995. p. 154.
293 FIORAVANTI, Maurizio. Appunti di storia delle costituzione moderne: le
libertà fundamentali. Torino: Giappichelli, 1995. p. 37.
294
BERCOVICI, Gilberto. As possibilidades de urna teoria do Estado. In: Revista
de História das Idéias. Coimbra: Faculdade de Letras, v. 26, p. 10-11, 2005.
148 R icardo M arcelo F onseca
“você pára
a fim de ver
o que te espera
só uma nuvem
te separa
das estrelas
Paulo Leminski
8.1 O LEGADO
8.2 A N A R R A Ç Ã O E A E X P E R IÊ N C IA
296 Publicação sobre o seu pensamento enfoca-o sobretudo com o filósofo, como se
pode notar pelo próprio título: BENJAMIN, Andrew; O SBO R N E , Peter. A filo
sofia de W alter Benjamin. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
297 Vide BENJAMIN, Walter. Walter Benjamin: sociologia. Flávio Kothe (Org.). São
Paulo: Ática, 1985. p. 37-43, 219-240, Coleção grandes cientistas sociais. BENJA
MIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica arte e política. 3. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1987. p. 36-49, 137-164, 165-196; BENJAMIN, Walter. Obras esco
lhidas III: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasili
ense, 1989; BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura, documentos de barbá
rie. Sel. e apres. Willi Bolle. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1986. p. 188-189. E para
uma rica leitura das “teses sobre o conceito de história”, que inclui um original en
quadramento da obra benjaminiana, vide LOWY, Michael. W alter Benjamin -
aviso de incêndio. Uma leitura das teses “sobre o conceito de história. Tradução de
Wanda Nogueira Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2005.
In tro d u ç ã o T e ó rica à H istó ria do D ireito 151
298 G AGNEBIN, Jeanne Marie. H istória e narração em W alter B enjam in. São
Paulo: Perspectiva, 1994. p. 3.
152 R ic ard o M a rc e lo F o n se c a
8.3 N A R R A Ç Ã O , T E M P O R A L ID A D E E H IS T Ó R IA
299 Idem , p . 6 8 .
300 Apud, G A G N E B I N , J. M . Op. cit., p. 68.
301 Idem, ibidem.
Introdução Teórica à H istória do Direito 153
etapista dos modos de produção. Esta postura, em últim a análise, era car
regada de um conform ism o que, segundo B enjam ín, era extrem am ente
corruptor para o m ovim ento dos trabalhadores. D izia ele que “ nada foi
mais corruptor para a classe operária do que a idéia de que ela nadava
a favor da corrente”304. E ra a ideia do progresso no seio do movimento
operário, um progresso que na verdade era ilusório, que com prom etia a
sua ação política e que estava de braços dados com um a noção de tem po
ralidade que deveria ser condenada.
E sta visão tinha o m esm o substrato daquela adotada pelo histo
ricism o. N este campo, B enjam ín critica a ideia (que é própria de Leopold
von R anke) de proceder a um a reconstituição do passado “ como ele de
fato fo i ”, ou à ideia (própria de Fustel de Coulanges) de que o historiador,
ao reconstituir um a época histórica, deve esquecer tudo o que sabe sobre
fases posteriores da história (como se pode ler n a tese 7). Ele critica os
historiadores que fazem da sua m atéria-prim a os fatos (com o os histori-
cistas o fazem de um m odo geral), e traçam a tram a histórica estabele
cendo nexos causais necessários entre estes fatos. Para Benjam ín este tipo
de história, que culm ina num a historiografia do tipo universal, se afasta
do passado que ela pretende examinar. E isto porque é um a história que
na verdade atribui um sentido a posteriori aos eventos e principalm ente
porque estabelece um encadeam ento e um a determ inada lógica ao even
tos que lhes é externo. Os fatos se conectam de um a m aneira fácil no jogo
das causas e consequências. Em outras palavras, este tipo de história es
tabelece um a certa linearidade, um a harm onia e um a coerência que são
estranhas à própria época que está sendo estudada.
E a linearidade é sem pre pertencente a um discurso histórico
posterior ao evento que ele busca relatar. A lógica que é im pressa por tal
historiador é estranha ao passado, já que a época pretérita, quando vivida
- qualquer época que seja - se m ostra com plexa, dialética, rica de virtua
lidades, e im possível de ser apreendida p o r conexões sim ples, tal como o
este discurso historicista quer fazer crer que é.
Por tais razões, este discurso linear não passa de, com o nos diz
H espanha, um a postura que projeta sobre o passado as categorias mentais
e sociais do presente, fazendo do devir histórico um processo (escatológi-
co) de preparação da atualidade305. A ssim , cada vez m ais este discurso
306
BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia... cit., p. 225.
In tro d u ç ã o T e ó ric a à H is tó ria do D ireito 157
lado, a lei mesma não pode ser tomada como objeto privilegiado de análise
histórica em vista de um fato singelo: no mais das vezes (e isto fica mais real
quanto mais se distancie da modernidade) existe uma distância sensível entre
o direito legislado e o direito praticado323.
Uma quarta consequência importante para o direito a partir deste
novo enfoque historiográfico já acenada acima: estar atento às infindáveis
fonnas regulativas que fazem parte do passado jurídico, onde a lei se impôs
como meio privilegiado muito recentemente. Isto é: impõe-se o reconheci
mento do profiando pluralismo jurídico imperante em todo o passado jurídi
co, num trabalho de relativização do monismo jurídico do ponto de vista
histórico e sociológico. A história, aqui, no dizer de Hespanha, cumpre a
função de produzir um conhecimento crítico e distanciado dos mecanismos
legislativos, reduzindo o efeito ideológico que consiste em crer tanto na sua
predom inância quanto na sua inevitabilidade, dando subsídios para pensar o
direito em sua dinâmica histórica real324. Isto implica em considerá-lo como
fora desta “linha” coerente e harmônica, que resulta inevitavelmente no di
reito presente e na falsa ideia da legislação como única via histórica possível.
N ão se está querendo dizer que se tenha que se fazer um resgate
para o presente de formas arcaicas de regulamentação jurídica. Como diz
H espanha, é um a idealização supor que um direito primitivo seria a sede
do igualitarism o, da harm onia e da justiça. Pelo contrário, os processos
de constrangim ento comunitário são muitas vezes ordens opressivas e
sufocantes, que reproduzem muitas vezes os desequilíbrios locais de po
der. M as a relativização do direito legal serve como um instrumental de
análise im portante para criticar a ordem jurídica vigente (monista) de
modo a capacitar a diagnosticar sua crise, através de uma proposta de
“redimensionamento da legalidade”, colocando em seus devidos termos a
evidência de que a lei é apenas uma das formas de controle social325.
8.5 C O N C LU SÃ O
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168 R icardo M arcelo F o n se c a
c
• C iências hum anas. Pressupostos do positivismo nas ciências h u m a n a s................... 48
• Classes sociais e ideologia................................................................................................... 97
• C onclusão..................................................................................................................................161
• Contrapontos à leitura de T hom pson..................................................................................104
• Legado................................................................................................................................... 149
Referências.............................................................................................................................163
Reflexão. Introdução: pensar o fazer para não fazer sem pensar................................2 1
Resposta de Foucault para a história........... .....................................................................11°
174 R ic ard o M arcelo F o n se ca
s
• «Sociedade de segurança». Ideia de «sociedade de segurança» e a história do
direito p úblico....................................................................................................................... 140
u
• U m a prim eira aproxim ação ao conteúdo da história do direito..................................24
w
• W alter B enjam in, a tem poralidade e o direito................................................................^
Biblioteca de Historia do Direito
OBRAS JÁ EDITADAS:
1. História do direito em perspectiva: do antigo regime à modernidade
- Ricardo Marcelo Fonseca eAirton Cerqueira Leite Seelaender (orgs.)
2. Hércules confundido: sentidos improváveis e incertos do constitu
cionalismo oitocentista - o caso portugês - António Manuel Hespanha
3. Introdução Teórica à História do Direito - Ricardo Marcelo Fonseca
4. Judiciário e Cidadania na Constituição da República Brasileira -A n -
drei Koerner
5. A Política perdida: ordem e governo antes da modernidade - António
Manuel Hespanha
PRÓXIMOS LANÇAMENTOS:
6. Soberania, representação, democracia: ensaios de história do pensa
mento jurídico - Pietro Costa
7. Paixões do jurista: am o r, m em ória, melancolia, imaginação - Carlos
Petit (org.)
8. História do direito p úblico: estudos e conferências - Airton Cerqueira
Leite Seelaender
9. A Constituição econômica brasileira: história e política - Filomeno
Moraes