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A IMAGINAÇÃO COMO ALICERCE BASILAR DA


ARQUITETURA ÉPICA LIMIANA: UMA LEITURA DE
“FUNDAÇÃO DA ILHA”, CANTO PRIMEIRO, DE INVENÇÃO DE
ORFEU, DE JORGE DE LIMA
Luciano Marcos Dias Cavalcanti – bavarov@terra.com.br
Universidade Vale do Rio Verde, UninCor, Três Corações, Minas Gerais, Brasil; https://orcid.org/0000-0002-3990-1493.

RESUMO: Invenção de Orfeu representa uma tentativa de criar um novo mundo verbal e um novo mundo real,
melhor e mais humanizado, uma “ilha” utópica. Mas uma ilha do eterno movimento, transmutável a todo momento
e caracteristicamente órfica por definição, em que a necessidade da criação é privilegiada em todos os sentidos.
Para essa discussão, de cunho bibliográfico-analítico, utilizaremos como suporte teórico e crítico Paz (1972),
Raymond (1997), Monteiro (1965), Lins (1970), Echeverría (1978) e Sá (2000). Neste texto, deteremos nossos
esforços na análise do canto primeiro, “Fundação da ilha”, de Invenção de Orfeu, no sentido de tentar aclarar a
investida poética de Jorge de Lima na elaboração de seu épico por meio da imaginação criadora, alicerce basilar de
sua arquitetura.

PALAVRAS-CHAVE: Invenção de Orfeu; ilha; imaginação criadora.

INTRODUÇÃO

Invenção de Orfeu representa uma tentativa de criar um novo mundo verbal e um novo mundo real
melhor e mais humanizado, uma “ilha” utópica. Mas uma ilha do eterno movimento, transmutável a todo
momento e caracteristicamente órfica por definição, em que a necessidade da criação é privilegiada em
todos os sentidos. O poeta é, então, um visionário que tenta reorganizar o caos em um novo mundo, em
um momento utópico e cristão, caracterizado pelo desejo do reencontro do homem com o éden perdido.
Neste texto, deteremos nossos esforços na análise do Canto Primeiro, “Fundação da ilha”, de Invenção de
Orfeu, no sentido de tentar aclarar a investida poética de Jorge de Lima de elaborar seu épico por meio da
imaginação criadora, alicerce basilar da arquitetura de sua ilha/poema. Para essa discussão, de cunho
bibliográfico-analítico, utilizaremos como suporte teórico e crítico Paz (1972), Raymond (1997),
Monteiro (1965), Lins (1970), Echeverría (1978) e Sá (2000).
O vocábulo “ilha”, constantemente utilizado pelo poeta, recebe uma variada gama de significações,
seja no seu sentido mais usual e histórico de acidente geográfico, da ilha de Santa Cruz (Brasil); ou em
seu sentido metafórico-literário, sugerindo às fabulosas ilhas medievais, as ilhas utópicas renascentistas,
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as ilhas literárias (presentes nas obras de Homero, Camões, Dante, Thomas Morus, John Milton, etc.)
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Travessias, Cascavel, v. 14, n. 2, p. 339-358, maio/ago. 2020.
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A imaginação como alicerce basilar da arquitetura épica limiana: uma leitura de “Fundação da ilha”, canto
primeiro, de Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima | Luciano Marcos Dias Cavalcanti

como também do paraíso bíblico. O poema de Jorge de Lima trará para si todas estas possíveis relações
intertextuais, mas também as transcende para assumir um sentido próprio em Invenção de Orfeu.
Resulta nessas imagens da “ilha-poema” um artifício metalinguístico, utilizado pelo poeta como
teorização da metáfora do “poeta-engenheiro”, que se vale da técnica e do onírico para criar o modelo
da escritura de seu poema. Toda sua linha metafórica questiona-se por meio de seus signos e símbolos e
por sua linguagem e se estabelece na própria escritura do poema. Essa vasta multiplicidade caracterizada
pelo movimento contínuo de Invenção de Orfeu revela-se na diversidade das imagens em movimento, que
busca encontrar a verdade do início dos tempos (anterior à Queda), realizada na poesia e pela poesia.

A “FUNDAÇÃO DA ILHA”

A primeira estância de “Fundação da ilha” estabelece uma proposição no poema em que o poeta
nos apresenta seu herói, seu roteiro e seus objetivos, e nos diz qual é a ilha buscada por ele, uma ilha
utópica. Etimologicamente, a palavra utopia recebe o significado de não-lugar (está fora do tempo e do
espaço). A ilha buscada pelo poeta é também caracterizada de forma semelhante à utopia, pois ela é “de
aquém e de além-mar”, portanto não está em um lugar determinado, não sendo possível localizá-la, como
revelam os termos assinalados: aquém (prep. e adv. do lado de cá de; inferiormente; abaixo; menos [antôn.:
além]) e além (adv. acolá; mais adiante; mais longe [antôn.: aquém.] – s. m. lugar distante; outras terras;
lugar fronteiro a outro – elemento de composição de palavras com o sentido de “além de”: além-mar;
além-túmulo. Dicionário Aurélio - 1986). Desse modo, a ilha limiana pode ser entendida como utópica,
pois situa-se em um lugar que não existe, reportando-nos para uma realidade irreal. É interessante notar
que além da ilha não ter uma localização específica, ela é caracterizada por uma contradição ou pelo
menos por um paradoxo, que é revelado por sua (não)-determinação por meio de palavras antônimas,
trazendo-lhe ainda mais obscuridade. A ilha também pode ser considerada total mesmo não recebendo
nenhuma localização; afinal, pode-se entender que ela ocupa um espaço que vai de aquém até além mar.
Significado este que reforça ainda mais seu caráter utópico. O seu significado final a associa à busca e ao
maior símbolo da fraternidade, o amor, como sugere a primeira estrofe, paródia do épico de Camões 1.

1 É interessante expormos aqui a concepção do lugar e o poder mágico da poesia concebido por Casais Monteiro, o que nos
remeterá ao caráter metalinguístico do poema de Jorge de Lima. Assim diz o crítico: “Mas, de fato, embora sem tornarmos
num sentido demasiado técnico, como não reconhecer como fonte da poesia uma zona que se encontra aquém – ou além –
da coincidência superficial do homem com sua vida cotidiana? Como ignorar que o valor das palavras ganha, na poesia, um
poder de comunicação que seria absurdo se através da linguagem não se estabelecesse qualquer entendimento do homem para
o homem, e do homem para as coisas, que não existe nas palavras quando tomadas unicamente como sinais? É certo que, tal
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como a linguagem da razão, a poesia também procura uma verdade. Mas é uma verdade daquela dimensão humana em que
dois mais dois não é igual a quatro. Nem por isso é uma linguagem do absurdo, muito menos do irreal. O mais estranho poder
da poesia é que torna o mundo mais verdadeiro, exatamente porque, nela, as palavras não funcionam como sinais, ou como
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rótulos, mas como substitutos de alguma coisa que permanece por trás delas. Todas as afinidades que têm sido postas entre a
poesia e as mais diversas formas do ocultismo, resultam exatamente de ser a poesia uma operação mágica, de não poder deixar
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Esta localização indefinida da ilha nos remete também a um tempo original, associado à busca de
um espaço sagrado também sem limites e, portanto, primordial. No tempo primordial dá-se a união entre:
passado, presente e futuro, caracterizando a celebração de um tempo mítico que contém a vida humana
em sua totalidade. Nesse sentido, o passado se torna arquetípico, isto é, um passado que é potencialmente
um futuro aparelhado para se encontrar com o presente. Desse modo, o herói dessa pretendida epopeia
buscará conquistar o espaço primordial através da memória. Este aspecto da simultaneidade presente na
poética moderna nos remete ao desejo do poeta moderno de querer reduzir distâncias através da
possibilidade da aproximação espacial-temporal feita, muitas vezes, por suas metáforas, que associam
termos dissonantes, e também pelo seu desejo de evasão do mundo em que vive. Esta comunhão entre
os três tempos representa uma simultaneidade almejada pela poesia no intuito de eliminar os limites
temporais como vemos de forma explícita na viagem empreendida pelo herói limiano.

Um Barão assinalado
sem brasão, sem gume e fama
cumpre apenas o seu fado:
amar, louvar sua dama,
dia e noite navegar,
que é de aquém e de além-mar
a ilha que busca e o amor que ama.

Nobre apenas de memórias,


vai lembrando de seus dias,
dias que são as histórias,
histórias que são porfias
de passados e futuros,
naufrágios e outros apuros,
descobertas e alegrias.

Alegrias descobertas
ou mesmo achadas, lá vão
a todas as naus alertas
de vária mastreação,
mastros que apontam caminhos
a países de outros vinhos.
Esta é a ébria embarcação.

Barão ébrio, mas barão,


de manchas condecorado;
entre o mar, o céu e o chão
fala sem ser escutado
a peixes, homens e aves,
bocas e bicos, com chaves,
e ele sem chaves na mão. (LIMA, 1958, p. 627)
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de se reconhecer na transfiguração da palavra que se opera na poesia, qualquer forma de alquimia, uma transformação do mais
vil no mais nobre metal.” (MONTEIRO, 1965, p. 31)
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Invenção de Orfeu apresenta, já no seu início, pelo menos três das temáticas mais importantes e
constantes do poema: a do herói (representado pelo próprio poeta que cumpre uma missão – Barão ébrio
–, o que lhe dá um caráter cristão por estar sujeito à vontade de Deus); a da viagem (que pode representar
tanto a própria vida do homem, que metaforicamente “viaja” de seu nascimento até a morte, como
também de uma viagem apenas imaginária e metalinguística) e a da ilha (que é a meta do herói e pode
representar a metáfora central do poema).
Comecemos por delinear alguns elementos importantes presentes nesta estância, destaca-se,
primeiramente, a figura do Barão (como é caracterizado o herói do poema), que carrega, originalmente,
o sentido de nobreza, conduzindo-nos a uma imagem característica do herói marcado por atitudes de
coragem e de grandes feitos, remetendo-se diretamente ao herói camoniano d’Os Lusíadas. A relação deste
com o herói limiano, no entanto, é em seguida desconstruída por meio de sua caracterização como
“ébrio”, que imediatamente o associa à tradição poética da modernidade (O barco bêbado, de Rimbaud).
Posteriormente, encontramos um elemento que se mostra de grande importância para todo o poema,
uma “chave”2, pois ela simboliza uma espécie de artefato capaz de restaurar a harmonia perdida pelo
homem com a Queda. É a busca deste artefato e/ou da reconquista da perfeição que sustenta a aventura
do herói-poeta em sua epopeia. Esta busca mítica fundamental da humanidade e suas referências
intertextuais às epopeias clássicas também nos remetem ao poder revelador da palavra poética. Nesse
sentido, o paraíso perdido é recuperado através da palavra, da poesia. E, desse modo, outro elemento
importante no poema de Jorge de Lima se apresenta nessa estância, Orfeu. Herói de sua epopeia que se
confunde com o próprio poeta e seu ofício, ele é a figura que orienta a busca da harmonia perdida.
Portanto, a chave buscada está dentro do próprio herói, é a própria poesia ou a palavra poética.
A segunda estância acrescenta novos elementos a esta ilha “utópica” buscada por seu herói. Esta
ilha subjetiva e idealizada pelo poeta como um espaço sagrado apresenta-se caracteristicamente através
da imaginação criadora associando-se ao insólito, pois se busca algo que já se sabe onde se encontrar e
que ao mesmo tempo ninguém consegue encontrar.

A ilha ninguém achou


porque todos a sabíamos.
Mesmo nos olhos havia
uma clara geografia.

Mesmo nesse fim de mar

2 Em suas “Memórias”, o poeta se refere a uma chave que marcou suas lembranças. Isso pode significar que realmente Jorge
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de Lima está em busca desse momento, do retorno à infância perdida. Nesse sentido, a viagem empreendida pelo nauta-poeta
em Invenção de Orfeu representaria a tentativa de reconquistar esse tempo paradisíaco da infância: “Lembrança da Casa-grande
tenho muita que depois tratarei, como por exemplo da sala das chaves, chaves enormes de ferro penduradas a seus ganchos:
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trinta com os destinos, do paiol, do escritório, da despensa, da capela, capela de Santana onde havia missal no altar-mor e
sacristia com gavetões de jacarandá.” (LIMA, 1958, p. 99)
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qualquer ilha se encontrava,


mesmo sem mar e sem fim,
mesmo sem terra e sem mim.

Mesmo sem naus e sem rumos,


mesmo sem vagas e areias,
há sempre um copo de mar
para um homem navegar.

Nem achada e nem não vista


nem descrita nem viagem,
há aventuras partidas
porém nunca acontecidas.

Chegados nunca chegamos


eu e ilha movediça.
Móvel terra, céu incerto,
mundo jamais descoberto.

Indícios de canibais,
sinais de céu e sargaços,
aqui um mundo escondido
geme num búzio pedido.

Rosa-de-ventos na testa,
maré rasa, aljofre, pérolas,
domingos de pascoelas.
E esse veleiro sem velas!

Afinal: ilha de praias.


Quereis outros achamentos
além dessas ventanias
tão tristes, tão alegrias? (LIMA, 1958, p. 627)

O que Jorge de Lima parece realmente almejar em seu poema é uma espécie de viagem interior;
nesse sentido, a ilha não pode ser encarada somente por seu significado geográfico (de um punhado de
terra cercado de água por todos os lados). Esta ilha pode estar dentro mesmo do poeta (ou de qualquer
pessoa) e é por isso que todos a conhecem. Outro ponto considerável e revelador presente nessa estância
é o caráter de síntese que este fragmento do poema apreende. Nele, encontramos metalinguisticamente
concentrada grande parte do significado da poética de Jorge de Lima e, a nosso ver, o caráter onírico e
imaginoso é predominante. Nesta pretendida viagem sem uma rota certa, paradoxalmente não é preciso
que seu viajante necessite se deslocar de um lugar a outro, mas sim de um pouco de imaginação. Dessa
forma, uma das características da poesia moderna que se impõe a Invenção de Orfeu é seu rompimento com
a concepção tradicional do tempo e do espaço. Octavio Paz observa que com o rompimento do tempo-
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espaço antigo:
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[...] mudou a imagem do universo e mudou a ideia que o homem fazia de si mesmo: não
obstante, os mundos não deixaram de ser o mundo nem o homem os homens. Tudo
era um todo. Agora o espaço se desagrega e se expande; o tempo se torna descontínuo;
e o mundo todo, se desfaz em pedaços. Dispersão do homem, errante em um espaço
que também se dispersa, errante em sua própria dispersão. Em um universo que se
desafia e se separa de si, totalidade que deixou de ser pensável exceto como ausência ou
como coleção de fragmentos heterogêneos, o eu também se desagrega. Não que tenha
perdido a sua realidade ou que o consideremos como uma ilusão. Ao contrário, sua
própria dispersão multiplica-o e fortalece-o. Perdeu a coesão e deixou de ter um centro,
mas cada partícula se concebe como um eu único, mais fechado e obstinado em si
mesmo que o antigo eu. A dispersão não é pluralidade, mas repetição: sempre o mesmo
eu que combate cegamente a um outro eu cego. Propagação, multiplicação do idêntico.
(PAZ, 1972, p. 101-102).

E continua o crítico, nesse momento, refletindo sobre o tempo da técnica:

O tempo da técnica é, por um lado, ruptura dos ritmos cósmicos das velhas civilizações;
e por outro, aceleração e, por fim, abolição do tempo moderno. De ambos os modos é
um tempo descontínuo e vertiginoso que elude, se não a medida, a representação. Em
suma a técnica se funda em uma negação do mundo como imagem. (PAZ, 1972, p.
103).

Portanto, esta viagem é principalmente imaginária e a presença do vocábulo “búzio”, como observa
Lúcia Sá, nos revela um sentido premonitório: “O búzio imita o ruído do mar, criando assim um mundo
imaginário. Mas búzios também podem ler o futuro, e apontam nesse caso para um mundo a ser
descoberto. De qualquer maneira, a viagem nesse poema é uma espécie de anti-viagem, porque não se
realiza.” (SÁ, 2000, p. 84)
Esta proposição fornece ao leitor o sentido central de Invenção de Orfeu: um poema que prima pela
imaginação e pela liberdade formal, pois como aponta o verso “mesmo sem naus e sem rumos,” ele não
estará preso a nenhum tipo de regra composicional, conjuntura frequente em todo poema. Esta
concepção do fazer poético (ou pelo menos deste poema) primará pelo “jorro” criativo fornecido ao
poeta, principalmente pela imaginação criadora. Concepção que problematizará a própria construção do
poema porque sem uma forma definida o poeta buscará uma formulação própria e singular para realizá-
lo. Nesse sentido, o poeta corre um sério (e necessário) risco para a criação de seu poema novo, já que
não tem nenhuma forma predeterminada para elaborá-lo.
Uma caracterização fundamental dessa ilha do poeta também se encontra nessa estância: ela é
mutável, logo está em constante movimento e se configura de várias maneiras. Constante mutação que
alcança também o viajante – o poeta –, em todo poema. O significado da ilha também estará muitas vezes
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relacionado às ilhas utópicas, pertencentes à história literária, mas também ao próprio Brasil e
representará o próprio poema de maneira metalinguística, como é característico da poesia moderna.
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Podemos ver uma das mutações da ilha representando o Brasil na estância seguinte, III. O poeta
lembra-se da época da colonização, tempo em que o nosso país recebeu muitas vezes caracterizações
semelhantes a conformação do mito do paraíso terrestre. Ele também assinala a forma com a qual
pretende contar a história de sua viagem, em um estado um tanto conturbado entre o sono e a vigília; ou
seja, através da imaginação criadora e do trabalho da apuração do poético, como a metáfora do
“engenheiro noturno” caracteriza3.

E depois das infensas geografias


e do vento indo e vindo nos rosais
e das pedras dormidas e das ramas
e das aves nos ninhos intencionais
e dos sumos maduros e das chuvas
e das coisas contidas nessas coisas
refletidas nas faces dos espelhos
sete vezes por sete renegados,
reinventamos o mar com seus colombos,
e columbas revoando sobre as ondas,
e as ondas envolvendo o peixe, e o peixe
(ó misterioso ser assinalado),
com linguagem dos livros ignorada;
reinventamos o mar para essa ilha
que possui “cabos-não” a ser dobrados
e terras e brasis com boa aguada
para as naves que vão para o oriente.

E demos esse mar às travessias


e aos mapas-múndi sempre inacabados;
e criamos o convés e o marinheiro
e em torno ao marinheiro a lenda esquiva
que ele quer povoar com seus selvagens.

Empreendemos com a ajuda dos acasos


as travessias nunca projetadas,
sem roteiros, sem mapas e astrolábios
e sem carta a El-Rei contando a viagem.
Bastam velas e dados de jogar
e o salitre nas vigas e o agiológio,
e a fé ardendo em claro, nas bandeiras.
O mais: A meia quilha entre os naufrágios

3 Outro ponto importante presente neste fragmento do poema, apontado por Echeverría, “é o fato de que em Invenção de Orfeu
descobrem-se aspectos da reduplicação do real nas imagens do trabalho textual do poema, que ampliam e “retocam” a noção
demiúrgica: “reinventamos o mar com seus colombos,/ e columbas revoando sobre as ondas,”. As imagens esboçam
decalques do fazer órfico. Insinuam a necessidade de completar as empresas dos heróis civilizadores. Colombo, o descobridor
da América, torna-se imagem retórica, contígua de “columbas”. A redução (nome escrito com minúscula) e a ampliação plural
de “columbas” quebra o limite do físico e do mal. Une a reminiscência mítica ao processo fantástico de nivelar a ambigüidade
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do sujeito plural (eu+outros = nós) à lembrança memorial presentificada. A reinvenção do mar “com seus colombos” instiga
o efeito da projeção do Mesmo (o “eu”, escritas primárias dos descobridores) sobre o Outro (interlocutores simultâneos à
emissão e à recuperação memorial da história). Articula-se o espelho discursivo (Kristeva) pelo reconhecimento do emissor e dos
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interlocutores nas significações polissêmicas do discurso. Este “retoca” o princípio natural, implícito no discurso: invenções
dos poetas-teólogos, viagens dos descobridores à América.” (ECHEVERRIA, 1978, p. 31-32).
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que tão bastantes varram os pavores.


O mais: Esse farol com peixe largo
que tão unido varre a embarcação.
Eis o mar: era morto e renasceu.
Eis o mar: era pródigo e o encontrei.
Sua voz? Ó que voz convalescida!
Que lamúrias tão fortes nessas gáveas!
Que coqueiros gemendo em suas palmas!
Que chegar de luares e de redes!
Contemos uma história. Mas que história?
A história mal-dormida de uma viagem. (LIMA, 1958, p. 629)

Este fragmento reforça a proposição da estância anterior no sentido de que o poeta pretende criar
um novo mundo (poesia): “reinventamos o mar com seus colombos,” [...] “reinventamos o mar para essa
ilha” [...] “sem roteiros, sem mapas e astrolábios” [...] “eis o mar: era morto e renasceu”. O que temos em
mãos é um poema sem direção determinada, livre de qualquer pretensão puramente racional
predeterminada pelo poeta, por uma “escola” ou forma poética, concordando com o pensamento crítico
de Jorge de Lima, que não acreditava ser possível, para a feitura de um poema, arquitetá-lo previamente.
Este fragmento também nos aponta para a transcendência do projeto épico de Jorge de Lima
mostrado pela incursão do poeta para a interioridade no seu poema. Numa espécie de “liricização” da
epopeia a sua viagem se volta para dentro de si mesmo, para outros textos, para o social, etc4.
Ainda nesta estância, o poeta nos apresenta o modo pelo qual pretende contar sua história, uma
“história mal-dormida” de uma viagem: “Contemos uma história. Mas que história?/ A história mal-
dormida de uma viagem. (LIMA, 1958, p. 630) Isto quer dizer que esta história se apresenta entre os
estados da vigília e do sono; portanto, uma história noturna e turbulenta, como está bem caracterizado
pelo vocábulo “mal-dormida” sugerindo a representação do estado em que seu viajante se encontra. Ou
seja, contada por um viajante que se mostra em posição adversa do habitual: não está completamente em
vigília, nem em repouso, unindo, assim, metaforicamente na construção de sua história a imaginação
(caracterizada pelo ambiente noturno) e o trabalho poético (caracterizado pelo estado de vigília).
O canto do poeta, estância VIII, dirige-se para um lugar imaginário com um ambiente tranquilo e
bucólico. Numa situação próxima à edênica o poeta está em comunhão com a natureza. A imaginação é

4 O Brasil ainda aparecerá em várias outras estâncias desse Canto, como também na estância III do Canto Sétimo, como uma
terra nova e aprazível: “ó terra sem abalos, meiga terra/de árvores conjuntos, tantos braços,/no ar pungente...”. Liga-se a este
ambiente o sofrimento do poeta (dos homens) associado ao sofrimento de Cristo com sua coroa de espinhos. O poeta busca
“... o tempo irredento dos espaços.”, “atos puros” (LIMA, 1958, p. 799) e se diz contagiado pela paixão. Ele está exilado de
seu paraíso original e vive em tormenta, é pela paixão e pela poesia que espera reencontrar novamente este ambiente perdido.
Esta representação se assemelhará à do Canto Décimo, estância XIX, que fecha o poema. Isso é bastante significativo, já que
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solidifica a ideia, marcando assim uma possível associação do Brasil a uma terra paradisíaca, o que significa que o poeta
relaciona a sua busca a um imaginário mítico que almeja reencontrar uma idade de ouro perdida. Nesse momento, associada
aos primórdios do Brasil, anterior à sua colonização pelos portugueses. Esse aspecto demonstra também a associação dessa
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terra ao éden cristão e ao desejo do afastamento do mundo moderno “civilizado” que vive em permanente conturbação
trazendo ao poeta vários motivos para desejar evadir-se dele.
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extremamente enfatizada nessa estância, aproximando-se mesmo da estética surrealista em que os


habitantes naturais desse lugar se distinguem por estabelecer características atípicas às consideradas
comuns e próprias a seus mundos naturais. Com um forte caráter de fraternidade e união entre os homens
de mãos dadas se produz, no poema, um lugar paradisíaco de abundância e povoado pela poesia. Nesse
momento, o homem se encontra em paz. Em uma paisagem que metaforiza a flora e fauna brasileira com
alusões as imagens bucólicas do neoclassicismo europeu, é a poesia que cria uma natureza singular.
Através de um instrumento musical, a flauta, que se associa a Orfeu, o poeta que encanta e purifica os
seres.
O primeiro verso (“Na oscilação das noites e dos dias”) mostra a perspectiva temporal indefinida
do poema, assim como a oscilação dos momentos alegres ou tristes na vida das pessoas; os versos
(“Dirige-se a canção por onde nunca/ nem as cabras subiram nem os ecos”) indicam a amplitude do
espaço do poema. Além disso, há uma mudança da lei natural para uma perspectiva infantil, caracterizada
pela imaginação criadora. E somando-se a isso, na renúncia dos sentidos comuns, o poeta alcança a alegria
e a realização de seu poema, metalinguisticamente enunciado nos seus versos. Em suma, esta estância
parece revelar a poesia como incitação para a vida feliz, mas para isso é necessário desassociar-se do
mundo tradicional e combater a “lerdice postedênica”. É por meio de um novo comportamento poético,
diferenciado das coisas comuns, que se encontrará a comunhão e a realização poética. Assim, na poesia
limiana encontraremos na composição de seu texto poético: contrastes, simultaneidades, inespacialidades,
atemporalidades, etc. Elementos que o poeta considera importantes para realização de seu poema novo.

Na oscilação das noites e dos dias,


ouve-se a avena suave, distribuída
sobre esse tempo como estrela exata,
tão gaia estrela, tão ocaso frio.
Contempla-se o ondulante movimento
das cabras, belas cabras recolhendo-se.
Seus olhares sensíveis colhem lírios
que lhes perfumam os chaveiros altos.

Dirige-se a canção por onde nunca


nem as cabras subiram nem os ecos,
campo alegre com íris e bonanças,
bocas leves de flautas dissolvidas,
mãos nas mãos, manjeronas e aves mansas,
e desejados penedos que pastassem
e encantados penedos que ressoassem
com silvestres planetas refloridos.
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Ovos nas relvas com seus olhos mansos,


pequenas nuvens baixas, e uma ondina
sonâmbula, inocente, com dois pássaros
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nas mãos com abundância, leites, âmbares.


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É preciso que a própria natureza


Seja nossa com sortes de açucenas;
E ela aqui está, seus pulsos latejando,
Como em tudo, provando poesia.
[...]

Entrepus-me a diversos sentimentos;


há uma loucura amada e repetida
sem descrição possível nem notícia:
é como leve apuro, leve lado
com destinos não tidos, tão tumularia
placidez, que sondagem do universo
é como esse metro, mão inexistente
dedilhando-o canção desconhecida. (LIMA, 1958, p. 632)

Na última estrofe temos a associação do poeta à loucura: “sem descrição possível”. Isso nos sugere
que ele se utiliza de forma intensiva das imagens complexas em seu poema porque é só por meio desse
tipo de linguagem (uma linguagem nova e/ou renovada) que conseguiria exprimir o mundo renovado,
que não pode ser explicado, mas que se explica por si mesmo. Esta estrofe também nos sugere que ele é
feito por uma espécie de magia, sem que se necessite do trabalho ou mesmo da figura do próprio poeta:
“é como esse metro, mão inexistente/ dedilhando-o canção desconhecida.” O poeta está em busca de
uma canção “desconhecida”. Isso sugere que ele almeja algo novo, ainda por se construir. O que nos leva
pensar que seu projeto é possivelmente utópico no sentido de que há realmente uma impossibilidade da
construção de algo ainda inteiramente não conhecido e puro no sentido de primeiro ou original. O que
nos leva também a crer que o modo pelo qual o poeta pretende alcançar esta utopia é pela tentativa de
resgatar a palavra primordial, esquecida. Isso se dará principalmente por meio da construção, no poema,
de metáforas transgressoras da comunicação comum e corriqueira, como é possível notar em sua
linguagem carregada de sentido mítico e insólito, que inegavelmente nos remete (simbolicamente) a este
tempo primordial como vemos expresso nas duas últimas estrofes do fragmento. Isso se dará também
no seu sentido temático, localizado no espaço (lugar) caracteristicamente expresso pelas imagens
relacionadas à idade de ouro paradisíaca.
Desse modo, é pelo uso intenso de imagens complexas no poema – pois é só através desse tipo de
linguagem (uma linguagem nova ou redimensionada) – que o poeta busca exprimir este mundo renovado.
Pela metáfora que não pode ser explicada, mas que se explica por si mesma.
Outro poema que caracteriza bem a importância que Jorge de Lima dá a imaginação para sua
criação poética está na estância XXIII. Nesta estância, o poeta explicita o seu projeto “épico” e caracteriza
seu herói de maneira a romper completamente com a concepção clássica do termo. Em Invenção de Orfeu,
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o herói é apresentado através de comportamentos e de situações impróprias à concepção nobre dos


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heróis clássicos; dessa forma, o herói limiano é imprudente, tem covardia, está de mãos amarradas e

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A imaginação como alicerce basilar da arquitetura épica limiana: uma leitura de “Fundação da ilha”, canto
primeiro, de Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima | Luciano Marcos Dias Cavalcanti

ouvidos atados. Neste poema, o herói-poeta conduz e se deixa conduzir pela elaboração de uma espécie
de “sistema” poético inventivo, que nos faz refletir sobre a essência da sua linguagem e, por consequência,
da linguagem poética em si. É visível, no poema, a possibilidade múltipla de leitura e, principalmente, seu
caráter metalinguístico. Este aspecto é relevante, pois é neste Canto Primeiro (“Fundação da Ilha”) que
o poeta propõe fundamentar toda sua “epopeia”.

Para unidade desde poema,


ele vai durante a febre,
ele se mescla e se amealha,
e por vezes se devassa.
Não lhe peça nenhum lema
que sua mágoa é engolida,
e a vida vai desconexa,
completando o que é teoria,
andaime, saibro, argamassa,
façanha heroica, imprudências,
covardias, sim, que as tive,
tive-as, terei, terei tudo,
palavras quase poluídas,
e uns sobrossos e uns regressos,
e coisas como lembranças
ou como aléns ou aquéns,
e o pai que me sucedeu
nas guerras que me queimaram,
os sonhos entre as insônias,
infâncias em pleno escuro,
viagens de cima a baixo
unindo as coisas, reunindo
aliás, metamorfoseando-as,
seus sovacos suas testas,
seus horizontes, seus suores,
mas eis purezas e senhores.
Esquecidas, eis as tardes,
eis os infantes dormindo,
eis as águas se remindo,
eis esse poema me entrosado, (LIMA, 1958, p. 645)

O poeta pretende dar unidade ao poema “durante a febre”, caracterizando-o de maneira diversa à
concepção linear e racional de organização de uma obra. Normalmente, o que se espera para a elaboração
de qualquer composição artística é, em primeiro plano, um estado de sobriedade e de lucidez, pois é esse
estado de espírito que, em tese, permitiria uma organização clara, objetiva e sistemática. De maneira
diversa a esta concepção, o poeta pretende construir seu poema através da febre e da mistura de
elementos, na maioria das vezes, improváveis. Mas como construir um poema sem nenhuma preocupação
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ordenadora e formal? Seria este o projeto limiano? O que resultaria de um projeto tão “indisciplinado”?
Como dar uma unidade a um poema elaborado dessa forma?
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primeiro, de Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima | Luciano Marcos Dias Cavalcanti

O que Jorge de Lima parece apontar em Invenção de Orfeu é que, para ele, é impossível alcançar, com
a precisão excessiva do pensamento racional e de sua linguagem, o mítico ou o inefável. Por isso mesmo
sua linguagem se dissocia do pensamento racional, pois, dessa forma, se ele buscasse este tipo de
concepção “limitadora” sua poesia se calaria. Desse modo, ela privilegiará o mistério, o indefinível, a
inspiração. É esta última que lhe permitirá um estado de “graça” e “naturalidade” para construir seu
poema. Ao assumir esta perspectiva, não quer dizer que ele não se utilizará da inteligência, pois o
conhecimento (intuitivo e/ou mítico) mostra-se mais abrangente e pode iluminar questões profundas do
humano que apenas o pensamento racional não apresentou respostas convincentes ou mesmo ignora.
Nesse sentido, não há como excluir o elemento intuitivo na fabricação de seu poema, pois é ele que
possibilita ao poeta o encontro com o inconsciente, com as forças místicas e primitivas do homem,
elementos que se configuram como meio de restaurar a linguagem primeira e ancestral perdida. Assim,
encontraremos misturados em Invenção de Orfeu tanto o trabalho poético quanto a inspiração, que se
completam, e possibilita ao poeta o encontro com realidades misteriosas ao pensamento puramente
racional.
Num rompimento com o ideal clássico e heroico, o herói limiano parece sugerir o ritmo
tormentório da vida moderna (muitas vezes o próprio ritmo do poema, com pausas muito breves, dá ao
seu leitor uma sensação de perda de fôlego na leitura), como apontam as situações e atitudes desse herói,
que comete “imprudências”, “covardias” e se expressa por “palavras impuras”.
Aliado a isso, o que dá ao poema um caráter inegavelmente misturado à vida são as tormentas pelas
quais passam qualquer ser humano. É o que sugere os versos “nas guerras que me queimaram,/ os sonhos
entre insônias, infâncias em pleno escuro,”. Desse modo, vemos claramente o poeta participando
(“misturado”) do mundo conturbado num estado de angústia e inquietação. O projeto poético de Jorge
de Lima está estreitamente relacionado ao tempo e à situação do mundo presente, refletindo sua própria
inquietação existencial. Portanto, o poeta está misturado às coisas do mundo e vive suas conturbações.
Nesse imenso caos, ele pretende juntar uma enormidade de elementos constituintes desse mundo, como
se possuísse um “caldeirão” capaz de reunir essa multiplicidade de coisas, misturando-as e, muito mais
do que isso, metamorfoseando-as em elementos novos e originais, ou semelhantes aos do tempo da
origem, anterior à queda do paraíso.
Na estância XXIV, vemos que a nave (templo, poema) construída pelo “engenheiro noturno”
terá como base a infância. Esse dado se revela de grande importância, pois ela (a base) é que dá
sustentação e mantém firme qualquer edificação, sem a qual não há a possibilidade de se começar a
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edificar qualquer coisa. É sugestivo que este empreendimento, de construção de uma nave (ou templo),
seja feito pelo “engenheiro noturno” (o poeta) que passa por escárnio, zombaria ou chacota. Isso
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demonstra bem o lugar que o poeta (o “sonhador”) ocupa na sociedade. Mas é ele quem tem a tarefa de
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construir a embarcação, pois é ele que tem a habilidade de criar através do sonho e da imaginação. Seu
empreendimento é considerado “penoso” porque exigirá muito dele, terá que trabalhar muito para
conseguir realizar sua obra. Mas ele terá o auxílio precioso da imaginação provinda do mundo fabuloso
infantil, como bem demonstram a referência biográfica do poeta menino nos saraus infantis com as
leituras dos irmãos Grimm e suas histórias imaginativas. É também sintomático o verso “‘Feliz de quem
ainda em cera se confina’...” que demonstra bem o desejo, empreendido no poema, de rompimento com
a fruição temporal e de encontrar a eternidade. Acreditamos que a última estrofe dessa estância pode
representar bem a importância que as crianças e seu mundo imaginativo têm no poema de Jorge de Lima.
É como se fosse uma espécie de base que sustenta sua poesia; e, nesse sentido, é o que possibilita sua
criação, fornecendo, em grande parte, o elemento imaginativo de sua poesia.
Uma metáfora que comprova essa característica de Invenção de Orfeu está exemplarmente expressa
quando o poeta se intitula como um “engenheiro noturno”. Esta expressão rompe com a aparente
oposição e/ou a separação entre razão e inspiração para a criação artística. Nesse sentido, quebra-se a
ideia de que existem apenas dois tipos de possibilidades criativas: aquela em que o artista criaria somente
por meio da inspiração e a outra, em que a criação seria feita apenas por meio da razão.5

Abrigado por trás de armaduras e esgares,


o engenheiro noturno afinal aportou
ao nordeste desta ilha e construiu-lhe as naves.
Penoso empreendimento o invento desse cais
e desse labirinto e desses arraiais.
Para britar a pedra escreveram-se hinos
prontos para marchar ou morrer sem perdão.
Numeraram-se chãos cada qual com seus ossos,
reacendeu-se a colmeia, atiçou-se o pavio.
Lemos contos de Grimm, colamos mariposas
nesse jato de luz em frente as velhas tias;
e sob esse luar conversando baixinho
com esse pranto casual que os velhos textos têm.

O pródigo engenheiro acendeu seu cachimbo


e falou-nos depois de flores canibais
que sorvem qualquer ser com seus polens de urânio.

5 Marcel Raymond nos explica, modelarmente, a nova relação estabelecida entre estes dois termos na concepção artística do
pensamento estético moderno, e que representa bem a posição que ocupa a poesia limiana nesse cenário: “Eis aí, parece, duas
correntes de sentido inverso: de um lado, uma tentativa de adaptação ao real positivo, ao universo ‘mecânico’ de nosso tempo;
de outro, um desejo de encerrar-se no recinto do eu, no universo do sonho. Mas é preciso logo observar que é possível ‘evadir-
se’ ou ‘refugiar-se’ tão bem fora quanto dentro de si; os dois movimentos podem ser segundo o caso, itinerários de conquista
ou de fuga. De resto, e nisso consiste o principal, uma série de fatos contemporâneos justifica amplamente a reconciliação do
351

real e do sonho, e quase não permite opor, a não ser de maneira abstrata, as duas atitudes que definimos. Esses fatos, aos quais
corresponde a conduta dos poetas modernos, são as proposições dos epistemologistas sobre as condições e os limites do
conhecimento, são as teorias psicológicas sobre o inconsciente ou o subconsciente, e a crença mais ou menos generalizada,
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ou a suspeita, de que existem no homem e fora dele forças desconhecidas sobre as quais ele pode esperar agir.” (RAYMOND,
1997, p. 193-194)
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“Feliz de quem ainda em cera se confina”...


Disse-nos afinal o engenheiro noturno.

Em seguida sorriu. Era perito e bom.


Vimo-lo sempre em sonho a perfurar os túneis
forrados a papel de cópias e memórias.
Era a carne profunda a embalar-nos nos braços
e esse vasto suspiro a se perder no mundo;
era a marca dorsal já tatuada em porvires
desses castos porões de prazeres reptantes.
Inaugurou-se a festa, os impulsos surgiram,
e em calmaria fez-se a colheita do sal.
Houve proibições em frente às velhas tias
de sobrolho tardio e ternuras intactas.
Alguma loura irmã dentro de nós dormiu,
abriu-se em nosso tecto uma abóbada escura
circunstancial, madura em seu silêncio cúmplice.

Essa perturbação alcançou os meninos


esculpidos ao pé das colunas do templo
que desceram ao palco exibindo-se nus.

Do noturno trabalho a gente tresnoitada


dança de ver assim ao romper da alvorada
esse engenheiro-ser tocando a sua gaita
os rebanhos levar; logo no tosco jarro
aquele lhe oferece a doce e branca ovelha,
e a vaca os seios seus em queijos e coalhada. (LIMA, 1958, p. 646)

O “engenheiro noturno” é exemplar como expressão metafórica, pois abarca duas características
paradoxais do mesmo ser. O engenheiro, que no exercício de sua profissão utiliza-se do cálculo e da
técnica para realização de seu trabalho, é por excelência o indivíduo que faz uso da ciência e da matemática
para conceber e realizar sua obra. Contrário a esse tipo de concepção criadora, está o elemento “noturno”
que em um sentido mais imediato representa o mundo do sono, do sonho, do devaneio, contrastando,
assim, com o primeiro elemento. Mas na poética de Jorge de Lima essa união de elementos opostos, que
inicialmente pode parecer paradoxal, na realidade, representa a maneira pela qual o poeta elabora sua
criação poética. Unido os contrários, elementos que normalmente seriam incompatíveis e antagônicos, o
poeta utiliza-se do elemento racional e do onírico para realização poética. Em síntese, a metáfora do
“engenheiro noturno” aponta para a ideia que, no seu poema, unem-se os campos intelectual e espiritual,
que se exprimem numa linguagem engenhosa e onírica.
É interessante notar que essa caracterização do “fazer poético” presente em Invenção de Orfeu,
representa a própria concepção moderna do “fazer poético” que oscila entre o delírio e a razão,
352

representada, de um lado, por Rimbaud e, de outro, por Mallarmé e Valéry, e que se encontra amalgamada
em Baudelaire, centro dessas duas correntes principais da poesia moderna, como já apontou Marcel
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Raymond.
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Acreditamos que estes elementos que, de acordo com o pensamento moderno, propiciam a
realização do poema também estão intrinsecamente ligados em Invenção de Orfeu. Esse aspecto, a nosso
ver, se apresenta de forma mais completa para a explicação da construção do fenômeno poético. Do
contrário, a poesia feita apenas através do uso da razão ou da intuição se apresentaria de maneira
unilateral, excluindo duas características pertencentes à obra poética e ao homem, limitando, portanto, o
conhecimento do poético e do humano6.
Caracterizado o modo pelo qual Jorge de Lima elabora seu poema através da metáfora do
“engenheiro noturno”, encontramos outros elementos que se juntarão a este de maneira a acrescentar e
também solidificar sua concepção poética: a memória e a infância. Como vimos, é o engenheiro noturno
– representante do próprio poeta – que constrói os navios que simbolizam o próprio poema. Novamente,
temos a visão metalinguística do poeta que disserta sobre sua própria construção poética, feita a partir do
trabalho e da imaginação, que é privilegiada com a referência aos mais famosos contadores de histórias
infantis, os irmãos Grimm. Junta-se a isso, o dado biográfico do mundo infantil do poeta, referente aos
sarais de leitura de sua casa.
O poeta denomina seu poema como uma Fábula, gênero literário que tem como principal
característica o privilégio da imaginação sobre o real – relativa ao universo infantil –, em que o mundo é
representado de forma que a verossimilhança é propositalmente abolida. É interessante notar que essa
denominação do poema (o que mais tarde será reafirmada no Canto Quinto, estâncias XVI, XVIII,)
aponta para a necessidade da busca, não mais apenas do racional, mas da imaginação, do mito, do sonho,
para o enfrentamento da (in)compreensão do mundo presenciado pelo poeta. Essa proposição indica
claramente o projeto no qual o poeta se empreende, a busca do maravilhoso. Esse aspecto também
aponta para dessemelhança entre o “épico” limiano e o épico clássico; é exemplar o episódio da Odisseia
(de Homero) relativo ao encontro de Ulisses com as sereias; entre as duas escolhas possíveis ao herói (a
de se deixar encantar pelo canto das sereias – o que poderia ser classificado como uma atitude mágica e
mítica – ou se amarrar no mastro do navio com os ouvidos tampados para não ouvir seus cantos – uma
atitude relacionada ao pensamento racional que possibilitaria a sequência de sua viagem), Ulisses escolhe
a racional, posicionando-se de forma contrária à imaginação. Diferentemente da opção do herói clássico,
a escolha do “herói” fabular limiano aponta para o mito. Em Invenção de Orfeu, o poeta está em busca do

6 Álvaro Lins se pronuncia a esse respeito nos dizendo o seguinte: “acredito que em todo poeta se farão sentir os apelos do
inconsciente e a disciplina da razão; o culto do irreal e a sensação da realidade; a vertigem dos sonhos e as limitações do
cotidiano; o delírio e a lucidez. Não que estes estados se misturem; eles se superpõem e se completam. Em poesia é que se
353

pode ver bem a verdade deste princípio: ‘a razão não é criadora; é ordenadora’. No ato da criação, antes que a razão intervenha,
já se terá manifestado a presença das potências obscuras do ser. Só posteriormente é que a razão completa e ordena estas
potências. [...] Tanto a inconsciência total como a lucidez absoluta são estados impossíveis no homem, mesmo no homem
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especial que é poeta. Um poema, sabe-se, é inspiração e é realização: a inspiração pode ser inconsciente, mas a realização é
sempre lúcida.” (LINS, 1970, p. 13-14).
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maravilhoso, confrontando o seu projeto à poética do racional e da linearidade. Para o poeta, o


pensamento racional já não é mais suficiente para se pensar as grandes questões existenciais ou metafísicas
da vida, e a fantasia se mostra como um importante subsídio para a compreensão do mundo. Ela ocupa
lacunas que o indivíduo tem durante sua vida, e que o pensamento racional não oferece respostas, e ajuda-
o em seus confrontos com o desconhecido. Nesse sentido, a fantasia tem um papel libertador, refletindo
um processo de luta contra as restrições do pensamento racional, o que, ao mesmo tempo, apresenta a
possibilidade de realização de uma utopia: o reencantamento de um mundo que nunca se mostrou tão
“desencantado”, aproximando-o do tempo anterior à Queda, do paraíso mágico e da mentalidade
primitiva, primordial à sua criação.
Sequencialmente, (estância XXXVI), o poema exemplifica bem a metáfora do “engenheiro
noturno”, numa acepção paradoxal em que a razão noturna somada à memória estabelece a “travessia”
entre a razão e a ebriedade, possibilitando o nascimento do poema.

Entregado destino! Apesar disso


coisas diversas ilhas sou;
o ruminado berro se transforma
em pássaros de cores, cascos em
ritmos de poemas, e os seus olhos olham
o couro retesado soar louvores
à Mão que o consolou com essa harmonia

de palavras faladas sem propósito,


tremidas pelas febres, pelos medos;
umas indo cair sobre os rochedos,
outras indo afundar-se no oceano,
outras nas urzes, outras se estraçalham,
e as derradeiras, só as derradeiras,
como sopro de doente são ouvidas.

A imaginação dói-me. Quem ma deu,


deu-ma para sofrer, para gastar-me
nessas reminiscências e visões,
nessas conchas noturnas mormurantes,
nesses ares sonoros, nesses muros
cansados de lamentos, nesses ermos
de carne vigilante, nesses gumes.

Eu quero sossegar, forças rodantes,


espiras, remoinhos, giros, elos,
simetrias das órbitas violadas,
pensamento contínuo circulando-me
nas águas do passado e do futuro,
354

insônias circulares, voos no quarto


de asas e asas em torno à minha lâmpada.
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Doem-me as nuvens cobrindo o globo opaco,


a falência das coisas açoitadas,
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a perpétua lamúria dos espaços,


a velhice do templo, essa procura
de entender o que é escuro como a noite
escura da razão perdida, como
a treva rubra dos desesperados.

Ah! o cansaço que vem do movimento


da memória insofrida e borrascosa,
do pensamento alerta com a alma tonta.
A alma aturdida diante da tormenta
prende-se à ventania como a um tronco.
A alma aturdida quer morrer, mas, ah!
recrudesce a tormenta e a alma não morre.

Vá que dessa danada travessia


nasça a canção contínua. Desespero
dessa alegria triste, vão consolo.
Irada explicação que não conforta
a ave suja do pó que cobre o mundo,
e que para limpar-se desse pó,
morre lavada pela tempestade. (LIMA, 1958, p. 671)

Nesse fragmento, o poeta se apresenta como diverso do mundo em que vive. E é através do
trabalho poético (“ruminado berro”) e do elemento imaginário e fantástico (“se transforma/ em pássaros
de cores, cascos em/ ritmos de poemas, ...”) e de uma espécie de escrita fluente (algo próximo da escrita
automática) libertada pelo inconsciente em um momento febril (“de palavras faladas sem propósito,/
tremidas pelas febres, pelos medos;”) que o poema se constrói. Mais uma vez, como é característico de
Invenção de Orfeu, sua construção metalinguística nos mostra sua feitura, através da escolha das palavras
certas: “umas indo cair sobre os rochedos,/ outras nas urzes, outras se estraçalham,/ e as derradeiras, só
as derradeiras,/ como sopro de doente são ouvidas.”
O processo de criação é angustiante, e causa dor ao poeta que sofre por ter juntamente com suas
visões imaginativas de lembrar-se do passado, principalmente do passado infantil, perdido pelo tempo.
Portanto, para construir seu poema o poeta buscará o tempo perdido. E é através do sonho e da infância
que ele vai buscar este tempo (perdido), por meio das recordações de um tempo bom, em que o poeta
menino junto de sua mãe e seus amigos ouvia histórias em torno do candeeiro belga – fato biográfico
marcante, que é lembrado repetidas vezes em seus poemas.
Esta situação perturbadora também caracteriza o momento de extrema conturbação em que vive
o poeta, seja biográfica: por seu estado de saúde debilitada, em febre; ou histórica: representada pelo
tempo em que o poeta está situado. É por isso que o poeta deseja calma: “Eu quero sossegar, forças
355

rodantes,/ espiras, remoinhos, giros, elos,...”. Mas não é o que realmente parece ocorrer, o poeta se
encontra em um estado febril e é por isso que no seu poema (reflexo do estado do poeta – perceptível
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pela mistura do eu lírico com sua própria pessoa) o passado e o futuro se misturam de forma que nessa
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junção temporal abole-se a concepção linear do tempo. Nesse sentido, a realidade, desprende-se da ordem
temporal objetiva e escapa do real, corroborando com a busca da paz. O poeta e sua criação poética
parecem direcionar-se para a utopia da busca do entendimento do mistério do mundo e da vida: “... essa
procura/ de entender o que é escuro como a noite/ escura da razão perdida, como/ a treva dos
desesperados.”. Nas duas estrofes finais desse fragmento, de forma explícita, volta a aparecer a metáfora
do poeta “engenheiro noturno”: é aquele que faz o poema nascer pela travessia “do pensamento alerta e
com a alma tonta./ [...] a canção contínua”.
Como é característico em Invenção de Orfeu, alguns de seus poemas ou fragmentos destes, com o seu
poder de concisão, abarca, muitas vezes, uma espécie de síntese de todo poema e, em alguns casos, até
mesmo de toda sua poética. O poema apresentado acima parece representar o primeiro momento, em
que podemos notar uma variação de temas constantes em Invenção de Orfeu: a multiplicidade do herói, o
transito entre o racional e o intuitivo, a presença da ilha maravilhosa (que representa a harmonia frente
ao caos), o mundo fabular caracteristicamente infantil e imaginoso sugerido pelo mundo circense.
Esse lugar fabuloso (como marca a presença da Cólquida: país fabuloso da Ásia, do Cáucaso,
célebre pela fábula do Velo de Ouro, pele de carneiro, mas de ouro roubado por Jasão), habitado pelo
poeta múltiplo e os seus pares (uma variação de seres extraordinários pertencentes ao mundo do teatro
e do circo), é criativo e potencial, privilegiando a criação e a transformação. O poeta é intuitivo e racional
e povoa uma ilha fantástica e libertária, onde se celebra a felicidade pela dança. É um poema tipicamente
metalinguístico e também múltiplo como a própria imagem do poeta, que transita entre a dramaturgia, a
fábula (imaginação e também gênero infantil) e o transe: no jorro da emoção e da angústia. O poema
busca a desarticulação poética e sua libertação se converge em Orfeu perpétuo.

REFERÊNCIAS

AURÉLIO. Buarque de Holanda Ferreira. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1986.

CAVALCANTI, Luciano Marcos Dias. Metamorfoses de Orfeu: a “utopia” poética na lírica final de Jorge
de Lima. São Paulo: Todas as Musas/Fapemig, 2015.

ECHEVERRÍA, Lídia Neghme. Algumas orientações poéticas em Invenção de Orfeu. In: Colóquio/Letras.
Número 41, Janeiro de 1978.

LIMA Jorge de. Obra Completa (Org. Afrânio Coutinho). Rio de Janeiro: Aguilar, 1958.
356

LINS, Álvaro. Poesia e Forma. In: Teoria Literária. Rio de Janeiro, Ediouro: 1970.

MONTEIRO, Adolfo Casais. A palavra essencial: estudos sobre a poesia. São Paulo: Cia. Editora
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Nacional/EDUSP, 1965.
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PAZ, Octavio . Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1972.

RAYMOND, Marcel. De Baudelaire ao surrealismo. São Paulo: EDUSP, 1997.

SÁ, Lúcia. Invenção de Orfeu e o palimpsesto indígena. In: Luso-Brazilian Review. University of Wisconsin –
Madison. Vol. 37, Number 1, Summer, 2000.
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A imaginação como alicerce basilar da arquitetura épica limiana: uma leitura de “Fundação da ilha”, canto
primeiro, de Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima | Luciano Marcos Dias Cavalcanti

Title
Imagination as the basic foundation of the limian epic architecture: a reading of “Fundção da ilha”, canto frist, de
Invenção de Orfeu, by Jorge de Lima.

Abstract
Invenção de Orfeu represents an attempt to create a new verbal world and a new real world, better and more
humanized, a utopian “island.”. But an island of the eternal movement, transmutable at all times and
characteristically orfic by definition, in which the need for creation is privileged in every way. In this text, we will
stop our efforts in the analysis of the first canto, “Fundação da ilha”, of Invenção de Orfeu, in order to try to
clarify the poetic onslaught of Jorge de Lima to elaborate his epic through the creative imagination, the basic
foundation of his architecture.

Keywords
Invenção de Orfeu; island; creative imagination.

Recebido em: 25/02/2020.


Aceito em: 22/05/2020.
358
Página

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Travessias, Cascavel, v. 14, n. 2, p. 339-358, maio/ago. 2020.
http://www.unioeste.br/travessias

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