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Graduanda do Curso de Psicologia da Universidade Vale do Rio Verde – UNINCOR – TC,
tacianaribeirorios@ymail.com.
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Doutor em Teoria e História Literária pelo IEL/UNICAMP, Professor do Programa de Mestrado em Letras:
Linguagem, Cultura e Discurso da Universidade Vale do Rio Verde (UNINCOR),
prof.luciano.cavalcanti@unincor.edu.br
RESUMO
Este artigo pretende examinar a representação da mulher em algumas letras de Chico Buarque de Hollanda, um dos
maiores nomes de nossa música popular. Para tanto, refletiremos sobre a construção de suas personagens femininas
inseridas em contexto sociocultural patriarcal de nossa sociedade, que deu ao homem poder no espaço privado, como
chefe da família, e no público. Nesse sentido, muitas das canções de Chico, que destacam as mulheres, revelam que
estas, subjugadas pela dominação masculina, não expressam sua voz e suas escolhas, sonhos e desejos, como vemos nas
canções como “Cotidiano", "Folhetim" e "Mulheres de Atenas". Em paralelo a essa representação do feminino, Chico
constrói também personagens femininas que assumem o controle de suas vidas, que fazem suas escolhas e rompem com
a cultura patriarcal dominante, como ocorre nas canções "Mil perdões", "Madalena", Teresinha".
Palavras Chave: Chico Buarque, mulher, dominação masculina, escolhas.
ABSTRACT
This article intends to examine the representation of women in the lyrics of Chico Buarque de Hollanda, one of the
greatest names of our popular music. Therefore, we‟ll discuss about the construction of his female characters inside the
patriarchal culture of our society, that empowered men in private spaces, as the head of the family, and in public. In this
sense, a lot of Chico‟s songs, that highlight women, reveal that those, subjugated by the male domination, don‟t express
their voices and their choices, wishes and dreams, as we see in the songs “Cotidiano”, “Folhetim” and “Mulheres de
Atenas”. Parallel to this representation of women, Chico also builds female characters that take control over their own
lives, that make their own choices and break with the dominant patriarchal culture, as it happens in the songs: “Mil
perdões”, “Madalena”, “Teresinha”.
Keywords: Chico Buarque, Woman, Chico Buarque, male domination, choices.
Introdução
Buarque, que destacam as mulheres, revelam
Partindo de algumas reflexões sobre as que estas, subjugadas pela dominação
canções de Chico Buarque de Hollanda, masculina, não expressam sua voz em suas
temos como proposta analisar o modo pelo escolhas, sonhos e desejos. Em paralelo a essa
qual o compositor representa determinados representação do feminino, Chico Buarque
tipos de mulheres em suas canções: a mulher também constrói personagens femininas que
submissa aos preceitos machistas e a mulher assumem o controle de sua vida, que fazem
que rompe os grilhões do controle masculino. suas escolhas e rompem com a cultura
Nesse sentido, muitas das canções de Chico patriarcal dominante.
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De acordo com Adélia Bezerra de e subjugado pela dominação masculina,
Menezes, em seu livro Figuras do feminino ideologia que impede a mulher de se
na canção de Chico Buarque, expressar, de ter escolhas, realizar seus
sonhos e desejos, como podemos notar nas
É inegável que a canção de canções como “Cotidiano” “Folhetim” e
Chico privilegia a fala da
mulher, assim como na “Mulheres de Atenas”.
galeria das suas
personagens sobressai o Na canção “Cotidiano”, Chico
marginal como
protagonista, pondo a nu, Buarque retrata a rotina de um casal em que a
desta maneira, a mulher é representada como a organizadora
negatividade da sociedade.
[...] O seu discurso dá voz do lar. Todos os dias de maneira mecânica,
àqueles que em geral não
têm voz. Assim, programada, ela acorda o marido para o
encontraremos o tema das
mulheres vinculado ao trabalho e, à noite, o espera no portão,
tema da marginalidade
social. (MENEZES, 2001,
reforçando o eu lírico que “Todo dia ela faz
p. 41). tudo sempre igual”. A expressão “Todo dia” é
repetida cinco vezes, mostrando essa condição
Para empreendermos nosso propósito
mecânica dos afazeres diários, em um
será necessário pensarmos de maneira crítica
movimento de repetição compulsiva e
sobre a estrutura patriarcal de nossa
insuportável, somada à responsabilidade de
sociedade, que deu ao homem poder no
cumprir o trabalho doméstico. Aqui, a lógica
espaço privado, como chefe da família, e no
estabelecida é de um mundo cíclico, pois a
público, lugar onde ele sempre se
última estrofe se conecta à primeira, de modo
movimentou de maneira soberana. O
que inicia “todo dia” e encerra “toda noite”
patriarcado é um modelo estrutural que por
fazendo tudo sempre igual. Esta mulher pode
um longo tempo se manteve fortalecido em
ser comparada ao operário, que reproduz
nossa sociedade por valores machistas, em
cotidianamente sua rotina de trabalho:
que a dominação masculina se revela
acordando pontualmente no mesmo horário e
principalmente no tratamento desigual
reproduzindo dia a dia as mesmas atribuições
imposto a mulher em relação ao homem.
de maneira repetida. Esta relação se torna
Percebemos que nas canções de Chico
monótona e exaustiva, não sendo permitida a
Buarque, a partir de tais condições
ambos, a mulher e seu companheiro, a
socioculturais, a mulher sempre ocupou uma
ampliação de seus modos de vida.
posição de submissão. Neste sentido, é
Como explica Adélia Bezerra de
perceptível na obra do compositor a
Menezes:
representação do feminino oprimido sem voz
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Numa inversão dos Assim, nesta canção, fica claro o
estereótipos habituais
quanto à passividade, a motivo da existência dessa mulher, viver para
mulher aqui é ativa [...] –
ativíssima por sinal: num seu marido, manter a ordem, ficando
espaço de poucos versos,
ela faz, sacode, sorri, diz, aprisionada aos seus afazeres do lar e o
diz mais ainda, jura, homem aprisionado neste sistema
aperta, mas sobretudo
beija: beija com a boca de disfuncional.
hortelã, beija com a boca
de café, beija com a boca A figura feminina também é
de paixão, e beija, ou
melhor, morde, com a boca representada nas canções de Chico como um
de pavor, o beijo vira
mordida. Estabelece-se
objeto sexual quando foge às padronizações
uma inversão de sinais, em culturalmente estipuladas, se associando a
que os gestos do afeto se
transmudam os signos da estereótipos machistas em que nossas raízes
prisão. (MENEZES, 2001,
p. 49) estão fincadas. Podemos citar, por exemplo,
adjetivos que qualificam esta mulher:
Chico Buarque (de maneira sutil)
transgressora, vulgar, mentirosa, agressiva,
critica essa falta de dinamicidade da vida, em
infiel, que vem para desestruturar o homem,
que a mulher é ausente de criatividade, repete
ou seja, aquela que vem para destruir o
cotidianamente suas tarefas domésticas no lar,
sistema patriarcal pré-estabelecido.
sufoca seus desejos e aplaca sua potência de
Conforme a explicação de Cilene
viver, sem espaço para desejar, nem
Pereira, em seu artigo “„Rita‟, de Chico
independência. Esta afirmação é endossada
Buarque (e outras histórias femininas de
pela análise desta canção por Adélia Bezerra
devastação)”,
ao dizer que esta mulher é ativíssima, mas é
previsível e age como um operário que [...] se a mulher não se
cumpre todo o seu ritual. Ela é ausente de coloca do lado sentimental,
evidenciando fragilidade
espontaneidade criativa. Condição esta emocional e destreza com
os papéis domésticos, dos
desempenhada pela figura feminina nos quais o ser mãe e esposa
são fundamentais em sua
tempos passados e infelizmente por uma trajetória existencial, ela
pode se revelar “piranha”,
parcela significativa nos tempos atuais, em isto é, uma desajustada da
que se sujeita consciente e inconscientemente norma. (PEREIRA, 2017,
p. 3)
a viver dessa maneira, em que tanto a mulher
quanto o homem se encontram aprisionados Percebemos essas classificações
em um cotidiano massacrante e rotineiro do estereotipadas na canção “Folhetim”, na qual
lar, impossibilitando-os desenvolver novas o eu lírico apresenta a realidade de uma
possibilidades de vida. mulher que sai de todos os padrões
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estabelecidos para um lugar desconhecido, lugar, como se pode ver na oitava estrofe da
com a conduta de desorganizar o lar, sem canção: “Elas não têm gosto ou vontade/Nem
exclusividade em suas relações, a qual defeito, nem qualidade/Têm medo
preconceituosamente é rotulada pela apenas/Não tem sonhos, só tem presságios/O
sociedade como imoral, enganosa, sem pudor, seu homem, mares, naufrágios/Lindas sirenas,
transgressora, “prostituta”, como podemos morenas”. Adélia Bezerra questiona os
notar em sua primeira estrofe: “Se acaso me adjetivos remetidos às mulheres de Atenas,
quiseres/Sou dessas mulheres/Que só dizem “Quais são as „qualidades‟ e características
sim/Por uma coisa à toa/Uma noitada boa/Um femininas, ironicamente colocadas como
cinema, um botequim”. „exemplos‟ para as mulheres”? (MENEZES,
Esta afirmação é confirmada pela 2001, p. 153)
análise desta canção por Adélia Bezerra ao Mulheres que zelavam pelos homens e
dizer que pelas regras. Não se expunham para a
sociedade, escondiam-se e guardavam para
É com Folhetim que se seus maridos. De fato, essas mulheres sofriam
evidencia a relação de
poder que está à base da pelos seus maridos, sofriam quando estavam
prostituição, mas, aqui,
significativamente, com longe e quando estavam próximas a eles,
seu sinal invertido: ao fim,
é a mulher, uma dessas teciam longos trabalhos por anos a espera se
“que só dizem sim”, que guardando para os maridos. Através dessa
“aceitam uma prenda”, é
ela que vai manipular o canção Chico mostra a condição em que a
homem. (MENEZES,
2001, p. 77) mulher é sujeitada e, ao revelar esta situação,
enuncia o caminho para a sua libertação.
Em “As Mulheres de Atenas”, Chico
Estas canções criadas por Chico
Buarque nos apresenta a condição de
Buarque nos possibilitam compreender que
submissão e espera em que as mulheres donas
por grandes períodos no decorrer da história
do lar se sujeitavam, verificável pelas
as mulheres não tiveram escolhas. Viveram
variadas violências em que são submetidas:
oprimidas e sujeitas aos papéis estipulados
simbólicas, físicas e psíquicas. Assim, nesta
pela cultura patriarcal.
canção, essas mulheres vivem e secam até a
Segundo Manoel Tosta Berlinck, em
morte pelos seus maridos. Essa canção nos
“Sossega leão! Algumas considerações sobre
possibilita vislumbrar como a cultura
o samba como forma de cultura popular”, é
patriarcal fez das mulheres um alicerce para
possível notar na música popular brasileira
os homens como uma âncora que não
três tipos de mulheres: “a doméstica”, “a
movimenta, sem vida, fixa em um mesmo
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piranha”, e “a onírica”. (BERLINCK, 1976, p. Em paralelo a essa representação do
102). feminino, Chico constrói também
Berlinck descreve cada uma destas três personagens femininas que assumem o
imagens femininas: controle de sua vida, que fazem suas escolhas
e rompem com a cultura patriarcal dominante,
A mulher ideal é a como ocorre nas canções “Mil perdões”,
doméstica, ao mesmo
tempo submissa e passiva; “Madalena foi pro mar” e “Terezinha”.
que aceita com resignação
aquilo que o homem lhe Na canção “Mil perdões”, a figura
oferece e acha bonito tudo
o que o homem lhe dá.
feminina passa a ser ativa em suas práticas
(BERLINCK, 1976, p. cotidianas, em que o ciúme e o sentimento de
103)
posse por parte de seu companheiro não são
Em seguida, ele descreve a “piranha”: aceitáveis.
A principal característica Verifica-se, nesta canção, que as
da „mulher piranha‟ é a
traição; trata-se de criatura palavras “Te perdoo” se repetem onze vezes,
„sem moral, sem
compostura, sem coração, sendo que em todas estas repetições este
sem pudor‟ porque
invariavelmente trai o homem é culpado por erros que não cometeu;
companheiro. pelo contrário, foram cometidos por uma
(BERLINCK, 1976, p.
107) mulher dona de sua vida, vaidosa, soberba,
mentirosa, traidora. Essa mulher representa
E, por fim, sua concepção de mulher
um papel oposto de uma sociedade patriarcal,
onírica, que a conforma como uma “Figura
em que o homem se utilizava de artifícios
romântica e estereotipada sem os detalhes do
para manipular e manter a mulher a seus pés.
cotidiano” (BERLINCK, 1976, p. 112)
E nesta canção o homem desempenha o papel
Nascidas e criadas para servir o
que é dado culturalmente para a mulher, ou
homem e realizar tarefas simples e
seja, o papel de ciumento e de submissão ao
corriqueiras do lar, essas mulheres viveram
outro, como podemos notar na sua terceira
dominadas por esse sistema patriarcal
estrofe: “Te perdoo/Quando anseio pelo
estabelecido e construído na sociedade como
instante de sair/E rodar exuberante/E me
regra a ser seguida. Neste sentido, esta canção
perder de ti/Te perdoo/Por quereres me
representa as mulheres que não podiam nem
ver/Aprendendo a mentir (te mentir, te
ao menos ser escutadas e que quando eram
mentir)”. No desenrolar de toda a canção o
percebidas eram retratadas cuidando de
homem mantem-se numa condição submissa
tarefas simples como limpar, lavar, cozinhar e
aos desejos e atitudes dessa personagem
procriar.
feminina que ironiza seu comportamento.
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A mulher aqui representada sustenta De acordo com Adélia Bezerra de
uma relação sem respeito e sem pudor, em Menezes em “Dois Guris – Ou a Maternidade
que mesmo tendo sua palavra e a liberdade de ferida”:
escolha, carrega um peso por não conseguir
viver plenamente essa relação. A relação de A canção de Chico
transcende o caso
ambos se apresenta disfuncional, pois a individual e, pela força da
palavra poética, atinge o
mulher vive de seu próprio modo e aventuras, universal. Mas nesse
universal cada um poderá
porém, está presa ao homem com toda a sua ver, embutida, a questão,
instabilidade emocional e agressividade. que é a questão de cada ser
humano; seres sujeitos ao
Aliás, esta agressividade nos remete à cultura desgarramento, a perdas,
passíveis de sermos
patriarcal, em que o homem garante sua afetivamente
despedaçados.
dominação pelo uso da força física. Podemos (MENEZES, 2013, p. 26)
perceber esse sistema na segunda estrofe: “Te
perdoo/Te perdoo por ligares/Pra todos os Vista como um ser que tem que estar a
ergueres a mão/Por bateres em mim”. também da criação dos filhos, ainda existe o
perceber outra posição em que a mulher mulher escolhe trabalhar fora, mesmo tendo
rompe com o ideal da maternidade que lhe é uma criança em casa. As transformações pela
maneira a reproduzir, e a cada vez mais, machista, advindo de uma sociedade alienada
Portanto, a mulher precisa produzir filhos representa na canção “Madalena foi pro mar”
para a manutenção desse sistema social. Além – canção que se opõe a “Mulheres de Atenas”
disso, espera-se da mãe um conjunto de por apresentar a mulher ativa e dona de seu
atitudes, sentimentos, como algo aguardado destino –, uma mulher que dedicou sua vida a
por todos e aceito pela mesma. Normas em cuidar dos seus filhos e que, por alguma
que a sociedade separa o que é dever de uma razão, os abandonou, indo embora em alto
mulher e do homem, como exemplo, a criação mar. Em um dado momento de sua vida, essa
do filho, que muitas vezes imposta como mulher abandona os papéis estabelecidos na
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