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ENERGIA ELÉTRICA DA USINA DE BOA ESPERANÇA COMO SÍMBOLO

MODERNO NA CIDADE DE CAMPO MAIOR-PI NOS ANOS DE 1960 E 1970

Raimundo Nonato Bitencourt Pereira


Instituto Federal do Piauí-IFPI
raimundobitencourt2@gmail.com

Analisa-se neste trabalho o fenômeno da modernidade na cidade de Campo Maior,


Piauí, durante os anos de 1960 e 1970, período da ditadura civil-militar brasileira. No
espaço urbano em relevo, uma das principais repercussões do regime autoritário que foi
instalado no Brasil foi o intenso surto de transformações na estrutura espacial de Campo
Maior, dando-lhe um aspecto moderno em consonância com o ideal progressista vigente
no país à época. A ênfase deste trabalho recai sobre a implantação da eletricidade
gerada na Usina Hidrelétrica de Boa Esperança – localizada no sul do Piauí – tida como
importante signo moderno campomaiorense. Para a análise, utiliza-se o jornal local, A
Luta, que foi atuante nas décadas de 1960 e 1970, e contribuiu para a construção e
representação da cidade enquanto uma das mais modernas do Piauí.

Palavras-chave: Modernidade. Campo Maior/PI. Ditadura civil-militar.

1 INTRODUÇÃO

Investiga-se nesta pesquisa o fenômeno da modernidade na cidade de Campo


Maior, norte do estado do Piauí, tomando como recorte temporal os anos de 1960 e
1970, período da ditadura civil-militar brasileira. No espaço urbano em relevo, uma das
principais repercussões do regime autoritário que foi instalado no Brasil, no ano de
1964, foi o intenso surto de transformações na estrutura espacial de Campo Maior,
dando um aspecto moderno à cidade, em consonância com o ideal modernizador que foi
implantado no Brasil durante o regime ditatorial.
A modernidade é marcada pelas transformações advindas da passagem das
sociedades tradicionais para a moderna, caracterizada por uma nova organização da
sociedade, bem como do modo de vida. De acordo com Piots Sztompka (1998), a
modernidade delineou-se inicialmente na Europa, e embora não haja uma precisão
temporal que demarque o seu início, o autor menciona indicações que remetem ao
século XVI ou XVII.
De modo geral Sztompka sublinha que há certo consenso entre os historiadores,
ao referirem que as grandes revoluções (americana e francesa) “forneceram o quadro
político-institucional da modernidade: a democracia constitucional, o governo da lei e o
princípio da soberania dos Estados-nação” (1998, p. 132). Quanto à base econômica que
impulsionou o fenômeno moderno, o marco foi a Revolução Industrial que ensejou “a
produção industrial através da força de trabalho livre em cenários urbanos, engendrando
o industrialismo e o urbanismo como novos modos de vida e o capitalismo como nova
forma de apropriação e distribuição” (1998, p. 132).
O fenômeno moderno provocou o rompimento com o modo de vida tradicional,
baseado em relações locais, sobretudo de parentesco, e que tinha como base econômica
a exploração agrária. Marshall Berman possibilita a visualização do novo cenário que
surgiu com o advento moderno, sobretudo nas grandes cidades europeias, a exemplo de
Londres. Nesse sentido, ao refletir sobre o século XIX, o autor menciona:

A primeira coisa que observaremos será a paisagem, altamente desenvolvida,


diferenciada e dinâmica, na qual tem lugar a experiência moderna. Trata-se
de uma paisagem de engenhos a vapor, fábricas automatizadas, ferrovias,
amplas zonas industriais; prolíficas cidades que cresceram do dia para a
noite, quase sempre com aterradoras consequências para o ser humano;
jornais diários, telégrafos, telefones e outros instrumentos de media [...];
Estados nacionais cada vez mais fortes e conglomerados multinacionais de
capital; movimentos sociais que lutam contra essas modernizações de cima
para baixo [...]; um mercado mundial que a tudo abarca [...] (BERMAN,
1986, p. 18).

Ao tratar a noção de modernidade em Campo Maior pontua-se aqui alguns


aspectos, que repercutiram de alguma forma na cidade. A princípio, convém observar a
ênfase de Anthony Giddens (1991) no caráter globalizante da modernidade, que
segundo o autor tende a abarcar todo o mundo. Desse modo, é que nota-se aspectos
modernos que surgiram na Europa e estiveram presentes em Campo Maior no período
estudado, impactando assim no modo de vida dos citadinos campomaiorenses, a
exemplo de inovações tecnológicas como a energia elétrica, a qual enfatiza-se neste
trabalho.
Berman (1986) refere que no século XX o processo de modernização se expande
e abarca vitualmente todo o mundo, e destaca que uma de suas características foi o
crescimento e transformação do espaço urbano, conforme é possível notar também em
Campo Maior. Nesse sentido, durante o recorte temporal em apreço, a urbe passou a ter
uma moderna estrutura urbana que esteve em crescente desenvolvimento à época do
regime ditatorial brasileiro, ressaltando-se que grande parte dessas reformas espaciais
ainda estão presentes na cidade. Seguindo esse viés analítico, é pertinente aqui a
concepção de Gervácio Aranha (2005), ao refletir que as cidades do Norte brasileiro
podiam ser caracterizadas como modernas na medida em que possuíam determinados
equipamentos urbanos e/ou prédios e logradouros públicos que fossem considerados
“símbolos modernos de valor universal”.
Em relação ao contexto do golpe civil-militar brasileiro, Caio Navarro de Toledo
observa que após o golpe o que se promoveu foi uma “modernização conservadora,
excluindo da cena política e social as classes trabalhadoras e populares, pondo fim a
uma experiência de democracia política intolerável as classes dominantes brasileiras”
(2014, p. 56).
A modernização que passou a ser decantada em nível nacional refletiu no Piauí,
e em Campo Maior, que passou por significativas modificações em sua estrutura urbana
que contribuíam para fomentar o discurso do moderno, a exemplo da reconstrução de
praças e ampliação da rede de abastecimento de água e esgoto, nos anos 60. É relevante
sublinhar que a década de 1970 marcou o auge da euforia modernizadora em Campo
Maior, quando o Brasil vivia os anos de chumbo, momento que a repressão da ditadura
atingiu seu ponto mais crítico. Segundo Marcos Napolitano (2014), foi a época das
“obras faraônicas”, o Brasil trilhava o caminho do desenvolvimento, para tornar-se uma
grande potência mundial, ao menos aos olhos de quem comandava a ditadura.
No período, o Piauí, foi governado pelo engenheiro Alberto Tavares Silva, que,
segundo Francisco Alcides Nascimento:

[...] Passou a ser visto, muito especialmente pelos segmentos sociais


beneficiados de alguma forma com novas oportunidades surgidas durante o
seu mandato, como o governante capaz de soerguer o estado e tirá-lo da
posição desfavorável em que se encontrava (NASCIMENTO, 2010, p. 24).

Para o governador piauiense era fundamental apagar a imagem do Piauí


enquanto estado pobre e “subdesenvolvido”. Emilia Maria Rebêlo (2000) afirma que
Campo Maior figurava como a quarta maior cidade do Piauí, portanto, era uma das
principais cidades do estado, e, desse modo, buscou engajar-se no pensamento moderno
dos governantes estaduais. Na década de sessenta ocorreu a modernização da empresa
de economia mista Frigoríficos do Piauí S/A (FRIPISA), que havia passado por
momentos de abandono, chegando praticamente a encerrar suas atividades, mas recebeu
novas instalações, almejando o desenvolvimento da agropecuária a nível estadual.
Além disso, cita-se também a modernização do estádio de futebol municipal,
esporte muito exaltado no contexto ditatorial. A reforma urbana atingiu ainda ruas e
avenidas que começaram a receber asfaltamento, tido como um importante signo
moderno. Foi edificado um novo e moderno mercado público, que na época era
apontado em Campo Maior como o melhor do Piauí, ou até mesmo da região Nordeste.
Dentre as áreas urbanas que houve maior investimento, elenca-se aqui o açude que há
em meio à cidade, e funciona como cartão postal de Campo Maior. O local recebeu
iluminação elétrica, construiu-se uma alameda margeando o açude na sua junção com a
BR-343, que liga à capital Teresina, além de um restaurante à beira do açude.
Não obstante as reformas urbanas citadas, a ênfase deste trabalho recai sobre a
implantação da eletricidade gerada na Usina Hidrelétrica de Boa Esperança – localizada
no sul do Piauí – tida como importante signo moderno, visto que até então a energia
elétrica de Campo Maior era gerada por uma usina local, movida a óleo diesel, que
apresentava problemas constantes, além de ter uma capacidade bastante limitada,
ocasionando frequentes “apagões”. Para a análise, utiliza-se principalmente o jornal
campomaiorense A Luta, que foi atuante nas décadas de 1960 e 1970, e contribuiu para
a construção e representação da cidade enquanto uma das mais modernas do Piauí, e,
portanto, alinhada ao discurso progressista daquele momento. O jornal foi o único
periódico que circulou na cidade à época, reunindo a elite intelectual campomaiorense,
que exaltava constantemente os aspectos modernos da cidade, além de criticar os
problemas elétricos que ocorriam antes da chegada da energia gerada na barragem de
Boa Esperança.
Para a análise proposta utiliza-se aqui a concepção do historiador francês Roger
Chartier, um dos principais nomes da História Cultural na atualidade. Segundo o
autor, o objetivo dos historiadores que trilham esse caminho é identificar como uma
determinada realidade social foi sendo construída, podendo ser apreendida por meio de
suas representações. Chartier aponta os conceitos de “prática” e “representação”, que
segundo sua concepção são essenciais para o trabalho historiográfico que tem como
base o viés cultural. Desse modo, o autor esclarece:

[...] As práticas que visam a fazer reconhecer uma identidade social, a exibir
uma maneira própria de estar no mundo, a significar simbolicamente um
estatuto e uma posição; [e] as formas institucionalizadas pelas quais
“representantes” (instâncias coletivas ou individuais singulares) marcam
de modo visível e perpetuado a existência do grupo, da comunidade ou da
classe (CHARTIER, 2002, p. 73).

Ao debruçar-se sobre o jornal A Luta é salutar o conceito de representação


destacado por Chartier, o que permite compreender como os articulistas do periódico
representavam a cidade, exaltando o seu caráter moderno. O autor aponta ainda que o
conceito de representação, “permite vincular estreitamente as posições e as relações
sociais com a maneira como os indivíduos e os grupos se percebem e percebem os
demais” (2009, p. 49). As pessoas que escreviam no jornal tinham uma posição de
destaque na sociedade campomaiorense, já que era o único periódico que circulava na
época, e, portanto, tentavam imprimir para a população a sua visão particular, ou seja, a
de que Campo Maior era uma cidade progressista em sintonia com a modernidade.
Nesse sentido, é relevante destacar ainda que o jornal em tela não é visto aqui
como transparência de uma realidade, mas sim em sua especificidade, ou seja, como
documento no qual seus cronistas investiram uma carga de intencionalidade, pois, “[...]
O que é real, de fato, não é somente a realidade visada pelo texto, mas a própria maneira
como ele visa, na historicidade de sua produção e na estratégia de sua escrita”
(CHARTIER, 2002, p. 56).
Na investigação da cidade pelo viés aqui posposto, é fundamental destacar
também as considerações de Sandra Pesavento ao referir sobre a relevância de “decifrar
a realidade do passado por meio de suas representações, tentando chegar àquelas
formas, discursivas e imagéticas, pelas quais os homens expressam a si próprios e o
mundo (2008, p. 42)”. Assumir esse modo de ver a cidade, implica lançar uma visão
sobre o urbano atentando para as representações que são construídas pelos indivíduos
que habitaram um determinado espaço e formaram em torno dele todo um imaginário,
fortemente ligado a suas aspirações, desejos e modos como significam o mundo que os
rodeia e no qual atuam.
Portanto, o que se propõe neste trabalho é observar o fenômeno moderno em
Campo Maior, cidade do interior do Piauí, que no período em ênfase já estava
fortemente permeada pelos ditames modernos inerentes às grandes cidades. O principal
suporte para a investigação é o jornal A Luta, que frequentemente representava Campo
Maior como uma das cidades mais progressistas do estado, pois, partilhava de
elementos que eram diretamente associados ao moderno, dos quais coloca-se aqui em
relevo a energia elétrica gerada na Usina de Boa Esperança1.

2 JORNAL A LUTA E SUA ATUAÇÃO NA CONSTRUÇÃO DE


REPRESENTAÇÕES DE CAMPO MAIOR ENQUANTO CIDADE MODERNA

A energia elétrica havia sido implantada inicialmente, em Campo Maior, em


janeiro de 1932, sendo tida pela população local como uma grande conquista, “pois
antes a iluminação era feita por lampiões abastecidos com querosenes, instalados no alto
de postes de madeira” (PEREIRA, 2015, p. 74). A usina elétrica instalada à época era
movida a lenha permitindo o funcionamento da luz apenas de “18 às 23 horas, visto que
a potência do motor era baixa, o que era comum naquele período em diversos centros
urbanos” (PEREIRA, 2015, p. 75).
De acordo com Amara Rocha (2000), a eletricidade foi um dos elementos que
surgiu em razão do avanço científico e tecnológico, e, além de ser uma importante
conquista material, era imbuída ainda de forte simbolismo. Segundo a autora, a luz
estava relacionada ao Iluminismo, e associava-se em grande medida ao ideal de
progresso, portanto, em perfeita sintonia com o pensamento dos governantes
campomaiorenses.
Desde que foi implantada a energia elétrica em Campo Maior, no ano de 1932,
os problemas de interrupção do serviço eram constantes, tanto no período em que a
usina elétrica era movida à lenha, quanto na época em que era abastecida a óleo diesel.
No ano de 1959, o governo piauiense, buscando melhorar o serviço de energia elétrica

1
A Usina Hidrelétrica de Boa Esperança foi construída por meio do aproveitamento das águas do rio
Parnaíba, localizando-se no munícipio de Guadalupe, sul do Piauí, tendo sua inauguração no ano de 1970.
do estado, criou a Centrais Elétricas do Piauí S/A (CEPISA), que passou a administrar
esse setor.
Em Campo Maior, o A Luta, era o principal veículo de divulgação de notícias na
cidade, direcionando suas matérias, sobretudo, para acontecimentos locais, e em menor
medida para o que ocorria na capital, Teresina. O que acontecia a nível nacional ou
internacional pouco figurava nas páginas do periódico. Desse modo, é possível
apreender no jornal o discurso moderno, bem como críticas constantes aos problemas
elétricos que ocorriam na usina movida a óleo diesel, que esteve em funcionamento
antes da chegada da eletricidade fornecida pela Companhia Hidrelétrica de Boa
Esperança (COHEBE).
No arquivo da Câmara Municipal, encontra-se o projeto de lei nº 08, do ano de
1968, por meio do qual a Prefeitura Municipal doava à COHEBE um terreno
pertencente à zona rural do município para que fosse construída uma subestação
abaixadora de energia, para suprir Campo Maior com a energia elétrica de Boa
Esperança. Além disso, durante a administração do prefeito Raimundo Nonato Andrade,
por meio do decreto n° 18, também do ano de 1968, foi estabelecido que devia haver
uma desapropriação em “lotes de terreno do Parque São José, na zona rural,
pertencentes a vários foreiros, para ser construída uma subestação abaixadora de energia
elétrica da COHEBE” (CAMPO MAIOR, 03 de julho de 1968). Ainda segundo o
decreto, a prefeitura indenizaria as pessoas que sofreram a desapropriação.
É relevante sublinhar, que à época da modernização, não foi só na zona rural do
município que ocorreram desapropriações, pois, elas foram efetivadas em número muito
maior na área urbana da cidade, segundo os gestores municipais eram necessárias, em
nome do progresso da urbe. As desapropriações ocorreram por várias razões dentre elas,
alargamento e/ou abertura de ruas e avenidas, bem como construção de praças ou outros
logradouros públicos.
Os problemas constantes com a interrupção do fornecimento de eletricidade
fizeram com que a energia vinda de Boa Esperança fosse muito aguardada em Campo
Maior. Em matéria de novembro de 1968, Carlos Antônio Sousa, escreveu uma matéria
para o A Luta, intitulada “Boa esperança e a falta de recursos”. O tom da matéria era de
lamentação devido à paralização das obras da hidrelétrica, e apontava dentre os motivos
o lento processo burocrático para a liberação das verbas que ainda eram necessárias para
concluir as obras. O articulista faz uso de um recurso discursivo que enfatiza a pobreza
do Piauí ao dizer que as verbas poderiam ser liberadas “a fim de não retardar a redenção
econômica social de uma das regiões mais subdesenvolvidas e atrasadas do globo” (A
LUTA, 24 de novembro de 1968). Como é possível notar, a eletricidade gerada em Boa
Esperança era tida como algo que traria a “redenção” para o estado, contribuindo para
que ele saísse da situação de “atraso” econômico e social, tornando-se mais progressista
e moderno2.
Carlos Sousa destaca ainda que “para as obras do sul do país não há falta e nem
atraso de verba”. Na sequência a matéria refere que há falta de empenho dos políticos
piauienses, que não pressionavam o governo federal a ponto de serem liberadas verbas
de tamanha importância para o cenário piauiense. Segundo o A Luta:

A culpa também cabe aos nossos representantes no Congresso Nacional, que


não têm usado da tribuna parlamentar para denunciar estas discriminações,
que não têm usado de seus prestígios para pressionar o governo no sentido de
liberação das verbas necessárias à conclusão desta obra de importância vital
para o nosso desenvolvimento. O que é certo é que os nossos políticos ainda
não adquiriram consciência da importância de Boa Esperança para o nosso
Estado (A LUTA, 24 de novembro de 1968, p. 03).

Na edição de 09 de março de 1969 o A Luta citava diversos eventos, que


indicavam os problemas que a escuridão causava em Campo Maior. Segundo era
apontado, tais coisas ocorriam porque a CEPISA estava concentrada em instalar a nova
rede elétrica para receber a energia de Boa Esperança, direcionando menos atenção na
manutenção das instalações elétricas que ainda estavam em vigor. O periódico
enumerava, em sua primeira página, problemas advindos da falta de eletricidade, alguns
deles pitorescos, além de um que feria a moralidade familiar da época:

Atraso na impressão de duas paginas de A LUTA; Na avenida José Paulino


um ciclista atropelou um cachorro, que, no mínimo com duas costelas
partidas, saiu correndo aos uivos, enquanto o moço da bicicleta sem farol
levava um tombo que lhe custou o nariz quebrado e arranhões num cotovelo;

2
Francisco Alcides Nascimento (2010) indica que o discurso do Piauí enquanto estado marcado pelo
pauperismo era comum na imprensa durante a década de 1960, sendo destacado também pelos
governantes estaduais, quando solicitavam maior atenção e incentivo do governo federal. Tal situação
modificou-se no início da década de 1970, quando o discurso progressista ganhou força no cenário
piauiense.
Num trecho particularmente escuro da rua senador José Euzébio, um bovino
de cor, dono e sexo ignorados esbarrou num transeunte que, felizmente, só
levou o susto [...]; Nos pés dos muro campeou a pouca vergonha, para
desespero das dignas famílias que sabiam (ou adivinhavam) o que estava
acontecendo e nada podiam fazer; Perto do mercado, uma velha queimou
duas caixas de fósforos até encontrar sua dentadura, que lhe caíra da boca
quando ela – a velha – escorregou numa casca de melancia que não vira por
causa da escuridão (A LUTA, 09 de março de 1969, p. 01).

No ano de 1969, era realizada a instalação da nova rede de fios para transmissão
da energia elétrica da COHEBE, era a modernização sendo implantada, a velha rede
elétrica que anteriormente tinha sido considerada moderna, agora estava obsoleta, não
atendia mais aos anseios modernos campomaiorenses. Quanto à dicotomia novo/velho
que se impôs em relação à energia elétrica, torna-se pertinente uma referência às
análises de Jeanne Marie Gagnebin a respeito do moderno em Charles Baudelaire e
Walter Benjamin. De acordo com a autora, Baudelaire coloca o moderno como algo
paradoxal, quando relacionado ao que é “novo”. Tal contradição se impõe porque o
“novo está, por definição, destinado a se transformar no seu contrário, no não-novo, no
obsoleto, e o moderno, consequentemente, designa um espaço de atualidade cada vez
mais restrito” (1997, p. 143).
Pode-se inferir a partir do A Luta que para as pessoas que quisessem partilhar da
eletricidade produzida pela COHEBE, era necessário adequar-se as suas exigências,
pois, somente receberia eletricidade de Boa Esperança quem arcasse com as despesas
das novas instalações, conforme o jornal enfatizou em março de 1969:

Quem não tiver providenciado a ligação da nova rede da CEPISA em sua


casa até o dia 31 de maro próximo ficará no escuro, pois naquela data será
cortada a energia distribuída pela antiga rede. A informação foi prestada pelo
sr. José Reis Santiago de Matos, Chefe do Escritório da CEPISA em Campo
Maior. Segundo o sr. Santiago de Matos a CEPISA começou no dia 3 deste
mês a ligação da nova rede, havendo, portanto, bastante tempo para todos
providenciarem a ligação em suas casas (A LUTA, 16 de março de 1969, p.
02).

De acordo com o que se pode verificar, a energia elétrica chegava, mas possuía
certo caráter excludente, pois, era restrita a quem pudesse comprar a nova rede elétrica
de imediato. Conforme apreende-se, a expectativa é que a eletricidade da COHEBE
chegasse logo, já que as instalações antigas deviam ser desligadas em março de 1969,
fato que não se concretizou no prazo previsto, até mesmo porque somente no ano de
1970 é que houve a inauguração da Hidrelétrica de Boa Esperança.
No ano de 1970, o A Luta continuava denunciando os problemas elétricos
campomaiorenses. Em editorial de novembro, o periódico citava em sua primeira página
as explicações que a diretoria da CEPISA havia fornecido, para justificar as constantes
faltas de energia, argumentando que o problema mais comum era porque os quatro
motores usados na usina termelétrica sofriam sobrecargas. A diretoria da empresa
mostrava-se contente com o grande consumo em Campo Maior, e pensava inclusive
“em transferir um motor existente em Oeiras, que, a partir de 30 do corrente, passará a
ser beneficiada pela COHEBE” (A LUTA, 07 de novembro de 1970, p. 01). A matéria
refere ainda que o problema no fornecimento de eletricidade pela manhã era
responsabilidade da firma que fornecia óleo diesel para a CEPISA, que não vinha
abastecendo com a quantidade suficiente de modo a evitar a falta de energia. Por fim, o
jornal explicita sua expectativa em relação à eletricidade fornecida pela COHEBE:

Resta-nos agora ter um pouco de compreensão e esperar pela energia de Boa


Esperança, que se torna cada dia mais próxima da realidade. Caso a
COHEBE não possa fazer a ligação antes de março, teremos a transferência
do motor de Oeiras ainda em dezembro (A LUTA, 07 de novembro de 1970,
p. 01).

No mês seguinte, Carlivan, um dos colaboradores do jornal mencionou


novamente o quanto era aguardada a energia de Boa Esperança, colocando-a como
símbolo do momento promissor modernizante de Campo Maior:

Observem que Campo Maior está atravessando, juntamente com as 2 maiores


cidades3, em importância do Estado, uma fase de transição altamente
promissora. Não esqueçam de que mais uma etapa de infraestrutura estará
sendo implantada aqui, quando da chegada da energia da COHEBE. Bem
vinda, seja (A LUTA, 19 de dezembro de 1970, p. 05).

Nesse contexto, na transição do ano de 1970 para 1971, as notícias acerca da


implantação das novas instalações tornam-se constantes, sobretudo em decorrência da
inauguração da hidrelétrica em 1970. Em matéria de fevereiro de 1971 o jornal

3
As cidades as quais Carlivan fazia referência eram Teresina, capital do estado, e Parnaíba, cidade
localizada na região litorânea do Piauí.
estampava a matéria intitulada “Virá energia da COHEBE até 1° de julho”. O A Luta,
novamente ao se referir à eletricidade gerada em Boa Esperança, trata-a como uma
“redenção”, pois, seria o momento de abandonar o que era obsoleto, em nome do
moderno, energia de melhor qualidade, sem as frequentes interrupções da usina movida
a óleo diesel. Conforme a matéria em tela:

O Dr. Adalberto Medeiros, responsável pela montagem das subestações da


Companhia Hidroelétrica de Boa Esperança, afirmou que Campo Maior se
banhará da luz redentora da COHEBE, até o dia 1° de julho deste ano. A
informação [...] decerto deixará os campomaiorenses contagiantes de
contentamento (A LUTA, 20 de fevereiro de 1971, p. 02).

Enquanto não era efetivado o funcionamento da energia “redentora”, o periódico


continuava a estampar em suas páginas os frequentes problemas ocorridos na usina
termelétrica administrada pela CEPISA. O motor que havia sido especulado que viria da
cidade de Oeiras não havia chegado ainda, apesar das solicitações dos representantes da
Câmara Municipal campomaiorense. O jornal afirmava que “a antiga capital do Estado
banha-se agora de abundante luz da Barragem de Boa Esperança”, portanto não
precisava mais dos antigos motores. A opção havia sido o conserto do motor danificado
que compunha a usina de Campo Maior, que até então estava funcionando com
capacidade limitada, conforme pode-se inferir:

Desde o dia 1° de abril voltou a regularizar se a iluminação pública da


cidade. [...] A normalização veio com um motor que acaba de ser trazido de
Teresina, para onde fora levado daqui a fim de que fosse consertado. Com a
ausência do aludido motor, três motores estiveram em funcionamento e estes
não suportavam todo o consumo de energia elétrica. A luz na via pública traz
tantos benefícios, sobretudo aos jovens que estudam no turno da noite. A
CEPISA porém, deve, ainda, proceder à verificação dos postes para saber
quais não têm lâmpadas, pois há vários trechos da cidade que continuam às
escuras (A LUTA, 03 de abril de 1971, p. 02).

No ano de 1971, a tão aguardada eletricidade oriunda da usina de Boa Esperança


chegou a Campo Maior. Os constantes problemas que ocorriam desde a implantação da
energia elétrica no ano de 1932, e que estiveram presentes tanto na usina movida à lenha
quanto na que era impulsionada por óleo diesel, ficaram mais distantes do cotidiano
campomaiorense, visto que a energia fornecida pela COHEBE era bem mais estável e
menos sujeita a interrupções. Tal conquista material e simbólica juntou-se a outras que
ocorreram durante o período analisado, compondo o quadro de cidade moderna que as
elites governamentais e o jornal A Luta propagavam.
Em uma matéria do ano de 1972, um colaborador do jornal que assinou como
Dr. José Miranda sublinhava sobre Campo Maior que “a gente sai por aí e chega a ficar
boquiaberto e pasmado de ver como cresceu a cidade e como tem tantas construções
novas e modernas aos quatro cantos dessas inúmeras avenidas”, e acrescenta: “tudo
polido, muito atualizado. Uma beleza de cidade, enfim” (A LUTA, 03 setembro de
1972, p. 04.). Vale lembrar, a década de 1970 foi quando as representações de cidade
moderna estiveram em maior evidência.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme se analisou, é perceptível que o A Luta dedicou bastante espaço para a


problemática da luz elétrica em Campo Maior, sendo um dos temas principais do jornal
entre os anos de 1969 e 1971, época em que estava ocorrendo o processo de transição da
usina elétrica movida a óleo diesel para a eletricidade oriunda da COHEBE.
Nesse contexto, o periódico agiu de modo a pressionar as autoridades locais para
que solucionassem o problema, ou seja, para que acelerassem na medida do possível a
implantação da “redentora” eletricidade gerada pela Companhia Hidrelétrica de Boa
Esperança. Em período posterior ao início do funcionamento da energia da COHEBE,
também encontram-se indicações de interrupções no fornecimento de energia, porém,
em quantidade bem menor do que era noticiado na época da usina movida a diesel. O
trecho a seguir ilustra bem o modo como o periódico referia-se aos problemas elétricos
da COHEBE, pois, como observa-se, a notícia têm um caráter informativo, e não de
crítica:

O Escritório local da Cepisa comunica os seus usuários de que recebeu


comunicação da Cohebe sobre o desligamento de energia elétrica amanhã,
dia 8 das 05 às 11 horas, para serviços de manutenção na rede (A LUTA, 07
de outubro de 1972, p. 01).

A eletricidade gerada em Boa Esperança possibilitou melhorias em iluminação


das vias e logradouros públicos, no cinema, nas instalações e funcionamento da empresa
Frigoríficos do Piauí S/A (FRIPISA), viabilizou a iluminação das margens do açude que
há em meio à cidade, constituindo-se num importante ponto turístico, além de outras
áreas que foram beneficiadas, tanto pela estabilidade da energia elétrica, quando por ter
maior potência que os antigos motores a diesel, que tinham capacidade de fornecimento
bem mais limitada.
Entretanto, é relevante também sublinhar o caráter excludente do símbolo
moderno em destaque, visto que era acessível a quem tivesse condições financeiras para
pagar as instalações elétricas necessárias, ou seja, a população mais pobre teria que
continuar utilizando lamparinas abastecidas a óleo diesel. Além disso, as áreas urbanas
que foram beneficiadas quando da chegada da energia da COHEBE em Campo Maior,
foram as que ficavam localizadas na zona central da urbe, pois, na concepção dos
gestores municipais, o importante era modernizar e embelezar as áreas que
consideravam principais e eram mais visíveis.
O jornal A Luta, durante as décadas de 1960 e 1970, período em que circulou,
assumiu uma postura acrítica em relação ao regime político ditatorial instalado,
concentrando suas matérias mais no cotidiano da cidade, e, de modo geral, elogiando os
aspectos da modernização que era efetivada no espaço citadino campomaiorense,
contribuindo fortemente para a construção do discurso de Campo Maior enquanto
cidade progressista, representando-a como uma das mais modernas do Piauí.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
.
ARANHA, Gervácio Batista. Seduções do moderno na Parahyba do Norte: trem de
ferro, luz elétrica e outras conquistas materiais e simbólicas. In: AGRA DO Ó, Alarcon.
A Paraíba no Império e na República: estudos de história social e cultural. 2. ed. João
Pessoa: Idea, 2005.

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