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Após a guerra ele foi preso e encarcerado numa "goli otok" ("ilha nua") da região -um
conhecido campo de concentração comunista. Em 1953, ainda nesse campo, ele foi
mobilizado, com outros detentos, para erguer um monumento para comemorar o
décimo aniversário da rebelião de 1943 em Rab. Ou seja, enquanto era prisioneiro
dos comunistas, foi obrigado a erguer um monumento a ele próprio, à rebelião
liderada por ele... Se a injustiça (é mais adequado falar dela que da justiça) poética
significou alguma coisa, foi o seguinte: não teria o destino desse revolucionário sido
aquele da população inteira sob a ditadura stalinista, dos milhões de pessoas que,
primeiro, promovem a derrubada histórica do "ancien régime", na revolução, e,
depois, escravizados pelas novas regras, são obrigados a erguer monumentos em
homenagem a seu próprio passado revolucionário?
Acho que [o historiador britânico] Timothy Garton Ash teria apreciado esse acidente
tragicômico -ele se aproxima do espírito de ironia eticamente engajada que permeia
os melhores momentos de sua obra. Embora Ash seja, formalmente, meu adversário
político, sempre o considerei digno de ser lido, sempre o apreciei por sua
abundância de observações precisas e como fonte confiável de informações sobre
as vicissitudes da desintegração do comunismo no Leste Europeu. Em "The Free
World - America, Europe and the Surprising Future of the West" [O Mundo Livre -
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CHAFURDANDO EM IDEOLOGIA
Pessoas capazes de construir privadas como essas são capazes de qualquer coisa".
Fica claro que nenhuma dessas versões pode ser explicada em termos puramente
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As observações de Ash parecem indicar como, hoje, essa trindade está passando
por um deslocamento estranho de termos com relação a suas posições: os
franceses parecem estar preocupados com a cultura (como salvar seu legado
cultural da vulgar americanização global), os ingleses estão concentrados em
dilemas políticos (devem ou não ingressar na Europa politicamente unificada etc.) e
os alemães -os alemães andam preocupados com a triste inércia de sua economia.
Até aqui, tudo bem, então. Entretanto, quando, na segunda metade do livro, Ash
passa a fazer um diagnóstico geral das ameaças à liberdade após o fim da Guerra
Fria, o tom geral se torna dogmático e simplista, e as soluções propostas soam
impossivelmente ingênuas e declaratórias.
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Apesar disso, fica claro que falta a suas propostas positivas uma fundamentação
sólida numa análise detalhada da situação mundial. Para começar, ele identifica
quatro "novos Exércitos Vermelhos" (sic!), as forças do mal (ou os processos
históricos) que representam (ou vão representar) uma ameaça à democracia e à
liberdade nas próximas décadas: a situação no Oriente Médio (o conflito israelo-
palestino sem solução e a ascensão do fundamentalismo islâmico), a situação no
Extremo Oriente (em que a China vai se transformar, no que diz respeito à
democracia?), a disparidade entre o Norte rico e o Sul pobre e o impasse ecológico
global.
Já aqui não podemos deixar de notar como os quatro pontos de preocupação são
enumerados com simplicidade: Ash simplesmente faz uma lista de quatro áreas que
causam preocupação. Conseqüentemente, as soluções que ele propõe se lêem
mais como uma lista de desejos (os países desenvolvidos devem respeitar as regras
da concorrência de mercado que querem impor aos países subdesenvolvidos; eles
devem fazer mais um esforço concentrado e sério para evitar possíveis catástrofes
ecológicas; a crise do Oriente Médio só pode ser resolvida por meio do esforço
conjunto dos jogadores-chave, nos EUA e na Europa...) do que como um plano de
ação baseado numa análise séria da constelação global.
ANTICLÍMAX
geral do capitalismo de hoje. Essa ligação fica auto-evidente no caso dos problemas
ecológicos e da disparidade econômica entre o Norte e o Sul.
Não estamos falando aqui em "levar a democracia ocidental ao Iraque", mas apenas
em nos livrar do pesadelo chamado Saddam. Para essa maioria da população, a
cautela expressa por liberais ocidentais só pode se configurar como uma hipocrisia
profunda -será que esses liberais realmente se preocupam com o sentimento da
população do Iraque? Podemos apresentar aqui um argumento ainda mais geral: o
que dizer dos esquerdistas ocidentais pró-Fidel Castro, que desprezam aqueles que
os próprios cubanos designam como "gusanos" (vermes), ou seja, os cubanos que
deixaram o país? Entretanto, mesmo com toda a simpatia do mundo pela Revolução
Cubana, que direito tem um típico esquerdista ocidental de classe média de
desprezar um cubano que decidiu deixar Cuba não por desencanto político, mas
também em razão da pobreza (tão grande que envolve a fome concreta)?
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Nesse mesmo veio, eu mesmo me recordo -no início dos anos 1990- de dezenas de
esquerdistas ocidentais que, orgulhosamente, me atiraram na cara o fato de que,
para eles, a Iugoslávia ainda existia e me criticaram por ter traído a oportunidade
única de manter a Iugoslávia -acusação à qual eu sempre respondia que ainda não
estava disposto a viver minha vida de maneira a não desiludir esquerdistas
ocidentais. Existem poucas coisas mais dignas de desprezo, poucas atitudes mais
"ideológicas" (se esse termo possui algum significado hoje, deve ser aplicado aqui),
do que um catedrático esquerdista ocidental desprezando com arrogância (ou, ainda
pior, "compreendendo" de maneira paternalista) um europeu oriental de um país
comunista que anseia pela democracia liberal ocidental e por alguns bens de
consumo.
PRESSÃO BILATERAL
Neste momento não devemos ter medo nem mesmo de formular a pergunta
ingênua: por que não os EUA como polícia global? A situação do pós-Guerra Fria de
fato exigia alguma potência global para preencher o vazio. O problema é outro:
basta recordar a percepção comum que se tem dos EUA como o "novo Império
Romano". O problema dos EUA de hoje não é que ele seja um novo império global,
mas que não o seja, isto é, embora faça de conta que o é, o país continua a agir
como nação-Estado, defendendo implacavelmente seus interesses próprios.
Não surpreende que a reação sérvia fosse de fúria perplexa. O paradoxo notável
contido nessa questão é que, com isso, os EUA rejeitaram a jurisdição de um
tribunal que foi constituído com o apoio pleno (e o voto) dos próprios EUA! Assim,
quando, falando do tribunal de Haia, Ash (em um ensaio publicado em alemão no
"Sueddeutsche Zeitung") fez a afirmação patética de que "de hoje em diante nenhum
Fuhrer ou Duce, nenhum Pinochet, Idi Amin ou Pol Pot deve poder sentir-se a salvo
da intervenção da justiça popular, protegido pelos portões do palácio da soberania
nacional", devemos simplesmente tomar nota daquilo que está faltando nesta lista
de nomes, que, fora a dupla padrão formada por Hitler e Mussolini, contém três
ditadores do Terceiro Mundo.
Onde está pelo menos um nome dos sete grandes - alguém como Kissinger, por
exemplo?
A tortura também não está sendo "terceirizada", deixada a cargo de aliados terceiro-
mundistas dos EUA?
Como Ash bem sabe, a mesma lógica da exceção também se aplica às relações
econômicas: em Cancun, em setembro de 2003, os EUA insistiram na manutenção
dos subsídios aos plantadores de algodão, com isso violando seu próprio conselho
sacrossanto aos países do Terceiro Mundo, aos quais diz que devem suspender os
subsídios estatais e abrir-se ao mercado. E será que o mesmo não se aplica até
mesmo à tortura? A estratégia econômica exemplar do capitalismo atual é a
terceirização -ou seja, repassar o processo "sujo" de produção material (mas
também a publicidade, o design, a contabilidade etc.) a outras empresas, por meio
de subcontratos.
Dessa maneira é fácil fugir das regras ecológicas e de saúde: a produção é feita, por
exemplo, na Indonésia, onde os regulamentos ambientais e de saúde são muito
menos rígidos do que no Ocidente, e a empresa global ocidental que é dona do
logotipo pode isentar-se de responsabilidade pelas violações de outra empresa.
Não está ocorrendo algo homólogo a isso com relação à tortura? A tortura também
não está sendo "terceirizada", deixada a cargo de aliados terceiro-mundistas dos
EUA, que podem realizá-la sem preocupar-se com problemas legais ou protestos
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públicos? E tal terceirização não foi proposta explicitamente pelo jornalista Jonathan
Alter na "Newsweek" [em 5/11/2001], imediatamente após o 11 de Setembro?
Depois de afirmar que "não podemos legalizar a tortura -ela é contrária aos valores
americanos", ele concluiu que "teremos que pensar em transferir alguns suspeitos a
nossos aliados menos escrupulosos, mesmo que isso seja uma hipocrisia. Ninguém
falou que isso seria um processo limpinho". É desse modo que, hoje, a democracia
do Primeiro Mundo funciona cada vez mais por meio da "terceirização" para outros
países de seu lado oculto e sujo.
Existe aqui uma ironia histórica de cujo peso Ash, a meu ver, não se deu conta. Na
década de 1980, Jeanne Kirkpatrick [que foi embaixadora dos EUA na ONU]
elaborou a (então) notória distinção entre regimes "autoritários" e "totalitários", que
foi usada para justificar a política americana de colaborar com ditadores de direita e,
ao mesmo tempo, tratar regimes comunistas com muito mais dureza.
A ironia é que essa distinção cobre à perfeição o que deu errado na ocupação
americana do Iraque: Saddam Hussein era um ditador autoritário corrupto que
buscava poder e era guiado por considerações pragmáticas brutais (que o levaram a
colaborar com os Estados Unidos na década de 1980), e a principal conseqüência
da intervenção americana vem sendo a de gerar uma oposição "fundamentalista",
muito mais radical, que exclui de antemão a possibilidade de qualquer acordo
pragmático.
De maneira geral, a limitação da análise feita por Ash consiste em sua incapacidade
de ver como os elementos que ele condena (o desprezo irredutível pelo ambiente, a
hipocrisia dos dois pesos e duas medidas impostos pelas superpotências ao
mercado mundial etc.) são produtos da própria dinâmica social que sustenta seu
papel de exportadores da democracia e guardiães dos direitos humanos universais.
É verdade que, com frequência, não podemos deixar de nos chocar com a excessiva
indiferença em relação ao sofrimento, mesmo - e especialmente- quando esse
sofrimento é amplamente noticiado pela mídia e condenado -como se fosse o próprio
ultraje diante do sofrimento que nos transformasse em espectadores imobilizados e
fascinados.
Será que representam uma fórmula de justiça diferente ou será que se opõem aos
projetos de justiça coletivos?". Digamos, por exemplo, que é claro que a derrubada
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de Saddam Hussein pelos EUA, legitimada na medida em que pôs fim ao sofrimento
da população iraquiana, não apenas foi motivada por outros interesses político-
econômicos (o petróleo) mas também se baseou numa idéia determinada sobre as
condições políticas e econômicas (democracia liberal ocidental, garantias da
propriedade privada, inclusão do país na economia global de mercado etc.) que
deveriam abrir à população iraquiana a perspectiva de liberdade.
FATO CRUCIAL
Mas existe uma instância privilegiada nessa série: os moradores das favelas nas
novas megalópoles. O crescimento explosivo das favelas nas últimas décadas,
especialmente nas megalópoles do Terceiro Mundo, desde a Cidade do México e
outras capitais latino-americanas até a África (Lagos) e Índia, China, Filipinas e
Indonésia, talvez constitua o fato geopolítico crucial de nossos tempos. O caso de
Lagos, maior nodo no corredor de favelas, com 70 milhões de habitantes, que se
estende de Abidjan [capital da Costa do Marfim] a Ibadan [na Nigéria], é exemplar:
ninguém nem sequer sabe o tamanho de sua população. Oficialmente ela é dada
como sendo de 6 milhões de habitantes, mas a maioria dos especialistas a estima
em 10 milhões. Como em algum momento muito próximo a população urbana do
mundo vai superar a população rural (é possível que, dada a imprecisão dos censos
realizados no Terceiro Mundo, isso já tenha acontecido) e como os favelados vão
compor a maioria da população urbana, não estamos tratando de um fenômeno
marginal, de maneira nenhuma. Estamos assistindo ao crescimento acelerado da
população fora do controle estatal, vivendo em condições metade fora da lei,
terrivelmente carente de formas mínimas de auto-organização.
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DUPLA LIBERDADE
sendo diretamente universal (um acadêmico novaiorquino tem mais em comum com
um acadêmico esloveno do que com negros que vivem no Harlem, a meio
quilômetro de distância de seu campus universitário). Será esse o novo eixo da luta
de classes ou será que a "classe simbólica" é inerentemente dividida, de tal modo
que se possa fazer uma aposta emancipatória na coalizão entre favelados e parte
"progressista" da classe simbólica? O que deveríamos estar buscando são os sinais
de novas formas de consciência social que vão emergir dos coletivos de favelas -
serão eles as sementes do futuro. E isso nos traz de volta ao título -e ao projeto
subjacente- do livro de Ash: nossa maior esperança de um mundo realmente "livre"
está no universo sombrio e triste das favelas.