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Protestantismo em Revista, São Leopoldo, RS, v. 27, jan.-abr.

2012 95

Três percepções sobre o homem na perspectiva


de Battista Mondin

Three perceptions on man in the perspective of Battista Mondin

Por Gilson Xavier de Azevedo


Pedagogo Licenciado em Filosofia (FAEME-RO)
Bacharel em Teologia Social (Mackenzie-SP) Esp. em Adm.
Escolar e Coor. Pedagógica (Veiga de Almeida-RJ)
Professor de Filosofia do Direito (FAQUI)
Professor de Políticas Públicas (UEG)

Por Simone Maria Zanotto Azevedo


Teóloga (Mackenzie-SP) Filósofa (FAEME-RO

Resumo
Este artigo investiga o ser humano sob o ponto de vista Keywords
conceitual, a partir das perspectivas filosófica, Humanities. Anthropology. Philosophy. Theology. Man.
antropológica e teológica. A pesquisa não deseja esgotar
qualquer uma das três instâncias, mas apenas discutir
tais percepções tendo por base bibliográfica o
posicionamento de Battista Mondin. O ser humano
subsiste nos mais variados contextos e formas, restando
às ciências humanas a gentil tarefa de perscrutá-lo e
tentar entender melhor esse ser arqueológico. Para a
construção desta pesquisa, adotou-se por referenciais os
autores: Eliade (v.d.), Mondin (1982), Rampazzo (1996)
e Berger (1985).

Palavras chave
Humanidades. Antropologia. Filosofia. Teologia.
Homem.

Abstract
This article investigates the human being under a
conceptual point of view, built from philosophical,
anthropological and theological perspectives. The
research does not intent to exhaust any of these three
instances, only to discuss such perceptions based in
Battista Mondin’s thought. The human being subsists in
the most varied contexts and forms, leaving to the
human sciences the task of reading and understanding
this archaeological being. For this purpose, this research
is based on the following references: Eliade, Mondin,
Rampazzo and Berger.

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Chamaria esta interrogação inicial de a


maior questão da humanidade e determinar o
lugar do homem no cosmos é uma tarefa tanto
Que mistério insondável é o homem!
teológica quanto antropológica, pois sua
Quantos livros, tratados, pergaminhos,
existência metafísica, seu início físico, psíquico
dissecação e revelações; quantos séculos
e espiritual no mundo bem como suas
desde que ele pisou no palco da história e
possibilidades e realidades são objetos
continua sendo um mistério. Das áreas
importantíssimos para as determinações a que
que dele se ocupam aqui pretende-se
nos propormos. Martin Heidegger na sua
abordar três delas, a saber, a Filosofia,
exposição existencialística afirma que em
que desde suas origens, até hoje, se
nenhuma época houve noções tão variadas a
preocupa com o saber humano, saber este
respeito do homem como na atual; a fim de
que sempre levou o homem a um
tornar eficaz e lúcida trajetória do homem, os
constante abandono à liberdade do saber
filósofos devem continuar seu empenho.1 O
e sobretudo do existir; a Antropologia
termo antropologia se tornou popular com Kant
que se dedica de modo estreito com o
que lançou uma de suas obras com esse termo
homem, mas não em uma visão obscura;
nela contido, definindo-o como uma doutrina
a antropologia procura ver o homem em
do conhecimento do homem de forma
seu corpo, na cultura, um ser que
ordenada; no entanto, o termo tem uma história
conhece, que se relaciona por meio da
mais longa e antes de Kant (1798) Casmann
linguagem, que vive em sociedade, que
(1596) lança uma obra com o título psicologia
sente necessidade da experiência com o
antropológica, na qual trabalha a questão da
sagrado e sobretudo o ser que ama; a
alma e do corpo no ser humano.
Teologia Bíblica que vê o homem como
imagem do ser que o criou, mas que não
O estudo antropológico, segundo Mondin,
só criou, mas lhe deu todas as faculdades
pode tomar três rumos diferentes sendo que o
necessárias para que pudesse crescer e
primeiro trataria do homem sob o prisma
dominar a terra.
físicosomático (física anatômica, fisiologia,
patologia, zoologia e paleontologia). O
O que tem o homem de humano? Essa
segundo âmbito antropológico observa o
grande questão sempre esteve presente nas
homem sob o aspecto de sua origem histórica,
mais diversas áreas da ciência de todos os
etnológica ou cultural (psicologia e sociologia).
tempos. Qualquer pessoa pode dar uma
E o terceiro rumo antropológico vê o homem
definição, até convincentemente segura, porém
do ponto de vista existencial ou filosófico.
incompleta do grande universo contido nesse
pequeno ser. Em alguns de nós, tal
Embora o termo seja recente, o
interrogação pode passar por indiferença, a fim
estudo do homem sempre existiu,
de que outro se preocupe da resposta
sobretudo no âmbito da filosofia grega e
convincente, porém não pode-se fugir desse
cristã, no seus mais variados períodos
importantíssimo problema, igualmente difícil e
históricos; e é claro que as definições
a história o atesta claramente; desde os
foram as mais variáveis possíveis. O
primórdios da filosofia grega a Epígrafe
homem platônico é essencialmente alma,
conhece-te a ti mesmo já revelava a
sendo essa imortal deveria o quanto antes
necessidade de explicar a maravilha existencial
retornar a seu mundo de origem. Já o
do ser humano, e sem a pretensão de reunir
homem aristotélico é composto de alma e
resultados pretensos todos os grandes filósofos
corpo, como os demais seres do mundo,
deram sua contribuição para história da
pesquisa humana. 1 Cf. MONDIN, B. O homem: quem ele é? 4. ed. São
Paulo: Paulinas, 1982. p. 8. v. 3,

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desempenhando a alma deste no papel de antropológicas. Tem-se então depois de


forma, mas não escapa da corrupção. Em Kant, em A crítica da razão pura, o fim
Plotino, surge a noção de noesis, ou da busca metafísica dos filósofos da
conhecimento intelectivo presente época renascentista. A mente humana
unicamente na alma e as demais funções não conceberia um conhecimento
ficam ao encargo do corpo.2 Com o absoluto nem do mundo, nem do homem
advento do cristianismo, o homem não só e nem de Deus, pois só concebe aspectos
se relaciona com a natureza, mas com práticos ou morais, segundo A crítica da
Deus e com outros homens, sendo que a razão prática.3 De um modo geral, a
reflexão antropológica se dá a partir do perspectiva moderna traz em si
conhecimento de Deus (teocêntrica). Se simultâneas eclosões que tentam afunilar
olharmos nos olhos de Santo Agostinho, a imagem do homem e assim tem-se: em
vê-se uma paixão extraordinária pelo Marx um homem econômico, em
homem. Nele a filosofia de Platão ganha Kierkegaard um ser angustiado, em
nuança no que diz respeito ao Bloch é utópico, em Ricouer é falível e
pensamento sobre mal, pecado, em Gadamer é hermenêutico. Já em
liberdade, pessoa e autotranscendência. Marcel, o homem é um ser problemático
que se torna cultural em Gehlen e
Pouco mais tarde, esbarramos em profundamente religioso em Luckmann.
uma concepção bem mais sólida
concatenada por São Tomás, na qual o No ponto em que estamos, vale
homem se compõe de alma e corpo, perguntar se é positivo tal
ambos têm seu próprio ato de ser e sua empreendimento acerca do ser humano.
unidade é substancial. Com o A esta questão, crê-se ser de grande valia
modernismo, a pesquisa antropológica sim conhecer a essência do homem e de
toma outros rumos do que os côsmico- sua história; e tanta a filosofia quanto a
gregos e os teocêntricos, e passa a antropologia se dedicam a tal fim, e
considerar o homem o ponto de partida destas a filosofia é a que busca resposta
de toda pesquisa filosófica e isso se dá total e última para o que seja globalidade
com a pesquisa crítica de Descartes. A humana.
ética de Spinoza tem como presuposto a
vida humana que em Hume é Sabe-se então que conhecer o
configurada como em um quadro homem se mostra uma necessidade real,
completo de ser social; tem-se então mas como em qualquer ciência deve-se
Freud que modernifica os complexos e perguntar que método usar? Seria o
instintos humanos, e em Heidegger tais fenomenológico de Husserl ou o
instintos tomam o nome de hermenêutico de Gadamer? Fabro,
possibilidades. Em suma, todos os filósofo pouco popular, propôs o método
filósofos, direta ou indiretamente, da introspecção. Esses outros métodos se
tiveram algum contato com as questões mostram bastante específicos e tal
pesquisa necessita de métodos
2 “O homem é capaz de maneja seu corpo, universais. E é justamente aí que a
adestrá-lo e torná-lo apto de realizar
movimentos de uma perfeição admirável; antropologia se difere das demais
para ele, o corpo é um elemento essencial, ciências, pois a antropologia compreende
pois sem ele não pode alimentar-se, não só um, mas dois aspectos, um físico
reproduzir-se, aprender, comunicar-se, e outro psíquico. Por fim, pode-se
divertir-se. É mediante ao corpo que o
homem é um ser vertical, é um ser no perceber que o método acertado é
mundo”. RAMPAZZO, Lino. Antropologia: peculiar à antropologia, devendo levar o
religiões e

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estudo o mais perto possível da essência instrumentos musicais, a arte (pintura,


do homem. escultura, etc.) e o que diz respeito à religião e
Contudo, deve-se saber de antemão que à literatura como línguas, poemas, romances,
certas disposições obscurecem o que seria o ritos, cultos e tudo mais, revelam o que há de
verdadeiro estudo antropológico. Mondin os mais intrínseco na arte de fazer cultura. De
expõe de duas formas: o descrédito de que o duas maneiras pode-se iniciar nosso estudo;
homem é substancialmente diferente dos partindo de uma perspectiva subjetiva e outra
animais e que em si é um problema metafísico; objetiva. Ver a cultura como exercício das
e a comprovação de um elemento metafísico no faculdades espirituais seria o aspecto subjetivo,
homem para evidenciar sua existência. Estes aqui a cultura tem um sentido platônico. Na
constituem o espírito materialista e o perspectiva objetiva, o homem é construtor do
espiritualista. O avanço científico e sua seu meio através das faculdades espirituais e
multiplicação excessiva no que se refere a sobretudo alteridade ela possuirá. Niebuhr
áreas especificas trouxeram a cultural definira como similar o ambiente artificial e
materialista e o aprofundamento puramente secundário que o homem impõe ao meio
metafísico geraram o que chamamos cultura natural; a natureza aqui faz com que os animais
espiritualista. Crê-se então que para conhecer o a ela se adaptem e pela cultura o homem faz a
homem precisamos agir como descrever natureza adaptar-se a ele. Outro filósofo
Gaarder, chegando à ponta dos pelos de um famoso, Kroeber, em seu conceito de cultura,
coelho que o grande mágico retira da cartola, transparece nela o resultado de sociedades
ou seja, não se deve contentar com simples humanas. Nosso quarto filósofo define cultura
conclusões introduzidas em nossa cultura pela como um conjunto de significados e valores
brecha do senso comum, deve-se buscar a que denotam um modo peculiar de vida, assim
verdade real do único ser que busca entender o existem tantas culturas quanto são seus
universo em que está inserido. significados.3

Se cultura esta ligada diretamente à


O homem: filho e pai de sua cultura
natureza, o que as difere? Guardini, um
filósofo alemão, entende natureza como
totalidade das coisas que existe antes que o
homem faça alguma coisa, ou seja, aquilo que é
antes de um homem chegar; e a cultura aquilo
que o homem adquire e produz de per si. De
valores cristãos. São Paulo: Loyola, 1996. p. várias formas, a relação homem e natureza é
32s.
vista através dos séculos. Do mundo clássico
3
“Quanto ao lugar devido da antropologia no âmbito das
disciplinas filosóficas, Kant o fixa na introdução à lógica ao romântico, a natureza era o centro, e o
do seguinte modo: ‘O campo da filosofia pode ser homem, órgão dela, e assim a cultura a
encerrado nas seguintes questões: O que posso saber? extensão da natureza o que abre o leque
(metafísica) O que devo saber? (moral) O que posso disforme de possibilidades, das quais o homem
esperar? (religião) E o que é o homem? (antropologia)’”. extrai seu mundo cultural. Desta forma, se o
homem humaniza a cultura o mundo naturaliza
MONDIN, 1982, p. 12. o homem.
A antropologia cultural teve nos últimos
anos grande desenvolvimento e procura tomar Importa-nos agora vermos três
conhecimento dos produtos culturais da características importantes do conceito de
sociedade onde o homem está. Já que a causa cultura. A primeira delas é o aspecto da
se conhece pelos seus efeitos, as cidades, origem: em si, a cultura é humana e obra da
estradas, pontes, ferrovias, catedrais, prédios,
3 MONDIN, 1982, p. 171.

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mente e das mãos dos homens e não de um só história. Paul Tillich, o último filósofo
deles, por isso possui características do ser apontado aqui, considera que quanto
social, o que exclui toda forma privada de mais o sistema, seja filosófico,
cultura. A segunda característica é a forma; sociológico ou outro, for totalitário e
aqui a cultura é sensível a toda e qualquer absolutista (nazismo) mais se mostrarão,
manifestação cultural e espiritual como a mais se tornarão expostos seus elementos
filosofia, a poesia e a arte, mas também religiosos, ainda que terrivelmente
dinâmica e criativa, ou seja, não é congênita ao deformados. Assim, a religião é para
mito do eterno retorno. É antes produto Tillich a essência da cultura, e está a
genuíno do homem que é recriada a cada forma da religião.5
geração, o que a torna múltipla, pois assume
forma e valores diversos. Por fim, olhamos a
Antropologia estrutural
cultura sob o aspecto da finalidade que para
alguns seria religiosa e para outros humanista e
para outros ainda naturalista.4 A primeira metade do século XX foi
na filosofia um período de árduos
Vimos então a natureza da cultura, trabalhos no sentido de tornar a
mas qual seria sua base? Os positivistas e antropologia cultural uma ciência
neopositivistas creem ser a ciência; já os autônoma. Mas, durante os anos 1960,
idealistas, a filosofia; outros, como os estudiosos franceses transmutaram a
marxistas, creem que a base da cultura antropologia cultural para um sistema
está na economia, mas nos interessa filosófico universal chamado
aqueles autores que enxergam ser a base estruturalismo. A tríade homem-
da cultura a religião. São estes entre estrutura-cultura forma a categoria
outros: Tillich, Dawson e Toynbee. Para fundamental da relação social, e rege-se
eles, religião não é produto da cultura sobretudo na teoria de que o ser é mais
mas parte dela, como princípio vital e importante do que as partes, sendo que
essencial dela. É o seu fundamento, essas não se encontram nas relações que
muito embora sofra influência direta do as compõem. Esse movimento é uma
meio cultural em que está. Não obstante, forma de reação ao existencialismo, que
o objeto da religião transcende as formas valoriza o indivíduo e sua independência.
de vida cultural do homem. Em todas as O centro de tudo é o homem. Tal
épocas históricas, Dawson nota ser a perspectiva não demorou em provocar
religião força unificadora da cultura celeumas em meio à evolução da técnica
estando no limiar de todas as grandes que tornava o homem um simples
literaturas mundiais. É por isso que o proletário.
aspecto criativo da formação cultural é
atribuído a figuras míticas e semidivinas. Destacamos então em 1949 a
Para Dawson, a história é um desenrolar publicação de As estruturas elementares
de civilizações e culturas, onde o do parentesco por Lévi-Strauss que, em
surgimento, o crescimento e o fim de
cada cultura é diretamente proporcional a 5 Alguns filósofos veem que a origem da
cultura se localiza no rito. Segundo van der
uma determinada religião de uma época Leeuw, o rito é o núcleo estabilizador no qual
constitutiva. A esse respeito, Toynbee o material caótico de potências
afirma que depois da queda de cada indiferenciadas é retomado seletivamente e
cultura, surge uma nova religião que estruturado, para depois desdobrar-se nos
modelos ordenados de uma ordem
defines os próximos rumos dessa sociocultural. O rito contém uma cultura; sua
coletividade torna-se grupo e o grupo cria o
4 MONDIN, 1982, p. 175. mundo. MONDIN, 1982, p. 179.

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tese, sintetiza o primado das estruturas demais seres do mundo, no que diz respeito ao
culturais. Lévi-Strauss considera a pensamento, liberdade, trabalho, sociabilidade,
humanidade como uma realidade em técnica, divertimento e palavras. Segundo
contínuo devir, onde as instituições se aspecto, transcendência do homem em relação
transformam permitindo que emerja a a si mesmo, pois que tudo que realiza,
estrutura e as múltiplas formulações em dispensa, quer, desejo, nunca se vê em
meio a muitos acontecimentos condição de plenitude e sedentariedade; o
históricos.6 O movimento científico de homem nunca se satisfaz, e é justamente nesta
Lévi-Strauss denota todas as tensão que o homem supera a si mesmo; esse
interpretações de devires metafísicos. estar sempre fora de si e além de si é o que lhe
Talvez a proposta mais séria do dá se verdadeiro ser.
estruturalismo foi, a partir de leis
impessoais da coletividade, seja tentar Entre os filósofos muito em voga em nosso
explicar aspectos conscientes da vida trabalho, a autotranscendência encontrou
humana por meio dos inconscientes. De amplo reconhecimento e dedicação, sobretudo,
certo modo, o estruturalismo denuncia a entre existencialista, marxistas e pensadores
ação opressiva das relações das católicos. Entre os primeiros, Sartre dedica-se à
estruturas atuais sobre o homem, porém autotranscendência com a proposição de dar
o próprio estruturalismo peca quando consciência aos dons de estabilidade, bem
transforma fatos históricos em princípios como objetividade e base às coisas. Heidegger
filosóficos quando deveria jurar os fatos demonstra que a autotranscendência e
à luz dos princípios decodificando a constituinte do homem, o qual está sempre em
liberdade. O que é menos tolerável em busca de algo fora dele. Jaspers toma a questão
Lévi-Strauss é querer reduzir o estudo do do homem como possuidor de uma certa
homem ao estudo das suas obras, ao autotranscendência em sua consciência. No
ponto de seus discípulos considerarem a homem de Jaspers, a dor, a angústia e a morte
história como sem iniciativas humanas, constituem uma certa inelutabilidade frente a
de tal maneira que o homem estaria por sua ânsia pelo infinito de si mesmo. Ainda
desaparecer. segundo Marcel, as situações de limites,
inquietação e angústia geram no homem um
O ser autotranscendente encontro-confronto com a autotranscendência.
É a antítese daquilo que é e do que aspira ser.
Dois aspectos devem ser observados ao
nos propormos a analisar o homem sob os Na ágora marxista, a noção de
parâmetros teofilosóficos. São eles a transcendência era de certo modo rejeitada,
transcendência do homem em relação aos mas entre alguns dos discípulos de Marx é
instrumento fundamental para a compreensão
6 “A antropologia estrutural releva de tal modo do homem. Um deles é Marcuse, evidência a
a questão fundamental da natureza da autotranscendência, mas enfatiza que o homem
inteligência humana, já que isso pode resultar
das sua expressões. O que é esse espírito não é puramente metafísico e sobrenatural, mas
inconsciente que subjaza a todas as com os pés no presente lança-se ao futuro. É o
estruturas? É porventura o equivalente do que chamamos transcendência histórica. Já
Logo dos estóicos, do Intelecto Agente de
Averoés, do Eu Puro de Fichte, e do Espírito Bloch codinomifica o termo em questão de
Absoluto de Hegel?”. MONDIN, 1982, p. elementos utópicos, explorando assim as áreas
182. Na realidade, a curtas lentes é possível do ser humano e as suas atividades, sobretudo
perceber em todos os recônditos da filosofia
uma estranha espera da uma sociedade ou
artísticas. Mas em um de seus livros afirma que
humanidade perfeita, ou até de um dominador a autotranscendência não existe. Karl Popper
que coloque uma forja no mundo em que entende a autotranscendência como uma
vivemos.

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característica fundamental do homem que para o divino está para o homem como o altar
transcende a si mesmo em seus talentos e para o Deus desconhecido que Paulo pregara.
qualidades. Desta forma, o ateu poderá declará-lo vazio; o
agnóstico pode considerar sua investigação
Entre os pensadores católicos, destacamos, inútil e o humanista não permitir tal
por primeiro, Maurice Blondel que evidencia interrogação; mas em todos esses casos a
no ser, no pensar e no agir do homem a orientação para o divino se mostra inata.
autotranscendência. No ser deste homem está
uma certa antinomia entre o que é e o que A religião antropofilosófica
deveria ser, pois pode ser que nunca se torne o
que deseja ou até que transfira seus fins para
horizontes maiores. Rahner demonstra o A religião é muito peculiar no ser
homem como ser aberto que se projeta para a humano e só nele. Ela assume
frente, porém não para um vazio como em proporções notáveis se destacamos esse
Heidegger e nem para um futuro apenas ou aquele grupo. Segundo a antropologia
imaginário, como em Marcuse e Bloch, mas é moderna, desde a primeira aparição do
uma abertura para o infinito, para o absoluto. E homem na história, a religião aí estava
o que ele transcende é o elemento que lhe com ele, e de alguma forma, todas as
confere estabilidade, significado, futuro e culturas são profundamente marcadas
movimento que lhe são próprios e garante-lhe pela religião e os maiores saltos artísticos
validez no sentido existencial. Bartotin realiza e literários da humanidade são
nos seus estudos uma profunda análise permeados de conteúdo religioso. São
fenomenológica das atividades humanas, desse e de outros fatos que vimos
permeando-as da autotranscendência. Bernard emergir em todos os tempos, sobretudo
concede a essência do homem como sendo a modernos, a necessidade da inserção do
autotranscendência e a define como a conquista conteúdo religioso e no contexto
da intencionalidade de atingir o inconsciente. antropológico e filosófico, e fornece
Portanto, a autotranscendência é uma conquista sugestões úteis, indícios preciosos e
pessoal e para chegar a ela o homem tem que inocentes para determinarmos o sentido
primeiro tornar-se consciente e assim tornar-se da vida e da natureza do homem.
perceptivo à investigação e à inteligência que
possui; reflexão e juízo o guiam até o mundo A história do problema religioso
absoluto que independe de sua percepção para como objeto de reflexão crítica atinge
existir mediante a valorização e decisão, o pelos menos cinco áreas da pesquisa
homem então realiza o que é bom, e enfim se científica. Começando pela filosofia tem-
constitui artífice de todo o âmbito da vontade se nomes como Xenófanes, Protágoras,
humano e não apenas de atos isolados.7 Platão, Aristóteles, Lucrécio, Avicenas,
Averróes, Santo Tomás e Agostinho,
No entanto, vê-se em Lonergan que a Giordano Bruno, Spinoza e Locke, além
autotranscendência sempre terá algo de de outros; todos de alguma forma
incompleto em si mesma e por isso questiona trataram acerca da religião, mas só
acerca de Deus. Essa interrogação está sempre através de Hume e Kant é o que vê-se a
presente no horizonte humano graças a sua questão religiosa como ponto central da
subjetividade transcendental, pois ele se projeta reflexão filosófica. Uma ala da filosofia
para o inteligível e incondicionado. O espaço moderna crê na religião privada de
fundamentos objetivos (pura invenção do
7 Bernard de Lonergan crê que após essas fases o
homem), advinda do medo em
homem finalmente atingiu sua autotranscendência. Feuerbach, de prepotência em Marx, de
Cf. MONDIN, 1982, p. 255.

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ignorância em Comte, de ressentimento contra a miséria real, a religião, é o


em Nietzsche, de sublimação dos suspiro da criatura oprimida pela
instintos em Freud e etc. A outra ala da desventura, alma de uma época sem
filosofia que aborda a religião observa e espírito; e o fundamento de sua crítica
vê nela um profundo valor objetivo que religiosa é o seguinte: o homem cria a
coaduna com a realidade última do religião e não a religião o homem; nela o
homem. Hegel, Begson, Scheler, Jasper e homem se aliena buscando felicidade
outros são os que elaboram uma crítica ilusória, um paraíso irreal, induzindo o
construtiva do fenômeno religioso. homem a aceitar as injustiças presentes
Talvez pela influência de Kant e Hume, como provas e punições sem querer lutar
Feurbach tenha negado a realidade por uma vida melhor.
religiosa ao ateísmo, pois na afirmação
de Feuerbach acerca da religião notamos Talvez o maior expoente do ateísmo
ser Deus pura ideia humana que só nele do século XIX seja Augusto Comte. Em
encontra realização; é portanto a seu pensamento, o universo procede da
realidade suprema não Deus, mas o matéria por meio da evolução, sendo o
homem. Assim, crê na existência homem produto desta. Depois dele, a
ultraterrena não é senão crer na vida história religiosa toma três caminhos
terrestre da forma que deveria ser e assim distintos: um religioso, um metafísico e o
transpõe para as pessoas da Trindade, a científico. Na época religiosa, o homem é
vontade, a razão e o amor humano. A mítico e atribui os fenômenos naturais a
crítica de Feurbach tem como objeto, causas sobrenaturais; na metafísica,
portanto, intrometer o infinito no finito e explica os fenômenos por meio de termos
nunca o contrário. como substâncias, acidentes, essência e
ser. Na época científica, consegue
Isso posto, é importante não elaborar uma explicação racional do que
reduzirmos o pensamento feuerbachiano o cerca. Em Comte, ao atingir a idade
a um detonador religioso; pois ele adulta, o homem deixa a religião e a
considera a religião como necessária ao humanidade se torna um grande Deus
homem; no entanto, propõe um alerta (um conjunto de seres passado, futuros e
contra possíveis ilusões religiosas que presentes que concorrem livremente para
hipostasiam os ideais humanos como se aperfeiçoar a ordem universal). Comte
ele fosse estranho a si mesmo. Tal até elabora um calendário positivista,
possibilidade é a grande fraqueza da onde os santos são substituídos por
religião e a causa de fanatismos. grandes figuras da arte, da política e da
ciência; e até elaboram um sinal da cruz
O pensamento religioso de Karl em lugar da Trindade que remonta o
Marx não foi diferente, pois também era grande ser, a humanidade; o grande
discípulo de Hegel; no entanto, foram ídolo, a terra; e o grande meio, o espaço.
aspectos históricos e sociais que
tornaram a filosofia de Marx ateísta. Sua Não se pode deixar de fora a contribuição
busca de construção de uma ordem social de Nietzsche, no qual Deus morreu. A questão
ideal tinha apenas um caminho, a religiosa para esse filósofo nunca teve
demolição das estruturas sociais vigentes nenhuma importância, e a tudo que é
em sua época e com isso o confronto transcendente ele jamais dera atenção, pois é
com a religião. Para Marx, a religião é o pura invenção dos homens, mas, não dos fortes
ópio do povo, a expressão da miséria para manter dominados os fracos, e sim dos
real, mas pode vir a ser um protesto fracos para refrear o poder dos fortes, dos

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super-homens. No cristianismo, segundo Mondin e levadas a extremas consequências


Nietzsche, só os miseráveis alcançam sobretudo por Hamilton, Altizer e van Buren,
felicidade e salvação; os aristocratas serão aplicando a lógica a alteridade de Deus e
sempre maus e perversos. concluindo que somente a proclamação ateia
do cristianismo pode ser acolhida pelo homem
Na crítica teológica, os teólogos tomam do século XX.9
dois rumos. Os teólogos católicos assumiram a
postura de ver na religião um vínculo natural Além de filósofos e teólogos, profissionais
do homem para o criador. Já os teólogos de outras áreas vêm se dedicando à pesquisa e
protestantes assumem uma postura crítica de esclarecimento da origem e natureza do
refutação e condenação, onde a religião é uma fenômeno religioso. Entre eles, tem-se Tylor
abominação da mente e do coração humanos. que se baseia em Darwin e Spencer explicando
No Concílio Vaticano I, a condenação do que o princípio religioso também obedece à
ateísmo se torna o erro mais pernicioso de teoria da evolução, sendo no começo simples e
todos, e expressão da soberba da época da imperfeita (animista) e com o passar do tempo
Idade Moderna, além de não poder ser aceito vai se tornando complexa. Gostaria em síntese
sem culpa pelo indivíduo. A tese do valor de tratar aqui daquele que se considera hoje o
negativo da religião e teologia natural mais autorizado nos assuntos religiosos em
intitulados por Lutero e Calvino foi reproposta seus múltiplos aspectos. Seu nome é Micea
por Karl Barth. Neste, diante de Deus, o Eliade.10 Ele propõe o princípio de que a
mundo, a história e a filosofia são ordenação cria o fenômeno. Ou seja, para ser
problemáticas perversas, pois Deus não é entendido e interpretado corretamente, o
objeto de faculdades humanas e nem de fenômeno deve ser observado segundo a escala
instituições. Esse teólogo condena o que lhe é própria, assim, para conhecer o todo
conhecimento falso e danoso que impede a religioso deve se conhecer as partes, mas tem
busca real da existência de Deus. Ele rejeita que se chegar ao todo. Eliade conclui que o
também qualquer ligação entre Deus e o sagrado é um elemento estrutural da
homem (conhecimento da Palavra de Deus).8 consciência e não um estágio da história, por
isso nunca será esquecido; ainda afirma que o
Em sua crítica da religião, Bultmann, à homem total nunca será dessacralizado por
medida de Barth, faz apelo a razões de ordem inteiro e, apesar da dessacralização, nenhum
filosófica, considerando a religião resultado da homem pode ser reduzido a pura realidade
mentalidade ingênua e imatura da humanidade. consciente irracional. Poderia aqui abordar
Para Bultmann, a história não segue um curso outros teólogos tais como: Berger, Luckman,
constante e regular, mas recebe direção e Acquaviva, Herberg, Spinoza, mas deixase a
movimento de forças sobrenaturais. Ainda a
respeito de Barth, Bonhoeffer desenvolveu 9 MONDIN, 1982, p. 234. O leitor que deseja se
uma crítica inexorável do fenômeno religioso aprofundar em tais teólogos poderá recorrer ao livro
do mesmo autor Os grandes teólogos do século XX,
na qual o tempo em que podia se dizer tudo onde se encontram teólogos católicos e protestante e
com palavras teológicas passou, ou seja, o a forma de pensamento de cada um deles. O livro é
tempo da religião. Os homens não são mais apresentado em dois volumes. MONDIN, Battista.
religiosos, pois o religioso é para ele o ser Os grandes teólogos do século vinte. São Paulo:
Paulinas, 1979-1980. 2v.
diferente. O cristianismo foi sempre uma forma 10 Destacamos aqui alguns livros significativos do
da religião que é uma forma expressiva dos autor, dentre os quais: ELIADE, Mircea. Imagens e
homens que não mais serão religiosos a símbolos: ensaios sobre o simbolismo mágico-
religioso. São Paulo: Martins fontes, 1991; ELIADE,
maneira radical. Enfim, as críticas à religião na Mircea. Xamanismo e as técnicas arcaicas São
visão protestante foram retomadas segundo Paulo: Martins fontes, 1987; ELIADE, Mircea
Simbolismo animal. São Paulo: Martins fontes,
8 Cf. MONDIN, 1982, p. 231. 1990; ELIADE, Mircea. A

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encargo do leitor de interesse aprofundativo e que supera infinitamente o próprio


nos dedicaremos em última instância a um mundo e tudo o que ele contém, inclusive
breve rascunho acerca do termo religião e de o próprio homem; o sagrado contém o
sua relação de antropologia e filosofia.12 valor supremo ao qual todos os valores
se submetem. Em contrapartida, a
O filósofo Lang nos traz que todos essência da religião não se prende a
os que se ocupam da ciência da religião e nenhuma definição estática, pois possui
todos aqueles que desejam favorecer o um elemento subjetivo, bem ao contrário
seu desenvolvimento acabam dando-lhe da filosofia que possui finalidades
uma definição em algum ponto de seu especulativas. Com efeito, a religião
trabalho. Outro filósofo, Leuba, torna-se distinta da arte no que se refere
catalogou nada menos que quarenta e ao elemento subjetivo que é real,
oito definições, e é claro desenvolveu enquanto que o da arte é ideal. Em suma,
mais duas, mas, apesar de se terem embora correlativas, religião e moral são
muitas definições, hoje em dia ainda bem distintas, pois a primeira é encontro
persiste a dúvida de como definir bem o pessoal com Deus e a segunda é a
termo religião. Talvez uma boa definição realização de valores humanos dando
abordada por Mondin seja de que religião forma à vida.
é um conjunto de conhecimentos, ações e
estruturas com que o homem exprime o No que diz respeito à relação da
reconhecimento, veneração com relação religião com a antropologia e filosofia,
ao que é sagrado.13 Tal definição se refere retome-se aqui o problema da religião,
ao sujeito, ou seja, o homem que assume propostas a certo modo concorrentes
uma postura religiosa; isso se refere históricas. O humanismo ateu fala da
também ao objeto que poderia dizer que hipostasia de necessidades e ideais
é a experiência religiosa enquanto tal. humanos; a teologia protestante
Quanto ao sagrado, trata-se aqui de apresenta a soberba e a vaidade da mente
conteúdo de características própria e humana contagiada pelo pecado original;
indefectíveis os secularizados trazem para o problema
da religião uma resposta centrada na
água e os sonhos. São Paulo: Martins fontes,
mentalidade pré-científica e, portanto,
1995; ELIADE, Mircea. O ar e os sonhos. adulta; já os espiritualistas trazem uma
São Paulo: Martins fontes, 1983; ELIADE, exigência fundamental do homem como
Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: sendo a religião; um coeficiente
Martins fontes, 1993.
12
Recomendamos para uma definição mais
fundamental e essencial do processo de
completa do termo a pesquisa do dicionário humanização.14 Em linhas gerais, o
de filosofia: ABAGNANNO, Nicola. homem é naturalmente homo religios; o
Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins homem é carente de inteligência,
fontes, 2001; e EICHER, Peter. Dicionário de
conceitos fundamentais de teologia. São
vontade, cultura e de linguagem; sem
Paulo: Paulus, 1993; os quais poderão ser isso não é homem e senão o é se mostra
consultados pelo leitor deste trabalho. carente de religião. O próprio Feuerbach
que se constituem de quatro afirma que a base da religião está na
características fundamentais. diferença entre homem e animal, pois
esses não têm religião, o homem tem.
O sagrado enquanto sagrado é objeto Scheler, James, Bergson, Eliade e muitos
da religião e de maneira alguma pode ser outros estudiosos dizem o mesmo;
dito como mágico ou ainda como somente quem não é ainda homem não
projeção do homem, mas é sempre algo pode ser religioso, pois não possui

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consciência, em outras palavras não é o personalismo. Também os teólogos se ocupam


que nasceu para ser. Não obstante, o do tema para se referirem a Cristo, em sua
homem pode até evitar a Deus, mas Dele pessoa divina e humana. Psicólogos,
não pode fugir, nunca. educadores, políticos, juristas, além de outros
se dedicaram ao exame da pessoa humana. uma
A finitude do homem, sua contingência e palavra da língua latina, a qual até o começo do
dependência moral fazem abrir-se naturalmente cristianismo designava máscara que ampliava a
à natureza do Ser Superior. Através da ordem voz do ator para comunicar-se com o público.
do universo, o homem pode adquirir um Acredita-se que o termo foi introduzido por
conhecimento reconhecidamente grande sobre Sêneca, sob o qual o termo não perdeu seu
a peculiar existência desse Ser; é aí que a significado. O conceito de pessoa acentua o
dimensão religiosa assume caracteres precisos, singular, o indivíduo, o concreto; já na filosofia
regulados e ordenados. Sobre este patamar é grega assume um papel universal e abstrato. Só
que são erigidas as religiões históricas, tanto as a revelação cristã vem trazer um valor mais
primitivas quanto as evoluídas. absoluto ao indivíduo. A patrística e a
escolástica empreenderam uma análise racional
Para finalizarmos, resta-nos concluir neste e aprofundada acerca do indivíduo que tomou
tomo que o homem dotado de inteligência e uma roupagem filosófica sólida, sobretudo
reflexão toma nesta última, consciência do após as disputas teológicas sobre a Trindade e
sagrado por ser livre, mostra-se apto ou cético. Encarnação para as quais a solução requisitou
Mas na religião é que o aspecto da uma formulação exata do conceito de pessoa.11
autotranscendência entra em ascendência. O
homem não poderia se colocar em relação com Agostinho por certo teve a intenção de
o sagrado se a ele não devesse sua própria encontrar um termo que pudesse aplicar ao Pai,
origem e não fosse para ele voltado como o fim Filho e Espírito Santo sem deles fazer deuses
último.15 distintos e não dissolver a sua individualidade.
O que Agostinho queria era um termo para
designar algo de singular e individual. Para
A pessoa humana
Boécio, a pessoa é uma substância individual
de natureza racional. Tem-se então Tomás de
Aquino que afirma o termo pessoa e designa o
13
MONDIN, 1982, p. 242. que há de mais nobre no universo e que
14
Sobre o termo humanização, recomendamos o livro: subsiste de uma natureza racional.12 A
BERGER, Peter L. O Dossel Sagrado: elementos para
uma teoria sociológica da religião. 3. ed. personalidade não pode ser associada a outras
São Paulo: Paulus, 1985. realidades por ser completa em si mesmo. Daí
que quando um ato de ser proporcionado a uma
Desde que pisou na história pela primeira 11 Zeller comenta que na filosofia antiga não se
vez, o homem, seja pelo mito, seja pela ciência, encontra nenhum termo para designar personalidade.
sempre procurou conhecer-se, desvendar-se. Leipzig afirma que o conceito na antiguidade
continua embrionário até o início da era cristã. O
Em nossos dias chegou a singularidade de si homem antigo é absorvido pela cidade e pela
mesmo com o nome de “ser humano”; no família, submetido a um destino cego, sem nome,
coletivo e de “pessoa” no particular. Daí o superior aos próprios Deuses. O cristianismo em
estudo acerca da pessoa foi frequentemente meio a essas incertezas, leva de improviso de pessoa.
Garaudy diz que o cristianismo criou uma nova
debatido na história da filosofia, porém nunca dimensão do homem, da pessoa humana. Nem os
como hoje. Atualmente, quase todos se padres gregos eram capazes de achar na filosofia
interessam pelo tema, dentre os quais, a grega categorias e palavras para a nova realidade.
MONDIN, 1982, p. 285.
maioria é composta por filósofos. Esta visão 12 AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. 2. ed. Porto
filosófica recebeu da história o nome de Alegre/Caxias do Sul: EST, 1980. I, 29,3.

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certa essência particular a faz existir em si e a comunicabilidade que os filósofos


por si, por isso mesmo é incomunicada e modernos atribui à personalidade deve
incomunicável. Em Descartes, surge um novo ser atribuída a uma atitude de
conceito de pessoa relacionada à disponibilidade centrada na atitude de se
autoconsciência, onde o homem tem garantia oferecer ao que se apresenta. Para
de existir já que pensa a si mesmo; assim Scheler, a pessoa é a unidade vivida pelo
garante que o homem é uma pessoa é afirma vivente e espiritual e não uma coisa
que ele é dotado de autoconsciência. pensada atrás e fora do imediatamente
vivido. É ainda a unidade concreta do ser
A pessoa em Kant designa os seres de atos de essências diferentes, em outras
racionais com os fins racionais em si palavras, o ser da pessoa se funda nos
mesmos. De um modo geral, após seus atos.
Descartes nomes como Hume, Fichte,
Hegel, Royce, Gentile e Sartre Heidegger empreende um estudo
empreenderam estudos profundos acerca excepcional do homem. Para ele, o
da pessoa humana. Vê-se nesses uma homem é um ser-aqui, um ser
certa preocupação intelectualista que sistematicamente fora de si mesmo, sua
reduziu a pessoa humana ao contexto do essência se encontra na transcendência.
pensamento, em contrapartida houve De um modo geral, a antropologia de
pensadores que lutaram contra tais Heidegger caracteriza-se pela superação
posições, entre os quais citamos da oposição entre sujeito e objeto, pois o
Mounier, Scheler, Buber, Marcel, homem é um eu enquanto antológico e
Heidegger e outros. A Charles Renouvier primordial. À medida que o homem toma
que atribuímos o mérito de criar o termo consciência de sua existência, de suas
pessoa de sugerir ao movimento possibilidades, e as traduz em atos,
personalista uma visão concreta e inclusive a morte. Nos Estados Unidos,
individual do homem, a qual fosse aberta também houve muitos adeptos do
para o mundo e para o absoluto, levando personalismo, dentre os quais encontram-
o homem a reconhecer a existência se Royce, Hocking, Connel e Brightman.
criadora, pois um mundo existente por si, Neste, a palavra si (self) designa
eterno, não passa de um mundo que não qualquer consciência, seja ela simples ou
possa dar razão a si mesmo. complexa e a palavra pessoa vale para
um si, autoconsciente, racional e ideal.
Outro filósofo contemporâneo, Seu traço mais característico é a
Emannuel Mounier, adepto de autotranscendência, ele chama de espírito
Renouvier, detecta uma estrutura essa dimensão da personalidade que
psicofísica do homem que a chama de consiste na realização dos mais elevados
existência incorporada. Aqui o homem ideais pessoais.
além de conhecer o universo pode
transformá-lo. O homem em Mounier
Autonomia pessoal
goza de dinamismo, vocação e liberdade.
Gabriel Marcel, também adepto de
Renouvier, é o maior representante do O homem é pessoa porque é dotado
existencialismo católico e do de um modo de ser que supera os das
personalismo. Ele afirma que a pessoa plantas e animais e isso foi evidenciado
humana não pode ser estudada com os ao se examinar as muitas dimensões do
instrumentos ciência, pois não é um homem. A pessoa mais inteligível de
problema, é um mistério. Marcel diz que todas as coisas é um mistério inexaurível

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que se comunica de várias formas


consigo, com as coisas, com Deus e com
os outros. Essa abertura em todas as
direções garante à pessoa em si a graça [Recebido em: abril
da autonomia, da autoconsciência, da 2012 e aceito em:
comunicação e da autotranscendência. maio 2012]
Tal concepção é válida por ser
consciência lógica apresentada pelos
filósofos ao longo da história, e também
porque compreende todos os elementos
principais que os filósofos antigos e
modernos reconheceram na
personalidade.18 Citamos ainda Jaches
Maritain que discorre acerca da
subjetividade que, segundo ele, não é
unidades sem porta e sem janelas como a
mônada de Leibniz, mas exige sim as
comunicações da inteligência e do amor,
a outros e com os outros na esfera do
conhecimento do amor.

18
A saber, autonomia do ser (Tomás, Boécio,
Guardini), autoconsciência (Descartes, Fichte,
Hegel), autotranscendência (Blondel,
Heidegger, Brightman) e comunicação
(Buber, Marcel, Nédoncelle). MONDIN,
, p. 297.
Para concluir, na autotranscendência resta
mencionar que ela é sinal de espiritualidade
pertencente apenas ao homem, sendo esta a
razão profunda pela qual o homem é pessoa e
as coisas não, pois aquele é dotado de espírito,
do qual as coisas são carentes. A
autotranscendência também abarca a
propriedade da personalidade no que se
relaciona com a dinamicidade. Aqui a pessoa
não é um resultado pronto desde o nascimento,
mas um universo de possibilidades, uma
conquista.

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